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COMPRA E VENDA MERCANTIL
DEFEITOS DA COISA
DENÚNCIA
CADUCIDADE
Sumário
I–Estando em causa nos autos compra e venda mercantil, a reclamação/denúncia por defeitos da coisa vendida deve ser feita no prazo de 8 dias previsto no artigo 471.º do Código Comercial, não lhe sendo aplicável o regime dos artigos 913º, e segs Código Civil.
II–Porquanto aquele prazo curto de 8 dias não foi estabelecido em benefício do vendedor comercial, antes tem a ver, essencialmente, com a celeridade, segurança e certeza que o legislador quis imprimir à contratação comercial, pelo que a ratio legis do art.º 471º do Código Comercial está na vantagem de não deixar por muito tempo exposto o vendedor à reclamação por defeitos da coisa vendida e nas necessidades do tráfico comercial. III–O artigo 471.º do Código Comercial visa as qualidades, atributos ou defeitos da mercadoria observáveis à vista desarmada ou através dos sentidos humanos (olfacto, paladar, tacto), detectáveis no tal exame da coisa pelo comprador no acto de entrega. IV–Assim, o prazo de oito dias previsto no corpo daquela disposição legal para a reclamação contra a qualidade da mercadoria só é de observar quando a simples inspecção da coisa pelo comprador o habilite à reclamação, por diferença em relação à amostra ou à qualidade tidas em vista ao contratar. V–O prazo de caducidade do direito de acção previsto no artigo 917.º do Código de Civil deve abranger, por interpretação extensiva, todas as acções emergentes de cumprimento defeituoso, sendo, como tal, aplicável não unicamente à acção de anulação, ali referida, mas a todas as pretensões e acções decorrentes da compra e venda de coisa defeituosa - seja genérica ou específica a obrigação subjacente. VI–“A este entendimento não se opõe o art.º 918º do Código Civil, pois não se justifica que nas obrigações genéricas o regime da responsabilidade por cumprimento defeituoso seja diverso das específicas (como bem observa PEDRO ROMANO MARTINEZ, seria um absurdo e algo bizarro que a compra de um computador, com defeito, que se encontra na montra da loja (conducente a uma obrigação específica) estivesse sujeita aos prazos curtos do cumprimento referidos nos artigos 916º e 917º do Cód. Civil e a compra de um computador de modelo idêntico ao que está exposto na montra, com as características daquele (conducente a uma obrigação genérica) já estivesse sujeita ao prazo ordinário da prescrição, de 20 anos, referido no art.º 309º do Cód. Civil).” VII–“Assim, o artigo 918.º do Código Civil não deve ser interpretado no sentido de conduzir a um regime diferente, quanto ao prazo de caducidade, consoante se trate de obrigações específicas ou de obrigações genéricas”.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I–Relatório
1.1.–AA…pessoa colectiva com sede na Província de Bengo, … e BB…, pessoa colectiva com sede em República da Maurícia, propuseram, em 06-01-2020, a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário contra CC.., Lda., …, pedindo a condenação da Ré a pagar às Autoras: a)-A quantia € 73.000,20 correspondente ao custo do material “PVC” cobrado pela Ré, acrescida de juros desde as datas em que foram pagas as facturas (16/05/2018 e 28/06/2018) à taxa de 15,75%, os quais perfazem na presente data a quantia de € 23.928,42, a que acrescem os juros vincendos até integral pagamento. b)-A quantia de € 1.216.513,90 correspondente ao valor do acordo de pagamento indemnizatório que a Autora pagou ao grupo DD…, acrescida de juros de mora à taxa legal comercial desde 31/12/2018 e até integral pagamento, no valor de € 76.790,36 na presente data. c)-A quantia de € 189.033,64 a título de custos fixos suportados pela Autora sem produção/vendas, nos termos supra expostos. d)-A quantia de € 320.867,19 correspondente ao ganho que a Autora Angocap teria obtido no 2º semestre/2018, mas que não obteve, caso se mantivesse a tendência de vendas do 1º (primeiro) semestre de 2018, nos termos supra expostos. e)-A quantia de € 2.428.721,47 a título de danos apurados com base em perdas vindouras num período de 10 anos, considerando a perda média de 6 meses anteriores à situação dos autos, a uma taxa de desconto correspondente à USD 12M Libor de 2,79%, nos termos supra expostos. f)-A quantia de € 1.000.000,00 a título de danos não patrimoniais, nos termos supra expostos, para compensação pelos danos à imagem causados à Autora Angocap.
Alegou, para o efeito e em síntese:
A Autora AA.. é uma sociedade de direito angolano cuja actividade principal é a produção de cápsulas metálicas para a indústria de bebidas em Angola;
Por sua vez, a Autora BB…é uma sociedade de trading da Autora AA…, pertencendo ao mesmo grupo de empresas desta última, sediada na República da Maurícia;
Na sequência de negociações, em Maio de 2008, a Autora AA…, através da sua trading BB…, aqui Autora, encomendou à Ré 2 (dois) contentores de PVC, num total de 52.000Kg;
De acordo com a Ré, o material fornecido respeitava os requisitos especificados para a encomenda a que se obrigou, designadamente quanto ao uso alimentar;
A Autora AA… recebeu nas suas instalações o referido material PVC directamente da Ré, o que deu origem à emissão das respectivas facturas de 16/05/2018 e de 28/06/2018;
A Autora AA… iniciou a produção de cápsulas metálicas com o vedante interior em PVC fornecido pela Ré, referência “C…l FI042/60”, tendo sido produzidas um total de 122.758.072 cápsulas;
As referidas cápsulas metálicas destinavam-se a serem integradas nas linhas de engarrafamento de vidro dos clientes da Autora AA…, nomeadamente a “N..”, “C…”, “E…”;
Acontece que, na sequência dos clientes da Angocap terem iniciado o engarrafamento e a comercialização da cerveja pelas referidas marcas durante os meses de Junho e Agosto de 2018, constatou-se que o PVC interior para as cápsulas fornecido pela Ré era totalmente desconforme com a encomenda e com os requisitos da mesma;
Na verdade, o PVC fornecido pela Ré apresentou um odor químico atípico, tornando inutilizável o produto com o qual estava em contacto.
Situação que foi reportada à Autora AA… através de reclamação do cliente, na pessoa do Sr. “Vlademir …”, em 18/07/2018, com a indicação dos lotes e a seguinte descrição: “Caixas de crowns booster timbrada com odor anormal (cheira a verniz)”, como se verifica pela reclamação que se junta e aqui se dá por reproduzida (doc. 9).
Mais refere-se nas observações dessa reclamação que “Todas as quantidades relativas a estes lotes encontram-se isoladas para devolução”, (cfr. doc. 9).
Conclui que os prejuízos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelas Autoras em consequência da inaptidão, para a finalidade a que se destinava, do PVC comprado à Ré, ascendem ao montante global de e 5.328.855,18, nos termos especificados no pedido. 1.2.–A Ré contestou por excepção e por impugnação: por excepção invocou a inexistência do direito e ilegitimidade da Autora “AA…” (por nunca ter tido qualquer relação contratual com esta) e a caducidade (do pretenso direito das Autoras e do exercício judicial do direito que as mesmas invocam, pelo facto de estar em causa um contrato de compra e venda sobre amostra civil ao qual são aplicáveis as regras da compra e venda defeituosa, designadamente no que diz respeito aos prazos para denúncia e caducidade, previstos no artigo 917.º do Código Civil); por impugnação, refutou parte substancial dos factos alegados pelas Autoras.
Concluiu pedindo a procedência das excepções deduzidas ou a improcedência da acção. 1.3.–Em 14-05-2021 realizou-se a audiência prévia (cfr. acta com a ref.ª 148488696) em cuja sede foi proferido despacho saneador que conclui pela legitimidade da Autora AA…. Procedeu-se, ainda, à identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, bem como à admissão dos meios de prova e à planificação e agendamento da audiência de discussão e julgamento. 1.4.–Realizada a audiência final, que decorreu em sete sessões, com registo da prova e observância do restante formalismo legal, conforme decorre das respectivas actas, foi proferida sentença, datada de 08-03-2022, que julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, e absolveu a Ré dos pedidos formulados pelas Autoras (ref.ª Citius 150849274). 1.5.–Inconformadas, as Autoras interpuseram o presente recurso de apelação, cujas alegações remataram com as seguintes conclusões:
«A.–As Apelantes não se conformam com a sentença proferida que absolveu a Apelada por entenderem que o Tribunal a quo fez uma incorreta apreciação da prova produzida e aplicou erradamente o Direito. B.–As Apelantes instauraram a presente ação com fundamento na inaptidão do PVC comprado à Apelada para a finalidade a que se destinava, isto é, uso alimentar e pediram que fosse declarado o incumprimento contratual por parte desta e condenação no pagamento de indemnização. C.–O Tribunal de 1.ª instância decidiu que estava em causa um contrato de compra e venda comercial por amostra, sujeito ao regime dos arts. 469º e 471º do CCom, e que, mesmo que se considerasse que o prazo de 8 dias não era suscetível de ser aplicado por impossibilidade de se detetar o defeito nesse prazo, já teria passado o prazo de 6 meses para intentar a presente ação judicial, nos termos do disposto nos arts. 916º, n.º 2 e 917º (o Tribunal refere art.º 917º, nº 3 certamente por lapso) ex vi art. 3.º do CCom, julgando assim procedente a exceção de caducidade, com o que as Apelantes. D.–Por um lado, o Tribunal a quo não apreciou devidamente a prova produzida sobre os factos considerados não provados nos pontos a., b., c., d., i., k., l., m., o., p., q., r. e s., apesar da fundamentação apresentada, pelo que vêm as Apelantes impugnar (parcialmente) a decisão proferida sobre a matéria de facto. E.–Por outro, considerando procedente a exceção de caducidade invocada pela Apelada, aplicando o disposto nos arts. 3º, 469º a 471º do CCom ou o disposto nos arts. 916º, nº 2, 917º, nº 3 e 919º do CC, o mesmo Tribunal aplicou erradamente o Direito, como se demonstrará.
DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO F.–Entrando na análise da matéria provada e não provada, entendem as Apelantes que, ao arrepio do disposto no art.º 607º, nºs 4 e 5 do CPC, o Tribunal a quo não respeitou o princípio da livre apreciação da prova, nem cumpriu o dever de analisar cuidadosa e criticamente a prova produzida. G.–Com efeito, mal andou o Tribunal a quoao dar como não provado o ponto a. dos factos não provados, a saber, que “que a Autora “AA…” tenha produzido 122.758.072 cápsulas com a mercadoria recebida da Ré (segunda parte do artigo 9.º da p. i.)”, na medida em que o mesmo desvalorizou, totalmente, não só o depoimento das J… as Apelantes a respeito desta matéria, com também documentos oficiais emitidos pelas autoridades angolanas que por si só atestam o número de cápsulas em causa. H.–A matéria de facto dada como provada – nomeadamente os pontos 13, 14, 18 e 20 da mesma – permite, desde logo, aferir que a Apelante AA… recebeu efetivamente o primeiro contentor com 26.000 kg de PVC produzido pela Apelada, tendo iniciado de imediato, após a receção dessa 1.ª encomenda, a produção de cápsulas metálicas com o vedante interior em PVC fornecido pela Apelada, com a referência “C…l FI042/60”. I.–(…….) GG.–Resultando demonstrado – por via das reclamações de clientes, das averiguações levadas a cabo pela Apelante AA…, pelos testes laboratoriais realizados – a efetiva existência de um defeito no composto de PVC fornecido pela Apelada que impossibilitava o uso para fins alimentares. HH.–Fica também demonstrando que não foi dada a devida relevância e enquadramento jurídico à atuação da Apelada em relação à folha de especificação do produto e respetivas declarações que aquela emitiu, facto que, por si só, é apto a concluir pela efetiva desconformidade do fornecimento efetuado pela Apelada em relação ao que havia sido acordado/contratado. II.–A este respeito depôs a testemunha … – cfr. ficheiro de áudio da Audiência de julgamento realizada em 22 de novembro de 2021, minutos [01:23:16] a [01:28:12]. JJ.–Verificou-se assim a existência de duas declarações de conformidade para contacto/uso alimentar emitidas pela Apelante relativamente ao PVC fornecido: (i)- declaração emitida pela Apelada em 20.08.2018 e junta como DOC.15 da PI, com o seguinte teor “CC…, Lda. declara para os efeitos necessários que o material C…. Fly e 042/60 NAT utiliza na sua composição exclusivamente matérias-primas conforme o regulamento EC 10/2011, relativo a materiais e objectos de matéria plástica destinados a entrar em contacto com alimentos e subsequentes utilizações. Estando, portanto, o material adequado para a mesma utilização desde que usado segundo as condições preconizadas da ficha técnica e da ficha de dados de segurança”. (ii)-declaração emitida em 09.08.2018 e junta aos autos pela Apelada em 05.07.2021, nomeadamente o DOC.9 que acompanha o referido requerimento, com o seguinte teor:
“CC…, LDA. declara, para os efeitos necessários, que o material C…L FI042/60- NAT utiliza na sua composição exclusivamente matérias-primas conformes ao regulamento EC 10/2011 relativo a materiais e objetos de matéria plástica destinados a entrar em contacto com alimentos, e subsequentes atualizações.”. KK.–É assim por demais evidente a conduta (reprovável) da Apelada que, em momento posterior – 20.08.2018 – já tendo conhecimento da situação que se discute nos autos (e de modo a tentar evitar uma eventual responsabilização), adiciona um parágrafo final à declaração emitida anteriormente e enviada às Apelantes, datada de 09.08.2018, sendo que o PVC por ela fornecido não era, de todo apto para contacto alimentar (considerando o facto constante do ponto m. dos factos não provados como provado). LL.–Se não fosse pelos testes supra referidos e pelos respetivos resultados, sempre seria pelo facto de, efetivamente, a Apelante ter falhado em provar que o referido composto PVC estava apto para tal fim. MM.–Pois que, a respeito das declarações emitidas pela Apelada relativas a certificação do composto para efeitos de contacto alimentar, não pode deixar de se realçar a desconsideração a que o Tribunal recorrido votou o Parecer Técnico emitido pelo Centro Nacional de Embalagem (CNE) e junto pelas Apelantes com o seu requerimento de 29.10.2021. NN.–A conclusão inequívoca de tal Parecer foi no sentido de que a declaração emitida pela Apelada - não cumpria diversos regulamentos comunitários e não listava substâncias utilizadas e especificações de utilização do material (entre outras situações) e que, por isso, “não permite evidenciar que o produto a que diz respeito a declaração, vedante em PVC RE. C…L FI042/60 NAT, esteja apto ao fim a que se destina, contacto com cerveja.” OO.–Verifica-se assim que, pela própria declaração emitida pela Apelada, o PVC em questão não era apto a contacto alimentar, situação que se confirmou pela realização dos testes laboratoriais supra identificados pela Apelante. PP.–É assim notório o erro do Tribunal a quo ao não considerar provado que (i)- não só o PVC fornecido pela Apelada para ser injetado no interior das cápsulas era desconforme com a encomenda efetuada pela Apelante e com os respetivos requisitos exigidos, (ii)- como apresentava efetivamente um odor químico atípico, realidade que se verificava, e verificou, em todas as caixas de PVC que foram abertas depois da primeira reclamação apresentada por cliente da Apelante AA…, situação que foi confirmada pela Apelante AA… na sequência de diversas reclamações e conversações com os seus clientes e parceiros comerciais e apuramento do stock de produto fornecido pela Apelada. QQ.–Ainda em contradição com o entendimento do Tribunal a quo, resultou também provado que a Apelante AA… diligenciou pela realização de testes laboratoriais tendo como objeto o “PVC” fornecido pela Apelada, cujo resultado foi, sem sombra de dúvida, a existência de deficiências no produto, tendo sido validada a informação de que o mesmo não estava apto para produção. RR.–Deveria assim ter-se concluído também pela falha da Apelada em garantir, como lhe tinha sido exigido, o requisito de uso alimentar do produto fornecido, em clara desconformidade com os termos da encomenda contratada e paga pelas Apelantes. SS.–Falha essa que, necessariamente, faz a Apelada incorrer em responsabilidade contratual, por incumprimento culposo, culpa essa que se presume e que a Apelada não logrou ilidir, merecendo tal comportamento a tutela da lei, que se consubstanciará na atribuição às Apelantes de uma indemnização pelos danos causados, nos termos peticionados. TT.–Revelando os documentos juntos aos autos e os depoimentos das testemunhas das Apelantes que o material fornecido pela Apelada padecia efetivamente de um defeito, e que esse defeito, sendo virtualmente impossível de detetar, a não ser pelo consumidor final (como sucedeu) tornou inutilizável o produto com o qual estava em contacto, o que impossibilitou que as Apelantes e os respetivos clientes finais retirassem dele o proveito devido, deverá a matéria de facto constante dos pontos b., c., i., l. e m. dos factos não provados ser objeto de decisão que reverta tais factos para o elenco de factos provados. UU.–O Tribunal a quo deu, igualmente, como não provado o facto constante do ponto d. dos factos não provados. VV.–Dando-se por reproduzido tudo quanto exposto relativamente aos restantes factos considerados como não provados, resulta evidente que:
• a partir da data de 28 de junho de 2018 e até se ter conhecimento das reclamações apresentadas e do defeito do composto de PVC fornecido pela Apelada, todas as cápsulas produzidas pela Apelante AA… foram produzidas com o composto de PVC fornecido pela Apelada;
• o primeiro contentor de composto PVC fornecido pela Apelada, na quantidade de 26.000,00 kg foi utilizado na sua totalidade pela Apelante AA… para produção de cápsulas destinadas a engarrafar cerveja;
• com a referida quantidade de PVC (26.000,00kg) e com um valor base de 220 mg de PVC utilizado por cápsula (e atendendo a uma possível variação de + ou – 20 mg) era possível produzir entre 108.333.333 milhões de cápsulas e 130.000.000 milhões de cápsulas;
• após denúncia de reclamações apresentadas pelos clientes finais e, consequentemente, pelos clientes da Apelante AA… junto da mesma, reportados ao odor das cápsulas fornecidas pela AA… e inutilização do produto com o qual aquelas entravam em contacto, foram realizados diversos testes pela Apelante AA… em conjunto com os respetivos clientes, tendo o resultado dos mesmos sido inequívoco na conclusão de que o odor relatado provinha do composto de PVC fornecido pela Apelada;
• nessa sequência, tendo presente os resultados dos testes laboratoriais efetuados e atenta a desconformidade do composto fornecido pela Apelada, que teve como consequência a contaminação do produto (cápsulas) produzido pela Apelante AA…. e a total inutilização do produto com o qual as cápsulas entravam em contacto, concluiu-se que todas as cápsulas produzidas pela Apelante AA… não eram aptas ou conformes para utilização;
• tendo-se decidido pela respetiva inutilização, por razões de segurança e saúde pública, inutilização essa acompanhada e supervisionada por autoridades policiais do Estado Angolano. XX.–Também do Acordo Indemnizatório junto aos autos pelas Apelantes – e respetivos Anexos I, VI-A, VI-B e VI-C e DOC.16 da PI – resulta claro que o número total de cápsulas destruídas/inutilizadas atenta a desconformidade resultante do odor proveniente do composto de PVC fornecido pela Apelada ascendeu a 122.758.072,00, assim distribuídas:
-(…). AAA.–Às cápsulas supra descritas há ainda que adicionar as cápsulas Destruídas na N…: 18 490 000 cápsulas, cápsulas Destruídas na E…e as cápsulas destruídas na E… em dezembro de 2018: 8 860 000 cápsulas. BBB.–Resulta do supra exposto que o total de cápsulas destruídas resultantes de devoluções à Apelante AA…, que encontravam em stock nas instalações da mesma, ou que se encontravam na posse dos clientes ainda sem terem sido objeto de engarrafamento ascendeu a 117 760 000 cápsulas (90 410 000 + 18 490 000 + 8 860 000). CCC.–Assim, a soma das cápsulas destruídas por terem sido consideradas não conformes devido ao odor proveniente do composto de PVC fornecido pela Apelada ascendeu a 122.758.072 cápsulas, isto é, a toda a produção da Apelante AA… efetuada com a primeira encomenda (contentor) remetida pela Apelada. DDD.–Encontrando-se a referida exposição devidamente alegada pelas Apelantes na sua PI, e suportada pela documentação junta aos autos e supra indicada, deverá a matéria de facto constante do ponto d. da matéria de facto dada como não provada ser objeto de decisão que reverta tal facto para facto provado. EEE.–Deveria o Tribunal a quo ter dado, também, como provado o ponto k. dos factos não provados, porquanto a prova produzida em sede de audiência de julgamento foi clara no sentido de que a Autora AA… indemnizou a C… nos termos referidos no Acordo Indemnizatório oportunamente junto aos autos em 16.04.2021. FFF.–Com efeito, os depoimentos prestados pelas testemunhas --..
