CIRE
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PRESSUPOSTOS DE RECUSA
Sumário


1. O CIRE, mesmo após a alteração legislativa decorrente da Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro, não faz depender a concessão da exoneração do passivo restante, e em caso de incumprimento do insolvente, de qualquer prorrogação do período de cessão a pedido de qualquer dos legitimados para o efeito, sendo esta uma faculdade e não uma obrigação.
2. Não basta a violação das obrigações impostas pelo artigo 239º, nº1, para considerar haver fundamento automático para recusa da exoneração do passivo.
3. Ao invés, é imprescindível a tríplice verificação, portanto cumulativa, dos seguintes pressupostos: o referido elemento objetivo traduzido na violação de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artº 239; um nexo causal consistente na circunstância de dessa violação decorrer um prejuízo efetivo para a satisfação dos créditos da insolvência; e, por último, um elemento subjetivo traduzido na prática do referido comportamento inadimplente com dolo ou negligência grave.

Texto Integral


Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:
           
Em 22 de fevereiro de 2022 a senhora fiduciária apresentou o relatório a que se refere o artº 240º, nº2, do CIRE.
Em 14 de março de 2022, o senhor juiz prolatou despacho em que, uma vez atingidos os 5 anos, mandou notificar a insolvente para proceder ao pagamento do montante em falta ou requerer o que tivesse por conveniente.
Em 6 de maio de 2022 a insolvente veio justificar a não entrega dos montantes devidos e requerer a prolação de despacho final de exoneração do passivo restante.
Em 16 de maio a senhora fiduciária veio informar que se encontrava em falta o pagamento de €1.427,53 referentes ao 4º e 5º anos de cessão, informando nada ter a opor à concessão da exoneração do passivo restante.
 
Em 1 de junho de 2022 foi prolatado o seguinte despacho:

