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PEDIDO DE INSOLVÊNCIA
CRÉDITO POR SUPRIMENTO
REGIME DE SUCESSOR MORTIS CAUSA
Sumário
1 - A definição de contrato de suprimento consta do artº 243º do Código das Sociedades Comerciais, sendo doutrinalmente sintetizada como “o contrato entre o sócio e a sociedade, pelo qual: a) ou o primeiro empresta à segunda dinheiro ou outra coisa fungível, ficando esta obrigada à restituição de outro tanto do mesmo tipo; b) ou o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do pagamento de créditos seus sobre ela”. 2 - Na ausência de factos que permitam concluir que os empréstimos foram expressamente qualificados pelas partes como suprimentos, a doutrina entende que tal qualidade se presume verificada que seja uma de três situações: - se as partes estipularam um prazo de reembolso superior a um ano, sendo indiferente que esta estipulação seja contemporânea ou posterior ao contrato; - se as partes não estipularam qualquer prazo e o reembolso não foi exigido durante um ano; - se as partes estipularam um prazo inferior a um ano, mas o reembolso não foi exigido durante um ano. 3 - Para a caracterização de um contrato como de suprimento são irrelevantes as motivações do sócio mutuante, não obstando à mesma a intenção de financiamento de uma terceira sociedade, a realizar por intermédio da mutuária, e da qual o mutuante era também sócio. 4. A impossibilidade prevista no artº 245º, nº2, do Código das Sociedades Comerciais de requerer a insolvência estende-se aos herdeiros do sócio credor por suprimentos prestados a sociedade anónima de pequena dimensão, mesma que a mesma tenha intervindo como veículo de financiamento de terceira sociedade, por se manterem as razões que determinaram tal proibição ao credor primitivo, mormente as relativas à necessidade de proteção dos credores sociais.
Texto Integral
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – Relatório:
AA, Contribuinte Fiscal Nº ..., natural da Freguesia ..., concelho ... e residente na Praça ..., Freguesia ..., ... Guimarães, na qualidade de BB de CC, veio requerer a declaração de Insolvência de “R..., S.A.”, pessoa coletiva nº ..., com sede na ..., Rua ..., freguesia ..., ... Guimarães, registada na Conservatória do Registo Comercial ..., com o capital social de 50.000,00€.
Alega para tanto, e em síntese, que o acervo da herança é constituído por um crédito, no valor de 1.366.544,33€ (um milhão e trezentos e sessenta e seis mil e quinhentos e quarenta e quatro euros e trinta e três cêntimos), sobre a Requerida, emergente de empréstimos efetuados em dinheiro, pelo falecido, àquela sociedade, na qualidade de seu acionista verifica-se a necessidade de o cabeça de casal, aqui Requerente, interpor, na sobredita qualidade, a presente ação, porquanto a Requerida dissipou parte substancial dos seus bens. Tem conhecimento que a Requerida vendeu o imóvel designado “...”, pelo preço de 850.000,00, o qual constituía o seu ativo de maior relevância, por corresponder a cerca de 90%, do total dos seus ativos. Os ativos da Requerida passaram a cingir-se: • 7950 ações no capital social da sociedade “T..., SA.”, NIPC ... com o valor nominal e total de 795.000,00€ (setecentos e noventa e cinco mil euros) e o valor contabilístico ajustado de zero euros, • O recheio que integrava o supra identificado imóvel, com o valor contabilístico atual de 10.000,00€ (dez mil euros), • O prédio urbano sito no Lugar ..., União das Freguesias ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...3, e inscrito na matriz sob o artigo ...9, correspondente a um edifício em ruínas, com o valor patrimonial tributável de 38.052,40€ (trinta e oito mil e cinquenta e dois euros e quarenta cêntimos) e contabilístico de 2.000,00€ (dois mil euros).
Mais alega que ainda que se entenda que o falecido celebrou, com a Requerida, um verdadeiro contrato de suprimento, o que só por mero dever de patrocínio se concebe, sempre se terá de atender ao disposto no artigo 243º, número 5, do CSC, do qual resulta a inaplicabilidade do regime dos suprimentos ao crédito dos sucessores mortis causa que surge como novo titular dos créditos deixados pelo de cujus, por conseguinte, não sendo a herança credora por suprimentos, encontra-se o Requerente legitimado a interpor a presente ação.
O falecido, no âmbito da sua qualidade de acionista da Devedora, emprestou-lhe o valor global de 1.366.544,33€ (um milhão e trezentos mil e sessenta e seis mil e quinhentos e quarenta e quatro euros e trinta e três cêntimos) na condição da sua restituição, nunca aquele valor, ou parte dele, foi, até à data, devolvido, em 12/10/2018, o Requerente interpelou a Requerida, concedendo-lhe um prazo de 8 (oito) dias para que esta efetuasse o pagamento do valor em divida, o que não surtiu efeito, visto que a Requerida não recebeu a dita carta, impondo ao Requerente o envio de nova carta, desta vez através de correio simples, persistindo aquela em não pagar. Ou seja, a herança mantém um crédito sobre a Requerida no montante, a título de capital, de 1.366.544,33€ (um milhão e trezentos mil e sessenta e seis mil e quinhentos e quarenta e quatro euros e trinta e três cêntimos). Ao passivo representado pelo crédito do Requerente, soma-se ainda, e pelo menos, uma dívida de cerca de 170.000,00€ (cento e setenta mil euros), à Banco 1..., donde forçoso é concluir que o passivo da Requerida supera largamente os seus ativos, recordando que aquele é, pelo menos, de 1.500.000,00€ (um milhão e quinhentos mil euros) e estes de valor não excedente a 60.000,00€ (sessenta mil euros). A Requerida encontra-se sob a alçada do artigo 35º do Código das Sociedades Comerciais, visto que, como decorre destes últimos documentos, o seu capital próprio, à data de 31/12/2017, era negativo em cerca de 400.000,00€, além disso, a Requerida não depositou as Contas relativas ao ano de 2017, no prazo legalmente estipulado para o efeito, conforme resulta de pesquisa efetuada ao portal MJ.
Conclui que a Requerida se encontra em situação de insolvência, por verificação dos factos índice previstos nos artigos 20º, número 1, alíneas b), d), e) e g) do CIRE.
Juntou documentos e procuração.
Por despacho proferido a 04/02/2019, tendo por referência a factualidade alegada quer em sede do requerimento inicial, quer do requerimento que antecedia, entendeu-se haver justificado receio de atos de má gestão, nomeadamente na perda de ativos importantes da requerida em prejuízo dos credores, tendo, nos termos do disposto no artigo 31.º do CIRE, sido nomeado Administrador Judicial Provisório, indicado por sorteio eletrónico.
No mesmo despacho foi determinada citação da Requerida.