bem como as declarações de parte prestadas por …. foram claros no sentido, quer da celebração do acordo, quer do modo como o mesmo foi pago. GGG.–Em sede de declarações de parte, … – o qual prestou depoimento na sessão de audiência de julgamento que teve lugar no dia 26.11.2021 –, explicitou cabalmente as diferenças no que tange às práticas comerciais entre o mercado português e o mercado angolano e, outrossim, que parte do montante peticionado pela C… a título de prejuízos sofridos com o composto fornecido pela Apelada foi pago através da conta-corrente existente entre ambas as empresas, tendo a Apelante imputado ao valor que a C…. lhe devia a título de fornecimento os prejuízos que esta última sofreu em resultado do fornecimento de material defeituoso pela Apelada – (…) JJJ.–Este acordo comercial obedeceu, assim, a uma dupla vertente:
-Uma parte assentou na imputação das quantias a indemnizar em sede de conta-corrente, onde são efetuados os débitos e créditos do fornecimento que é realizado de forma contínua e à qual, quer a Apelante AA…, quer a C…., recorriam no âmbito da sua relação comercial; cumpre frisar que a C… tinha dívidas à Apelante AA…., em virtude de fornecimentos anteriores, as quais não pagou, por tais valores terem servido para compensar o valor a que a C…teria direito em virtude dos prejuízos causados pelo material defeituosamente fornecido pela Apelada.
-A outra vertente consubstanciou-se, como referido, num pagamento em espécie: como forma de proceder ao pagamento do remanescente do acordo indemnizatório firmado entre as partes, e num período em que a Apelante AA… passava por grandes dificuldades económicas (tendo em consideração que as suas contas bancárias se encontravam bloqueadas, impedindo-a de realizar pagamentos), foi acordado que forneceria cápsulas à C…, sem contra-pagamento. KKK.–O acordo comercial teve lugar em território angolano, país onde os usos e as práticas comerciais são diferentes das verificadas em território português. LLL.–Os montantes relativos aos danos sofridos pela C…, e consequentemente, a indemnização que a Apelante AA… teve que pagar, encontram-se cabalmente explicitadas, quer no Documento n.º 19 junto com a PI (versão mais legível no artigo 76.º da mesma), quer nos depoimentos já identificados. MMM.–Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que, tendo em conta a prova produzida, deveria o Tribunal a quo ter dado tal facto como provado, na medida em que o sistema português acolhe o princípio geral de livre apreciação da prova, sendo o mesmo derrogado somente quando se exija, para a prova de determinado facto, a observância de formalidades especiais ou tratando-se de factos que apenas possam ser provados por documento, o que não sucede no presente caso, na medida em que inexiste qualquer norma que determine que a prova do cumprimento de determinado acordo comercial apenas possa ser feita por documento. NNN.–Deverá, assim, o Tribunal ad quem, nos termos e ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, alterar a decisão quanto a este (e quanto aos demais) ponto da matéria de facto, considerando-o provado, por a prova produzida impor decisão diversa da tomada. OOO.–O ponto o. da matéria de facto não provada deveria, de igual modo, ter sido dado como provado, tendo em conta as declarações de parte prestadas pelo gerente/administrador de ambas as Apelantes, J…e, bem assim, os depoimentos prestados (…) UUU.–Todos os depoimentos referidos foram claros, assertivos e isentos, tendo deposto no mesmo sentido, deles resultando:
- O Grupo DD (no qual a C… se inclui) possui uma quota de cerca de 90% do mercado cervejeiro em Angola, tratando-se, portanto, de um monopólio;
- O grupo DD… engloba praticamente todas as cervejeiras em Angola – C…, E… N…, entre outras;
- A C… tinha um peso quase absoluto no volume de faturação e na obtenção de proveitos pela Apelante AA… no ano de 2018, período a que os factos em litígio se reportam; VVV.–Pelo exposto, podia e devia o Tribunal a quo ter dado tal facto – vertido no ponto o. - como provado, com recurso às chamadas presunções judiciais, nos termos art. 351º do CC, na medida em que se mostra possível inferir, dos factos conhecidos supra elencados, o facto desconhecido, ou seja, “Que o cliente “C…” representa cerca de 90% da cliente e dos proveitos de produção da Apelante “AA…”.
(….)CCCC.–Os danos não patrimoniais sofridos pela Apelante ANGOCAP possuem gravidade suficiente para merecer a tutela do direito, nos termos prescritos no art. 496º, nº 1 do CC.
DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO DDDD.–A doutrina e jurisprudência vêm entendendo que, sendo o contrato em causa, um contrato de compra e venda de bens para revenda, reveste a natureza de contrato de compra e venda comercial, nos termos do art.º 463º do CCom. EEEE.–Como resulta dos Factos Provados 5. a 8. elencados na sentença, o contrato de compra e venda em apreço foi celebrado com referência a uma descrição genérica dos bens em causa, tratando-se, portanto, de uma compra sob amostra, em que o vendedor se obriga a entregar, ao comprador, bens conformes com a qualidade descrita aquando da celebração do contrato, sujeito ao disposto nos arts. 469º a 471º do mesmo Código, donde, o contrato de compra e venda apenas produzirá os seus efeitos se verificada a conformidade do bem entregue com a amostra apresentada ou qualidade descrita. FFFF.–Daqui decorre que, no prazo de 8 dias previsto no art.º 471º do CCom, o comprador apenas fica obrigado a comunicar quaisquer defeitos que, após um exame superficial de conformidade com a encomenda efetuada, sejam detetados, ou seja, quaisquer defeitos mais “profundos” – que também não seriam detetáveis por um comprador à vista no momento da compra – que se verifiquem na mercadoria recebida, não podem ser incluídos naquele exame inicial. GGGG.–O mesmo é dizer que os 8 dias previstos no art. 471º do CCom são para uma análise de conformidade prima facie e nunca para uma análise técnica ou profunda do produto, não ficando os outros defeitos da coisa – “defeitos ocultos” – abrangidos pelo art. 471º do CCom, porque, frequentemente (como no caso em apreço), serão insuscetíveis de deteção em prazo tão curto. HHHH.–Entendemos, pois, que não pode, por isso, o regime do art. 471º do CCom afastar, no caso da compra e venda sobre amostra, o regime geral do incumprimento contratual, sob pena de o comprador ficar (injustificadamente) sem meios de reação perante o vendedor quanto a defeitos insuscetíveis de deteção à vista. IIII.–Ora, considerando que o Código Comercial não prevê regime especial regulador do incumprimento contratual, resulta, por força do art.º 3º do CCom, que, ao incumprimento do contrato de compra e venda comercial, é aplicável o regime geral – civil – da compra e venda de coisas defeituosas prevista no artigo 913.º do CC – neste sentido, entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.10.2011 e 10.01.2013. JJJJ.–Aliás, no caso em análise, o defeito do produto fornecido pela Apelada não era, e não foi, detetável no prazo de 8 dias, mas apenas após a distribuição e consumo das garrafas em cujas cápsulas o PVC foi injetado pela Apelante AA…, como decorre dos factos b., c., i., l. e m. que deverão ser considerados provados, como requerido. KKKK.–O Tribunal a quo entendeu aplicar o prazo de caducidade previsto no art. 917º do CC mas, as Apelantes entendem que, em virtude do disposto no art.º 918º do CC, é de excluir do âmbito de aplicação do art.º 917º do mesmo Código a compra e venda de coisa genérica, que corresponde ao tipo de compra e venda em causa nos autos, aplicando, consequentemente, a regra geral do art.º 309º do CC, que estabelece o prazo de vinte anos para a prescrição do direito.
– por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05.05.2020. LLLL.–A interpretação das normas contidas nos artigos 913º a 918º conduz à não aplicação do prazo constante do artigo 917º do CC às obrigações genéricas, o que resulta dos elementos literal, do elemento, sistemático e histórico. MMMM.–Por um lado, em termos literais, tratando-se de venda de coisa genérica (como se trata), a letra do art.º 918º remete para as regras relativas ao não cumprimento das obrigações – arts. 799º e 309º do CC – aplicando-se o prazo de prescrição de 20 anos. NNNN.–Por outro, sistematicamente, resulta dos regimes definidos no Código Civil que o legislador optou por consagrar soluções diversas consoante se esteja perante venda de coisa específica – à qual se aplica o regime constantes dos arts. 913º e ss. - ou venda de coisa futura ou genérica – à qual se aplica o regime do não cumprimento, ex vi art.º 918º do CC, não afetando tal diversidade a unidade do sistema jurídico. (Calvão da Silva, em Compra e Venda Defeituosa e, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 10.07.2019). OOOO.–Finalmente, também o elemento histórico - as “circunstâncias em que a lei foi elaborada” - conduz a uma interpretação que afasta a aplicação do prazo definido no art.º 917º do CC às obrigações genéricas – neste sentido, mesmo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, do STJ de 05.05.2020 e ainda outro de 26.11.2002 e a doutrina de Calvão da Silva, Menezes Leitão e Jorge Morais de Carvalho. PPPP.–Por tudo quanto acima se disse, estamos perante uma venda de coisa genérica, tendo o Tribunal a quo feito (também aqui) errada interpretação e aplicação do Direito ao considerar que se tratava de venda de coisa específica (5ª página da Sentença antes do final). QQQQ.–Com efeito, a venda de coisa por amostra reconduz-se à categoria de coisa genérica – essencial à qualificação da coisa como genérica é que a escolha do objeto da prestação compita ao devedor. RRRR.–A determinação da prestação não dependia apenas do género (determinado) da quantidade e das características da amostra. Dependia das características orgânicas do produto que não eram verificáveis no momento da entrega – o objeto da prestação era, pois, uma coisa indeterminada de certo género, pelo que deve ser tido em conta o disposto no art. 918º do CC. SSSS.–A este propósito, leia-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20.10.2011: “Quando a coisa, objecto da prestação, se encontra determinada apenas quanto ao género e quantidade, a obrigação é genérica. (…) Na compra e venda de coisa genérica, apurando-se o fornecimento defeituoso, o regime aplicável decorre do preceituado no artigo 918º, do CCivil (…).” TTTT.–No mesmo sentido, o já mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05.05.2020: “(…) se apesar das especificações técnicas e da amostra do produto que eram do conhecimento da autora, esta não podia controlar as ditas especificações no momento da entrega, por não poder verificar as características organolépticas do produto, o objecto da prestação continua a ser uma coisa indeterminada de certo género." UUUU.–Assim, deverá o Venerando Tribunal julgar o contrato em causa como sendo um contrato de compra e venda sob amostra de bens para revenda, com natureza comercial, de coisa genérica, subsumível ao regime civil, designadamente, às regras aplicáveis ao não cumprimento das obrigações, que conferiam (e conferem) às Apelantes o prazo de 20 anos para instaurar a ação de cuja sentença ora se apela, tudo nos termos do disposto nos arts. 463º, 469º a 471º e 3º do CCom e 913º a 918º, 799º e 309º do CC. VVVV.–Finalmente, alterando-se a matéria de facto como pedido, provando-se o incumprimento da obrigação a que a Apelada se vinculou perante as Apelantes, terá que ser imputada à Apelada responsabilidade contratual, uma vez que se encontram verificados os respetivos pressupostos: facto: fornecimento de PVC desconforme ao encomendado; ilicitude: violação da obrigação assumida perante as Apelantes de fornecimento de PVC para uso alimentar; culpa: conhecimento pela Apelada de que era essencial que o PVC fornecido fosse apto e certificado para contacto com produtos alimentares; nexo de causalidade: o PVC desconforme às exigências das Apelantes provocou um odor (e sabor) atípico no produto final comercializado pelas clientes da Apelante AA…, o qual só foi detetável após abertura das garrafas pelo consumidor final, levando à devolução/destruição das mesmas e inutilização das respetivas cápsulas; dano: patrimonial, na medida em que a devolução e destruição das cápsulas implicou custos para a Apelante AA…, a título de danos emergentes e lucros cessantes peticionados nos art. 68º a 87º da PI; e não patrimonial, nos termos descritos nos arts. 88º a 103º da PI. XXXX–Tudo ao abrigo do estabelecido nos arts. 798º, 562º, 563º, 566º e 483º do CC.
Nestes termos e demais de Direito, alterando para PROVADO os pontos da matéria de facto assinalada e aplicando corretamente o Direito, considerando improcedente a exceção de caducidade invocada, julgando verificado o incumprimento contratual por parte da Apelada e a consequente responsabilidade da mesma, condenando-a no pagamento da indemnização peticionada pelas Apelantes, assim, revogando a sentença, farão Vossas Excelências, Senhores Desembargadores a acostumada JUSTIÇA!».
* 1.6.–A Ré apresentou contra-alegações, a pugnar pela improcedência do recurso.
1.7.–Foram colhidos os vistos.
II)–Objecto do recurso - Questões a decidir:
De acordo com o disposto nos artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este Tribunal da Relação adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. Tal limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, contanto que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[[1]]
Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, a solução a alcançar pressupõe a ponderação das seguintes questões: 1.ª- Saber se o Tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento na apreciação e valoração dos meios de prova, que imponha a alteração da decisão da matéria de factorelativamente aos factos considerados não provados sob as alíneas a., b., c., d., i., k., l., m., o., p., q., r. e s; 2.ª-Da caducidade do direito das Autoras e da ilegitimidade substantiva da Autora Angocap; 3.ª- Na improcedência da referida excepção, saber se estão ou não verificados os pressupostos da responsabilidade civil.