Ref. ...14: A interpretação do normativo legal não pode ser feita naqueles moldes. A nova lei antecipa o período total do período de cessão na EPR mas não prejudica o tempo já decorrido, nem que os valores devidos até àquela data devam ser entregues.
Assim, no prazo de 10 dias deverá a insolvente:
- requerer a prorrogação prevista no art. 242º-A do CIRE; ou,
- demonstrar o pagamento do valor em falta; ou,
- requerer que se pronuncie o Tribunal, nas circunstâncias atuais do processo, pela concessão da exoneração do passivo restante.
Em 7 de junho de 2022 a insolvente veio justificar o não pagamento das quantias em falta, referindo também que não resultaram de atuação dolosa ou gravemente negligente e, nessa medida, requereu a prolação de despacho final de exoneração do passivo restante.
Em 27 de junho de 2022 foi ordenada a notificação dos intervenientes para os termos do artº 241º do CIRE, ninguém se tendo pronunciado.
Em 20 de setembro de 2022 foi prolatado despacho a ordenar a notificação da insolvente para esclarecer se pretendia usar da faculdade prevista no artº 242º-A do CIRE.
Em 3 de outubro a insolvente apresentou o seguinte requerimento de resposta:
Vem, muito respeitosamente, dizer a V.Exa. que em face do exposto no requerimento anteriormente apresentado, o que se pretende é a concessão da exoneração do passivo restante, nos termos da 2ª parte do nº 1 do artigo 244º do CIRE, posição aliás pugnada pela Srª Administradora de Insolvência no requerimento que juntou aos autos em 16/05/2022.
Sem olvidar o que ficou exposto no requerimento anteriormente apresentado pela requerente, sempre se dirá que nos presentes autos, não houve cessação antecipada do procedimento de exoneração, a qual não foi em momento algum requerida por qualquer credor, pela administradora de insolvência ou pelo próprio fiduciário, nos termos do que dispõe o artigo 243º do CIRE.
Apesar de conhecedores do comportamento incumpridor da requerente, tanto os credores, como o fiduciário nada requereram nos autos para a cessação antecipada da exoneração, sendo certo que o indicado normativo não consente o seu decretamento oficioso.
O nº 1 do artigo 244º do CIRE refere que não tendo havido cessação antecipada da exoneração – como sucedeu nos presentes autos -, o Juiz deve decidir nos 10 dias seguintes ao termo do período de cessão, sobre a respetiva prorrogação ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
O nº 2 do mesmo normativo impõe que a exoneração só será recusada com os mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, ou seja, mediante requerimento devidamente fundamentado apresentado pelos credores da insolvência ou pelo administrador de insolvência se ainda estiver em exercício de funções, não podendo ser determinada oficiosamente pelo Juiz.
A ser assim, considerando o caso dos autos, conclui-se que em momento algum, vieram os credores ou administrador de insolvência requerer a cessação antecipada da exoneração mesmo no conhecimento do incumprimento da requerente, quando notificados dos Relatórios anuais da administradora de insolvência.
E na sequência do despacho proferido nos autos em 01/07/2022, foram notificados a insolvente, a administradora de insolvência e os credores da insolvência para em 10 dias, se pronunciarem sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante da requerente.
A requerente solicitou fosse emitido despacho de concessão de exoneração com os fundamentos expostos no requerimento que apresentou nos autos, sendo que apenas a administradora de insolvência referiu nada ter a opor quanto à concessão da exoneração do passivo restante, depois de informar os valores da dívida que ficou por regularizar do 4º e 5º ano de cessão, e portanto, conhecedora do incumprimento da requerente.
Apesar de conhecedores do incumprimento da requerente, a inércia e silêncio dos credores verificada nos presentes autos, determina que a não concessão da exoneração não pode ser decretada oficiosamente, uma vez que também nesta fase, a recusa depende da verificação dos requisitos estabelecidos para a cessação antecipada da exoneração, ou seja a apresentação de requerimento fundamentado nesse sentido por quem tem legitimidade para o efeito, no caso qualquer credor ou a administradora de insolvência.
Pelo que se Requer a V.Exa. se pronuncie o Tribunal nas circunstâncias atuais do processo, e em face do exposto supra, pela concessão da exoneração do passivo restante à requerente/insolvente.
Em 7 de outubro de 2022 foi prolatado o seguinte despacho, objeto do presente recurso:
Nos presentes autos a Fiduciária no último relatório veio informar que a insolvente se mostrava em falta quanto ao 4º e 5º período de cessão de entregar o montante de € 1427,53.
A insolvente respondeu que não procedeu ao pagamento por absoluta incapacidade económica, atenta a redução do seu vencimento durante o ano de 2021 e 2022, por motivo de doença da própria e assistência a seu filho menor – cfr. declarações do Instituto da Segurança Social juntas ao Relatório Anual da Srª Drª Administradora de Insolvência já junto aos presentes autos.
Por outro lado, foi a insolvente confrontada com a penhora do seu vencimento, requerida pelo Serviço de Finanças ... – cfr. fotocópia que se junta ao presente.
Em 01/06/2022 foi proferido despacho no sentido de a insolvente proceder ao pagamento em falta, requerer a prorrogação ou ser proferido o despacho final previsto no art. 244º do CIRE.
A insolvente respondeu então que, cumpriu, na medida das suas possibilidades económicas, com as obrigações que sobre si impendiam durante o período de cessão do passivo restante; 2) A  requerenteémãedetrêscriançasmenores,sendoquesóapartirdemaiotransatopassouareceber alimentos do pai dos dois filhos mais velhos no valor de 155€ mensais, tendo recebido apenas a quantia mensal de 75€ do Fundo de Garantia de Alimentos nos meses de setembro a abril de 2022 – cfr. fotocópia de notificação judicial que se junta sob designação de DOC. nº..., ...) Durante o 4º e 5º ano de cessão de rendimentos, a requerente teve um acentuado decréscimo nos rendimentos auferidos pela sua entidade patronal, provocados pela pandemia COVID 19, 4) Com efeito, como se pode comprovar pelos Relatórios apresentados pela Srª Administradora de insolvência, a requerente foiforçadaapermanecernasuahabitaçãoduranteosmesesdefevereiroadezembrode2020/2021 (o primeiro mês de licença de maternidade), e meses de março e abril, junho a agosto e outubro a janeiro de 2021/2022 seja por ter contraído o Covid, ou para dar assistência a seus filhos menores; 5) Esta situação provocada pela COVID 19 determinou uma redução do seu vencimento mensal na ordem dos 27%, tendo a requerente passado a receber a quantia média mensal de 520€, quando o seu vencimento é de 705€ mensais; 6) Tal circunstância, aliada ao facto de não receber qualquer sustento para os seus dois filhos mais velhos, obrigou a requerente incumprir no pagamento da renda da sua habitação para com a sua senhoria C..., com quem estabeleceu um acordo de pagamento às prestações – cfr. fotocópia de Acordo de Pagamento que se junta sob designação de DOC nº2 7) Para além do exposto, a requerente foi confrontada com a penhora de 1/3 do seu parco salário, na quantia de 124,38€ mensais, por dívida junto da Autoridade tributária, reclamada nos presentes autos, encontrando-se na atualidade a regularizar mensalmente esta dívida de 1.445€, através do pagamento de 36 prestações – cfr. fotocópia de recibo de vencimento com penhora e dois requerimentos para pagamento às prestações sob DOC nº 3; 8) A requerente foi forçada a recorrer à ajuda de familiares, tendo destinado os valores dos subsídios de férias e natal para reembolsar estes seus familiares das quantias que sempre disponibilizaram à requerente.