Devidamente citada, apresentou-se a Requerida a deduzir oposição, alegando, em síntese, que no caso em apreço, o requerente está a exercitar um direito em manifesto prejuízo para o respetivo titular, em manifesto prejuízo para os herdeiros da herança indivisa de CC. Resulta óbvio do alegado pelo requerente que o crédito invocado é relativo a suprimentos, na aceção do disposto no artigo 243.º do Cód. Soc. Comerciais, sendo que o artigo 245.º n.º 2 é claro e inequívoco: “Os credores por suprimentos não podem requerer, por esses créditos, a falência da sociedade.”. Não obstante a previsão normativa do contrato de suprimento estar inserida no regime das sociedades por quotas, é pacífico que as normas do instituto em causa são aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao financiamento das sociedades anónimas, para o que cita jurisprudência, pelo que o Requerente, na qualidade de cabeça de casal da herança alegadamente credora por suprimentos, não pode requerer, por esse crédito, a insolvência da requerida, atento o disposto no artigo 245.º n.º 2., deverá, pois, ser julgada procedente a exceção de ilegitimidade ativa do requerente, com a consequente absolvição da instância da requerida - cfr. artigos 577.°, alínea e) e 278.°, n.° 1, alínea d), todos do Cód. Proc. Civil.
Alega ainda que a comunicação que o requerente alega ter remetido à requerida – que, conforme o mesmo confessa, nunca chegou a ser recebida pela requerida, – não constituiu forma legalmente válida de interpelação desta última para restituição da quantia mutuada pelo De Cujus CC, não tendo sido estipulado prazo de reembolso, a restituição da quantia mutuada pelo De Cujus CC exige, forçosamente, a prévia instauração de ação para fixação judicial de prazo, faltando este pressuposto, jamais a requerida poderá ser declarada insolvente com base em tal crédito, sendo que nem tão pouco assiste ao requerente o direito de exigir judicialmente a condenação da requerida a restituir a mencionada quantia através da propositura de ação de processo comum, sem que previamente instaure a dita ação para fixação judicial de prazo. Também por força desta omissão se impõe a absolvição da instância da requerida. Tem vindo a entender-se em inúmeros arestos dos tribunais superiores, que o simples pedido de insolvência formulado por credor por suprimentos consagra um verdadeiro “venire contra factum proprium”, quer se trate de credor direto, ou credor pela via sucessória, no caso em apreço, há ainda que ter em conta que foi requerente que conduziu a requerida ao seu atual estado, na qualidade de administrador, ao transferir o património pertencente à mesma para uma sociedade que constituiu para o efeito com ajuda de terceiras pessoas. o requerente, apesar de ser cabeça de casal da herança de CC, nenhum interesse tem na boa administração da herança, devido ao facto de se encontrar insolvente e de estar, segundo se julga, apreendido o seu quinhão hereditário, numa atitude de vingança para com os herdeiros requerentes da sua destituição definitiva com justa causa do cargo de administrador da requerida, pretende condenar a empresa da família à malograda sorte da insolvência, que tão bem conhece, age, pois o requerente com manifesta má-fé e em situação clara de abuso de direito, o que implica a improcedência da ação, nos termos do disposto no artigo 334.º do Cód. Civil.
Conclui a Requerida que não se encontra absolutamente impedida de cumprir as suas obrigações, tem cumprido com todas as suas obrigações vencidas, conforme resulta dos factos que expõe, não regista um passivo superior ao ativo, não se encontrando, pois, reunidos os pressupostos necessários ao requerimento da respetiva insolvência, devendo a presente ação ser declarada não provada e improcedente, absolvendo-se a requerida do pedido contra si formulado.
Foi prolatada sentença com o seguinte dispositivo: Pelo exposto, julga-se reconhecida/verificada a ilegitimidade do Requerente para com fundamento exclusivo num crédito de suprimentos, como sucede no caso em apreço, peticionar a declaração de insolvência da sociedade Requerida e, consequentemente, absolve-se a Requerida do pedido.
Inconformado com a decisão, o recorrente apelou, formulando as seguintes conclusões:
1. As questões que aqui se colocam à douta apreciação do Meritíssimo Tribunal
“ad quem”, resumem-se a saber:
• Se se verifica omissão de pronúncia relativamente à questão suscitada nos artigos 21º a 28º da Petição Inicial, concretamente, sobre a aplicação do quadro legal do crédito de suprimento ao regime do sucessor mortis causa;
• Se, perante a matéria de facto dada como provada, estamos perante um verdadeiro crédito de suprimentos;
• Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, se, face ao disposto
no artigo 243º, número 5, do CSC, o Requerente se encontra legitimado
a interpor a presente ação.
2. Em relação à primeira questão suscitada, e atento o disposto no artigo 615º,
número 1, alínea d), do Código de Processo Civil, verifica-se a mencionada
omissão referente à questão da não sujeição ao regime do crédito de
suprimento do sucessor mortis causa, oportunamente suscitada nos artigos
21º a 28º da Petição Inicial.
3. Tal questão, prevista a título subsidiário para a hipótese de o Tribunal
considerar haver um crédito de suprimentos – o que veio a suceder – não ficou
prejudicada pela solução eventualmente dada a outras questões e não foi
apreciada pelo Tribunal “a quo”.
4. Relativamente à segunda questão colocada à douta apreciação do Tribunal
“ad quem”, e tendo por base os factos provados sob os nºs 5, 6, 9 e 10 (na
sequência das declarações de parte do Recorrente e das Administradoras da
Recorrida conforme assentadas transcritas nas Alegações das Atas das 4ª, 7ª
e 10ª sessões da Audiência de Julgamento) e ainda as elucubrações de Direito,
sobre esta matéria, transcritas nas Alegações, defende o Recorrente que não
se encontram verificados os elementos essenciais do contrato de suprimento.
5. Com efeito, resultou provado que os empréstimos em dinheiro, efetuados
pelo falecido à Recorrida, eram destinados, exclusivamente, a financiar a atividade da sociedade “A...” (factos provados sob os nºs 6 e 9), por via disso ficando infirmado o carácter de estabilidade que caracteriza os suprimentos.
6. Aqueles empréstimos, tendo em conta a sua destinação, não tiveram a
natureza de suprimentos, isto é, não visaram suprir carências de tesouraria da
Recorrida.
7. Tão pouco desempenharam a função de substituição do capital próprio da
Recorrida.
8. Apurou-se que a intenção do falecido era apenas a de financiar terceiros,
constituindo a Recorrida mero veículo para atingimento desse desiderato.
9. Resultou, ainda, provado que nunca houve reembolso dos referidos
empréstimos (facto provado sob o nº 10) e que o dinheiro não se conservava
nas contas da Recorrida, estando tais verbas contabilisticamente inscritas a
favor da sociedade “A...”, reiterando-se, assim, não
estar verificado o carácter de permanência na Recorrida, exigível para a
configuração de um contrato de suprimentos.
10. Por via de tudo o que antecede, defende a Recorrente que não só tem
legitimidade, como tem, ainda, legitimação para a presente demanda.
11. A legitimidade traduz-se num interesse/titularidade atento o disposto no
artigo 30º, número 3 do CPC.
12. Assim, a exceção de ilegitimidade só ocorreria se houvesse divergência entre
quem o Requerente representa, quem identifica como insolvente e quem ele demanda na petição.
13. Ora, tendo o Requerente identificado no seu Requerimento Inicial:
➢ a qualidade em que intervém (enquanto cabeça-de-casal da herança por
óbito de CC– cfr. factos provados sob os nºs
5 e 6),
➢ a relação que se estabeleceu entre o decesso e a Recorrida (realização de
empréstimos),
➢ a factualidade que demostra o preenchimento dos pressupostos legais de
que depende a declaração de insolvência da Recorrida,
➢ o fim visado com a demanda (declaração de insolvência da Recorrida),
forçoso é concluir-se que o Requerente é parte legitima para a presente
demanda.