III)–Fundamentação
A)–Motivação de facto:
Na 1ª instância julgaram-se provados e não provados os seguintes factos[[2]]:
A.1.–Factos provados: 1.–A Autora “AAA…” é uma sociedade de direito angolano, cuja actividade principal é a produção de cápsulas metálicas, com vedante interior de PVC, para a indústria de bebidas em Angola. 2.–A Autora “BB…” é uma sociedade de trading da Autora “AA…”, pertencendo ao mesmo grupo de empresas desta. 3.–A Ré dedica-se à actividade de “fabricação de outros artigos de plástico”. 4.–Confrontada com dificuldades de fornecimento, junto dos seus fornecedores habituais, do componente de PVC que utilizava para vedar o interior das cápsulas metálicas que produzia, a Autora “AA…” decidiu recorrer aos serviços da Ré, através da sua trading, a Autora “BB…”. Para tanto, 5.–Em 24 de Outubro de 2017 a Ré foi contactada, através de correio electrónico, por Ricardo … que, apresentando-se como «Group Supply Manager» da empresa “G…”, solicitou cotação para fornecimento de «PVC Compound», «quantidade de 200 mt» e «quantidade de 60 mt», informando que procurava «fornecedores alternativos aos habituais (Grace e Actega/Altana)». 6.–Em anexo a este e-mail foram enviados dois «TDS» (Technical Data Sheet), ou fichas técnicas, do composto de PVC fabricado pela empresa “Actega” para vedar as cápsulas metálicas, com as especificações e características técnicas pretendidas para o referido produto, das quais constam, como usos finais, bebidas refrigerantes, cerveja, água mineral e sumos de fruta. 7.–Em 25 de Outubro de 2017 a Ré respondeu a Ricardo … através do seu Director Comercial, Armando …, dizendo que poderia «apresentar uma solução já aprovada (contratipo da ficha técnica em anexo) com um custo de 1,35€/kgs para camiões completos», estando «ao dispor para lhe enviar amostras para proceder aos ensaios». 8.–Na sequência destes contactos, a Ré produziu uma amostra de 50 kg de composto de PVC de acordo com as especificações técnicas fornecidas, conforme descrito em 6., a qual foi enviada para as instalações da “G…”, no Monte Estoril, no dia 30 de Outubro de 2017. 9.–Após o envio da referida amostra, a Ré procurou obter informação junto de Ricardo … quanto à realização dos ensaios de validação e respectivos resultados da amostra enviada. 10.–Em 7 de Maio de 2018 a Ré, através de e-mail do seu Director Comercial Armando …, apresentou a Ricardo …, a pedido deste, propostas e condições finais de venda. 11.–Em 9 de Maio de 2018, pela mesma via, apresentou a proposta final e as condições de venda para um «contentor de 40’ (26.0000Kgs)», solicitando «pagamento antecipado» pelo facto de a “G…” ser «uma empresa recente (registo 2016)» à qual a seguradora de crédito da Ré «de momento não atribui plafond de crédito». 12.–Através de e-mail de 9 de Maio de 2018 Ricardo …, na qualidade de «Group Supply Manager» da empresa “G…”, remeteu um e-mail à Ré, na pessoa do seu Director Comercial Armando …, através do qual informou que «não será a G… a compradora deste material, mas sim uma das traders do nosso grupo. Tomaremos a opção pelo pagamento antecipado. Assim que tiver todos os elementos aprovados, informo, dentro das próximas 48 horas. Nessa altura providenciarei todos os elementos para facturação. (…)». 13.–Através de e-mail de 10 de Maio de 2018 Ricardo Caldeira Morais, na qualidade de «Head Procurement» da “BB…”, remeteu à Ré, na pessoa do seu Director Comercial Armando …, a ordem de compra («purchase order, de 10.05.2018») da “BB…”, com a referência “PORM20180010”, correspondente a 26.000kg de PVC «Compound de PVC para Cápsulas Metálicas ref. FI042760-NAT», no valor de € 36.309,00, a enviar («ship to») para “AA….”, Luanda, Angola. 14.–A Ré produziu o composto de PVC encomendado nas mesmas condições e com as mesmas características com que produziu a amostra mencionada em 8., que foi pago pela Autora “BB…” à Ré, conforme a factura de 16.05.2018, e que foi expedido em 30 de Maio de 2018, acompanhado do respectivo certificado de análise emitido pela Ré. 15.–Em 7 de junho de 2018 o Director Comercial da Ré, Armando …, enviou um email a Ricardo … na sequência de uma reunião realizada entre ambos onde, entre o mais, referiu, a propósito do PVC, que «esperamos o feedback da injecção deste primeiro envio». 16.–Em 11 de Junho de 2018 Ricardo … enviou um e-mail a Armando … encomendando «mais um contentor de 26 mt ao valor proposto», pedindo o envio da factura com «desconto financeiro pela antecipação do pagamento». 17.–Em 12 de Junho de 2018 a Ré reforçou junto de Ricardo …, através de email enviado pelo seu Director Comercial Armando …., que «é importante testar primeiro o contentor que expedimos de forma a não haver qualquer dúvida sobre os materiais.». 18.–A encomenda descrita em 14. chegou ao Porto de Luanda no dia 23 de Junho de 2018, e o contentor foi devolvido vazio no dia 26 do mesmo mês. 19.–Em 28 de Junho de 2018 a Ré emitiu a factura n.º 9000000654, relativa à encomenda produzida (conforme a amostra descrita em 8.) e referida em 16., no valor de € 36.691,20, em nome da Autora “BB…”, que a pagou, e expediu a mercadoria no dia 5 de Julho de 2018, acompanhada do respectivo certificado de análise. 20.–A Autora “AA…” recebeu nas suas instalações as encomendas mencionadas em 14., 16. e 19. 21.–Logo após receber a primeira encomenda, a Autora “AA…” iniciou a produção de cápsulas metálicas com o vedante interior em PVC fornecido pela Ré, com a referência “C…1 FI042/60”. 22.–As referidas cápsulas metálicas destinavam-se a serem integradas nas linhas de engarrafamento de vidro dos clientes da Autora “AA…”, nomeadamente, a “N…, a “C…” e a “E..”. 23.–Em 18 de Julho 2018, às 17.55 horas, a Autora “AA…” recebeu uma reclamação escrita de um cliente cuja identificação não foi possível apurar, datada de 18.07.2018, relativa ao «lote n.º 10-07-2018/CL3 16-07-18/BL3», com a indicação de que «6.490.000 unidades, equivalentes a 690 caixas» de «Crowns Booster timbrada com odor anormal (cheiro a verniz)», encontrando-se «todas as quantidades relativas a estes lotes» «isoladas para devolução». 24.–Em 18 de Julho de 2018, às 20.14 horas, Ricardo … remeteu um e-mail à Ré, na pessoa do seu Director Comercial Armando …, informando que «estamos a ter feedback negativo do vosso compound por parte do cliente e que se está a converter numa onda massiva de devoluções. Muito tem que ver com o odor libertado pelo composto. Amanhã conseguirei mais detalhes mas teremos que desde já ir pensando em soluções». 25.–A Ré respondeu por e-mail de 19 de Julho de 2018 através do seu Director de Operações, João …, que afirmou aguardar por mais detalhes, adiantando que «todos os compostos de PVC apresentam um cheiro característico que lhes é conferido pelas matérias-primas utilizadas na sua formulação, seja pela sua natureza, seja pela sua origem. Uns compostos apresentam um cheiro mais “doce”, outros mais “agressivo”, consoante as MP utilizadas. Pode de facto suceder que os clientes, ao receberem um material de origem diferente do habitual, notem um odor diferente e considerem que o novo material “tem cheiro” por estarem habituados a um material diferente. Este odor é normalmente mais notado no momento da injecção ou ao abrir uma embalagem de material, mas tende a desaparecer rapidamente assim que o material é arrefecido ou arejado. (…) Na matéria-prima que vos fornecemos todos os componentes usados são atóxicos e possuem certificado para contacto alimentar pelo que são adequados à utilização final do material. Se necessário existe a possibilidade de adicionar aos compostos um aditivo absorvedor de odores que minimiza estas situações. (…) No caso concreto da vossa aplicação, a minha opinião técnica é que não justifica onerar o material utilizando estes aditivos dada a sua aplicação final (o cheiro do produto que irá dentro das garrafas sobrepor-se-á largamente ao cheiro do PVC). No entanto podemos propor uma solução utilizando este aditivo caso considerem essencial.». 26.–Em 24 de Julho de 2018 o Director Geral da Autora “AA…”, Eduardo …, encaminhou a reclamação descrita em 23. a Ricardo …referindo que «fomos verificar se isto ocorria e em todas as caixas abertas se nota um forte cheiro a químicos. Este tipo de odor não é admissível dado que o cliente não quer qualquer tipo de odor nos produtos em contacto com os alimentos. O PVC utilizado normalmente (Grace e Actega) não deixa qualquer tipo de odor. O fornecedor deverá garantir que o nosso produto é possível de utilizar em produtos alimentares e que não transmite qualquer característica ao alimento com o qual contacta. Agradeço que seja efectuada a transmissão desta reclamação ao fornecedor e seja garantido que os próximos lotes não terão este problema». 27.–Em 31 de Julho de 2018 Ricardo …. enviou um e-mail à Ré, na pessoa do seu Director de Operações João …, com conhecimento ao seu Director Comercial, Armando …, dizendo anexar um «relatório de inconformidade relativamente ao compound de PVC por vós fornecidos»[[3]], reproduzindo parte do e-mail descrito em 26. e solicitando «que nos sejam prestadas garantias de que o produto é passível de uso em contacto alimentar e que não transmite qualquer característica ao mesmo; que nos sejam apresentados todos os certificados que atestem o ponto anterior; que nos seja prestada uma solução corretiva para o material em causa, ou por via do fornecimento de algum aditivo de neutralização, ou por via de reposição do material fornecido; que nos seja apresentada uma solução financeira que permita mitigar as perdas geradas por esta reclamação e consequente devolução do produto acabado». 28.–A Ré respondeu em 2 de Agosto de 2018 através do seu Director de Operações, João …, informando que estava «a reunir a documentação que comprova a adequabilidade do nosso composto para uso alimentar. Estamos apenas pendentes que os fornecedores de matérias-primas confirmem se as declarações de contacto alimentar que temos em nosso poder são as versões mais recentes ou se existe alguma actualização (a normativa EC é actualizada periodicamente o que obriga à emissão de declarações actualizadas) (…). Em simultâneo estamos já a aguardar a entrega de um neutralizador de odores para testes no nosso laboratório de forma a avaliar a viabilidade de este ser adicionado à posteriori ao material o que permitira utilizar sem problemas todo o material que já se encontra fornecido. Em relação ao último ponto poderemos tentar uma solução que ajude todas as partes a ultrapassar esta reclamação, no entanto reforçamos que no nosso entender seguimos todos os procedimentos normalmente exigidos no processo de homologação/fornecimento do nosso compound, nomeadamente, análise prévia da documentação fornecida (neste caso fichas técnicas da concorrência) de modo a cumprir com as características técnicas mencionadas nas mesmas; selecção criteriosa das MP a usar na formulação dada a aplicação final do compound e envio da amostra para homologação, que foi validada pelo cliente nas mesmas condições do material fornecido». 29.–Através de e-mail de 8 de Agosto de 2018, enviado pelo Director de operações da Ré, João .., a Ricardo …, aquele detalhou «a composição do material C…l FI042/60-NAT», referiu que assim que recebesse a declaração de contacto alimentar do Lubrificante, emitiria «a declaração do nosso composto», tendo ainda anexado ao e-mail todas as declarações de contacto alimentar das matérias primas do composto PVC, à excepção do Lubrificante, e o FT do material. 30.–A composição do material “C…1 FI042/60-NAT” é constituída pelas seguintes matérias-primas: Resina de S-PVC (Vicir S1200), Plastificante DOPT (Oxoviflex), Óleo de Soja Epoxidado (Drapex 39), Estabilizante cálcio-zinco (Mark Z 2021), Lubrificante (Faci L 450) e Dióxido de Titânio (Kronos 2220), todas adequadas para aplicações com contacto com alimentos. 31.–O seu processo produtivo inicia-se com a mistura em fase sólida (pó) de todas estas matérias primas num misturador de alta velocidade, sendo a mistura aquecida até uma temperatura que permita a incorporação de todas as matérias-primas na matriz do polímero principal (neste caso PVC). 32.–De seguida a mistura é descarregada para um arrefecedor, onde é arrefecida por agitação até uma temperatura de 50º-60º, de modo a que se apresente suficientemente desagregada para se iniciar a segunda fase do processo produtivo. 33.–A segunda fase do processo consiste na extrusão da mistura obtida numa extrusora de duplo-fuso onde, por acção mecânica e térmica em simultâneo, o pó é transformado num fundido (gel) que é extrudido e cortado em forma de pellets, arrefecido e transportado até à embalagem. 34.–O produto é devidamente embalado, só existindo possibilidade de contaminação durante o transporte do mesmo se existir violação da embalagem. 35.–Todas as encomendas expedidas pela Ré são acompanhadas dos respetivos certificados de análise, elaborados pela Ré com base nos testes efectuados ao material produzido, como sucedeu com as encomendas mencionadas em 14. e 19.. 36.–Através de e-mail de 21 de Agosto de 2018, enviado por Ricardo … ao Director de Operações da Ré, João …, aquele solicitou a «emissão do certificado de conformidade alimentar que está pendente emissão (…)». 37.–Este respondeu no mesmo dia por e-mail, pedindo «desculpa pela demora, estava apenas pendente de receber os documentos, referiu que foi solicitada uma reunião para Setembro «para que possamos discutir este assunto juntamente com a nossa Administração (…)» e enviou documentação em falta e uma Declaração por si assinada, com data de 20 de Agosto de 2018, através da qual a Ré declarou que «o material C…L FI042/l0-NAT utiliza na sua composição exclusivamente matérias-primas conformes ao regulamento EC 10/2011 relativo a materiais e objectos de matéria plástica destinados a entrar em contacto com alimentos e subsequentes atualizações, estando portanto o material adequado para a mesma utilização desde que usado segundo as condições preconizadas na Ficha Técnica e Ficha de Dados de Segurança». 38.–Entre os dias 9 e 13 de Agosto de 2018 foram efectuados “testes” num laboratório da “N…” (designadamente, “teste laboratorial”, “teste industrial”, “ensaio laboratorial” e “ensaio industrial/pasteurização”) a «amostras das produções do dia 11.08 e de 13.08», a «cápsulas ACP para controlo», a «PVCs recolhidos na prensa», a «“PVCs virgens” dos fornecedores Grace e Componit» e a «cápsulas e PVC do fornecedor Grace e da Componit». 39.–Em 17 de agosto de 2018 a Autora “AA…” recebeu uma reclamação escrita do seu cliente “C...” com a indicação de «Assunto: Reclamação sobre cápsulas defeituosas», com o seguinte teor: «No seguimento dos contactos tidos sobre o assunto melhor descrito em epígrafe vimos, pelo presente, V formalizar a nossa reclamação, oriunda do fornecimento de vários lotes de cápsulas, em Julho e Agosto de 2018, pela V. empresa. Após utilização das mesmas nas produções da COBEJE e dos seus parceiros E.. EC…, N.., e S.., verificou-se um defeito nas cervejas produzias. Volvidos vários dias no âmbito dos quais foram feitas várias e diversas análises para verificação do problema em causa, apurou-se que a origem do defeito vinha do PVC interno das cápsulas fornecidas pela AA... Após um primeiro aviso da N… à AA…e C…., as sociedades E…, C.., E e S… interpelaram a C…para informar que os lotes de capsulas recepcionados da AA… apresentavam defeitos e causaram prejuízos na produção. Concomitantemente, verificámos que a cerveja produzida não correspondia aos padrões de qualidade requeridos, tanto que foram devolvidas grades de cervejas por parte de clientes, pelo que vimo-nos obrigados em destruir lotes de cápsulas recebidos da AA…, assim como toda a cerveja produzida. Efectivamente, pela introdução dessas capsulas defeituosas na produção, as cinco fabricas sofreram imensos prejuízos, nomeadamente com a cerveja produzida e engarrafadas com cápsulas defeituosas, a qual foi devolvida ou destruída, perdas decorrentes da paragem das linhas de produção para apuramento do problema, com a destruição das cápsulas com defeito (não utilizadas mas pagas), acrescidos de todos aqueles que ainda poderão incorrer, além dos prejuízos causados à nossa imagem de marca. Neste contexto, sugerimos uma reunião com a maior brevidade, por forma a revermos, por um lado, as medidas adoptadas pela AA… para verificação da existência de defeitos nas capsulas fornecidas e a fornecer, bem como a identificação dos lotes de capsulas com defeitos (além daqueles que identificámos), e por outro as medidas a adoptar pela AA… para ressarcir os prejuízos sofridos (…) Aguardamos o V contacto para, no prazo irrevogável de 5 (cinco) dias corridos da recepção da presente carta, responder a nossa carta e propor a data de uma reunião, a realizar com os representantes legais das empresas envolvidas. Findo este prazo sem receber qualquer resposta por parte de V. Exas, seremos obrigados a fazer uso dos meios judiciais (…).». 40.–Em 29 de Agosto de 2018, e perante o silêncio da Autora “AA…” à missiva descrita em 39., a “C…” enviou nova missiva escrita à Autora “AA…”, convocando o legal representante da mesma para uma reunião. 41.–Em 8 de Agosto de 2018 o Serviço de Investigação Criminal do Ministério do Interior da República de Angola elaborou um “Auto de Inutilização” do qual consta, entre o mais, que se procedeu ao «acompanhamento da inutilização por método de abertura e posterior vazamento na vala de drenagem no interior da empresa» “N…” «de 118.799 caixas de cerveja sendo: 40.401 caixas de cerveja da marca N…(…) 78.398 cxs de cerveja de marca E… (…) e 18.490.000 de cápsulas por ter sido detectado um agente químico que provocou a contaminação da cerveja ora inutilizada (…). As cápsulas foram: 17.200.000 da cerveja N… e 1.290.000 da cerveja E…(…).». 42.–Em 24 de Agosto de 2018 o Serviço de Investigação Criminal do Ministério do Interior da República de Angola elaborou um “Auto de Inutilização” do qual consta, entre o mais, que se procedeu ao «acompanhamento da inutilização por método de abertura e posterior vazamento na vala de drenagem no interior da empresa» “E….” «de 21.551 cxs (…) de cerveja, sendo 15.844 cxs de cerveja N… (…) 4.032 cxs de cerveja E…(…) 16.675 cxs de cerveja da marca 33 EX… (…) por se ter detectado um aroma atípico na cerveja produzida entre 28.07.2018 a 04.08.2018, cuja origem do aroma atípico ter sido detectado nas cápsulas através do revestimento do PVC, provocando um forte odor, de conformidade os testes laboratoriais feitos e tendo-se concluído que apenas se sentia o forte odor atípico depois da pasteurização, não obstante a empresa ao ter detectado tal situação cancelou a venda e produção do produto ora referenciado e solicitou a intervenção destes serviços de Investigação Criminal para o devido acompanhamento da inutilização (…)». 43.–Em 30 de Agosto de 2018 o Serviço de Investigação Criminal da Delegação Provincial da Huila do Ministério do Interior da República de Angola elaborou um “Auto de Inutilização” do qual consta, entre o mais, que se procedeu à «inutilização por via de derramamento na entrada da ETAR (Estação de Tratamento de águas Residuais)» da fábrica da “EC..” «de 66.363 grades de cerveja do tipo Ng.. (…) produzidas de 01.08.2018 a 05.08.2018 (…) inutilizadas por defeito de fabricação das cápsulas por parte do fornecedor NA…, pelo facto de não ter utilizado na produção das mesmas os produtos recomendados, conforme os resultados das análises em anexo». 44.–Em 20 de Dezembro de 2018[[4]] o Serviço de Investigação Criminal do Ministério do Interior da República de Angola elaborou um “Auto de Inutilização” do qual consta, entre o mais, que se procedeu ao «acompanhamento e à destruição (inutilização) de (…) 84.340.000 cápsulas (…) por serem produzidas e revestidas com PVC da referência Comp…t, o que originou forte odor químico atípico nos produtos engarrafados das marcas acima referidas», designadamente, da «N…, E…Booster 33 Export e Plain Gold (Douradas)». 45.–Com data de 7 de Março de 2019 a Autora “AA…”, na qualidade de primeira outorgante, e a “C…”, na qualidade de segunda outorgante, assinaram um escrito particular denominado de “Acordo de pagamento indemnizatório” nos termos do qual declaram que a primeira «pôs à disposição da segunda para esta produzir garrafas de cerveja seladas com cápsulas metálicas com vedante interior de PVC (…) cujas quantidades constam do anexo I ao presente documento», sendo que «as cápsulas metálicas com vedante interior em PVC produzidas pela primeira outorgante destinavam-se para ser integrado nas linhas de engarrafamento de vidro da segunda outorgante» tendo sido «produzidas com PVC com referência C… FI042/60 do fornecedor CC… (…) conforme consta do anexo II ao presente documento», a qual se obrigou «a fornecer um PVC para uso alimentar e de acordo com as especificações da encomenda conforme consta do anexo III ao presente documento»; as cápsulas metálicas foram recepcionadas pela segunda outorgante «a partir do dia 28.06.2018 até 04.08.2018», num «total de 122.758.072 cápsulas, conforme anexo I»; após reclamações, «que constam do anexo IV ao presente documento, foram realizados testes laboratoriais que determinaram deficiências no produto fornecido, tendo sido validada a informação que o produto fornecido “não estava conforme para a produção” atento o anexo V ao presente documento», o que determinou «no produto já usado a sua inutilização por método de abertura e por embasamento em vala pelos Serviços de Investigação Criminal da Republica de Angola, conforme consta do anexo VI ao presente documento»; «a primeira outorgante decidiu mandar procedeu à análise por perito independente, e em laboratório internacional das reclamações apresentadas pela segunda outorgante» e, tendo recepcionado o resultado de tal peritagem verificou que o produto fornecido pela “CC…” era «contrário à sua destinação final» pelo que, «verificada a total inadequação do produto fornecido pela CC…t à primeira outorgante» esta viu-se «obrigada a assumir a responsabilidade pelos prejuízos causados à Segunda», designadamente, «viu-se assim obrigada a liquidar à Segunda Outorgante o valor de US $ 1.375.633,92 (um milhão trezentos e setenta e cinco mil seiscentos e trinta e três dólares e noventa e dois cêntimos, conforme anexo VI, a título indemnizatório por danos patrimoniais e não patrimoniais». 46.–O teor dos anexos referidos no mencionado Acordo são:
quanto ao Anexo I, uma tabela com indicação do total das «cápsulas não conformes» (v. g., das utilizadas, devolvidas, destruídas e em stock);
quanto ao Anexo II, cópia das facturas, Bill of landing, packing list, certificado da Ré e factura despachante Etalma Serviços das encomendas descritas em 14. e 16.;
quanto ao Anexo III, os e-mails descritos em 5. a 7.;
quanto ao Anexo IV, a reclamação e a insistência descritas em 39. e 40.;
quanto ao Anexo V, relatórios descritos em 38.;
quanto ao Anexo VI, os “Autos” descritos em 41. 42. e 43.. 47.–Com data de 9 de Maio de 2019 foi elaborado pela “SQTS” “Swiss Quality Testing Services” (ou “Serviços de Testes de Qualidade Suíços”) um Relatório com o n.º 2019L11729/1 sobre uma «amostra de dez cápsulas num saco» («Tampas coroa produzidas com C… FI042/60 Componit»), recebidas em 25.03.2019, que foi sujeita a uma «avaliação sensorial: prova de sabor de um teste alimentar por multi-comparação (avaliação sensorial simples)», realizada com seis testadores, com alimento de prova água, tendo-se concluído que «a avaliação sensorial mostrou que a amostra não influenciou de forma perceptível o odor e influenciou de forma distinta o sabor», que «foi descrito com os seguintes termos: plástico», tendo sido recomendado «que se investigue a causa e se realizem testes com o alimento final, uma vez que a análise sensorial é uma parte essencial da adequação de acordo com o Regulamento (CE) 1935/2004, artigo 3.». 48.–Através de carta registada com aviso de recepção datada de 6 de Outubro de 2019 as Autoras interpelaram a Ré através do seu Advogado para procederem «ao pagamento da quantia total em dívida de € 5.328.855,18 (cinco milhões trezentos e vinte e oito mil oitocentos e cinquenta e cinco euros e dezoito cêntimos) que corresponde à totalidade dos danos de natureza patrimonial e não patrimonial que foram causados no âmbito das relações comerciais estabelecidas» sob pena de, decorridos quinze dias contados da recepção da missiva, as Autoras interporem «acção judicial para efectiva cobrança das quantias que se consideram em dívida». 49.–A Ré respondeu por carta registada datada de 24 de Outubro de 2019 afirmando «que o produto fornecido cumpria integralmente as respectivas especificações técnicas que nos foram indicadas pela N/ Cliente, pelo que entendemos não existir fundamento para a reclamação apresentada» e que os «alegados danos» não estavam «minimamente invocados, justificados e demonstrados».