9) É certo que a requerente sempre regularizou os pagamentos devidos à Srª AI nos transatos anos de cessão de rendimento, através do pagamento às prestações dos valores devidos, contudo, 10) Atenta a atual situação de pagamento das dívidas supra elencadas, a requerente não tem qualquer disponibilidade financeira para repor a situação, mesmo que através de pagamento repartido em prestações; 11) A violação das obrigações que foram impostas à requerente não resulta de atuação dolosa ougravenegligência por partedesta,nemdeterminouprejuízo paraasatisfação dos créditos sobre a insolvência, atento o valor diminuto em causa. Em face do exposto, Requer-se a V.Exa. seja concedida a exoneração do passivo restante à requerente, nos termos da 2ª parte do nº 1 do artigo 244º do CIRE, posição aliás pugnada pela Srª Administradora de Insolvência no requerimento que juntou aos autos em 04/05/2022.
Sobre a prorrogação do período de cessão do rendimento disponível escreve «Maria de Fátima Ribeiro» in Revista Comercial: (...) a verdade é que, aproveitando a possibilidade conferida a enumeração dos legitimados para requerer a prorrogação do prazo de cessão consta do n.º 1 do artigo 242.º-A, feita em quatro alíneas (de a) a d)); mas apenas na última delas, que se refere ao fiduciário, se especifica que só pode ser requerida a prorrogação se o devedor tiver “violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo www.revistadedireitocomercial.com 2022-07-15 1381 artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência”. Ora, isso não faz sentido. Tendo em conta que a ratio que subjaz à instituição da possibilidade de prorrogação do prazo da cessão é, precisamente, a de proporcionar ao devedor a possibilidade de obter o benefício da exoneração do passivo restante em situações nas quais existiria com grande probabilidade a sua recusa (de outro modo, a decisão final de exoneração teria certamente lugar decorrido o prazo de três anos, sem mais), e que, então, essa recusa deve ter por base alguma das circunstâncias enumeradas no n.º 1 do artigo 243.º (por remissão do n.º 1 do artigo 244.º), de entre as quais apenas a enunciada na alínea d) tem por base o comportamento do devedor durante o período de cessão (ter o devedor “dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência”), só faz sentido que qualquer um dos legitimados para requerer a prorrogação do prazo o possa fazer se no requerimento alegar e provar (como exige o n.º 2 do artigo 242.ºA) que o devedor violou alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º e, com isso, prejudicou a satisfação pelo artigo 23.º, n.ºs 1 e 2, da Diretiva, o legislador português veio estabelecer a possibilidade de prorrogação do período de cessão do rendimento disponível em até três anos, o que, afinal, pode levar a que o período total venha agora a ser superior ao que estava fixado antes da Lei n.º 9/2022, dado que pode chegar aos seis anos. Cumpre salientar que esta possibilidadedeprorrogação,agoraestabelecidanoartigo242.º- A,podeterefeitosmuitopositivos, uma vez que pode servir para evitar que, ao fim de três anos de sacrifícios do devedor, exista uma provável decisão de recusa de exoneração do passivo restante, permitindo-se por este meio que um período adicional de esforço da sua parte possa conduzir à exoneração pretendida. Nos termos da lei, o juiz poderá então agora decidir pela prorrogação do período da exoneração, mas apenas desde que tenha havido requerimento fundamentado do devedor, de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência (se ainda estiver em funções) ou do fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o comportamento do devedor (arredada que parece estar, nos termos deste preceito, a possibilidade de a decisão de prorrogação ser oficiosa). E um dos problemas de interpretação que nos trazem as alterações introduzidas ao regime da exoneração do passivo restante pela Lei n.º 9/2022 é logo este:
dos créditos sobre a insolvência durante o período de cessão. Ou seja, nenhum dos legitimados pode requerer a prorrogação. Note-se que existe uma exceção a esta regra: nos termos da alínea f) do nº 2 do artigo 23.º da Diretiva, o legislador português poderia ter previsto a prorrogação do prazo se ela fosse necessária para “garantir o equilíbrio entre os direitos do devedor e os direitos de um ou mais credores”, desde que esta previsão de um prazo mais longo fosse devidamente justificada, o que in casu não acontece. www.revistadedireitocomercial.com 2022-07-15 1382 sem aalegação eprova destefundamento (o n.º 2especificaclaramentequeo requerente deveoferecer logo a prova dos fundamentos invocados, mesmo tendo o n.º 1, literalmente, apenas exigido fundamentação relativamente ao fiduciário), pois esta prorrogação não se destina especificamente a aumentar a satisfação dos credores da insolvência (através da instituição de um período adicional de cessão), mas antes a compensá-los de uma eventual menor satisfação dos créditos provocada pelo comportamento, doloso ou com culpa grave, do devedor durante o período de cessão, enquanto simultaneamente confere uma segunda oportunidade ao devedor de vir a obter a exoneração do passivo restante – de resto, o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 23.º da Diretiva apenas autoriza a prorrogação do prazo de cessão em casos nos quais tenha existido, de alguma forma, um comportamento censurável do devedor durante o período de cessão. Aliás, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; e decretar a prorrogação apenas se concluir pela existência de “probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional”. Ora, esta remissão para o n.º 1 também só faz sentido se se entender que o disposto na segunda parte da alínea d) se aplica ao requerimento de prorrogação, independentemente do requerente, e não apenas aos casos em que ele seja o fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor. O único caso que pode causar aqui alguma estranheza é o do devedor, pois podemos interrogar-nos acerca das razões que podem levá-lo a requerer, ele próprio, um prolongamento de um www.revistadedireitocomercial.com 2022-07-15 1383 período que implica necessariamente, para si, elevados sacrifícios para mais satisfação dos seus credores. Pois bem, se o devedor puder antecipar que, tendo em conta aquela que foi a sua atuação durante o período de cessão, constarão do processo elementos que, com grande probabilidade, levarão à recusa da exoneração, pode ter todo o interesse em, antecipando-se a uma decisão com tal teor, requerer a prorrogação do período de cessão para, desta feita, tudo fazer para que lhe seja concedida a exoneração. A fundamentação do requerimento passará então, necessariamente, pelo reconhecimento da desconformidade do seu comportamento com aquele que lhe era exigido e a que ele se comprometeu expressamente no pedido de exoneração, nos termos do n.