14. A sua legitimação (legitimidade material) estava, por seu turno, dependente
de prova do apuramento do título a que terá existido a entrega de dinheiro
por parte do de cujus à Recorrida.
15. A legitimação é o poder conferido pelo Direito substantivo às partes para
litigarem no processo.
16. Atendendo à factualidade provada e à fundamentação de Direito melhor
transcrita nas Alegações, apurou-se que a natureza do crédito invocado não é
o de suprimentos.
17. Conclui-se, assim, que o Requerente possui legitimação para a presente
demanda por inaplicação do disposto no artigo 245º, número 2, do CSC.
Sem prescindir,
18. Ainda que se entenda, o que apenas por mero dever de patrocínio se concede,
que foram efetuados verdadeiros suprimentos, pelo de cujus, à Recorrida,
defende a Recorrente a inaplicabilidade do disposto no artigo 243º, número 5,
do CSC ao caso sub iudice, isto é, que as contingências próprias daquela figura
legal não se transmitiram para os herdeiros legitimários do credor originário
dos mesmos.
19. No seguimento dos ensinamentos do insigne Professor João Aveiro Pereira,
“esta submissão ao regime dos suprimentos só se justifica relativamente aos negócios de transmissão inter vivos, para desencorajar a subtração fraudulenta de créditos de sócios ao regime dos suprimentos, em prejuízo dos credores externos. Não seria curial, portanto, sujeitar o sucessor mortis causa, transmissário acidental, a um regime tão restritivo como o dos suprimentos” (João Aveiro Pereira, Ob. cit., nota de rodapé nº 109, pp. 72 e 73).
20. No mesmo sentido se pronunciou o distinto Professor Raúl Ventura (Cfr. Raúl Ventura, Sociedades por quotas – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Vol. II, Almedina, Coimbra, 1996, pp. 110 a 112).
21. Não fica sujeito ao regime de crédito de suprimento o sucessor mortis causa
que surge como novo titular dos créditos deixados pelo de cujus, conclusão que dimana da literalidade da norma em causa e, sobretudo, da sua teleologia.
22. Em suma, os herdeiros legitimários do de cujus, que surgem como novos
titulares dos créditos deixados por aquele, não ficam sujeitos ao regime do crédito de suprimentos, enquanto terceiros e transmissários mortis causa.
23. Não sendo a herança credora por suprimentos, sempre se deveria considerar
que o Requerente se encontra legitimado e dotado de legitimação para a
presente ação.
NESTES TERMOS, E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ CONCEDER-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, E POR VIA DISSO:
A) DECLARAR-SE A NULIDADE DA SENTENÇA PROFERIDA EM PRIMEIRA INSTÂNCIA, ORDENANDO-SE, CONSEQUENTEMENTE, QUE O TRIBUNAL “A QUO” SE PRONUNCIE SOBRE A QUESTÃO DE DIREITO SUSCITADA NOS ARTIGOS 21º A 28º DO REQUERIMENTO INICIAL E, EM QUALQUER CASO, B) REVOGAR-SE A DECISÃO PROFERIDA SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE JULGUE O REQUERENTE PARTE LEGITIMA PARA A PRESENTE ACÇÃO, ORDENANDO-SE, CONSEQUENTEMENTE, A REMESSA DO PROCESSO À PRIMEIRA INSTÂNCIA PARA APRECIAÇÃO DA PETICIONADA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA.
Foram apresentadas contra-alegações pugnando pela manutenção do decidido, tendo sido apresentada ampliação do âmbito do recurso, com as seguintes conclusões:
1. Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 636 n.º 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, é lícito à Apelada, na respetiva alegação, e a título subsidiário, impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo Apelante, prevenindo a necessidade da sua apreciação.
2. Nessa esteira, considera a Apelada que a douta decisão proferida não obstante ter ajuizado magistralmente a prova produzida, no que diz respeito aos pontos 6. e 36. dos factos provados, deverão, os mesmos, e à cautela, ser objeto de reapreciação.
3. Pois, atenta a interpretação conferida, pelo Apelante, a tais factos (6. e 36.), assim como a outros, nas suas doutas alegações de recurso, verifica-se que extrai dos mesmos que o contrato em causa nunca poderia ser de suprimentos, mas sim de mútuo.
4. Assim, e sem prescindir de se entender, e tal como se alegou em sede de contra-alegações, que mesmo que tais factos se mantenham provados nos exatos termos em que se encontram redigidos, a douta decisão proferida deverá manter-se, vem a Apelada, subsidiariamente, e acautelando, um entendimento diverso, ampliar o objeto de recurso.
ISTO POSTO:
5. Extrai-se dos meios de prova produzidos nos autos e, concretamente, dos depoimentos e declarações de parte prestados e vertidos em ata, o seguinte:
- Assentada referente ao Requerente, e constante da Ata da 4ª Sessão da Audiência de Julgamento, a fls…
- A propósito da razão pela qual a R... foi criada, refere que o pai "metia" dinheiro na R... para esta financiar a A..., e que o valor em dívida andava na ordem dos €1.300.000,00.
- Quando a A... pagava as quantias em causa, o pai retirava da R... o dinheiro para si”.
6. Acresce que a Representante da Apelada DD, conforme assentada constante da Ata da 7ª Sessão da Audiência de Julgamento, a fls…:
“- Referiu que contabilisticamente não sabe como tudo se processou.
- O que sabe é que o pai "metia dinheiro" na R... e esta cedia-o à ....
- O dinheiro do pai não era destinado à R.... Nunca o foi”.
7. E, finalmente, a Representante da Apelada EE, declarou e conforme assentada constante da Ata da 10ª Sessão da Audiência de Julgamento, a fls…:
- (…) a R... era uma empresa imobiliária que se destinava, para além do mais, a que fosse permitido ser colocado lá dinheiro para financiar a empresa do pai, a A....
- A família, designadamente as irmãs, estavam contra essa situação, porque sabiam que o dinheiro iria desaparecer para sempre, desconhecendo, no entanto, qual é o valor que o pai colocou na R... com vista ao financiamento da A...
- Refere que não há aqui qualquer empréstimo à R....
- Após a morte do pai, foi realizada a Habilitação de Herdeiros, tendo o Sr. AA sido nomeado Cabeça de Casal.”
8. Os factos supra transcritos e assentes nas referidas atas levou o que o Tribunal “a quo”, em sede de motivação, considerasse que:
“ Quer o Requerente, quer as Administradoras da Apelada depuseram em sentido coincidente quanto ao facto do pai financiar a ... através da R..., não havendo evidência nos autos da existência de qualquer empréstimo por parte do de cujus à própria Apelada, e tal não resulta quer dos documentos, quer da prova por testemunhas e/ou por declarações produzida em audiência de julgamento, o objetivo sempre foi o de financiar a ... ainda que através da R... e obviamente em termos contabilísticos a operação teve de ser registada, refletida” (Negrito nosso).
9. Seguindo-se, em sede de fundamentação da matéria de direito, a ponderação de que “na contabilidade da sociedade Apelada foi inscrita uma verba e identificada a A... como sua credora, relativamente a empréstimos feitos pelo acionista das duas sociedades, CC” e de que “[d]a factualidade apurada resulta que foi o acionista (agora de cujus) da R... que “emprestou” dinheiro a esta com vista apenas ao financiamento da empresa A..., a qual também era acionista e tal sucedeu durante anos e sem a fixação de qualquer prazo de reembolso”.