A.2.–Factos não provados:
Dos relevantes, consideram-se não provados as seguintes alegações (algumas com segmentos conclusivos) da autora: a.-que a Autora “AA…” tenha produzido 122.758.072 cápsulas com a mercadoria recebida da Ré (segunda parte do artigo 9.º da p. i.); b.-que o PVC interior para as cápsulas fornecido pela Ré era desconforme com a encomenda e com os requisitos da mesma, designadamente, que apresentasse um odor químico atípico, tornando inutilizável o produto com o qual estava em contacto (artigos 11.º e 12.º da p. i.); c.-que, na sequência de diversas reclamações e conversações com os seus clientes e parceiros comerciais, a Autora “AA…” tenha feito um apuramento do stock fornecido pela Ré e tenha constatado que, em todas as caixas com “PVC” abertas, se notava um forte cheiro a químicos (artigos 16.º a 18.º da p. i.); d.-que todas as cápsulas produzidas pela Autora “AA…” com o PVC fornecido pela Ré tenham sido consideradas não conformes, designadamente, 4.998.072 cápsulas utilizadas em produto engarrafado; 16.740.000 cápsulas devolvidas pela “C…”; 7.580.000 cápsulas devolvidas pela “E..”; 66.090.000 cápsulas em stock na “AA…” (inventário AA…/C… em 08/2018); 18.490.000 cápsulas destruídas na “N…” e 8.860.000 cápsulas destruídas na “EC…” (artigo 19.º da p. i.); e.-que a Autora “AA…” (nas pessoas de ……) se tenha reunido pessoalmente com a Ré (nas pessoas de ……) em 17.07.2018, pelas 12h30, nas instalações da mesma, tendo aqueles reportado a estes a informação de que dispunham relativamente à reclamação do cliente “grupo DD…”, dando-lhes nota da dimensão do problema, designadamente, quanto ao volume de material, danos e valores de indemnização/compensação envolvidos, e que o e-mail de 18.07.2018, descrito em 22. dos pontos de facto dados como provados tenha sido enviado «no seguimento» desta reunião (artigos 20.º, 1.ª parte do 21.º da p. i. e 74.º da Resposta); f.-que a Ré se tenha mostrado receptiva e colaborante nesta reunião, mostrando-se disponível para accionar a apólice de seguro que tinha em vigor para resolução do sinistro ocorrido (artigo 29.º da p. i.); g.-que perante a informação sobre a dimensão dos valores de indemnização/compensação reclamados à Autora “AA…” pelo seu cliente, a Ré informou aquela que o seguro contratado não teria “plafond” para cobrir valores tão elevados, pois a cobertura estaria limitada a € 500.000,00, sendo que já teriam nesse ano indemnizado € 150.000,00, o que deixaria apenas disponível € 350.000,00 para a reclamação das Autoras (artigo 30.º da p. i.); h.-que a Ré informou que, “no limite”, disponibilizaria o seguro para cobrir a perda do custo das Autoras com o material e responsabilizar-se-ia pela recolha do mesmo, revelando uma atitude colaborante e envolvida, reconhecendo o sinistro, apresentando soluções/medidas com vista à sua regularização, ainda que parcial (artigos 31.º, 32.º e 50.º da p. i.); i.-o que consta alegado no artigo 36.º da p. i. para além do que foi dado como provado sob o ponto 38.; j.-que a Ré não concretizou qualquer das medidas que havia proposto (artigo 38.º da p. i.); k.-que a Autora “AA…” tenha indemnizado a empresa “C…” pelos valores indicados no Acordo descrito em 45. e 46. dos pontos de facto dados como provados (artigos 39.º e 48.º da p. i.); l.-que o material “PVC” fornecido pela Ré libertasse um odor químico atípico, impedindo as Autoras e respectivos clientes de retirarem dele o proveito devido (artigo 46.º da p. i.); m.-que a Ré vendeu às Autoras material (PVC) desconforme com a encomenda acordada e contratada e sem garantir, como lhe foi exigido, o requisito fundamental do uso alimentar (artigos 53.º, 55.º, 57.º e 59.º da p. i.); n.-que a Ré se aproveitou da necessidade das Autoras quanto ao produto de “PVC”, face às dificuldades de fornecimento pelos seus habituais fornecedores (artigo 56.º da p. i.); o.-que o cliente “COBEJE” representasse 90% da clientela e dos proveitos de produção da Autora “Angocap” (artigo 73.º da p. i.); p.-que, por virtude do fornecimento de PVC pela Ré, não conforme ao contratado, a Autora “AA…” tenha deixado de receber encomendas desde essa altura por parte do seu cliente “DD…/C….”, o que levou a que tivesse que suportar os custos fixos da sua estrutura, incluindo encargos financeiros, sem que a mesma produzisse e sem que ocorressem vendas (artigos 74.º e 75.º da p. i.); q.-que o apuramento desses custos fixos suportados pela Autora “AA…”, sem produção/vendas, seja de Kwanzas (AOA) de 58.812.110,63, a que corresponde o contravalor em dólares de 206.744,21, obtido segundo a taxa de câmbio médio entre Julho e Dezembro de 2018 de “284,47” que Angola tem de dólarkwanza, valor este que perfaz o total de € 189.033,64 à taxa de câmbio de “1,09369”, conforme mapa de excel que constitui o documento n.º 19 junto com a p. i. (artigos 76.º a 78.º da p. i.); r.-que a Autora “AA…” tenha tido danos (lucros cessantes) sobre a perda de quota de mercado real, no montante de € 2.428.721,47, tendo em conta perdas vindouras num período de 10 anos e considerando a perda média de 6 meses anteriores à situação dos autos, a uma taxa de desconto correspondente à USD 12M Libor de 2,79%, conforme mapa de excel que constitui o documento n.º 19 junto com a p. i. (artigos 79.º a 87.º da p. i.) e s.-os danos alegados sob os artigos 88.º a 99.º da p. i..
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O demais alegado pelas partes consubstancia matéria de direito e/ou conclusiva.
B)–Motivação de Direito:
- Primeira questão: - Do alegado erro de julgamento da matéria de facto
Entendem as Recorrentes que o Tribunal a quo não apreciou devidamente a prova produzida sobre os factos considerados não provados sob as alíneas a., b., c., d., i., k., l., m., o., p., q., r. e s., apesar da fundamentação apresentada, pelo que impugnam (parcialmente) a decisão sobre a matéria de facto.
Como é sabido, nos termos exarados no artigo 607º do CPC vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido.
Além deste princípio, que só cede perante situações de prova legal - prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares e por presunções legais -, vigoram ainda os princípios da imediação,da oralidade e da concentração,pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão de 1.ª instância sobre a matéria de facto, ampliados pela reforma processual operada pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, e mantidos pela reforma processual operada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados
Perante o disposto no artigo 712º do CPC, a divergência quanto ao decidido pelo Tribunal a quo, na fixação da matéria de facto só assumirá relevância no Tribunal da Relação se for demonstrada, pelos meios de prova indicados pelo recorrente, a verificação de um erro de apreciação do seu valor probatório, sendo necessário, qua tais elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-06-2003, acessível em www.dgsi.pt).
Não se trata de possibilitar um novo e integral julgamento, mas a atribuição de uma competência residual ao Tribunal da Relação para poder proceder a uma reapreciação da matéria de facto.
A utilização da gravação dos depoimentos em audiência não modela o princípio da prova livre ínsito no direito adjectivo, nem dispensa operações de carácter racional ou psicológico que gerem a convicção do julgador, nem substituem esta convicção por uma fita gravada.
O que há que apurar é da razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau de jurisdição face aos elementos agora apresentados, ou seja, a modificação da matéria de facto só se justifica quando haja um erro evidente na sua apreciação.
Porém, uma coisa é a compreensão da fundamentação e outra diferente a concordância ou não com a mesma, já que, há que fazer a destrinça entre a convicção objectiva do julgador e, outra muito diferente, a vontade subjectiva da parte que pretende alcançar a sua própria verdade, sem uso de um espírito crítico.
A este propósito refere-se lapidarmente no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25.Nov.2005 (proc. 1046/02), disponível in www.dgsi.pt., que “a possibilidade de alteração da matéria de facto deverá ser usada com muita moderação e equilíbrio, ainda que toda a prova esteja gravada em áudio ou vídeo, devendo tao só o erro grosseiro ou clamoroso na apreciação da prova ser sindicado pela Relação com base na gravação dos depoimentos”.
Por erro notório deve entender-se “aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores; em que o homem médio facilmente dá conta de que um facto, pela sua natureza ou pelas circunstâncias em que pode ocorrer, em determinado caso, não pode ser dado como provado ou não é dado como provado e devia sê-lo – por erro na apreciação da prova” [[5]].
Ou, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.Jul.1997 (proc. 97P612), disponível in www.dgsi.pt., “o erro notório na apreciação da prova é um vício de raciocínio na apreciação das provas evidenciado pela simples leitura da decisão. Erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica ou excluindo dela algum facto essencial”.
Sem embargo, como afirma Abrantes Geraldes [[6]], “se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro deve proceder à correspondente modificação da decisão”.
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Ao expressar a sua motivação sobre a matéria de facto dada como não provada, fundamentação que se estende por sete páginas (de fls. 359v a 362v) referiu a Exma. Juiz a quo:
(…)
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Ora, salvo o devido respeito, ouvidas que foram todos os depoimentos prestados em audiência de julgamento, quer pelos legais representantes das Autoras e da Ré, quer pelas testemunhas, e não apenas os segmentos dos depoimentos invocados pelas partes, e feita uma reapreciação global de toda a prova produzida, que conjuga declarações de parte, declarações de testemunhas e prova documental, só podemos acompanhar a decisão sobre a matéria de facto e respectiva fundamentação, na qual a Senhora Juíza a quo expôs com expressiva clareza os motivos essenciais que a determinaram a decidir como decidiu o segmento em crise da decisão da matéria de facto (a., b., c., d., i., k., l., m., o., p., q., r. e s.,).
Na valoração da prova, o juiz não está sujeito a critérios apriorísticos, devendo fazer apelo à sua experiência vivencial, usando de prudência e de bom senso na interpretação dos sinais transmitidos pelas testemunhas, da forma como se exprimem e da segurança ou não dos conhecimentos de que são detentoras.
E a forma como a Senhora Juíza “a quo” valorou a prova por declarações de parte, testemunhal e documental que respeita à matéria de facto impugnada, mostra-se clara, especificando o seu perfil de pensamento e explicando correcta e criteriosamente as razões do seu convencimento, maxime as razões por que valorou cada uma dessas declarações e o sentido em que o fez, assim justificando porque considerou não provados os concretos pontos de facto impugnados.
Na motivação da decisão da matéria de facto, a Senhora Juíza a quo não só fez um resumo do conteúdo essencial e relevante das declarações de parte prestadas e dos depoimentos produzidos pelas testemunhas, como aborda aspectos coligidos das regras de experiência e da psicologia judiciária, de onde retirou os argumentos racionais que lhe permitiram, com razoável segurança, credibilizar essas declarações e os documentos por si valorados ou deixar de lhes atribuir qualquer relevo ou relevo significativo, em termos de poderem infirmar a versão que lhes era contrária, tais como a razão de ciência de cada um, o respectivo interesse no desfecho da acção, as incongruências e contradições detectadas em tais declarações de parte e depoimentos.
É consabido que no esforço de apreciação da prova, não pode deixar de ser dar relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador.
Com efeito, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações das testemunhas e depoimentos de parte, quando sejam prestados, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.
Isto porque é sabido que a comunicação não se estabelece apenas por palavras mas também pelo tom de voz e postura corporal dos interlocutores e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram.
Trata-se de um acervo de informação não-verbal, dificilmente documentável face aos meios disponíveis, mas rica, imprescindível e incindível para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras de experiência comum e lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
O juiz não é uma mera caixa receptora de tudo o que a testemunha diz ou de tudo o que resulta de um documento, impõe-se-lhe uma apreciação baseada numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos enformada por uma convicção pessoal.
Foi, pois, à luz destes princípios, tanto quanto sobressai da reapreciação da prova, que se formou a convicção do Tribunal a quo e, consequentemente, se declarou quais os factos julgados provados e os que foram julgados não provados, pertencendo a este núcleo os ora impugnados.
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- Dos ponto a. e d. dos factos não provados
Pretendem as Autoras que se reverta para a matéria de facto provada a factualidade constante dos pontos a. e d. do elenco de factos não provados, a saber:
“a.-que a Autora AA… tenha produzido 122.758.072 cápsulas com a mercadoria recebida da Ré” (segunda parte do art.º 9.º da p.i.); d.- que todas as cápsulas produzidas pela Autora “AA…” com o PVC fornecido pela Ré tenham sido consideradas não conformes, designadamente, 4.998.072 cápsulas utilizadas em produto engarrafado; 16.740.000 cápsulas devolvidas pela “C…”; 7.580.000 cápsulas devolvidas pela “E…”; 66.090.000 cápsulas em stock na “AA…” (inventário AA…/C… em 08/2018); 18.490.000 cápsulas destruídas na “N…” e 8.860.000 cápsulas destruídas na “EC.. (artigo 19.º da p. i.);
Não concordamos e antes acompanhados a decisão da 1.ª instância, por entendermos, à míngua de prova documental idónea ou de prova testemunhal firme e consistente, que não foi produzida prova suficiente e cabal que suporte o alegado pelas Autoras e Recorrentes.
Com efeito, o Anexo I «Reclamação a AA…», junto com os requerimentos das Autoras de 16-04-2021 e 28-05-2021 (desta feita em versão legível, por solicitação do Tribunal), não está suportado por qualquer documento idóneo, não passando de uma folha de excel interna da 2.ª Autora.
Com efeito, nenhum registo de produção – número de lotes, data de produção dos mesmos, quantidade por lote – foi junta aos autos, sem que nenhuma das testemunhas inquiridas conseguiu esclarecer, com algum grau de precisão, o número de cápsulas que foram produzidas com o composto fornecido pela Ré.
E também não foi junto qualquer documento contabilístico, idóneo a comprovar o que naquele Anexo I se declara, designadamente facturas que comprovassem os fornecimentos de cápsulas (crowns booster) às sociedades C…, E… e N… alegadamente feitos pela Autora AA…. Curiosamente, as únicas facturas que constam dos autos são as respeitantes às vendas de composto de PVC em causa nos autos feitas pela Ré à Autora BB…, estando igualmente documentados a expedição para Angola e embarque em navio de dois contentores, cada um deles com 26.000Kg de produto (Docs. 7 e 8 da p.i.).
De outra banda, as declarações prestadas pela testemunha Daniela … em nada contribuíram para o esclarecimento dos factos (quantidade de cápsulas que podem ser produzidas com o material fornecido, período de produção e quantidade de composto utilizado na produção, por cápsula), quer pela sua imprecisão, quer ainda se ter apurado que a testemunha não integrava os quadros da Autora AA… à data em que é alegado ter sido iniciada a produção com o produto fornecido pela Recorrida relativo ao primeiro contentor.
A testemunha não acompanhou ou fiscalizou o processo de produção das cápsulas nas quais alegadamente foi utilizado o composto da Ré, uma vez que apenas iniciou funções na Autora AA…, como Directora de Qualidade, em 1 de Agosto de 2018.
E nenhuma das testemunhas ouvidas foi capaz de esclarecer cabalmente qual a quantidade de cápsulas que foram produzidas com o composto fornecido pela Ré-Recorrida, em que período decorreu a produção e que quantidade desse composto de PVC foi utilizada em cada cápsula, o que não deixa de ser surpreendente na medida em que foi asseverado em audiência, quer pelo legal representante da Autora AA…, quer pela testemunha Eduardo …, à data Diretor-geral desta sociedade, que existiam registos do número de cápsulas produzidas em cada momento, com a referência aos fornecedores da chapa e do vedante (PVC) utilizados e aos respectivos lotes, Estranha-se, assim, que essa prova documental não tenha sido junta aos autos.
Cada testemunha referiu quantidades distintas de composto utilizado em cada uma das cápsulas e valores totais distintos de cápsulas passíveis de serem produzidos com 26.000Kg de PVC. Enquanto o legal representante da Autora AA …, afirmou “se for 0,9g é capaz de dar 127 milhões de cápsulas. Se for com 0,40g dá 121 ou seja o que for. Pronto 0,24g. É o que der”, sendo que mais adiante disse “normalmente pomos o,22g..”, a testemunha Eduardo…. referiu que os 26.000Kg dariam para produzir “para aí meio milhão de cápsulas ou coisa assim”.
Conforme resulta dos referidos depoimentos, existiria e era susceptível de ter sido produzida prova documental, por via da junção das folhas de produção por máquina, sobre a quantidade de cápsulas produzidas, os lotes de vedante utilizados, quantidades e respectivo fornecedor no período temporal que se seguiu à recepção do 1.º contentor de PVP fornecido pela Ré. Tal prova não foi feita e era sobre as Autoras que cabia alcançá-la (artigo 342.º, n.º 1, do Cód. Civil).