º 3 do artigo 236.º. Concluindo, o segmento “caso este tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência” deve considerar-se relativamente ao corpo do n.º 1 do artigo 242.º-A, e não apenas à sua alínea d). Mas isto supõe um labor corretivo do intérprete, devido a uma deficiente redação da lei – o que deveria ter sido evitado. Outro ponto a considerar é o da duração do prazo de prorrogação – a lei estabelece que será, no máximo, de três anos e que a prorrogação só poderá ter lugar uma única vez. Mas não estabelece os critérios que devem nortear a sua determinação pelo juiz. Mais uma vez, haverá que considerar a ponderação dos interesses que se pretendem aqui conciliar. Assim, o juiz deverá ter em conta a medida em que o incumprimento do devedor prejudicou a satisfação dos credores e estabelecer um prazo durante o qual, previsivelmente, seja neutralizado esse prejuízo, www.revistadedireitocomercial.com 2022-07-15 1384 tentando-se que os credores fiquem em posição o mais possível idêntica àquela em que estariam se o comportamento do devedor não se tivesse afastado do estabelecido. Cumpre ainda referir que o requerimento tem de ser apresentado nos seis meses seguintes à data em que o requerente teve conhecimento dos fundamentos invocados (nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 242.º-A), mas antes de terminado o período de cessão (como resulta do corpo do n.º 1 do artigo). Uma vez que na última parte do n.º 2 do artigo 242.º-A,relativoaprazoeaosfundamentosinvocados,sepodeler“sendooferecidalogoarespetiva prova”, depreende-se que o requerente deverá, logo no requerimento, fazer a prova desses fundamentos e de que ainda não se passaram mais de seis meses desde a data em que deles teve conhecimento. Depois, ainda em termos de prazos, coloca-se aqui um problema interpretativo adicional relativo ao prazo para o juiz proferir despacho nesta matéria: o n.º 1 do 242.º-A parece impor que ele tenha lugar antes de terminado o período de cessão (“o juiz pode prorrogar o período de cessão, até ao máximo de três anos, antes de terminado aquele período”), mas no artigo 244.º, n.º 1, determina-se que “o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A”. Fica então a questão de saber se o despacho de prorrogação deve ter lugar até ao final do prazo de cessão de três anos, ou nos dez dias subsequentes. Parece que será de entender que é o requerimento de prorrogação que deverá ser apresentado até ao final do prazo de cessão de três www.revistadedireitocomercial.com 2022-07-15 1385 anos, podendo o juiz depois decidir nos dez dias subsequentes 12. Mais uma vez, apenas uma interpretação corretiva permite ultrapassar esta contradição do legislador. Então, findo o prazo da prorrogação, juiz deve decidir no prazo de dez dias sobre a exoneração ou a sua recusa, ouvidos o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, nos termos no artigo 244.º, n.º 3.
Ora, perante a descrita materialidade, resulta            que não foi cumprida a obrigação estabelecida na al. c) do nº 4 do art. 239º, na medida em que foram entregues ao fiduciário quantitativos inferiores ao rendimento disponível auferido durante o período da cessão.
Ora, a lei atual possibilita a prorrogação do aludido período até ao máximo de 36 meses e mostrando-se em falta o cumprimento de obrigações, não cremos que novo desenho legal se possa prescindir desta fase, de forma a tentar o cumprimento integral das obrigações impostas e conceder o benefício em causa sem esse derradeiro esforço.
Deste modo, não se concede nos termos do art. 244º, nº2 do CIRE a exoneração do passivo restante de AA.
Notifique e D.N.
Inconformada, a insolvente apelou, formulando as seguintes conclusões:
1)Vem o presente recurso por discordância quanto ao aspeto jurídico em que o despacho recorrido se fundamentou, quando certo é que nem a recorrente ou qualquer outro interveniente no processo, credores ou fiduciária, requereram a prorrogação do prazo de exoneração do passivo restante ou a cessação antecipada do período de exoneração.
2) Por requerimento apresentado nos autos pela recorrente, datado de 03/10/2022, foi requerido pela recorrente a concessão da exoneração do passivo restante, em face das dificuldades económicas suportadas nos anos de 2020/2021 e 2021/2022, e considerando ainda a alteração do prazo do período de cessão de rendimentos de 5 para 3 anos, previsto na Lei 9/2022 de 11 de janeiro.
3)Contudo oMMº Juiz aquo veioproferir o despachode que orase recorre, junto aos autos em 07/10/2022 com a referência ...60.
4) O despacho em sujeito, proferido 8 meses após o termo do período de
cessãode rendimentos, é omisso quanto aos factos alegados pela recorrente, que foram comprovados documentalmente nos autos;
5) O despacho recorrido fundamenta a não concessão da exoneração em extensas considerações sobre a prorrogação do período de cessão de rendimento disponível, prorrogação que não foi requerida pela insolvente, existindo contradição no último parágrafo do despacho recorrido, entre a fundamentação, e a decisão de não concessão.
6) O despacho proferido não especifica os fundamentos para a não concessão da exoneração solicitada pela recorrente, limitando-se a referir que “… não foi cumprida a obrigação estabelecida na al. c) do 4 do art. 239º, na medida em que foram entregues ao fiduciário quantitativos inferiores ao rendimento disponível auferido durante o período de cessão.”
7) Apesar de aludir à possibilidade de prorrogação do período de cessão, como forma de tentar o cumprimento integral das obrigações impostas, o MMº Juíz a quo, termina concluindo “…Deste modo não se concede nos termos do art.244ºnº2 do CIRE a exoneração do passivo de AA”
8) O que evidencia notória contradição entre a fundamentação e a decisão.
9) Nada é dito no despacho de que se recorre, quanto à verificação dos pressupostos e requisitos legalmente exigidos para a recusa e, concretamente, quando é certo que a recusa da exoneração do passivo restante com fundamento na violação pelo insolvente, durante o período da cessão, exige, cumulativamente, uma conduta dolosa ou gravemente negligente desse devedor, um prejuízo para satisfação dos credores da insolvência e bem assim um nexo causal entre aquela conduta e esse dano.
10) O Tribunal a quo recusou a exoneração do passivo restante por despacho proferido em 07/10/2022, fazendo-o numa altura em que já se mostrava ultrapassado o período de cessão e sem qualquer fundamento que tenha sido carreado aos autos pela Exma. Fiduciária, que contrariamente, se pronunciou no sentido de ser concedida a exoneração, por ter conhecimento direto da realidade económica da recorrente/insolvente