10. Assim sendo, extrai-se quer do depoimento do Requerente da insolvência, quer das Administradoras da R. a inexistência de qualquer empréstimo por parte do falecido pai à R..., sendo que a R. serviu os desideratos do seu acionista, e serviu de veículo ao fim pretendido (financiamento da sociedade A...).
11. Pelo exposto e em face de tais meios probatórios, deverá reapreciar-se a prova produzida, relativamente a estes concretos pontos da matéria de facto, passando os mesmos a ter a seguinte redação:
6. Do acervo da herança consta a quantia de €832.698,58 reclamada à Requerida, emergente de entregas em dinheiro lançados na respetiva contabilidade daquela, mas que eram efetuados ou destinados à sociedade A..., Filho & Companhia, S.A., pelo falecido, ainda que por intermédio da sociedade Requerida, na qualidade de seu acionista, conforme resulta de fls. 14-15 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
36. Entre a sociedade Requerida e o de cujus não foi fixado qualquer prazo para a restituição dos valores que lhe foram entregues, ainda que com vista ao financiamento da atividade da sociedade A..., e pelo menos até 11 de outubro de 2018 nunca a sociedade Requerida foi interpelada para proceder à sua restituição total ou parcial.
12. A alteração dos supra aludidos factos, sempre demandará a alteração da decisão de mérito, no sentido de considerar que o Apelante não tem qualquer crédito perante a Apelada, e desde logo, porque não logrou provar a sua existência (empréstimo, natureza, origem e prazo de restituição).
13. Nesta conformidade, deverá a douta sentença proferida ser revogada e substituída por outra que julgue de igual forma improcedente a ação proposta, absolvendo a aqui Apelada do pedido.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:
Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são, assim, apurar se a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia; se os empréstimos alegadamente efetuados pelo falecido configuram um ou vários contratos de suprimento; se o disposto no artº 243º, nº5, do Código das Sociedades Comerciais é aplicável no caso concreto. Na procedência de alguma das alegações do recorrente, importará apreciar a ampliação do âmbito do recurso, concretamente apurando se se deve considerar existir um crédito perante a recorrida.
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III – Fundamentação:
A. Fundamentos de facto:
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. A Sociedade devedora e ora Requerida é uma sociedade comercial que se encontra registada na Conservatória do Registo Comercial ..., com a respetiva certidão permanente nº ...05, conforme resulta do documento junto a fls. 60 a 63 e 490 a 497, e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
2. A sociedade Requerida foi constituída em 29/11/2005, com um capital social de 50.000,00€ e tem por objeto a compra e venda de bens imobiliários e revenda dos adquiridos para esse fim, o arrendamento e administração de imóveis e a promoção imobiliária, tendo sido designado como Administrador único CC e assim se manteve até 12/11/2013, data em que foi nomeado como Presidente do Conselho de Administração o ora Requerente, AA, e como vogais, as irmãs, DD e EE.
3. O ora Requerente, AA, renunciou ao cargo descrito no número anterior a 08/05/2018, tal como resulta do verso de fls. 217 dos autos principais e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
4. A administração está atual e provisoriamente a ser exercida por DD (NIF ...), com Residência na Rua ... ... Guimarães, EE (NIF ...), com Residência na Rua ..., ... Guimarães e FF (NIF ...), com Residência na Rua ... ... ....
5. O Requerente é cabeça de casal da herança indivisa aberta por óbito de CC, ocorrido em 06/12/2013, conforme resulta do documento junto a fls. 11 e 12 dos autos e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
6. O acervo da herança é constituído por um crédito, no valor de pelo menos €832.698,58 sobre a Requerida, emergente de empréstimos em dinheiro lançados na respetiva contabilidade daquela mas que eram efetuados ou destinados à sociedade A..., Filho & Companhia, S.A., pelo falecido, ainda que por intermédio da sociedade Requerida, na qualidade de seu acionista, conforme resulta de fls. 14-15 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
7. A Requerida, através da sua administração, vendeu o imóvel designado “...” sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...30 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...52 da mesma freguesia, pelo preço de 850.000,00€, tal como resulta de fls. 16-17 dos autos e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
8. A Requerida não depositou as Contas relativas ao ano de 2017, no prazo legalmente estipulado para o efeito, conforme resulta de fls. 59, 63 verso e 497, e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
9. O falecido CC, na sua qualidade de acionista da Requerida, e com a finalidade exclusiva de financiar a atividade da empresa A..., da qual era igualmente acionista, emprestou a esta, usando para tal como intermediária a sociedade Requerida, quantia não concretamente apurada mas não inferior à supra descrita em 6.
10. O referido valor, na sua totalidade ou em parte, não chegou a ser devolvido.
11. O Requerente dirigiu à Requerida uma missiva, onde solicita a entrega de €1.366.44,33 enquanto dívida da herança, sendo que a carta foi devolvida com a menção objeto não reclamado/não atendeu, tal como resulta de fls. 18 verso a fls. 20 verso e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
12. A sociedade Requerida tem uma dívida, no montante de cerca de € 124.901,77 à Banco 1..., SA..
13. O ativo da Requerida é constituído por:
■ participação financeira de 92,7% na empresa “T..., SA.”, sociedade anónima, com sede no Lugar ..., C..., ..., com o número único de matrícula e de pessoa coletiva ..., Registada na Conservatória do Registo Comercial ..., e com o capital social de Euro 795.000,00, integralmente subscrito e realizado, proprietária de um imóvel, destinado à indústria têxtil, com valor de mercado nunca inferior a Euro 1.752.850,00 (reportado a 24/07/2019 data em que foi avaliado nestes autos) e sobre o qual incide divida hipotecária de montante aproximado a Euro 1.500.000,00.
■ Prédio urbano sito no Lugar ..., União de Freguesias ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...3, e inscrito na matriz sob o artigo ...9, correspondente a um prédio em Propriedade Total sem andares nem Divisões Suscetíveis de Utilização Independente, com o valor patrimonial tributável de Euro 38.052,40 e valor de mercado nunca inferior a Euro 75.225,00 (reportado a 24/07/2019 data em que foi avaliado nestes autos).
■ Crédito de Euro 100.000,00, de que a requerida é detentora perante a sociedade “T..., S.A.”, referente ao negócio da venda das máquinas celebrado pelo requerente AA.
14. Dos relatórios periciais juntos aos autos resulta que o prédio inscrito em nome da T... destinado a armazém e atividades industriais com o artigo matricial ...05 e descrito na Conservatória do Registo Predial .../... reportado à data da avaliação realizada a 24/07/2019 tem um valor de mercado de €1.752,850, enquanto o prédio descrito em nome da R... sob o artigo matricial ...9 e descrito na CRP sob o nº ...3... ... e ... – Guimarães tem um valor, reportado à mesma data, de € 75.225, dos relatórios resulta ainda que a T... encontra-se numa situação de falência técnica, dada a superioridade do seu passivo em relação ao ativo pelo que a participação social da R... tem o valor de Zero euros, conforme resulta de fls. 335 a 411 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
15. A Requerida, a 31 de dezembro de 2017, tinha um capital próprio negativo de €394.607,44, tal como resulta da IES referente ao exercício de 2017 constante de fls. 26 a 54 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido.