A tudo acresce que a prova testemunhal, além de inidónea à prova dos factos em apreço, revelou-se insuficiente e contraditória entre si.
Aduzem, por fim, as Recorrentes na conclusão L, que “a existência e veracidade dos Autos de Inutilização juntos aos autos pelas Apelantes (e descritos nos pontos 41 a 44 dos factos dados como provados) deveriam ter sido, indiscutivelmente, levados em linha de conta pelo Tribunal de 1ª instância para aferir do número de cápsulas produzidos pelas Apelantes com o composto de PVC fornecido pela Apelada, isto porque tais Autos, além de especificadamente referirem o motivo da inutilização, permitem aferir do número de cápsulas destruídas.”
Ao que a propósito desses «Autos de Inutilização» (descritos sob os pontos de facto dados como provados sob os n.ºs 41 a 44) foi dito pela Senhora Juiz a quo, conforme transcrito supra, que aqui subscrevemos, acrescentamos que dos factos provados apenas resulta a existência e a elaboração desses autos por oficial do Serviço de Investigação Criminal do Ministério do Interior da República de Angola, com o conteúdo aí melhor descrito, mas não a veracidade do que em tais documentos se fez constar.
Com efeito, tais documentos - que não passam de meras cópias simples – não autorizam o tribunal recorrido a presumir verdadeiros os factos neles consignados, estando a sua valoração sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, sem qualquer inversão do ónus da prova que às Autores, ora Recorrentes, cabe fazer.
Diga-se, sem rodeios, que tais documentos nos merecem as maiores reservas, pela forma e conteúdo. Surpreende-nos, desde logo, que se trate de meras cópias não certificadas pela entidade responsável pela sua elaboração, como se impunha. Suscita-nos estranheza que um oficial de polícia de um serviço afecto à investigação criminal (SIC) actue, alegadamente a coberto de ordem superior (sem indicar quem), fora do âmbito de um processo contraordenacional ou criminal e da supervisão de uma autoridade judiciária. Certo é que nenhuma referência é feita nos ditos «Autos de Inutilização» a qualquer procedimento legitimador da diligência efectuada, o que nos pode levar a questionar os motivos da intervenção do SIC e os interesses subjacentes. Surpreende-nos, igualmente, que nos referidos «Autos de Inutilização» não se faça constar a hora do fim da diligência, como é regra nestes casos. Questionamo-nos mesmo sobre a duração do acompanhamento que foi feito, com início às 12h05m do dia 8-08-2018, pelo dito oficial de polícia, da inutilização das 118.799 caixas de cerveja (40.401 da marca N.. e 78.398 da marca E…), com 24 garrafas de cerveja cada, o que dá um total de 2.851.176 garrafas de cerveja, alegadamente efectuada nas instalações fabris da N…. Dado o método de inutilização que se fez constar do auto (abertura e posterior vazamento – da cerveja claro – na vala de drenagem da fábrica) e estimando que cada operário vazaria uma média de 4 garrafas por minuto, logo se alcança que a operação demoraria 11.879 horas sem pausas (712794 minutos) se a ela fosse afecto um trabalhador, 594 horas se afectassem 20 trabalhadores e por aí adiante, é só fazer contas. Era necessário muito tempo e muita mão de obra! Questionamo-nos, ainda, sobre o método de controlo de quantidades utilizado pelo dito oficial de polícia para atestar o que atestou no «Auto de Inutilização», uma vez que só podia contar consigo e com o seu colega, que figura como testemunha do acto. Estas nossas reservas aplicam-se a todos os «Autos de Inutilização», pois todos seguem o mesmo modelo. E se o SIC de Angola não fez qualquer investigação que tivesse sido formalizada segundo as boas práticas processuais e com respeito pelo contraditório, nem supervisionou as análises efectuadas a pedido das cervejeiras reclamantes e/ou da Autora AA…, que valor poderá ter o atestado pelos oficiais de polícia do referido serviço que elaboraram os «Autos de Inutilização» de que as anomalias tinham origem em “defeito de fabricação das cápsulas por parte do fornecedor ANGOCAP pelo facto de não ter utilizado na produção das mesmas os produtos recomendados” (cfr. Auto de 30-08-2018, a fls. 180)?. Salvo o devido respeito, não lhe atribuímos outro valor que não seja o de remeter para um relatório de análises que nem sequer sabemos se é o mesmo que as Autoras juntaram aos autos sobre o qual nos pronunciaremos mais adiante.
Ora, não resultando demonstrada a quantidade de cápsulas produzidas pela Autora AA… com o composto fornecido pela Ré, bem como a quantidade de cápsulas destruídas não é possível afirmar como provada a factualidade constante da alínea d. dos factos não provados.
Em abono do por si alegado, as Autoras juntaram aos autos, a coberto de requerimento apresentado em 16-04-2021, um «Acordo de Pagamento Indemnizatório», datado de 7 de Março de 2019, alegadamente celebrado entre a Autora Angocap e a C…. (cfr. fls. 154 a 155), através do qual a primeira declara obrigara-se a indemnizar a segunda no valor de USD§1.375.633,92 por danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelo fornecimento de um total de 122.758.072 cápsulas metálicas com defeito causado pelo composto de PVC fornecido pela Ré que “não estava conforme para a produção”.
A falta de credibilidade do referido documento resulta, desde logo, de nas suas cláusulas 14.ª a 16.ª se fazer referência à análise que foi efetuada pelo laboratório suíço SQTS (cfr. fls. 183 a 186), bem como aos respetivos resultados quando tal análise, à data da suposta celebração do acordo de pagamento ainda não tinha sido efetuada!
O documento em causa está datado de 7 de Março de 2019, e faz referência à análise efetuada no laboratório suíço em 9 Maio de 2019! Por outro lado, do referido relatório de análise consta que o pedido de exame data de 28-03-2019.
Por outro lado, como salienta a Recorrida nas suas contra-alegações, na cláusula 2.ª do referido acordo de pagamento faz-se referência ao facto de as cápsulas objecto de destruição terem sido entregues à C… entre 28 de Julho e 4 de Agosto de 2018. Ora, segundo alegam as Autoras, a AA… começou a receber reclamações massivas relativas às cápsulas a partir de 18 de Julho de 2018. Pergunta com pertinência a Recorrida, e perguntamos nós: porque razão não parou desde logo com a produção de cápsulas e continuou a produzir até Agosto?
As Autoras, como lhes competia, não juntaram prova documental idónea a demonstrar as quantidades de cápsulas produzidas, a origem do composto de PVC utilizado como vedante, bem como a quantidade de cápsulas destruídas. E a prova documental que juntou, além de inidónea a tal desiderato, não nos merece credibilidade pelas razões apontadas. Mantêm-se, por isso, inalterados os pontos a. e d. dos factos não provados.
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- Dos pontos b., c., i., l., e m. dos factos não provados
Impetram as Recorrentes que a matéria de facto constante dos pontos b., c., i., l., e m. dos factos não provados seja objecto de decisão que reverta tais factos para o elenco de factos provados.
Alegam, em resumida súmula, que dos documentos juntos aos autos e dos depoimentos prestados pelas testemunhas …….…, que qualifica de esclarecedores, incisivos e credíveis, se retira que apenas o PVC fornecido pela Recorrida não se encontrava conforme, exalando um odor (e sabor) químico que, consequentemente inutilizou as cápsulas nas quais foi injectado para o fim a que se propunham.
Resultando demonstrado – por via das reclamações de clientes, das averiguações levadas a cabo pela Recorrente Angocap, pelos testes laboratoriais realizados – a efectiva existência de um defeito no composto PVC fornecido pela Recorrida que impossibilitava o uso para fins alimentares.
Aduz, ainda, que não foi dada a devida relevância ao Parecer Técnico emitido pelo Centro nacional de Embalagem (CNE) e juntos aos autos pelas Recorrentes com o seu requerimento de 29-10-2021, segundo o qual a declaração emitida pela Recorrida relativas a certificação do composto para efeitos de contacto alimentar não cumpria diversos regulamentos comunitários e não listava substâncias utilizadas e especificações de utilização de material e que, por isso, “não permite evidenciar que o produto a que diz respeito a declaração, vedante em PVC RE CO… FI042/6 NAT, esteja apto ao fim a que se destina, contacto com cerveja”.
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A matéria de facto em causa, que vem dada como não provada é a seguinte:
«b.-que o PVC interior para as cápsulas fornecido pela Ré era desconforme com a encomenda e com os requisitos da mesma, designadamente, que apresentasse um odor químico atípico, tornando inutilizável o produto com o qual estava em contacto (artigos 11.º e 12.º da p. i.); c.-que, na sequência de diversas reclamações e conversações com os seus clientes e parceiros comerciais, a Autora “AA…” tenha feito um apuramento do stock fornecido pela Ré e tenha constatado que, em todas as caixas com “PVC” abertas, se notava um forte cheiro a químicos (artigos 16.º a 18.º da p. i.);
[…] i.-o que consta alegado no artigo 36.º da p.i. [[7]], para além do que foi dado como provado sob o ponto 38.;
[…] l.-que o material “PVC” fornecido pela Ré libertasse um odor químico atípico, impedindo as Autoras e respectivos clientes de retirarem dele o proveito devido (artigo 46.º da p. i.); m.-que a Ré vendeu às Autoras material (PVC) desconforme com a encomenda acordada e contratada e sem garantir, como lhe foi exigido, o requisito fundamental do uso alimentar (artigos 53.º, 55.º, 57.º e 59.º da p. i.)».
*
Importa referir, antes de mais, que as eventuais modificações à decisão relativa à matéria de facto a operar por esta Relação devem respeitar o que as Recorrentes, no exercício do seu direito de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, indicaram nas respectivas alegações e nas conclusões que circunscrevem o objecto do recurso[[8]].
Assim o reclamam os princípios do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes.
Em suma, sem embargo das modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas (art.º 662.º/1 do CPC), a modificação da decisão da matéria de facto está dependente da iniciativa da parte interessada e deve limitar-se aos pontos de facto especificadamente indicados, desde que se mostrem cumpridos os requisitos formais que constam do artigo 640.º do CPC.
Prosseguindo,
Considerou o Tribunal a quo não provado sob a alínea b) “que o PVC interior para as cápsulas fornecido pela Ré era desconforme com a encomenda e com os requisitos da mesma, designadamente, que apresentasse um odor químico atípico, tornando inutilizável o produto com o qual estava em contacto (artigos 11.º e 12.º da p. i.)”.
Ora, importa referir que resultou provado (cfr. pontos 8 e 14 da matéria de facto provada) que a Ré produziu o composto de PVC encomendado pela Autora AA…, nas mesmas condições e com as mesmas características com que produziu a amostra inicial, isto é, de acordo com as especificações técnicas fornecidas, pelo que, pretendendo as Autoras/Recorrentes reverter para o elenco de factos provados a matéria constante da alínea b. da matéria de facto não provada, teria que ter recorrido, necessariamente, dos pontos 8. e 14. da matéria de facto provada, sob pena de contradição na matéria de facto, o que não fez.
Assim, e não tendo as Autoras recorrido dos pontos 8. e 14. da matéria de facto provada, está esta Relação impedida de conhecer o recurso no que respeita à factualidade não provada que versa sobre a mesma matéria.
Do mesmo modo e quanto à matéria indicada na alínea m. da matéria de facto não provada, o Tribunal a quo também considerou provado (cfr. pontos 29 e 30 da matéria de facto provada) que o composto produzido pela Ré CC… era apto para contacto alimentar.
Consta do ponto 30 dos factos provados: “A composição do material “C… FI042/60-NAT” é constituída pelas seguintes matérias-primas: Resina de S-PVC (Vicir S1200), Plastificante DOPT (Oxoviflex), Óleo de Soja Epoxidado (Drapex 39), Estabilizante cálcio-zinco (Mark Z 2021), Lubrificante (Faci L 450) e Dióxido de Titânio (Kronos 2220), todas adequadas para aplicações com contacto com alimentos.”
As Autoras não puseram em causa tal matéria de facto, pelo que esta Relação não pode conhecer os argumentos avançados pelas Autoras quanto à matéria indicada no ponto m. da matéria de facto não provada, sob pena de contradição entre a matéria de facto.
Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, sempre se dirá que o conjunto da prova produzida permite concluir que o composto de PVC fornecido pela Ré não só correspondia integralmente aos requisitos que constavam da ficha técnica entregue pela Autora BB…, como era apto para contacto alimentar.
É o que se retira do depoimento objectivo, esclarecedor, assertivo e convincente prestado pela testemunha João …, engenheiro responsável pela área de produções da Ré, que supervisionou o processo de desenvolvimento e produção do composto de PVC à medida do cliente, ou seja, segundo as especificações técnicas fornecidas pela G… (empresa do grupo das Autoras), por indicação da Autora BB….
Por outro lado, vem dado como provado (cfr. pontos 8 a 14 dos factos provados, não impugnados) que a Ré enviou uma amostra do referido composto para que as Autoras pudessem proceder à respetiva testagem, que as Autoras nada disseram relativamente à amostra enviada, nem nunca informaram a Ré de qualquer teste efetuado à amostra, ou posteriormente, ao produto final que fosse suscetível de o validar ou invalidar, a amostra/produto final e que, posteriormente ao envio da amostra efectuaram a encomenda do produto.
À conclusão de que o composto de PVC fornecido pela Ré era apto a contacto alimentar chegou o Professor Doutor Jorge Fernando Jordão Coelho, do Departamento de Engenharia Química da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade de Coimbra, que analisou o composto produzido pela Ré CC… e atestou, em Parecer fundamentado, que todos os respetivos componentes eram aptos para o contacto alimentar (cfr. Parecer de Julho de 2021, junto de fls. 230 a 274), conclusão que defendeu com consistência e assertividade em declarações prestadas em audiência de julgamento (sessão de 26-11-2021).
Esta testemunha esclareceu, ainda, que o produtor de PVC, dos testes que efectua, apenas está em condições de comprovar se o PVC está ou não conforme com as especificidades técnicas que lhe são pedidas, mas que caberia ao cliente (ou neste caso ao cliente do cliente, a AA…) a testagem dos produtos em “cenário real”, na linha de produção, uma vez que apenas este está em condições de colocar o PVC em contacto com a embalagem (cápsulas metálicas e garrafas de vidro) e com o produto final e faze-lo em “ambientes reais”, nomeadamente, no que respeita à temperatura, à luz e a outras condições.
Por sua vez, a testemunha …, Director de Produção da Ré, explicou cabalmente em audiência as circunstâncias em que foram emitidas as declarações de certificação enviadas à Autora AA…, a atestar que as matérias-primas usadas no composto de PVC estavam todas aptas para contacto alimentar, sendo que a última enviada atestava que o próprio composto é apto para contacto alimentar, facto que, aliás, resulta provado do ponto 37 da matéria de facto provada, que as Recorrentes não puseram em causa.
Referem as Recorrentes que o Tribunal a quo desconsiderou o Parecer Técnico emitido pelo Centro Nacional da Embalagem (CNE) e junto com o requerimento por si apresentado em 29-10-2021.
Porém, como bem refere a Recorrida, este Parecer Técnico não tem a relevância que lhe atribuem as Recorrentes, na medida em que se refere apenas aos formalismos exigidos para a emissão da declaração de certificação.
O que se retira do Parecer resulta é tão somente que a declaração emitida pela Ré não cumpre os requisitos formais exigido para a listagem dos componentes, nos termos dos normativos comunitários, sendo que o referido Centro Nacional de Embalagem tem o cuidado de esclarecer que não foi efetuado qualquer teste ao produto, como se alcança do seguinte trecho:
“De notar que este parecer apenas se refere à análise da declaração de conformidade face ao anexo IV do Regulamento (EU) n.º 10/2011 e respetivas emendas e à documentação de suporte (declarações de conformidade dos fornecedores das matérias primas), fornecidas pelo cliente. Não foi analisado, nem verificado qualquer relatório de ensaios”. (sublinhado e negrito nossos) Tenha-se, ainda, em consideração que na ficha de caraterísticas técnicas do produto, que foi enviada pela Ré às Autoras, consta expressamente que as características do produto são suscetíveis de se alterar quando inseridos noutro processo produtivo (cfr. Documento n.º 7 junto com o requerimento da Ré de 5 de Julho de 2021): “Os valores e resultados acima indicados foram obtidos utilizando condições controladas e provetes produzidos no nosso laboratório e podem não se reprodutíveis noutras condições. É da responsabilidade do cliente a adaptação das condições de processo aos seus equipamentos, bem como o uso apropriado, seguro e legal de todos os produtos por nós fornecidos.” [sublinhado nosso].
Ora, conforme resultou provado, a Ré/Recorrida alertou, diversas vezes, para o facto de ser necessário testar o produto antes de se iniciar a produção (cfr. pontos 15. e 17. da matéria de facto provada), uma vez que os PVC podem alterar o seu comportamento, caso, por exemplo, sejam expostos a condições extremas, como calor ou diluídos/misturados com outros produtos.
Certo é que as Autoras optaram por nunca testar o produto, ainda que tenham recebido 50kg de amostra para o efeito, o que, por si só demonstra negligência e más práticas relacionadas com a integração de um novo produto na sua linha de produção de cápsulas (crown corks) para engarrafamento de bebidas alimentares, especificamente cervejas.
No que concerne à questão do odor libertado pelo PVC fornecido pela Ré, a prova produzida não permite que se extraiam conclusões seguras sobre qual (i) o concreto odor que alegadamente libertava o composto e sobre (ii) se tal odor era efetivamente proveniente do composto da Ré.
Na verdade, causa-nos estranheza que perante um problema da dimensão do alegado pelas Autoras, ninguém se tenha apercebido logo aquando da retirada dos lotes de composto de PVC das respectivas embalagens e posterior integração nas linhas de produção de cápsulas que o mesmo exalava um odor intenso a químicos, já que o odor é uma propriedade organolética que pode ser percebida com o olfato. E certamente foram muitos os operários e técnicos que tiveram contacto com aquele produto antes de ser transformado, durante as fases de armazenamento, manuseamento e produção.
Tal circunstâncias leva-nos a questionar se a deterioração do composto de PVC não se terá dada na fase da produção, se foi aqui que o produto se deteriorou por um processo que se revelou inadequado, sendo certo que à data a AA… não tinha Director de Produção, conforme resultou do depoimento da testemunha Daniela ….
No entanto, sobre o processo de produção nem sequer se pode atender aos depoimentos prestados pelas testemunhas …, a que já fizemos referência, pois o que declararam resultou de ouvir dizer e de alguma especulação. A primeira ainda não integrava os quadros da AA… à data da alegada produção de cápsulas com o composto de PVC fornecido pela Ré. O segundo não se encontrava em Angola à data dos factos, pelo que também nada sabe acerca da produção das cápsulas alegadamente com composto de PVC fornecido pela Ré, não tendo acompanhado os ensaios realizados pelos clientes da Autora AA…, tendo apenas tido conhecimento das reclamações que foram encaminhadas para si. Aliás, esta testemunha nunca percepcionou qualquer odor no produto, apenas tendo relatado que lhe foi contado por terceiros.