11) A recusa do MMº Juiz a quo também não se sustentou em qualquer declaração dos credores que, conhecedores do incumprimento no4º e 5º ano de cessão, não apresentaram qualquer pedido de cessação antecipada da exoneração, nem se se opuseram ao pedido de exoneração feito pela insolvente/recorrente, quando notificados para tal.
12) A decisão recorrida não foi fundamentada e baseia-se apenas na circunstância da insolvente ter entregue valores inferiores ao rendimento disponível auferido durante o período de cessão, ignorando os factos carreados aos autos pela insolvente, ao ter sido Mãe de um terceiro filho e só após maio de 2022 ter logrado receber alimentos do Pai dos seus dois filhos maiores; ter sido alvo de uma penhora da Autoridade Tributária e de ameaça de processo de despejo por parte da C... por falta de pagamento das rendas, o que obrigou a insolvente a estabelecer acordos de pagamento dos débitos às prestações;
13) O MMº Juiz a quo desconsiderou outros factos com relevo para esta questão, invocados e documentados pela recorrente/insolvente e confirmados pela Srª Fiduciária, nomeadamente a inevitável redução dos rendimentos causado pela COVID e a necessidade de ocorrer a necessidades prementes de seus três filhos menores neste período conturbado que assolou o País e o mundo!
14) Decorre dos documentos juntos pela recorrente e não contraditados, que as despesas da insolvente nestes anos de 2020 a 2022 não lhe davam folga para entregar à Srª Fiduciária qualquer quantia.
15) Dos autos não resulta, como exige o artigo 243°, n.° 1, alínea a), do CIRE, que a recorrente/insolvente dolosamente ou com grave negligência tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
16) Sendo estes requisitos de verificação cumulativa - artigo 243°, n.° 1,