16. O Requerente enviou uma mensagem com o conteúdo descrito a fls. 66 para os números indicados a fls. 65 verso, e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzida.
17. As Administradoras da Requerida transferiram fundos de tesouraria existentes na conta da Requerida sediada no Banco 2... para uma outra conta, na sequência do Requerente AA, já após estar afastado da Administração, ter transferido uma quantia próximo a €17.500,00 pertencente à Requerida para contas bancárias de terceiros.
18. A sociedade T..., SA. foi constituída pelo Requerente AA, com a ajuda de terceiros, para assumirem a qualidade de seus acionistas.
19. A sociedade T..., SA. tem vindo a ser gerida exclusivamente pelo Requerente.
20. A sociedade T..., SA. exerce a mesma atividade da sociedade T... e esta última deixou de o fazer por iniciativa do Requerente.
21. O Requerente, AA, enquanto Administrador da Requerida procedeu à venda de máquinas e equipamentos propriedade desta à T..., SA. pelo preço de € 125.000,00.
22. Do valor referido no número antecedente apenas foi pago € 25.000,00, encontrando-se por pagar a quantia de € 100.000,00.
23. O Requerente outorgou um contrato de arrendamento com a T..., SA., mediante o pagamento de uma renda mensal no valor de €2.000,00, quando o preço praticado na zona pelo arrendamento de um espaço de iguais características é de cerca de €7.500,00 mensais.
24. O Requerente, ainda como Administrador da Requerida, celebrou contratos com empresas por si tituladas ou nas quais exerce funções de gerência ou liderança, nomeadamente a sociedade E... Unipessoal, Lda..
25. Os acionistas da Requerida interpelaram o Requerente quanto aos negócios pelo mesmo celebrados, bem como quanto ao eventual conflito de interesses existente, e na sequência de tal interpelação verificaram que o Requerente estava a promover a venda do imóvel descrito no artigo 7º da petição inicial.
26. O Requerente, à data da renúncia, não procedeu à entrega da documentação contabilística da sociedade Requerida.
27. A Requerida foi interpelada pela Banco 1..., SA., para pagamento de uma quantia global de €911.901,77.
28. Para proceder a esse pagamento, a Requerida procedeu à venda do imóvel descrito no artigo 7º da petição inicial.
29. O cancelamento das hipotecas que incidiam sobre o imóvel ficou condicionado à entrega à Banco 1..., SA., de um cheque no montante total de €787.000,00.
30. A diferença entre o valor de venda e do cheque ficou adstrita aos pagamentos de uma comissão imobiliária de €52.275,00 e de impostos no valor de €30.000,00.
31. Tais impostos, pelo menos à data em que as Administradoras foram ouvidas no âmbito destes autos, ainda não se mostravam liquidados.
32. A Requerida está a negociar com a Banco 1..., SA. o perdão do remanescente da dívida, no valor de €124.901,77.
33. Para além da quantia indicada no número anterior, a Requerida tem dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira pelo menos no montante de €58.629,01, tal como resulta da certidão junta aos autos a fls. 582 a 586, e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido, para além de dever a quantia de €6.492,29 à sociedade T..., SA. (T..., SA.).
34. O Requerente chegou a apresentar à Requerida uma proposta de compra de toda a sociedade, pelo valor global de €750.000,00.
35. Ao mesmo tempo em que exercia funções enquanto Presidente do Conselho de Administração da Requerida, e até mesmo em momento anterior quando a Administração estava confiada ao pai, o Requerente exercia funções na mesma sociedade enquanto contabilista certificado.
36. Entre a sociedade Requerida e o de cujus não foi fixado qualquer prazo para a restituição dos valores que eram emprestados à Requerida, ainda que com vista ao financiamento da atividade da sociedade A..., e pelo menos até 11 de outubro de 2018 nunca a sociedade Requerida foi interpelada para proceder à sua restituição total ou parcial.
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O tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos:
a. O valor global do empréstimo do falecido nas condições descritas no elenco dos factos provados haja sido no montante de 1.366.544,33€ (um milhão e trezentos mil e sessenta e seis mil e quinhentos e quarenta e quatro euros e trinta e três cêntimos). b. A atual Administração da Requerida pretende vender o demais ativo ou património de que a Requerida ainda é titular. c. O preço das máquinas vendidas referido no ponto 22 do elenco dos factos provados é inferior ao valor de mercado. d. O imóvel vendido no passado dia 10 de outubro de 2018, tinha um valor de mercado de cerca de €1.300.000,00. A demais matéria alegada e que não se mostra supra transcrita constitui matéria conclusiva e /ou de direito.
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B. Fundamentos de direito.
O recorrente começou por alegar que houve omissão de pronúncia relativamente à questão da não sujeição ao regime do crédito de suprimento do sucessor mortis causa, suscitada nos artºs 21º a 28º da petição inicial.
As causas de nulidade da sentença (e dos despachos, ex vi artº 613º, nº3, do CPC) estão previstas no artº 615º do CPC:
Causas de nulidade da sentença:
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.
3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.
As nulidades da decisão são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença (no caso do despacho), o que não é confundível com o erro de julgamento, ou sequer com um alegado erro na forma de processo.
Ainda que referido a uma sentença, mas com igual cabimento quanto aos despachos, pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17/12/2018, disponível em www.dgsi.pt:
“Os vícios determinativos de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciados no referido art. 615º, do CPC, e reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença, tratando-se de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, a vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal. Respeitam a vícios da estrutura da sentença os fundamentos enunciados nas alíneas b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, e respeitam a vícios atinentes aos limites da sentença, os enunciados nas alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia - e e) - pronuncia ultra petitum. Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” (Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.). Diferentemente desses vícios, são os erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com erros ocorridos ao nível do julgamento da matéria de facto ou ao nível da decisão de mérito proferida na sentença/decisão recorrida, decorrentes de uma distorção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error iuris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa. Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, sendo que esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença (vícios formais), sequer do poder à sombra do qual a sentença é proferida, mas ao mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in iudicando, atacáveis em via de recurso (Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00...). Acresce precisar que conforme decorre do que se vem dizendo, os vícios da decisão da matéria de facto constituem erros de julgamento na vertente de “error facti” e como tal nunca constituem causa de nulidade da sentença com fundamento no art. 615º do CPC. Na verdade, a matéria de facto encontra-se sujeita a um regime de valores negativos – a deficiência, a obscuridade ou a contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação -, a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação, não constituindo, por conseguinte, causa de nulidade da sentença, mas antes sendo suscetíveis de dar lugar à atuação pela Relação dos poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto operada pela 1ª Instância, nos termos do disposto nos n.º 1 e 2 do art. 662º do CPC (Ac. RC de 20/01/2015, Proc. 2996/12....).”
Analisada a sentença verifica-se que o tribunal recorrido considerou ter havido suprimentos, caracterizou a natureza dos mesmos e, nessa sequência, concluiu inexistir ilegitimidade ativa para peticionar a insolvência.