Já o depoimento, que se revelou isento, objectivo, esclarecedor e assertivo, prestado pela testemunha Gustavo …, engenheiro químico, reveste-se de utilidade para a decisão da matéria de facto, na medida em que o mesmo foi o responsável pelos ensaios realizados às cápsulas nos laboratórios da NOCAL, junto com a equipa de qualidade da AA…. Esclareceu que aquando da realização dos ensaios a amostras de cápsulas desconformes desconhecia a identificação do produtor do composto de PVC utilizado como vedante e que foi a AA… quem forneceu essa informação, assim como informou que as cápsulas sujeitas aos ensaios foram produzidas pela AA… entre 7 e 13 de Agosto de 2018.
Em suma, a testemunha desconhecia se os ensaios foram ou não realizados com cápsulas produzidas com o composto fornecido pela Ré ou com outro composto de outro fornecedor da Autora AA… e do seu depoimento resulta, ainda, que as cápsulas ensaiadas foram produzidas cerca de mês e meio depois da recepção, pela Autora AA…, do 1.º contentor com composto de PVC e da utilização deste composto na produção da alegada quantidade de 122.758.072 de cápsulas (crown corks).
Tenha-se presente que no seu depoimento a testemunha … afirmou que a produção de cápsulas se iniciou logo após a recepção do contentor, em 26 de Julho de 2018 e que Daniela … referiu que o tempo necessário para a produção das referidas quantidades oscilava entre 18 e 25 dias. E que resultou da prova testemunhal que apenas utilizaram o composto de PVC do 1.º contentor na produção de cápsulas.
Ficou, assim, por demonstrar que composto foi utilizado nas cápsulas produzidas em Agosto de 2018 que foram objecto de análise. Por explicar ficou, ainda, por que não juntaram as análises alegadamente efectuadas às cápsulas fabricadas pela AA… em Julho de 2018 com o composto fornecido pela Ré (cfr. depoimento de Gustavo … e docs. de fls. 164 a 170 analisados em audiência aquando da sua prestação).
A tudo acresce que a testemunha Eduardo …, que à data exercia funções de Diretor-geral da Autora AA.. também não esclareceu como era feita a identificação das cápsulas, quanto ao fornecedor do composto.
Por outro lado, do doc. 9 junto com a p.i. constam três reclamações, sendo que uma identifica o odor a “cheiro químico”, outra como “odor anormal” e uma terceira “cheira a verniz”. Nenhuma dessas reclamações faz referência a odor a verniz, sendo que, de acordo com os ensaios efectuados na N… pela testemunha Gustavo …, o PVC ainda virgem, antes, portanto, de ser extrudido, apresentava um odor a químicos – e não a verniz.
O alegado odor a verniz, conforme explicou no seu depoimento a testemunha João …, à data Director Técnico da Autora AA …, é o cheiro típico dos solventes, das colas que se utilizam para ligar o PVC à chama metálica utilizada na produção de cápsulas (crown corks).
Diga-se que o Professor Jorge Coelho, quer no seu parecer, quer no depoimento prestado, admitiu a possibilidade de o odor a verniz poder decorrer da interacção da cola com o PVC.
Tendo sido admitido por ambas as testemunhas a possibilidade de o alegado defeito das cápsulas decorrer do processo produtivo, na medida em que, a introdução de um novo PVC deveria implicar, de acordo com as boas práticas, a limpeza-purga dos equipamentos.
O depoimento prestado pela testemunha Eduardo …, Director-geral da AA …, que também versou sobre estes procedimentos, não permitiu apurar se as máquinas foram devidamente limpas antes do início da produção de cápsulas com o composto fornecido pela Ré e se foram adoptados os procedimentos adequados, designadamente no que toca à pressão e temperatura utilizadas, condições que podem influenciar a qualidade do produto final. Nenhuma prova foi junta pelas Autores do registo de tais temperaturas.
Por outro lado, como bem refere a Senhora Juíza a quo, na linha do parecer do Professor Jorge Coelho, para se averiguar da causa do odor seria necessário identificar a molécula da qual era proveniente o alegado cheiro, para, em função de tal informação, ser possível identificar o produto de onde tal molécula era proveniente, o que não foi feito.
Relevante, ainda, o Parecer elaborado em 01-06-2021, pela Professora Fátima Poças, Directora do Laboratório CINATE da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa, que analisou “o Relatório 2019L11729/1 da SQTS relativo a análise química e sensorial do tipo crown cork com vedante da Ré COMPONIT e à sua relevância relativa a avaliar a transmissão de odor/sabor” (cfr. fls. 223 a 229).
Ora, como refere com acerto a Recorrida nas suas alegações, o Relatório da SQTS objecto de análise pela ….“baralha” mais do que esclarece.
Do referido relatório resulta uma migração, não de odor, mas de sabor – neste caso a plástico – para a água.
Contudo, conforme resulta da conclusão do mesmo, para que seja possível confirmar se a cápsula efetivamente permite a migração do sabor a “plástico” sempre seria necessário efetuar a análise tendo por base o alimento final, ou seja, a cerveja, o que não se verificou.
Do mesmo modo, o referido relatório, cujo teor foi confirmado em audiência pelo seu subscritor, …, refere a presença de uma substância denominada “2-etil-hexanol”, sendo que tal substância não consta da composição do composto da Ré, conforme aliás resulta da prova documental produzida.
Acresce ainda que, as mesmas conclusões resultam do relatório elaborado pela Senhora…., no qual consta expressamente, das conclusões 6 e 8:
“6.–O ensaio de análise sensorial reportado foi realizado usando simulador água, o que é reconhecido como correspondendo a uma situação mais crítica do que usando o próprio produto, neste caso a cerveja, porque o simulador água é naturalmente fraco em aroma e sabor, enquanto a cerveja é rica em aroma e sabor. Assim, os provadores serão naturalmente mais sensíveis à deteção de aromas/sabores estranhos quando o teste é realizado em condições de simulação com água, do que em condições reais, isto é, com cerveja. 8.–O composto 2-ethyl-1 hexanol é usado correntemente na produção de plasticizantes como o DEHP e o DEHA e na produção de 2-ethylhexyl acrylate, um componente de adesivos. Também é usado como ingrediente de fragâncias e produtos de higiene, De acordo com a informação da C…, este composto não entra na composição do vedante FI042/60-NAT que usa os platicizantes DOPT e óleo de soja epoxidado”. [sublinhado nosso].
Entendemos, assim, que a prova produzida não permitiu demonstrar sequer se as cápsulas produzidas alegadamente com defeito foram produzidas com componente da Ré e, em qualquer caso, qual terá sido a causa/origem de tal defeito.
Por conseguinte, bem andou o Tribunal a quo em considerar como não provada a factualidade constante dos pontos b., c. i., l. e m. da matéria de facto não provada que, assim, se mantêm inalterados.
*
- Do ponto k. da matéria de facto provada
As Recorrentes pretendem igualmente reverter para a matéria de facto provada a factualidade constante do ponto k. do elenco de factos não provados.
O Tribunal a quo considerou não provado “que a Autora “AA…” tenha indemnizado a empresa “C…” pelos valores indicados no Acordo descrito em 45. e 46. dos pontos de facto dados como provados (artigos 39.º e 48.º da p.i.)”.
Tendo fundamentado tal decisão no facto de, alegadamente, não constarem dos autos elementos documentais (mormente, contabilísticos) que permitissem suportar o acordo celebrado.
Entendem as Recorrentes que tal facto deveria ter sido dado como provado, tendo em conta os depoimentos prestados pelas testemunhas …… e, bem assim, as declarações de parte prestadas pelo gerente de ambas as Apelantes, …, os quais explicaram, de forma coerente e com grande razão de ciência, na óptica das Recorrentes, os aspetos relativos à celebração do acordo indemnizatório, assim como ao modo como este foi pago pela Autora AA….
Ora, pelos motivos já referidos o referido acordo indemnizatório não se revela um documento credível e idóneo à demonstração da realidade que se pretende afirmar e a esta conclusão em nada é beliscada pelos depoimentos indicados pelas Autoras pretensamente credibilizadores do referido acordo.
Documentos idóneos seriam o razão de conta-corrente devidamente demonstrado no balancete e nos demais registos contabilísticos da Autora AA…, onde a alegada compensação de créditos entre a AAA…e a C… deveria estar reflectida. E esses documentos não foram juntos. Só assim era possível demonstrar a alegada compensação de créditos entre empresas.
Por outro lado, só podemos partilhar das interrogações da Recorrida: qual o critério de avaliação/quantificação dos alegados prejuízos usado pela C…?; Foi usado o valor de custo de produção do produto engarrafado ou o valor de venda ?
Por outro lado, ficou por demonstrar em que período foi efectuado o pagamento, por via de compensação de créditos, uma vez que os depoimentos que versaram sobre a matéria de revelaram contraditórios. Enquanto a testemunha …, Director Financeiro do Grupo CCC., onde a C… se inclui, referiu que a compensação teve lugar ao longo do ano de 2019, a testemunha…, Director Financeiro da Autora AA…, asseverou que à data da assinatura do acordo, ou seja, em 7 de Março de 2019, o valor indemnizatório estipulado já estava liquidado. Considera-se, assim, não existir fundamento válido para a pretendida alteração do ponto k. dos factos não provados.
- Do ponto o. dos factos não provados
Impetram as Recorrentes que a factualidade não provada sob a alínea o) “que o cliente C… representasse 90% da clientela e dos proveitos de produção da Autora AA…” passe a integrar o elenco de factos provados, tendo em contra as declarações de parte prestadas pelo gerente/administrador de ambas, … e pelas testemunhas ….
Não entendemos assim.
Na verdade, se existe matéria em que a prova deva ser feita por recurso à prova documental é justamente esta relativa à quota de mercado ou o peso relativo de um determinado cliente na facturação de uma empresa. Os documentos contabilísticos susceptíveis de demonstrar essa realidade não foram juntos aos autos, o que já é uma constante neste processo. Surpreende-nos que assim seja, mesmo ponderando que estamos a falar de empresas que operam em Angola, onde os níveis de “informalidade” são substancialmente mais expressivos que os que se verificam em Portugal.
É sabido que as declarações das testemunhas, como as das partes, à míngua de prova documental com força probatória, são sempre um importante meio de prova a atender pelo Tribunal, não raras vezes o único.
Por isso, e porque não se pode ignorar que as partes e as testemunhas nem sempre respeitam a verdade factual, é imperioso que se faça uma análise cuidada das suas declarações para testar a sua veracidade.
Um dos critérios de fiscalização ou verificação dos meios de prova tem a ver com as características da declaração ou atendibilidade intrínseca, em que a sindicância se exerce sobre o conteúdo narrado, procurando aferir-se da sua credibilidade.
Factores como a espontaneidade e tempestividade da declaração, a sua constância e coerência interna, a sua completude e verosimilhança decorrente da ausência de contraste com outros elementos de probatórios constituirão importantes elementos de avaliação da credibilidade dessa declaração.
Isenção, constância, coerência e verosimilhança são qualificativos que não se podem atribuir às declarações de parte prestadas por…, gerente/administrador das Recorrentes e, naturalmente, pessoa interessada no desfecho da acção, o mesmo que assinou o dito «Acordo de Pagamento Indemnizatório» que também não nos merece qualquer credibilidade pelas razões apontadas.
A testemunha … não integrava os quadros da AA… no momento da produção das cápsulas nem exercia funções na área financeira pelo que não estava em condições de saber qual o impacto que a facturação à C …tinha nas contas da AA….
Por sua vez, o depoimento da testemunha … também se revelou especulativo pois não trabalhava para a AA… , sendo colaborador do grupo G…, na qual estão inseridas as Autoras.
Especulativos e sem aporte documental também se revelaram os depoimentos prestados por … que, tal como … , afirmaram genericamente que a C… integrava um grupo de empresas que tinha o monopólio do mercado de cervejas e que as encomendas de cápsulas estavam centralizadas na C…. Refira-se, no entanto, que enquanto Ricardo … declarou que era o Grupo DD… que tinha uma quota de mercado de 97%, englobando praticamente tidas as empresas produtoras de cerveja (C…, N.., E, Cu, etc.), a testemunha Jacques … referiu que o monopólio era do Grupo Castel. Em que ficamos? Termos em que se mantém inalterado o ponto o. dos factos não provados.
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- Dos pontos p., q., r. e s. dos factos não provados
Por fim, as Recorrentes pretendem reverter para os factos provados a matéria de facto constante dos pontos p., q., r. e s. dos factos não provados, com base nas declarações de parte de … e nos depoimentos das testemunhas …A matéria de facto em causa á a seguinte:
“p.-que, por virtude do fornecimento de PVC pela Ré, não conforme ao contratado, a Autora “AA…” tenha deixado de receber encomendas desde essa altura por parte do seu cliente “DD(C…”, o que levou a que tivesse que suportar os custos fixos da sua estrutura, incluindo encargos financeiros, sem que a mesma produzisse e sem que ocorressem vendas (artigos 74.º e 75.º da p. i.); q.- que o apuramento desses custos fixos suportados pela Autora “AA…”, sem produção/vendas, seja de Kwanzas (AOA) de 58.812.110,63, a que corresponde o contravalor em dólares de 206.744,21, obtido segundo a taxa de câmbio médio entre Julho e Dezembro de 2018 de “284,47” que Angola tem de dólarkwanza, valor este que perfaz o total de € 189.033,64 à taxa de câmbio de “1,09369”, conforme mapa de excel que constitui o documento n.º 19 junto com a p. i. (artigos 76.º a 78.º da p. i.); r.- que a Autora “AA…” tenha tido danos (lucros cessantes) sobre a perda de quota de mercado real, no montante de € 2.428.721,47, tendo em conta perdas vindouras num período de 10 anos e considerando a perda média de 6 meses anteriores à situação dos autos, a uma taxa de desconto correspondente à USD 12M Libor de 2,79%, conforme mapa de excel que constitui o documento n.º 19 junto com a p. i. (artigos 79.º a 87.º da p. i.) e s.- os danos alegados sob os artigos 88.º a 99.º da p. i..”
Ora, na linha do que temos defendido, entendemos que a prova de prejuízos tão avultados, com tamanha expressão numérica, não pode ser feita exclusivamente com fundamento na prova testemunhal produzida, sendo certo que a Autora AA… não juntou aos autos quaisquer documentos que demonstrassem os seus custos fixos, quebras de produção, ou de facturação posteriormente a Junho de 2018. Sem essa documentação contabilística, que o gerente/administrador das Autoras referiu bastas vezes existir, mas que não foi junta aos autos, como poderá a Ré rebater tais números ou darmos credibilidade a declarações vagas, genéricas e imprecisas?
Por outro lado, não deixa de ser contraditório que a autora AA… alegue por um lado que viu reduzidas as encomendas e a facturação a partir de meados de 2018 e, do mesmo passo, alegue que no ano de 2019 pagou à sua principal cliente um valor indemnizatório tão exorbitante por conta de produtos que lhe continuou a fornecer?
E não olvidamos que do depoimento da testemunha Gustavo …, que trabalhou em Angola para o Grupo Castel entre 2008 e 2019, resulta que a AA… continuou a produzir cápsulas para as empresas daquele Grupo posteriormente ao mês de Junho de 2018.
A prova da factualidade em causa não se satisfaz com a mera junção aos autos, pelas Autoras, de um mapa excel no qual inscreveram os valores que reclamam nos autos.
Ora, como bem refere a Exma. Juiz a quo em fundamentação da decisão de facto relativa aos pontos o. a s., “nenhuma prova documental foi produzida a este respeito, como, reitera-se, era possível e exigível: os danos patrimoniais alegados tinham de ser sustentados em prova documental (contabilística/financeira/fiscal) e não em meras tabelas e valores declarados pelas autoras ou com base, apenas, nas declarações de parte do seu legal representante, ou nos depoimentos das suas testemunhas …), que foram, aliás, vagas e imprecisas. Acresce que nenhuma prova de acções inspectivas tributárias foi apresentada, ou cópia de notícias de jornais, como se alega, no que respeita aos danos não patrimoniais.”
Destarte, nada há a alterar também quanto a este segmento da decisão da matéria de facto.
Improcede, portanto, na totalidade, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
B.2)–Segunda questão – da caducidade do direito das Autoras/da ilegitimidade substantiva da Autora Angocap.
A 1.ª instância considerou que está em causa uma compra e venda comercial sobre amostra, regulada nos artigos 469.º a 471.º do Código Comercial e que, seja por remissão do artigo 3.º deste diploma legal, seja por aplicação do disposto nos artigos 916.º, n.º 2, e 917.º do Código Civil, já se encontrava extinto o direito que as Autoras pretendem exercer judicialmente quando intentaram a presente acção, por se mostrar ultrapassado em muito o prazo de seis meses que tinham para o efeito, termos em que julgou procedente a excepção de caducidade invocada pela Ré e absolveu-a dos pedidos contra si formulados.
As Recorrentes, aceitando embora a qualificação jurídica do contrato como contrato de compra e venda comercial sobre amostra (conclusões DDDD e EEEE), em recuo da posição assumida anteriormente nos autos (cfr. requerimento de 12-06-2020), não se conformam com o decidido, por entenderem que, em virtude do disposto no art.º 918º do Código Civil, é de excluir do âmbito de aplicação do art.º 917º do mesmo Código a compra e venda de coisa genérica, que corresponde ao tipo de compra e venda em causa nos autos, devendo aplicar-se ao caso a regra geral do art.º 309º do Cód. Civil, que estabelece o prazo de vinte anos para a prescrição do direito.
Em abono da sua tese cita o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-05-2020 (Revista n.º 2142/15.9T8CTB.C1.S2, disponível em www.dgsi.pt), de cujo sumário consta:
“IV- Os prazos de caducidade previstos nos arts. 916.º e 917.º do CC não são aplicáveis aos casos de compra e venda de coisas genéricas, em virtude de o art.º 918º do CC remeter para as regras relativas ao não cumprimento das obrigações. V- Ao caso deve aplicar-se, pois, o prazo geral da prescrição do direito previsto no art.º 309º do CC.”
Analisemos então a questão relativamente à qual existe desacordo das Recorrentes, que entendem ter havido erro do Tribunal a quo, quando concluiu que o contrato em causa (compra e venda comercial sob amostra) é perfeito e eficaz e que, embora admitindo que não era possível às Autoras verificar o defeito do composto de PVC fornecido pela Ré e denunciá-lo no prazo de 8 dias, ainda assim foi excedido o prazo de caducidade de seis meses previsto nos artigos 916.º, n.º 2 e 917.º do Código Civil.
Isto porque entendem, como se disse, que se tratando de compra e venda de coisa genérica, deve aplicar-se ao caso a regra geral do art.º 309º do Cód. Civil, que estabelece o prazo de vinte anos para a prescrição do direito.
A Ré, ora Recorrida, defende o decidido e excepciona a ilegitimidade substantiva da Autora AA…, por considerar que não é parte no contrato de compra e venda comercial.