alínea a), do CIRE.
17) No caso subjudice a recusa da exoneração foi decidida com fundamento na violação pela recorrente/insolvente das obrigações que sobre a mesma impendia, ao abrigo do disposto no artigo 239°, n.° 4, alínea c), do CIRE, sem que a sentença qualifique sequer a conduta da insolvente como sendo dolosa ou gravemente negligente ou justifique por alguma forma que a apontada falta de entrega à Srª Fiduciária dos rendimentos objecto de cessão, prejudicou a satisfação dos créditos da insolvência e em que medida.
18) Pelo que deve o despacho recorrido ser considerado nulo por omissão de pronúncia e falta de fundamentação nos termos do disposto nas b), c) e d) do artigo 615º do C.P.C. por aplicação do artigo 17º do CIRE.
Por outro lado,

19) O nº 1 do artigo 244º do CIRE refere que não tendo havido cessação antecipada da exoneração – como sucedeu nos presentes autos -,o Juiz deve decidir nos 10 dias seguintes ao termo do período de cessão, sobre a respetiva prorrogação ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor
20) O nº 2 do mesmo normativo impõe que a exoneração só será recusada com os mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, ou seja, mediante requerimento devidamente fundamentado apresentado pelos credores da insolvência ou pelo administrador de insolvência se ainda estiver em exercício de funções, não podendo ser determinada oficiosamente pelo Juiz.
21) A ser assim, considerando o caso dos autos, conclui-se que em momento algum, vieram os credores ou a Srª Fiduciária, quando notificados do resultado dos Relatórios anuais, requerer a cessação antecipada da exoneração, mesmo no conhecimento do incumprimento da recorrente.
22) Atitude omissa, que todos os intervenientes, credores e Srª Fiduciária, mantiveram na sequência do despacho proferido nos autos em 01/07/2022, destinado à pronúncia sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante da requerente.
23) A recorrente solicitou fosse emitido despacho de concessão de exoneração com os fundamentos expostos no requerimento que apresentou no autos, sendo que a Srª Fiduciária referiu nada ter a opor quanto à concessão da exoneração do passivo restante, depois de informar os valores da dívida que ficaram por regularizar do 4º e 5º ano de cessão, e portanto, conhecedora do incumprimento da recorrente.
24) Apesar de conhecedores do incumprimento da recorrente, a inércia e silêncio dos credores verificada nos presentes autos, determina que a não concessão da exoneração não pode ser decretada oficiosamente, uma vez que também nesta fase, a recusa depende da verificação dos requisitos estabelecidos para a cessação antecipada da exoneração, ou seja a apresentação de requerimento fundamentado nesse sentido por quem tem legitimidade para o efeito, no caso qualquer credor ou a administradora de insolvência.
25) Pelo que entende a recorrente, não se encontrarem preenchidos os pressupostos e requisitos legais para a recusa da concessão da exoneração do passivo restante à recorrente/insolvente.
26)Nestes termos e nos melhores de direito deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência:
- Ser revogado o despacho recorrido por outro que conceda a exoneração final à recorrente, por verificação dos pressupostos de que a mesma
depende, nos termos do artigo 244.º do CIRE;

27) Subsidiariamente, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que decida, por inexigibilidade, a extinção da obrigação de cessão do rendimento disponível relativamente ao quarto ano, uma vez que relativamente ao qual, atento o decurso do prazo de um ano, não foi apresentado qualquer requerimento a que alude o n.º 2 do art. 243.º do CIRE, e conceder à recorrente a possibilidade de entregar o valor do quinto ano, designadamente por um plano prestacional;

ASSIM SERÁ FEITA A DEVIDA E ACOSTUMADA JUSTIÇA
Não houve contra-alegações.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.