Na sentença recorrida o tribunal referiu expressamente que “É pacífico que o crédito por suprimentos assim se mantém, como crédito por suprimentos, ainda que o crédito tenha sido cedido ou transmitida a participação social. (sublinhado nosso).” Tal afirmação vem na sequência da caracterização que o tribunal recorrido fez dos empréstimos, para os qualificar como contratos de suprimento. Ou seja, ainda que de forma excessivamente conclusiva, o tribunal recorrido entendeu que a transmissão por morte era abrangida pelo conceito lato de transmissão da participação social.
Concorda-se que a afirmação é excessivamente frugal, devendo o tribunal recorrido ter fundamentado melhor tal asserção, o que depois fez no despacho em que admitiu o recurso, como impõe o artº 617º, nº1, do CPC. Mas a nulidade por omissão de pronúncia só ocorre quando há uma absoluta falta de pronúncia e não quando a fundamentação é deficiente ou insuficiente. O tribunal recorrido, de forma incorreta, considerou não ter de fundamentar melhor tal conclusão que retirou, atentas as considerações que antecedentemente explanou. É o que retiramos do antepenúltimo parágrafo da sentença, segundo o qual “Em face de todo o exposto fica prejudicado o conhecimento e apreciação de todas as demais questões invocadas”.
Assim, poderemos estar perante um erro de julgamento (a pertinência dos argumentos apresentados pelo recorrente a fá-la-emos mais abaixo neste acórdão), mas já não perante uma nulidade da sentença. Aliás, mesmo optando por uma solução, haverá sempre que dotar a sentença dos factos e argumentos que possibilitem a apreciação dentro das várias soluções em direito plausíveis.
Como referem Abrantes Geraldes, Luís Filipe Pires de Sousa e Paulo Pimenta[1], “Tanto na exposição dos factos que se julgue provados como daqueles que considere não provados, o juiz não deve orientar-se por uma preconcebida solução jurídica do caso, antes deve assegurar a recolha de todos os factos que se mostrem relevantes em função das diversas soluções plausíveis da questão de direito. Na verdade, não é de excluir que, apesar de o concreto juiz entender que basta um determinado enunciado de factos provados ou não provados para que a ação proceda ou improceda, o tribunal superior, em sede de recurso, divirja daquela perspetiva e considere outras soluções dependentes do apuramento de outros factos. Em tais circunstâncias, melhor será que o juiz, de forma previdente, use um critério mais amplo, inscrevendo na matéria de facto provada e não provada todos os elementos que possam ter relevo jurídico, evitando ou reduzindo as anulações de julgamento decretadas ao abrigo do artº 662º, nº2, alínea c), in fine.”
Delibera-se, assim, pela inexistência da apontada nulidade, sem embargo de infra se conhecer se houve erro de julgamento.
Importa agora conhecer do objeto da apelação, alterando-se, todavia, a ordem de conhecimento das questões alegadas pelo recorrente, por razões de sequência lógica. Assim, previamente a apurar da aplicabilidade do quadro legal do crédito de suprimento ao regime de sucessor mortis causa, haverá que apurar se estamos de facto perante um crédito por suprimentos. A apreciação da primeira questão pressupõe a montante a resposta afirmativa da indicada como segunda questão. Só depois se farão considerações sobre a aplicabilidade do artº 245º, nº2, do Código das Sociedades Comerciais. Em qualquer dos casos, não foi questionado no recurso a extensão do regime dos suprimentos às sociedades anónimas.
1 – Da (in)existência de um crédito por suprimentos:
Alegou o recorrente que face aos factos dados como provados sob os nºs 5, 6, 9, e 10 não se encontram verificados os elementos essenciais do contrato de suprimento.
Vejamos se é assim, com a clareza expositiva possível (artº 9º-A do CPC).
A definição legal de contrato de suprimento consta do artº 243º do Código das Sociedades Comerciais:
Artigo 243.º (Contrato de suprimento)
1 - Considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência.
2 - Constitui índice do carácter de permanência a estipulação de um prazo de reembolso superior a um ano, quer tal estipulação seja contemporânea da constituição do crédito quer seja posterior a esta. No caso de diferimento do vencimento de um crédito, computa-se nesse prazo o tempo decorrido desde a constituição do crédito até ao negócio de diferimento.
3 - É igualmente índice do carácter de permanência a não utilização da faculdade de exigir o reembolso devido pela sociedade durante um ano, contado da constituição do crédito, quer não tenha sido estipulado prazo, quer tenha sido convencionado prazo inferior; tratando-se de lucros distribuídos e não levantados, o prazo de um ano conta-se da data da deliberação que aprovou a distribuição.
4 - Os credores sociais podem provar o carácter de permanência, embora o reembolso tenha sido efectuado antes de decorrido o prazo de um ano referido nos números anteriores. Os sócios interessados podem ilidir a presunção de permanência estabelecida nos números anteriores, demonstrando que o diferimento de créditos corresponde a circunstâncias relativas a negócios celebrados com a sociedade, independentemente da qualidade de sócio.
5 - Fica sujeito ao regime de crédito de suprimento o crédito de terceiro contra a sociedade que o sócio adquira por negócio entre vivos, desde que no momento da aquisição se verifique alguma das circunstâncias previstas nos n.os 2 e 3.
6 - Não depende de forma especial a validade do contrato de suprimento ou de negócio sobre adiantamento de fundos pelo sócio à sociedade ou de convenção de diferimento de créditos de sócios.
Alexandre Mota Pinto[2] refere que “O contrato de suprimento é uma das formas de financiamento empresarial mais utilizadas entre nós. Com a simples realização de empréstimos à sociedade, os sócios investem na empresa, muitas vezes obtendo um juro remunerador do investimento, sem aumentar a responsabilidade pelo projeto empresarial, uma vez que podem exigir a restituição das quantias mutuadas. Mantendo a responsabilidade pelas dívidas sociais limitadas às entradas que se obrigaram a efetuar para o capital social, os sócios, ao efetuar suprimentos, perseguem uma ambição milenar: procurar a fortuna, sem sofrer a incerteza da aventura empresarial. (…) A nota distintiva de tal capital quase próprio reside no facto de, formalmente, constituir capital alheio, mas, ao mesmo tempo, possuir características do conceito material de capital próprio. Trata-se de contribuições financeiras que, embora realizadas sob a forma de capital alheio, desempenham na vida da sociedade uma função semelhante à de capital próprio, e que, como tal, são equiparadas a capital próprio, responsável pelas dívidas sociais. (…)
O regime dos suprimentos visa justamente proteger os credores perante situações de subcapitalização formal ou nominal.”
(…) Qualquer sócio, desde que, em termos formais, possua esta qualidade, poderá celebrar um contrato de suprimento, sendo irrelevantes as suas motivações, propósitos ou interesses (empresariais, ou, simplesmente, de investimento) prosseguidos. (…) Os créditos do sócio não perdem a qualidade de suprimentos se o sócio credor, entretanto, deixar de ser sócio.”
Menezes Cordeiro[3] qualifica como suprimento “o contrato entre o sócio e a sociedade, pelo qual: a) ou o primeiro empresta à segunda dinheiro ou outra coisa fungível, ficando esta obrigada à restituição de outro tanto do mesmo tipo; b) ou o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do pagamento de créditos seus sobre ela (artº 243º/1). Em qualquer dos casos, o crédito concedido fica a ter carácter de permanência (243º/1, in fine), só sendo reembolsado em certas condições; essa permanência permite distinguir o suprimento de um mútuo comum.”