Apreciando,
Não vem posta em causa a qualificação do tipo e da natureza do contrato celebrado entre a Autora BB… e a Ré, que as partes, convergentemente, consideraram constituir uma compra e venda (objectiva e subjectivamente) comercial sobre amostra (artigos 2.º, 469º e 471º do Código Comercial) - um contrato tipicamente oneroso e sinalagmático, com obrigações recíprocas para ambas as partes: a da entrega da coisa encomendada (PVC com determinadas especificações técnicas) para a vendedora (Ré) e a de pagar o preço para a compradora (A. BB…).
As partes estão de acordo a esse respeito, mas já dissentem quanto aos sujeitos intervenientes no contrato ou ao relacionamento comercial que se estabeleceu entre a Ré e cada uma das Autoras.
Certo é que foi alegado pelas Autoras e resulta dos factos provados que a Autora BB… é uma sociedade de “Trading” da Autora AA…, pertencendo ao mesmo grupo de empresas “G…” e que foi nessa qualidade que encomendou o PVC fornecido para entrega à AA…, em Angola.
Na verdade, atendendo aos factos provados, a Autora AA… não é parte no contrato de compra e venda comercial em causa.
O que resulta da matéria de facto provada é que a Ré forneceu à Autora AA…, a pedido desta, dois contentores de composto, preparado de acordo com a ficha técnica do produto por aquela disponibilizado (cfr. Pontos 5 a 18 da matéria de facto provada).
A Ré nunca celebrou qualquer contrato de compra e venda com a Autora Angocap, limitando-se a satisfazer a encomenda feita pela Autora BB… e a expedir a mercadoria para Angola, para entrega à Autora AA…, como de resto atesta o documento de carga do material/carta de embarque preenchido pela Ré como expedidora (Bill Of Landing N0. MSCUKQ438992) junto aos autos.
Conforme resulta da matéria de facto provada, a única informação transmitida à Ré aquando da celebração do contrato foi que “Não será a G… a compradora deste material, mas sim uma das traders do nosso grupo”, (Cfr. Ponto 12. da matéria de facto provada).
Aliás é a própria Autora BB… que nas comunicações que dirigiu à Ré, já após o fornecimento do composto de PVC, se refere à Autora AA… como “sua cliente” (Cfr. Documento n.º 12 junto com a petição inicial).
Veja-se, ainda, que os dois contentores de PVC, de 26.000Kg, foram facturados pela Ré à Autora BB…, que as pagou (cfr. Docs. 7 e 8 da p.i., a fls. 36 e 37).
É sabido que as empresas de trading (trading companies) são sociedades comerciais que actuam como intermediárias entre empresas fabricantes e empresas compradoras, em operações de importação ou exportação. É que o se chama de importações ou exportações indirectas.
A utilização dos serviços das Trading Companies por parte de clientes pode ser dividida em dois diferentes tipos: (i)- Importação por Conta e Ordem - aquela em que o cliente é o proprietário da carga e a Trading Company presta os serviços necessários para que a operação de importação ocorra da melhor forma possível, aconselhando e acompanhando todo o processo; (ii)- Importação por Encomenda – aquela em que a Trading Company é considerada a adquirente da mercadoria. Aqui não há prestação de serviço. O produto importado é considerado como adquirido pela Trading Company com exclusividade para o encomendante. Uma vez efectuado todo o processo de importação, a Trading Company deve emitir e enviar à cliente a nota de venda/factura.
A imagem que perpassa dos factos provados é precisamente que a Autora BB… adquiriu a mercadoria, por encomenda da Autora AA… e com exclusividade para esta sua cliente.
Acompanhamos, assim, a Ré quando defende que é manifesto que no caso em apreço se verifica a ilegitimidade substantiva da Autora AA… o que constituiu uma exceção peremptória inominada, que determina a absolvição do pedido nos termos do disposto no n.º 1 e 3 do artigo 576.º do CPC.
Como refere Menezes Leitão, “genericamente, pode dizer-se que o titular do direito de indemnização é apenas o lesado, ou seja, o titular dos direitos ou interesses que a lei visava proteger. Quanto a terceiros, mesmo que estes tenham sofrido reflexamente danos em consequência da actuação do lesante não serão abrangidos pela indemnização.”[[9]]
Com efeito, não procede o argumento de as Autoras pertencerem ao mesmo grupo empresarial (G…), razão pela qual, sempre a Autora AA… poderia reclamar os prejuízos à Ré, alegadamente, decorrentes dos fornecimentos efetuados à Autora AA….
Em primeiro lugar, como bem refere a Ré, ficou por demonstrar qual a relação societária entre as Autoras, nomeadamente, se detinham alguma participação qualificada nos respetivos capitais sociais.
Em segundo lugar, a circunstância de duas empresas pertencerem ao mesmo grupo empresarial, por si só, não é fundamento para a desconsideração das respetivas personalidades jurídicas.
A desconsideração da personalidade jurídica é um instituto de natureza subsidiária, excecional e casuística e não se verificam no caso em apreço quaisquer dos pressupostos de que a doutrina e a jurisprudência têm indicado como susceptíveis de conduzir à desconsideração ou confusão de patrimónios.
Não pode, pois, admitir-se que uma sociedade terceira em relação a um contrato celebrado, possa reclamar de uma das partes contratantes uma indemnização com fundamento no facto de o contrato ter sido celebrado com uma das empresas do grupo em que se insere.
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Sem conceder, sempre se dirá que a sentença recorrida decidiu com acerto quando considerou caducado o direito de ação das Autoras.
No caso em apreço não restam dúvidas, face à matéria de facto provada nos pontos 8., 9 e 14., que o contrato em causa se subsume à compra e venda sob amostra, na medida em que a Ré produziu, de acordo com as especificações técnicas da Autora BB… uma amostra do produto a fornecedor, a qual foi enviada para validação.
E produziu o composto que vendeu à Autora BB… precisamente nas mesmas condições e com as mesmas características com que produziu a amostra (ponto 14 dos factos provados).
Na medida em que as partes contratantes são sociedades comerciais e se está perante acto tipificado na lei, pode concluir-se que se trata de acto subjetiva e objectivamente comercial, pelo que a compra e venda não deixa de revestir natureza comercial (cfr. artigos 2.º, 13, § 2º e 463º, § 1º do Código Comercial e 874º do Cód. Civil).
Regulando duas das modalidades da compra e venda mercantil, dispõe o art.º 469º do Código Comercial que as vendas feitas sobre amostra de fazenda, ou determinando-se só uma qualidade conhecida no comércio, se consideram sempre como feitas debaixo da condição de a coisa ser conforme à amostra ou à qualidade convencionada; por seu turno, o art.º 471º do mesmo diploma esclarece que a condição referida naquele preceito se terá por verificada e os contratos como perfeitos se o comprador examinar as coisas compradas no acto da entrega e não reclamar dentro de oito dias, acrescentando o § único do referido preceito que o vendedor pode exigir que o comprador proceda ao exame das fazendas no acto da entrega, salvo caso de impossibilidade, sob pena de se haver para todos os efeitos como verificado.
Ferrer Correia relativamente ao momento da perfeição do contrato, este preceito define uma solução bastante diferente da civil (art.º 925º/2 do Cód. Civil), pois “ao impor ao comprador o ónus de analisar a mercadoria e de a denunciar ao vendedor no acto da entrega ou no prazo de oito dias, qualquer diferença em relação à amostra ou à qualidade tidas em vista ao contratar, sob pena de o contrato ser havido como perfeito, pretende a lei fundamentalmente tornar certo num prazo muito curto a compra e venda mercantil (…)”, acrescentando ainda que “este regime tem na base a ideia de que a rescisão de um contrato pode causar ao comércio entorpecimentos ou danos no sentido de que envolve insegurança para os direitos, perturba a rapidez das actividades e, ao originar a ineficácia de uma operação já realizada, transtorna ou impede o encadeamento económico das operações sucessivas”. [[10]]
Na esteira deste pensamento, pronunciou-se Vaz Serra, ao considerar que “a razão do art.º 471º está na vantagem de não deixar por muito tempo exposto o vendedor a reclamação por defeitos da coisa vendida e nas necessidades do tráfico comercial: deve, portanto, o comprador examinar tão depressa quanto possível a coisa comprada, a fim de verificar se ela tem vícios, e denunciá-los tão depressa quanto possível ao vendedor”, tanto mais que apesar daquele normativo não dizer “desde quando se conta o prazo de oito dias”, parece “que deve contar-se da data em que o comprador descobre o vício da coisa comprada ou, ao menos, daquela em que o teria descoberto se agisse com a diligência exigível no tráfico comercial”. [[11]]
Também Romano Martinez defende que “(…) sendo o art.º 471º C. Com. omisso quanto a este aspecto, há quem considere que o prazo, na compra e venda comercial, se inicia com a entrega. Em defesa desta tese têm sido apresentados dois argumentos: a lei comercial é mais exigente do que a civil no que respeita ao dever de exame do comprador; o prazo de oito dias não se pode contar do conhecimento do defeito, porque tal interpretação não tem correspondência com a letra do art.º 471º CCom.. De facto, a lei comercial é mais exigente do que a civil, mas desse aspecto não se pode concluir no sentido de que a denúncia do defeito deva ser feita antes de ele poder ser descoberto. Por outro lado, a letra do artigo em causa nada esclarece, nem num sentido nem noutro, pois limita-se a dispor que, a partir do momento em que o comprador recebe a mercadoria, o contrato haver-se-á como perfeito, se os defeitos não forem reclamados dentro de oito dias; da letra da lei não se pode inferir que esse prazo esteja relacionado com a entrega. Perante a omissão do diploma mercantil, são de aplicar as correspondentes disposições do Código Civil (art.º 3º CCom.). Acresce, que sendo este último diploma posterior, e tendo nele o legislador assentado, claramente, no sentido de que o prazo se inicia com a descoberta, a unidade do sistema jurídico leva a interpretar o art. 471º CCom. de forma análoga ao estabelecido no(s) art(s). 916º nº 2 (e 1220º nº 1)”. [[12]]
A solução defendida por estes Autores de que o prazo de oito dias, fixado no art.º 471º do Código Comercial, deve contar-se a partir do momento em que o comprador tomou conhecimento dos defeitos da coisa ou do momento em que podia ter tomado conhecimento deles se usasse da normal e devida diligência (e não do momento da recepção da mesma), tem também sido a adoptada de modo unânime pelos nossos Tribunais Superiores. [[13]]
A nós, também nos parece ser esta a solução mais coerente com a realidade da vida pois, muitas vezes, o defeito não é imediatamente detectável, não fazendo sentido, nesses casos, que se exija ao comprador que reclame no acto da entrega/recepção da coisa ou nos oito dias seguintes de defeitos que não sabe se se verificarão.
Diga-se, no entanto, que o artigo 471.º do Cód. Comercial visa as qualidades, atributos ou defeitos da coisa observáveis à vista desarmada ou através dos sentidos humanos (olfacto, paladar, tacto), detectáveis no tal exame da coisa pelo comprador no acto de entrega. O prazo de oito dias a que se refere o n.º 1 do referido preceito legal só pode valer quando a simples inspecção pelo comprador o habilitar à reclamação.
Ora, em causa está precisamente, segundo a tese defendida pelas Autoras, um defeito que era facilmente detectável pelo olfacto – «forte cheiro a químicos», segundo refere, em 24-07-2018 o Diretor-geral da Autora AA…, na mensagem a coberto da qual encaminhou a reclamação de um cliente para Ricardo …, procurador do A. BB…, odor esse que era detectável em todas as caixas de PVC abertas (cfr. ponto 26 dos factos provados).
Certo é que não resultou provado que o composto de PVC fornecido pela Ré apresentasse esse defeito em estado bruto ou durante todo o processo de produção de cápsulas “crown corks”, pois, como refere o Professor Jorge Fernando Jordão Coelho no seu Parecer, de 2-07-2021 (cfr. fls. 230 e segs.), assumindo que algum dos produtos utilizados na formulação do composto de PVC migraria durante todo o processo de produção, o que é expectável que aconteça, dado que é nesta fase que o material está sujeito a elevadas temperaturas e pressões. Contudo, se tal situação ocorresse, no proecsso de injecção do vedante, a mesma seria facilmente detectada pelo cheiro intenso que seria produzido.
Em conclusão, a interpretação que se tem por correcta para o art.º 471º do Código Comercial, em conjugação com o que estabelece o art.º 916º/1 e 2 do CC, aplicável ex vi da remissão do art.º 3º daquele primeiro Código que manda aplicar subsidiariamente este segundo corpo de normas, é a de que o comprador tem 8 dias, após o conhecimento respectivo ou após o momento em que podia conhecê-los se fosse devidamente diligente, para denunciar os defeitos que detecte na coisa adquirida no âmbito de um contrato de compra e venda comercial, reclamando deles junto do vendedor. No entanto, tal denúncia ou reclamação nunca pode exceder o prazo de seis meses, contado após a data da entrega/recepção da coisa. [[14]]
Cabendo ao comprador a prova sobre a tempestividade da denúncia dos defeitos, já que só em face de uma denúncia tempestiva poderá o comprador exercer junto do vendedor os direitos daí decorrentes: opor-lhe os vícios para obstar ao pagamento do preço da coisa, exigir a eliminação desses vícios e/ou exigir dele uma indemnização por prejuízos derivados dos mesmos.[[15]]
Assim, no caso sub judice, competia à Autora BB…tal prova, o que não logrou como bem se alude na sentença recorrida.
Com efeito, da matéria de facto provada resulta que a amostra fabricada pela Ré, com base nas especificações técnicas que lhe foram fornecidas para o efeito, foi entregue nas instalações da G… no dia 30 de Outubro de 2017 (cfr. ponto 8 dos factos provados).
Desde então, a Ré tentou obter, por diversas vezes, feedback relativamente à amostra enviada e se a mesma cumpria os objetivos da Autora, sem qualquer sucesso (cfr. pontos 9. e 15. dos factos provados).
Apenas no dia 18 de Julho de 2018, a Autora BB… informou a Ré estar a receber feedback negativo por parte da Autora AA… (cfr. ponto 24 dos factos provados) o que reiterou no dia 31 de julho de 2018.
Ora, da factualidade provada resulta desde logo demonstrado que a alegada reclamação, apenas se poderá referir ao primeiro contentor fornecido, uma vez que no dia 18 de Julho o segundo contentor ainda não tinha sido rececionado em Luanda (pois só tinha sido expedido no dia 5 de julho de 2018 – cfr. ponto 19 dos factos provados).
De tudo se infere que as Autora não efetuaram qualquer análise / teste à amostra enviada, nem mesmo efetuaram qualquer exame ao composto de PVC fornecido pela Ré, quando o receberam no dia 23 de Junho de 2018.
Ora, se as Autoras tivessem actuado com a diligência que lhes era exigível e que no caso se impunha, isto é, segundo as boas práticas, sempre teriam efetuado todas as validações necessárias quer à amostra fornecida em 2017, quer ao composto fornecido posteriormente, verificando a sua qualidade.
Não tendo as Autoras analisado a mercadoria e denunciado à Ré no acto da entrega ou no prazo de oito dias, qualquer diferença em relação à amostra ou à qualidade tidas em vista ao contratar, o contrato de compra e venda comercial sobre amostra celebrado entre a 1.ª Autora e a Ré tem de ser havido como perfeito.
E caso assim não se assim não se entenda, o que não se concede e apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, sempre a caducidade do direito de acção se verifica nos presentes autos, conforme decidiu o Tribunal a quo, uma vez que, quando a presente acção foi proposta, em 06-01-2020, já se mostrava largamente excedido o prazo de seis meses, contados da entrega do composto de PVC (23-06-2018) ou da denúncia do defeito efectuada em 24-07-2018 (artigos 916.º, n.º 2 e 917.º do Código Civil, ex vi do artigo 3.º do Código Comercial).
A caducidade, como excepção peremptória que é faz precludir a possibilidade de o comprador exercitar quaisquer direitos fundados no cumprimento defeituoso.
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Alegam, ainda, as Recorrentes que a compra e venda sobre amostra em causa nos autos não se reporta à compra e venda de uma coisa específica (mas sim a uma coisa genérica) e, por essa razão, os prazos curtos de caducidade previstos nos artigos 916.º e 917.º do Código Civil não são aplicáveis, sendo antes aplicável o prazo ordinário de prescrição, de 20 anos, previsto no artigo 309.º do Cód. Civil.
Não concordamos com as Autoras, antes acompanhamos a sentença recorrida quando conclui, na linha do defendido por Luís Teles de Menezes Leitão[[16]], que “a venda sobre amostra é de «uma coisa específica» e «é realizada por referência a outro objecto, indicado como amostra ou modelo».
Vejamos,
As obrigações de prestação de coisa, como é o caso da obrigação de entrega na compra e venda, podem distinguir-se quanto ao seu objecto, as obrigações genéricas e as específicas.
O art.º 539º do Cód. Civil define as obrigações genéricas como aquelas «em que o objecto da prestação se encontra apenas determinado quanto ao género». O que implica que a prestação se encontra determinada apenas por referência a uma certa quantidade, peso ou medida de coisas dentro de um género, mas ainda não está concretamente determinado quais o espécime daquele género que vai servir para o cumprimento da obrigação.
Bem diferente é a obrigação específica – nela tanto o género quanto os espécimes da prestação encontram-se determinados.
Refere Antunes Varela [[17]] que é especifica a obrigação «cujo objecto mediato é individual ou concretamente fixado» e genérica «aquela cujo objecto está apenas determinado pelo seu género (mediante a indicação das notas ou características que a distinguem) e pela sua quantidade», acrescentando que a «indicação de género pode incluir um maior ou menor número de notas definidoras».
Assim, será específica «a entrega do automóvel comprado em segunda mão», será já genérica a compra de um automóvel novo – podendo o género em causa ser mais ou menos definido, através da marca, modelo, cor, etc. «A definição do género da prestação há-de porém conter o mínimo de notas necessárias para que o seu objecto seja determinável, como a lei exige, e revele a intenção das partes de se vincularem juridicamente», acrescentado que «não estaria nessas condições a obrigação de entregar um animal, um vegetal, um papel, uma coisa etc.», ou , diremos nós, um mero carro novo…
O que significa que na obrigação genérica tem que ocorrer subsequentemente ao acordo das partes um processo de individualização dos espécimes dentro do género.
Trata-se da chamada concentração - «a concretização, individualização ou determinação do objecto da prestação debitória dentro do género respectivo», referindo ainda Antunes Varela que, «a concentração do objecto da prestação representa um momento capital na vida da obrigação, que passa de obrigação genérica a obrigação especifica. O obrigado passa doravante a dever apenas a coisa determinada dentro do género e já não qualquer outra do mesmo género».
Ora, conforme flui dos factos provados, foi a Autora quem escolheu – mediante a entrega de uma ficha técnica – a concreta formulação do composto de PVC (acrónimo de policloreto de vinila) que pretendia que lhe fosse fornecido e, em face da amostra desse mesmo composto, encomendou a coisa-objecto do contrato, sendo que a escolha do bem a produzir e fornecer com as concretas especificações técnicas entregues ocorreu na fase das negociações, antes da conclusão do contrato.