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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são, assim, apurar se a decisão é nula e, em caso de resposta negativa, se se verificam os pressupostos de exoneração do passivo.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:
Os factos provados com relevância para a decisão do presente recurso são os que constam do relatório antecedente.
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B. Fundamentos de direito. 
Antes de apreciar o mérito do recurso impõem-se duas considerações prévias.
A primeira é a de que o tribunal recorrido omitiu o despacho a que se refere o artº 617º, nº1, do CPC, não se pronunciando, como era suposto, sobre as nulidades arguidas.
Não obstante, nos termos do artº 617º, nº5, do CPC, e até por força do caráter urgente do processo, não consideramos indispensável a baixa do mesmo à 1ª instância, que assim prossegue termos.       
A segunda consideração prende-se com a circunstância de que seguiremos muito de perto o acórdão que este coletivo prolatou no processo nº 2443/12.... atenta a similitude das questões e a desejável coerência decisória.
Desde logo, a primeira questão a resolver é a da arguida nulidade da sentença, como impõe o artº 608º, nº1, do CPC, ex vi artº 663º, nº2, do CPC.
Dispõe o artº 244º, nº2, do CIRE, que “A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.”
Por seu turno, dispõe o artº 243º, para o qual a disposição remete:
Artigo 243.º
Cessação antecipada do procedimento de exoneração

1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respetiva prova.
3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
4 - O juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência.


Contém as alterações dos seguintes diplomas:
- Lei n.º 9/2022, de 11/01
Consultar versões anteriores deste artigo:
-1ª versão: DL n.º 53/2004, de 18/03


A recorrente alega que o despacho recorrido transcreve considerações sobre a prorrogação do prazo para exoneração do passivo, sendo certo que a mesma não foi requerida por quem quer que seja, não se tendo pronunciado sobre os factos que a recorrente havia alegado em 3 de outubro de 2022 para fundamentar a não entrega integral das quantias devidas ao senhor fiduciário. Mais alegou que o despacho recorrido não especifica os fundamentos para a não concessão da exoneração solicitada pela recorrente, limitando-se a referir que não foi cumprida a obrigação estabelecida na alínea c) do nº 4, do artº 239º do CIRE. Imputa ao despacho recorrido as nulidades previstas no artº 615º, nº1, alíneas b), c), e d), do CPC.
As causas de nulidade dos despachos, (ex vi artº 613º, nº3, do CPC) estão previstas no artº 615º do CPC:

Causas de nulidade da sentença:

1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.
3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.