O mesmo autor[4]assinala que “O suprimento distingue-se, noutro plano, de um mútuo comum: representa um contributo permanente ou, pelo menos, prolongado, do sócio para a sociedade em que detenha uma posição. Quando muito representaria um mútuo de escopo, cujo regime é infletido pela realidade societária que visa servir.”
Inexistindo factos que permitam concluir que os empréstimos foram expressamente qualificados pelas partes como suprimentos, Alexandre Mota Pinto[5] refere que “No silêncio das partes, a existência de um contrato de suprimento será indiciada, e logo presumida, em três hipóteses: - se as partes estipularam um prazo de reembolso superior a um ano, sendo indiferente que esta estipulação seja contemporânea ou posterior ao contrato; - se as partes não estipularam qualquer prazo e o reembolso não foi exigido durante um ano; - se as partes estipularam um prazo inferior a um ano, mas o reembolso não foi exigido durante um ano.”
Recordemos a redação dos nºs 5,6, 9, e 10, dos factos provados que, na versão do recorrente, afastarão a qualidade de suprimentos aos empréstimos efetuados:
5. O Requerente é cabeça de casal da herança indivisa aberta por óbito de CC, ocorrido em 06/12/2013, conforme resulta do documento junto a fls. 11 e 12 dos autos e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido. 6. O acervo da herança é constituído por um crédito, no valor de pelo menos €832.698,58 sobre a Requerida, emergente de empréstimos em dinheiro lançados na respetiva contabilidade daquela mas que eram efetuados ou destinados à sociedade A..., Filho & Companhia, S.A., pelo falecido, ainda que por intermédio da sociedade Requerida, na qualidade de seu acionista, conforme resultade fls. 14-15 e cujo teor no mais aqui se dá por integralmente reproduzido. 9. O falecido CC, na sua qualidade de acionista da Requerida, e com a finalidade exclusiva de financiar a atividade da empresa A..., da qual era igualmente acionista, emprestou a esta, usando para tal como intermediária a sociedade Requerida, quantia não concretamente apurada mas não inferior à supra descrita em 6. 10. O referido valor, na sua totalidade ou em parte, não chegou a ser devolvido.
Da factualidade supra referida que o tribunal recorrido deu como provada interessa reter dois pontos: a circunstância de os empréstimos terem sido efetuados ou destinados à sociedade A..., Filho & Companhia, S.A., pelo falecido, ainda que por intermédio da sociedade Requerida, na qualidade de seu acionista, e de ter havido a finalidade exclusiva de financiar a atividade da empresa A..., da qual era igualmente acionista, emprestando a esta, mas usando para tal como intermediária a sociedade Requerida.
A pergunta a que então importa responder é estes dois pontos descaracterizam o instituto dos suprimentos.
E a resposta é negativa.
Como supra se referiu, na citação que se repete de Alexandre Mota Pinto[6], Qualquer sócio, desde que, em termos formais, possua esta qualidade, poderá celebrar um contrato de suprimento, sendo irrelevantes as suas motivações, propósitos ou interesses (empresariais, ou, simplesmente, de investimento) prosseguidos.
Ou seja, a circunstância de as verbas se destinarem, como fim último, a outra sociedade, A..., Filho & Companhia, S.A., não descaracteriza o contrato de suprimento. Repare-se, aliás, que as verbas entraram e foram contabilizadas na requerida (vide facto provado nº 6:…emergente de empréstimos em dinheiro lançados na respetiva contabilidade daquela…). E como resulta até da alegação da recorrente, que se arroga credora, a obrigação de restituição impende sobre a requerida. Aliás, para haver entrada de dinheiro na sociedade requerida, o que exclusivamente para fins desta ação foi dado como provado na 1ª instância, algum interesse desta sociedade requerida terá havido, e cremos que subjacente às mesmas estará, também a evidente subcapitalização da requerida, com um capital social de somente €50.000,00 mas a quem alegadamente foram efetuados suprimentos no valor total de €1.300.000,00 correspondentes a 26 vezes o capital social.
A circunstância de relativamente a prazos de reembolso nada ter ficado concretamente provado, e de não se poder fazer apelo ao facto índice referido no nº 2 do artº 243º do CSC, não implica que se tenha por inverificado o caráter de permanência a que se refere o nº 1 do citado artigo. Aliás, o autor da herança faleceu em dezembro de 2013, e não resulta provado qualquer facto de onde se retire que haja sido exigido o reembolso por si, enquanto vivo, ou depois pelos sucessores, de tais quantias em prazo inferior a um ano sob a constituição dos alegados créditos, pelo que nos termos e para os efeitos do artº 243º, nº3, do CSC, sempre este facto índice estaria preenchido.
Mas os factos índice são apenas indícios legalmente tipificados, o que é diferente de serem condições indispensáveis, sem cujo preenchimento tal caracterização não seria possível.
Aliás, consultando a assentada (em rigor, apenas deveriam ter sido reduzidos a escrito factos que consubstanciassem confissão ou também circunstâncias que impliquem indivisibilidade da declaração confessória, e já não todo o depoimento) constante da ata de 21 de abril de 2021, o recorrente afirmou que “Quanto aos €1.300.000,00 que estarão em dívida em nome do pai, parte foi injetada na própria R... e a outra parte foram para empréstimos da R... à A...”(sublinhado nosso).
E analisando a sentença recorrida verificamos que consta expressamente da mesma que “Considerando que o sócio, durante anos, não exigiu o reembolso, devido pela sociedade, da quantia referente a empréstimos por si feitos, conclui-se que estamos perante créditos sobre a sociedade, qualificáveis como suprimentos do sócio, por estarem dotados do caráter de permanência, previsto no artº 243º, nº3, do CSC.” E, mais adiante, novamente “Além do empréstimo, nos termos que se deixaram expressos no elenco dos factos provados, também resultou demonstrado o caráter permanente de tal empréstimo, ou seja, não foi fixado prazo de reembolso e nunca até outubro de 2018 a devolução das quantias foi exigida total ou parcialmente à sociedade ora requerida.”
Concordamos e subscrevemos a conclusão do tribunal recorrido.
Temos, assim, por seguro que entrando os empréstimos na esfera jurídica da requerida, o fim último dos mesmos, ou até as razões (não apuradas) pelas quais o falecido sócio resolveu servir-se da sociedade aqui requerida como “escala” para o destino final do dinheiro, não bastam para afastar o caráter de permanência e descaracterizar os suprimentos.
Improcede, assim, esta alegação da recorrente.
Da alegada (in)aplicabilidade do disposto no artº 243º, nº5, do CSC.
Alegou a recorrente que as contingências próprias da figura dos suprimentos não se transmitem para os herdeiros legitimários do credor originário dos mesmos, não sendo por isso aplicável o disposto no artº 243º, nº 5, do CSC.
Dispõe a referida norma que “Fica sujeito ao regime de crédito de suprimento o crédito de terceiro contra a sociedade que o sócio adquira por negócio entre vivos, desde que no momento da aquisição se verifique alguma das circunstâncias previstas nos nºs 2 e 3.”
Desde logo, e com todo o respeito, afigura-se-nos evidente que o recorrente faz uma interpretação incorreta do citado preceito, que nada tem a ver com o caso vertente. Aplicar-se-á, por exemplo, o preceito em causa, às situações em que um sócio, pretendendo tornear o regime legal imposto aos suprimentos, fizesse empréstimos por intermédio de um terceiro, que depois lhe cederia os créditos.