As nulidades da decisão são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença, o que não é confundível com o erro de julgamento, ou sequer com um alegado erro na forma de processo.
Conforme se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17/12/2018, disponível em www.dgsi.pt:
Os vícios determinativos de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciados no referido art. 615º, do CPC, e reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença, tratando-se de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, a vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal.
Respeitam a vícios da estrutura da sentença os fundamentos enunciados nas alíneas b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, e respeitam a vícios atinentes aos limites da sentença, os enunciados nas alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia - e e) - pronuncia ultra petitum.
Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” (Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.).
Diferentemente desses vícios, são os erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com erros ocorridos ao nível do julgamento da matéria de facto ou ao nível da decisão de mérito proferida na sentença/decisão recorrida, decorrentes de uma distorção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error iuris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa.
Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, sendo que esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença (vícios formais), sequer do poder à sombra do qual a sentença é proferida, mas ao mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in iudicando, atacáveis em via de recurso (Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00...).
Acresce precisar que conforme decorre do que se vem dizendo, os vícios da decisão da matéria de facto constituem erros de julgamento na vertente de “error facti” e como tal nunca constituem causa de nulidade da sentença com fundamento no art. 615º do CPC.
Na verdade, a matéria de facto encontra-se sujeita a um regime de valores negativos – a deficiência, a obscuridade ou a contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação -, a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação, não constituindo, por conseguinte, causa de nulidade da sentença, mas antes sendo suscetíveis de dar lugar à atuação pela Relação dos poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto operada pela 1ª Instância, nos termos do disposto nos n.º 1 e 2 do art. 662º do CPC (Ac. RC de 20/01/2015, Proc. 2996/12.0TBFIG.C1).”
É certo que o tribunal recorrido não se pronunciou concretamente, como devia, sobre os fundamentos invocados pela insolvente como excludentes de culpa da sua conduta, nos requerimentos que efetuou, mormente o apresentado em 3 de outubro de 2022, e que, na perspetiva da mesma imporiam a concessão da exoneração do passivo restante. Mas, será que, nessa sequência, se verificam as nulidades invocadas?
Como já escrevemos em acórdãos anteriores “O despacho tem um contexto fáctico e temporal, tendo de ser integrado no mesmo, à luz dos demais atos praticados no processo. Casos há, em que se consegue perceber perfeitamente o raciocínio feito pelo tribunal recorrido, bem como as consequências que retirou e as razões pelas quais o fez. Sendo percetível este iter cognitivo, que a consulta do processo sempre complementa, resultando perfeitamente cognoscível e sindicável a motivação do tribunal e a razão pela qual o tribunal recorrido decidiu como o fez, deve considerar-se inexistir qualquer nulidade do despacho.” – v.g. Ac.TRG de 20/10/2022, processo 5468/19.9T8VNF-NA.G1.
Atenta a cronologia e teor dos atos praticados no processo, descrita no relatório deste acórdão, e se bem interpretamos o despacho do tribunal recorrido, o que este entendeu foi que, a despeito dos factos alegados pela insolvente para justificar o incumprimento, e que ninguém pôs em causa, a exoneração não podia ser concedida sem que antes houvesse uma posterior tentativa de cumprimento, o que pressupunha o pedido de prorrogação, o que não foi feito. Com efeito, no penúltimo parágrafo do despacho recorrido consta o seguinte: “Ora, a lei atual possibilita a prorrogação do aludido período até ao máximo de 36 meses e mostrando-se em falta o cumprimento das obrigações, não cremos que novo desenho legal se possa prescindir desta fase, de forma a tentar o cumprimento integral das obrigações impostas e conceder o benefício em causa sem esse derradeiro esforço.”
Cremos assim explicada a razão pela qual o tribunal recorrido não se pronunciou especificadamente sobre os factos alegados pela recorrente e, face ao raciocínio seguido, nesta perspetiva, não se podem ter por verificadas as nulidades invocadas e constantes das alíneas b), c), e d), do artº 615º do CPC.
Não significa isto, no entanto, que consideremos correta a opção do tribunal recorrido. Com efeito, importa sempre ponderar cada caso concreto, apreciando os factos alegados à luz das diversas perspetivas de solução.
Como referem Abrantes Geraldes, Luís Filipe Pires de Sousa e Paulo Pimenta[1], “Tanto na exposição dos factos que se julgue provados como daqueles que considere não provados, o juiz não deve orientar-se por uma preconcebida solução jurídica do caso, antes deve assegurar a recolha de todos os factos que se mostrem relevantes em função das diversas soluções plausíveis da questão de direito. Na verdade, não é de excluir que, apesar de o concreto juiz entender que basta um determinado enunciado de factos provados ou não provados para que a ação proceda ou improceda, o tribunal superior, em sede de recurso, divirja daquela perspetiva e considere outras soluções dependentes do apuramento de outros factos. Em tais circunstâncias, melhor será que o juiz, de forma previdente, use um critério mais amplo, inscrevendo na matéria de facto provada e não provada todos os elementos que possam ter relevo jurídico, evitando ou reduzindo as anulações de julgamento decretadas ao abrigo do artº 662º, nº2, alínea c), in fine.”
Aqui chegados, e improcedendo, embora, as nulidades arguidas, o que se delibera, não podemos concordar com o tribunal recorrido, pelas razões que infra se exporão.
O tribunal recorrido entendeu que não foi cumprida a obrigação estabelecida no artº 239º, nº4, alínea c), do CIRE. É um facto objetivo. Mas, a extração das consequências tem de ser feita no cotejo com o que dispõe o artº 243º, nº1, mormente e para este caso, com o que dispõe a alínea a).
O recorrente insurgiu-se contra a circunstância de o tribunal recorrido ter oficiosamente decidido pela recusa da exoneração do passivo sem que tal questão haja sido suscitada pelos credores.
O tribunal recorrido baseou a sua decisão no disposto no artº 243º, nº1, alínea a), do CIRE, por remissão do artº 244º, nº2, do mesmo diploma.
Desde logo, a interpretação do artº 243º, nº1, alínea a), do CIRE, e mesmo o argumento literal, impõem a solução interpretativa (artº 9º do Código Civil) de que o mecanismo do nº1 seja espoletado a requerimento dos interessados ali indicados, ao invés do nº4 do mesmo preceito, onde o legislador utilizou expressamente o advérbio oficiosamente.
Se o legislador houvesse querido que o nº 1 fosse aplicado oficiosamente, tê-lo-ia dito.
Aliás, constitui jurisprudência pacífica que o incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração (que o artº 244º, nº2, do CIRE, refere estar subordinado aos mesmos fundamentos) não pode ser iniciado oficiosamente pelo tribunal, como resulta de vários arestos:
(…) A cessação antecipada da exoneração ocorre:
- logo que se verifique a satisfação integral dos créditos da insolvência – artº 243º, nº4, do CIRE;
- sempre que o procedimento venha a ser extinto antes de ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante; e
- sempre que se verifique supervenientemente que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração. Esta última situação ocorrerá a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência se ainda se encontrar em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, nos casos tipificados no nº1 do artº 243º do CIRE. (…) – AcRC de 7/04/2016, processo nº 3112/13.7TJCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, tal como os demais infra citados.
(A cessação antecipada do procedimento de exoneração) Deve ser pedida ao juiz através de requerimento apresentado por qualquer credor, pelo administrador da insolvência, se ainda estiver em funções ou pelo fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor (…) – AcRP de 11/10/2017, processo nº 1050/13.2TBOAZ.P1.
(…) O juiz não pode, oficiosamente, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração com fundamento em violação, pelo devedor, das obrigações que lhe foram impostas. (…) – AcRC de 6/03/2018, processo nº 3221/12.0TBLRA.C1.
O artigo 243º do CIRE dispõe, no que tange à cessação antecipada do procedimento de exoneração, o seguinte: 1. Antes ainda de terminado o período de cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando: a) o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artº 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência. – AcSTJ de 9/04/2019, processo nº 279/13.8TBPCV.C1.S2.
A decisão de recusa da exoneração compete ao juiz mediante requerimento fundamentado de algum credor ou administrador da insolvência (se ainda estiver em funções), ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido pela assembleia de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor (cf. Artºs 243º, nº1, in fine, e 241º, nº3, do CIRE). Está, por isso, vedado ao Tribunal desencadear tal incidente oficiosamente. – AcRG de 22/10/2020, processo nº 1335/17.9T8GMR.G1.
O Tribunal não pode conhecer oficiosamente a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, a que alude o artº 243º, nº1, alíneas a), b), e c), do CIRE, uma vez que, ao contrário do nº4 do preceito, o impulso processual deve ser promovido pelos credores, do Administrador da Insolvência ou do fiduciário. – AcRE de 3/12/2020, processo nº 92/14.5T8OLH.E1.
(…) 3. O incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração não pode ser iniciado oficiosamente pelo tribunal, mas apenas mediante requerimento de credor da insolvência, do administrador de insolvência, caso este ainda se encontre em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, em que o requerente requeira essa cessação antecipada do procedimento de exoneração (pedido) e indique os fundamentos (causa de pedir) em que sustenta esse pedido. (…) – AcRG de 19/05/2022, processo nº 4112/18.6T8VCT.G1.
Compulsados os autos, inexiste qualquer requerimento por qualquer dos referidos no artº 243º, nº1, alínea a), do CIRE, a pedir a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nem posteriormente, nos termos artº 244º, nº1, do CIRE, ouvidos o fiduciário e os credores, qualquer deles se pronunciou.
A questão que então se coloca é a de saber se essa impossibilidade de conhecimento oficioso pelo juiz de concretas causas de cessação previstas no artº 243º, nº1, do CIRE que não mereceram reação por parte do fiduciário e/ou dos credores, também vale para os casos em que não está em causa a cessação antecipada mas já a decisão final do artº 244º do CIRE. E a resposta não pode deixar de ser afirmativa. Com efeito, a remissão constante do artº 244º, nº2, do CIRE não faz qualquer ressalva. Depois, parece-nos carecer de sentido que ao juiz estivesse vedado o conhecimento oficioso ainda antes de decorrido o prazo de cessão, mas que já pudesse conhecer oficiosamente dessas mesmas causas em sede de decisão final, sem que, ouvidos o fiduciário e os credores qualquer deles haja requerido a não concessão da exoneração do passivo restante, ou seja, tinha de deixar decorrer o prazo todo para depois chegar a uma conclusão que antes lhe estava vedada. Manifestamente, tal seria uma interpretação desconforme ao imposto pelo artº 9º do Código Civil.
Concluímos, assim, que também em sede de decisão final da exoneração é vedado ao juiz o conhecimento oficioso dos factos referidos no artº 243º, nº1, do CIRE, aplicável por remissão, factos que não motivaram qualquer reação do fiduciário e/ou dos credores.
Mas, mesmo que considerássemos que esta apreciação oficiosa era possível, inexistem factos provados que permitam considerar que o incumprimento da insolvente tenha resultado de uma atuação dolosa ou gravemente negligente, nos termos e para os efeitos do artº 243º, nº1, alínea a), do CIRE.
Acresce que, e com todo o respeito o dizemos, não encontramos fundamento legal para fazer depender a concessão da exoneração do passivo restante de uma derradeira tentativa a efetuar na sequência de prorrogação. Com efeito, para além de a lei não o impor expressamente, ninguém referido no artº 242º-A do CIRE pediu a prorrogação. Se, ainda assim, houvesse factos para considerar preenchida a alínea a) do nº 1 do artº 243º do CIRE, e face ao disposto no artº 239º, nº4, alínea c), poderíamos aceitar a recusa da exoneração. É certo que se poderia questionar a intempestividade da comunicação das razões para o incumprimento. Mas nem os credores nem a senhora fiduciária (que até se manifestou favorável à concessão) o fizeram.
Com efeito, não basta a violação das obrigações impostas pelo artigo 239º, nº1, para considerar haver fundamento automático para recusa da exoneração do passivo. Ao invés, é imprescindível a tríplice verificação, portanto cumulativa, dos seguintes pressupostos: o referido elemento objetivo traduzido na violação de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artº 239; um nexo causal consistente na circunstância de dessa violação decorrer um prejuízo efetivo para a satisfação dos créditos da insolvência; e, por último, um elemento subjetivo traduzido na prática do referido comportamento inadimplente com dolo ou negligência grave. E os factos não consentem a conclusão da verificação dos citados requisitos.
Assim, na procedência do recurso, revoga-se o despacho recorrido e delibera-se conceder à insolvente a exoneração do passivo restante.
**********
V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto, revogando o despacho recorrido e concedendo à insolvente a exoneração definitiva do passivo restante.
Custas pela massa insolvente (artº 304º do CIRE).
Notifique.
                       
Guimarães, 19 de janeiro de 2023.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1ª Adjunta: Maria Eugénia Pedro.
2º Adjunto: Pedro Maurício.


[1] Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 719, nota 15.