Mas, independentemente da norma referida, afigura-se-nos que o que o recorrente pretende defender é a não aplicabilidade da proibição de requerer a insolvência, aos herdeiros do sócio que efetuou os suprimentos, e como tal analisaremos a pretensão deduzida.
Para analisar a referida disposição, haverá que perceber, a montante, as razões pelas quais o legislador estabeleceu a limitação referida no nº2 do mesmo preceito, qual seja a de os credores por suprimentos não poderem requerer, por esses créditos, a insolvência da sociedade.
Alexandre Mota Pinto[7] explica-a nos seguintes termos: “Esta regra compreende-se pelo próprio caráter substitutivo de capital do suprimento. Na realidade, se o sócio em vez de realizar o suprimento tivesse efetuado uma entrada de capital, não teria o direito de requerer a insolvência, pelo que não faria sentido que substituindo prestações de capital por suprimentos, o sócio adquirisse um tal direito. Por outro lado, admitir o sócio a requerer a insolvência da sociedade poderia corresponder a admitir um comportamento contraditório (um venire contra factum proprium), dado que o sócio financia a manutenção da atividade social, eventualmente, criando expetativas nos credores da sociedade, e, posteriormente, valendo-se do modo de financiamento escolhido poderia vir requerer o termo da sociedade.”
Na sentença recorrida o tribunal referiu expressamente que “É pacífico que o crédito por suprimentos assim se mantém, como crédito por suprimentos, ainda que o crédito tenha sido cedido ou transmitida a participação social.”
O recorrente invoca em favor da sua posição a doutrina de João Aveiro Pereira e do Prof. Raúl Ventura, que entendiam que o regime só se justificava entre vivos para desencorajar a subtração fraudulenta de créditos de sócios ao regime dos suprimentos, em prejuízo de credores externos.
Sem embargo de se aceitar que não é matéria pacífica, designadamente por aqui estar em causa uma sociedade anónima (vide AcSTJ de 30/11/2021, processo nº 1000/19.2T8CTB-A.C1.S1 e AcRL de 24/11/2016, processo nº 2464/16.1T8PDL.L1-6, ambos disponíveis em www.dgsi.pt), em face da factualidade provada, discordamos que a doutrina dos insignes autores possa ser aplicada no caso vertente.
Como se observa da certidão da conservatória do registo comercial junta nos autos, o falecido era o administrador único da sociedade, tendo esta o capital social de €50.000,00 distribuídos por dez mil ações.
Desde logo, os alegados suprimentos de €1.300.000,00 (correspondentes a 26 vezes o capital social, fixado no mínimo legal – artº 276º, nº 3, do CSC) face ao seu montante desproporcionado, impõem que as razões da proteção dos credores sociais ínsitas à proibição contida no artº 245º, nº2, do CSC, sejam aqui especialmente tomadas em conta. Repare-se que, nos termos do artº 48º, nº1, alínea g), do CIRE, os créditos por suprimentos são créditos subordinados, graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência. Ora, “Alguns dos motivos que conduziram à consagração do contrato de suprimento verificam-se tipicamente, nas pequenas sociedades. (…) Contudo, os riscos que resultam para os credores da circunstância de negociarem com sociedades que, embora aparentem solidez financeira, na realidade são artificialmente, através de empréstimos, afiguram-se independentes do montante de participação social dos sócios credores. Qualquer sócio, ao realizar empréstimos, pode, na verdade, lançar os riscos empresariais para cima dos credores, o que depende, muito mais, do montante do empréstimo do que do montante da participação social do mutuante.
Por outro lado, o não tratamento do sócio como um credor comum na insolvência, baseia-se, ainda, no facto de o sócio fruir o investimento do seu crédito na sociedade, através da obtenção de lucros, o que tornaria injusta a sua equiparação a um credor comum.”[8]
Sucedendo os herdeiros do falecido sócio (artº 2024º do Código Civil) na titularidade das suas relações jurídicas patrimoniais, não vislumbramos razão para isentar, no caso concreto, os herdeiros, da proibição contida no artº 245º, nº2, do CSC.
É certo que estamos perante uma pequena sociedade anónima, mas nem sequer temos elementos de facto (que nem sequer foram alegados) que permitam tecer considerações sobre uma hipotética extensão do regime de suprimentos nas sociedades anónimas tão-só aos titulares de ações correspondentes a pelo menos dez por cento do capital social[9] , como defende, por exemplo, Raúl Ventura[10]. Por outro lado, inexistem quaisquer factos que nos permitissem considerar, em tese, que havia um evidente distanciamento dos herdeiros da quota na vida da sociedade, de forma a não tornar extensíveis as razões de proteção dos credores sociais que entendemos não deverem ser afastadas.
Por último, entendemos que também o argumento literal impõe a solução por nós propugnada. Com efeito, o artº 245º, nº2, do CSC refere “os credores por suprimentos”. Ora, a lei não distingue a que título os credores corporizam tal qualidade, devendo entender-se que são todos (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus).
Improcede, assim, a alegação do recorrente, improcedendo o recurso interposto.
Da ampliação do âmbito do recurso.
Abrantes Geraldes[11] refere, a propósito da ampliação de recurso: “Na configuração legal, não estamos perante um verdadeiro recurso. Afinal sempre falta ao recorrido a qualidade de parte vencida relativamente ao resultado final do processo que serve de critério aferidor de legitimidade, nos termos dos artºs 631º, nº1, e 633º, nº1, e que se afere através do segmento decisório. Como reflexo, o vencedor que se prevalecer desta faculdade não terá o estatuto próprio do recorrente. O tribunal apenas terá de se pronunciar sobre a ampliação se, acolhendo os argumentos suscitados pelo recorrente ou de que oficiosamente puder conhecer, aquela se repercutir na modificação do resultado declarado na decisão impugnada em termos de prejudicar o recorrido.(sublinhado nosso)”
Como flui da apreciação ao recurso interposto, o mesmo foi julgado totalmente improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Assim, fica prejudicado o conhecimento da requerida ampliação do âmbito do recurso, não nos pronunciando sobre a mesma.
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V – Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando a sentença recorrida, não conhecendo da ampliação do âmbito do recurso, por prejudicada.
Custas pelo recorrente – artº 527º, nº1, e 2, do CPC.
Notifique.
Guimarães, 19 de janeiro de 2023.
Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1ª Adjunta: Maria Eugénia Pedro.
2º Adjunto: Pedro Maurício.
[1] Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 719, nota 15. [2] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, IDET, Almedina, volume III, 2ª edição, pág. 639-656. [3] Código das Sociedades Comerciais Anotado, 4ª edição, páginas 866-867. [4] Direito das Sociedades, volume II, Das Sociedades em Especial, Almedina, 2017 (3ª reimpressão da 2ª edição de 2007), pág. 295. [5] Op. cit. Página 650. [6] Op. cit., pág. 643. [7] Op. cit., páginas 666-667. [8] Mota Pinto, op. cit., página 646-647. [9] Alexandre Mota Pinto, op. cit., páginas 645-648. [10] Sociedades por quotas, volume II, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Coimbra, 1989, página 88. [11] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2ª edição, 2014, pág. 100.