É sabido e resultou, aliás, do depoimento prestado pelo Professor Jorge Coelho, que o PVC pode ter diferentes formulações, que as resinas que o compõem podem ser reformuladas com diversos aditivos consoante a vasta gama de aplicações que este polímero possui e pela capacidade de ser submetido a diversos processos de moldagem e transformação, como injecçao, extrusão, calandragem, etc. (cfr. Policloreto de Vinila em pt.m.wikipedia.org.).
Na medida em que a escolha do bem a fornecer ocorreu antes da realização da encomenda e do pagamento do preço, - ou seja, na sua fase prévia ou preparatória da celebração do próprio contrato de compra e venda, impõe-se concluir que a coisa/obrigação é, ab initio, específica e que ao caso são aplicáveis os prazos curtos de caducidade previstos no artigo 917.º do Cód. Civil.
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Mas ainda que assim não se entenda, o que apenas por mera hipótese de raciocínio se concebe, e se viesse a considerar que a obrigação de fornecimento se subsume a uma coisa genérica, também não se poderia entender ser aplicável ao caso o regime do artigo 918.º do Código Civil e por decorrência o prazo ordinário de prescrição de 20 anos previsto no artigo 309.º do mesmo diploma legal.
Com efeito, entendemos que submeter uma eventual responsabilização do fornecedor, comerciante, ao prazo ordinário de prescrição das obrigações civis, ficando sujeito a dúvidas e incertezas durante um prazo tão alargado – de 20 anos – não se coaduna com a realidade mercantil e as finalidades ínsitas ao direito comercial, onde são mais prementes as razões de segurança e celeridade.
A admitir-se tal interpretação, sujeitar-se-ia os contratos de compra e venda celebrados entre comerciantes a um prazo de prescrição de 20 anos, substancialmente mais gravoso que os prazos consideravelmente mais reduzidos que o legislador, nas vendas de bens de consumo, confere ao consumidor para exercer os seus direitos (cfr. artigos 16.º e 17.º do Dec.-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro).
Tal interpretação ofende as regas da hermenêutica (art.º 9.º do Cód. Civil) pois não leva em consideração a unidade do sistema jurídico.
Não se justificaria, nem se compreenderia, que o sistema jurídico atribuísse ao consumidor uma menor protecção - uma menor “garantia” – que ao comerciante médio que, por regra, está mais informado das práticas do comércio das leis que o regulam, sendo mais experiente e zeloso do que um não-comerciante.
Pelo contrário, o sistema jurídico, no seu todo, pretende proteger mais o consumidor do que o comerciante.
Nesta conformidade, não se pode aceitar o entendimento defendido pelas Autoras, no sentido de que a venda de coisas genéricas entre comerciantes não está sujeita a qualquer prazo de denúncia dos defeitos e que lhe é aplicável o prazo ordinário de prescrição de 20 anos (artigos 913.º, 918.º e 309.º do Cód. Civil) para exercer judicialmente os seus direitos contra o vendedor, pela sua responsabilidade civil contratual.
O Professor Pedro Romano Martinez[[18]], citado com pertinência pela Recorrida nas suas doutas contra-alegações, não aceita tal entendimento e critica veemente esta interpretação dos regimes do artigo 913.º e ss. e do artigo 918.º do Código Civil, por considerar que “Daqui resultaria a existência de dois regimes diversos aplicáveis à compra e venda de coisa defeituosa consoante a coisa fosse determinada (arts. 913º ss. CC) ou indeterminada (arts. 798º ss. CC); nesta última hipótese recorrer-se-ia ao regime regra do cumprimento defeituoso, sendo as regras específicas da compra e venda invocáveis só em caso de venda de coisa determinada”.
Refere este Ilustre Professor que “A diferenciação [entre aqueles regimes] pode justificar-se no espaço jurídico alemão, atento o disposto no § 480 BGB, mas no sistema jurídico português tal distinção não pode ser aceita. Tanto no caso de a coisa ser determinada como indeterminada, os atributos de qualidade fazem parte da prestação devida. Por outro lado, a obrigação genérica transforma-se em específica com a concentração e esta, por via de regra, verifica-se aquando do cumprimento, mas nunca depois deste (art.º 541º CC). Assim sendo, não pode haver cumprimento defeituoso de obrigação genérica; o defeito da prestação só se pode reportar a uma coisa específica. Na compra e venda de coisa específica ou genérica, a garantia derivada do cumprimento defeituoso tem sempre o mesmo conteúdo. Do disposto no art.º 918.º CC poderia inferir-se o contrário. Na medida em que o referido preceito manda aplicar as regras relativas ao não cumprimento das obrigações quando a coisa for indeterminada de certo género, seria admissível concluir-se, a contrario sensu, que, nos demais casos, tal regime não teria aplicação. Esta dualidade seria absurda e não pode estar consagrada na lei. Não se justifica que nas obrigações genéricas o regime da responsabilidade por cumprimento defeituoso seja diverso do das específicas. Como seria absurdo que o art.º 918º CC pretendesse estabelecer, para a compra e venda de coisas futura e indeterminadas, um regime de responsabilidade por cumprimento defeituoso diverso do previsto nos art.º 913º ss. CC, há que retirar outro sentido ao preceito. No art.º 918º CC, o legislador pretendeu unicamente esclarecer que, nos casos previstos na disposição legal, encontram aplicação as regras gerais relativas à transferência da propriedade e do risco; ou seja, o regime do cumprimento defeituoso, previsto nos arts. 913º ss. CC, destina-se também a regular os casos de venda de coisa indeterminada, após a transferência da propriedade ou do risco. Nestes termos, do preceito em causa não é lícito retirar qualquer conclusão a contrario, no sentido de ter sido estabelecido um regime diverso, porque tal ilação opor-se-ia ao espírito do sistema.” (sublinhado nosso)
Neste sentido se pronunciou o Professor Calvão da Silva[[19]], nos seguintes termos: “(…) justifica-se a extensão do artigo 917º, que apenas se refere à acção de anulação, às acções dos demais direitos referidos, porque e na medida em que através delas se fazem valer pretensões no quadro da garantia e à garantia ligadas; porque e na medida em que através delas se realize ou materialize a mesma garantia pelos vícios, numa palavra, porque e na medida em que são recurso contratuais por vício da coisa. (…). Na verdade, seria incongruente não sujeitar todas as acções referidas à especificidade do prazo breve para agir que caracteriza a chamada garantia edilícia desde a sua origem, pois, de contrário, permitir-se-ia ao comprador obter resultados (referidos aos vícios da coisa) equivalentes, iludindo os rígidos e abreviados termos de denúncia e caducidade. Ora, em todas as acções de exercício de faculdades decorrentes de garantia, qualquer que seja a escolhida vale a razão de ser do prazo breve (…): evitar no interesse do vendedor, do comércio jurídico, com vendas sucessivas, e da correlativa paz social a pendência por período dilatado de um estado de incerteza sobre o destino do contrato ou cadeia negocial e as dificuldades de prova (e contraprova) dos vícios anteriores ou contemporâneos à entrega da coisa que acabariam por emergir se os prazos fossem longos, designadamente se fosse de aplicar o prazo geral da prescrição (artº 309º).
O artigo 916º do Código Civil, sob a epígrafe (denúncia do defeito) prescreve no nº 2 que “a denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa”.
No mesmo sentido e com apoio nos referidos contributos doutrinários, se pronunciou o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Novembro de 2018, proferido na Revista n.º 267/12.1TVLSB.L1.S1, de que foi relator o Conselheiro Ilídio Sacarrão Martins, disponível em www.dgsi.pt., no qual se considerou que “O regime estatuído nos artigos 916º e 917º do Código Civil é aplicável, por via de interpretação extensiva, a todas as acções com fundamento na responsabilidade contratual baseada no incumprimento defeituoso da prestação, ou seja, quer às acções em que se peça a anulação do contrato, quer àquelas em que se peça a reparação ou a substituição da coisa, ou em que complementar ou exclusivamente se peça uma indemnização por prejuízos sofridos por causa do vício ou defeito da coisa, mesmo tratando-se de prejuízos indirectos contanto que estejam ligados a tais defeitos ou vícios da coisa. Assim, o comprador pode escolher e exercer autonomamente a acção de responsabilidade civil para obtenção de indemnização, quer pelo interesse contratual positivo, quer mesmo pelo interesse contratual negativo, decorrente das regras gerais do direito da responsabilidade civil, baseado no cumprimento defeituoso ou inexacto, presumidamente imputável ao vendedor, nos termos dos artigos 798º, 799º e 801º nº 1 do Código Civil, sem que tenha de pedir a resolução do contrato ou a redução do preço e nem a reparação ou a substituição da coisa.”
Ainda no sentido que aqui subscrevemos já se pronunciara, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Maio de 2016, proferido na Revista 354/05.2TVLSB.L1.S1 (Conselheiro Júlio Gomes), disponível em www.dgsi.pt., no mesmo se referindo que “De acordo com o artigo 916.º, números 1 e 2, do Código Civil e ressalvada a situação de dolo do vendedor – o qual não foi provado – o comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa no prazo de trinta dias após o conhecimento do defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa, tratando-se, como se trata, de coisa móvel. Entende-se que estes prazos são aplicáveis ao exercício de quaisquer uns dos direitos que cabem ao comprador, estendendo o artigo 917.º do Código Civil estes prazos à acção de anulação, sob pena de caducidade, sendo certo que esta deve ser intentada no prazo de seis meses sobre a denúncia, com ressalva do artigo 287.º n.º 2 do mesmo Código.”
Ainda no sentido que aqui subscrevemos, da interpretação extensiva do artigo 917.º do Código Civil, em ordem em abranger todas as acções baseadas em cumprimento defeituoso, independentemente de se tratar de coisa genérica ou de coisa específica, pronunciou-se, mais recentemente, e com grande profundidade de análise, fazendo, aliás, uma resenha do que a propósito desta questão se tem defendido na doutrina e na jurisprudência, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Junho de 2020, proferido na Revista 3007/16.2T8LRA.C1.S1 (Conselheiro João Bernardo)[[20]], de cujo sumário consta:
“3.–Há que falar em incumprimento se a coisa entregue tem defeito de tal monta que equivalha àquele. 14.–Já dentro da figura do cumprimento, há que distinguir o cumprimento defeituoso da obrigação, da venda de coisa defeituosa. 15.–Também se distingue a coisa especifica da coisa genérica, consoante foi individualizada ou apenas determinada quanto ao género e quantidade. 16.–Tendo a vendedora fornecido materiais não individualizados, mas definidos pelo género e qualidade, os quais, na parte referida nos factos, não corresponderam, em funcionamento, estamos perante uma venda de coisa defeituosa. 17.–Não releva, para efeitos de caducidade, eventual dúvida quanto à qualificação da coisa como genérica ou como específica. 18.–Porquanto valem, quanto ao regime relativo à compra de coisa genérica defeituosa, os prazos do artigo 917.º e não o prescricional geral relativo ao incumprimento. 19.–Este artigo deve ser interpretado extensivamente em ordem a abranger, não apenas as ações de anulação por simples erro, mas todas as emergentes de cumprimento defeituoso, não se vendo razões para subtrair a este regime a venda de coisa defeituosa.”
E, mais recentemente, ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1 de Julho de 2021, proferido na Revista 3655/06.9TVLSB.L2.S1 (Conselheiro Fernando Baptista)[[21]], de cujo sumário[[22]] consta:
“X.–Tratando-se de compra e venda mercantil, a reclamação/denúncia por defeitos da coisa vendida deve ser feita no prazo de 8 dias previsto no artigo 471.º do Código Comercial, não lhe sendo aplicável o regime dos artigos 913º, e segs Código Civil (é que aquele prazo curto de 8 dias não foi estabelecido em benefício do vendedor comercial, antes tem a ver, essencialmente, com a celeridade, segurança e certeza que o legislador quis imprimir à contratação comercial, pelo que a ratio legis do artº 471º do Cód Comercial está na vantagem de não deixar por muito tempo exposto o vendedor à reclamação por defeitos da coisa vendida e nas necessidades do tráfico comercial). X.– Na compra e venda comercial, aquele prazo de 8 dias que tem o comprador para a denúncia dos defeitos da coisa inicia-se com a entrega da mesma caso o defeito seja aparente e detectável pelos sentidos, ou, não o sendo, conta-se a partir do momento em que o comprador, agindo de forma diligente, descobre o defeito - posição que é a mais consentânea com a realidade da vida. XI.– A obrigação genérica é aquela cujo objecto é constituído por coisas fungíveis. Ao contrário da obrigação específica, que é aquela cuja prestação debitória incide sobre algo concretamente individualizado. XII.–A obrigação não deixa de ser específica pelo simples facto de a prestação compreender, cumulativamente ou em alternativa, dois ou mais objectos, desde que as partes os tomem concreta ou individualmente em conta e não apenas como unidades indiferenciadas do complexo que as envolve. XIII.–O prazo de caducidade do direito de acção previsto no artigo 917.º do Código de Civil deve abranger todas as acções emergentes de cumprimento defeituoso, sendo, como tal, aplicável não unicamente à acção de anulação, ali referida, mas a todas as pretensões e acções decorrentes da compra e venda de coisa defeituosa - seja genérica ou específica a obrigação subjacente. XIV.–A este entendimento não se opõe o artº 918º do CC, pois não se justifica que nas obrigações genéricas o regime da responsabilidade por cumprimento defeituoso seja diverso das específicas (como bem observa PEDRO ROMANO MARTINEZ, seria um absurdo e algo bizarro que a compra de um computador, com defeito, que se encontra na montra da loja (conducente a uma obrigação específica) estivesse sujeita aos prazos curtos do cumprimento referidos nos arts. 916º e 917º do CC e a compra de um computador de modelo idêntico ao que está exposto na montra, com as características daquele (conducente a uma obrigação genérica) já estivesse sujeita ao prazo ordinário da prescrição, de 20 anos, referido no art.º 309º do CC). XV.–Assim, o artigo 918.º do Código Civil não deve ser interpretado no sentido de conduzir a um regime diferente, quanto ao prazo de caducidade, consoante se trate de obrigações específicas ou de obrigações genéricas. XVI.–A normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva aos mínimos de certeza e segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas, terá de ser entendida como não consentida pela constituição, por violar o princípio da confiança, certeza e segurança do comércio jurídico, enquanto subprincípio do Princípio do Estado de Direito Democrático ínsito no art.2º da Constituição.”
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Assim, na linha da doutrina e jurisprudência expressivas cujos argumentos acolhemos e que nos limitamos a transcrever, defendemos a interpretação extensiva do artigo 917.º do Código Civil, em ordem em abranger todas as acções baseadas em cumprimento defeituoso, independentemente de se tratar de coisa genérica ou de coisa específica.
Por tudo o exposto, bem andou o Tribunal a quo em julgar procedente a excepção da caducidade.
Portanto, mantém-se a decisão de absolvição da Ré dos pedidos contra si formulados, embora com fundamento na ilegitimidade substantiva da Autora AA… e na caducidade do direito de acção exercido intempestivamente pela Autora BB… (e pela Autora AA…, caso viesse a considerar-se a sua legitimidade substantiva, o que apenas se admite como hipótese de raciocínio).
* B.3)-Terceira questão
Atendendo à conclusão a que se chegou anteriormente, fica prejudicado o conhecimento da questão da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil.
* B.4)-Responsabilidade pelas custas
Tendo decaído no recurso, são as Autoras e Recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas – artigo 527.º do CPC.
IV–Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes da 6.ª Secção em julgar improcedente a apelação, e em manter a sentença recorrida, ainda que com fundamentação diversa.
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As custas do recurso ficam a cargo das Autoras e Recorrentes.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 27 de Outubro de 2022
Manuel Rodrigues Gabriela de Fátima Marques Nuno Lopes Ribeiro
[1]António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil. Almedina, 2017, 4ª edição revista, pág. 109. [2]Os factos impugnados vão destacados a negrito. [3]O qual se desconhece qual seja (não obstante a Ré não ter impugnado esta alegação), dado que nada consta como anexo ao documento n.º 12 junto com a p. i. e o mencionado «relatório de inconformidade» não pode ser nenhum dos relatórios descritos infra, em 38., que foram realizados (e os respectivos resultados enviados por email para a Autora “AA…”) em datas posteriores. [4]Por despacho de 13-09-2022 (ref.ª 153935493), a Exma. Juiz a quo, seguramente na sequência do pedido de rectificação feito pela Recorrida nas alegações de recurso, determinou a rectificação da data constante deste ponto da matéria de facto para que do mesmo passasse a constar «Em 20 de Dezembro de 2019 (…)» ao invés de «Em 20 de Dezembro de 2018 (…)». Todavia, incorreu em lapso, que aqui se corrige, repristinando-se a redacção originária do referido ponto da matéria de facto (art.º 662.º/1, do CPC), uma vez que uma leitura atenta do «Auto de Inutilização» a que se refere (Doc. 16 junto com a p.i. – a fls. 53 e verso) permite alcançar que, imediatamente antes das assinaturas nele apostas pelo autuante e testemunhas, consta a seguinte ressalva/emenda: «EM TEMPO: Na terceira linha deste auto, ode se lê ano de dois mil e dezanove, deve ler-se ano de dois mil e dezoito». Assim, a data a considerar, que consta como sendo a da elaboração do referido «Auto de Inutilização» é a data de 20 de Dezembro de 2018. [5]Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3.Dez.1997, proc. 9710990, disponível in www.dgsi.pt. [6]Obra citada, pp. 287.288. [7]Do artigo 36.º da p.i. consta: “Acresce que, dada a dimensão e repercussões do problema, a Autora AA… diligenciou pela realização de testes laboratoriais tendo como objecto o “PVC” fornecido pela Ré, cujo resultado determinou deficiências no produto, tendo sido validada a informação de que o mesmo “não estava conforme para produção”, como se verifica pelos documentos que se protestam juntar.” [8]Neste sentido, o Ac. do STJ, de 22-10-2015 (www.dgsi.pt.), citado por António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4.ª edição, Almedina, págs. 279-280. [9]In Direito das Obrigações, Volume I, 9.ª Edição, Almedina, 2010, pág. 422 [10]In “Reforma da Legislação Comercial Portuguesa”, Rev. da Ord. dos Advogados, Maio/1984, pg. 26, nota 1 e in “Lições de Direito Comercial”, vol. I, 1973, pg. 26. [11]In Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 104º, pg. 254. [12]In “Cumprimento Defeituoso – Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada”, Colec. Teses, Almedina, 2001, pgs. 375 e 376. [13]A título de exemplo, seguiram esta tese os Acs. do STJ de 23/11/2006, in CJ-STJ ano XIV, 3, 132; de 28/03/2001, relator: Cons. Abílio Vasconcelos, in www.dgsi.pt/jstj; de 26/01/1999, nº convencional JSTJ00035426, in www.dgsi.pt/jstj, bem como os Acs. do TRP de 15/01/2008, in CJ ano XXXIII, 1, 167. [14]É este o entendimento perfilhado por Romano Martinez na ob. citada em 12. e é esta também a orientação perfilhada nos citados Acs do TRP de 09/05/2002 (proc.º n.º 0131922) e 15/01/2008 (proc.º n.º 0721237), disponíveis em www.dgsi.pt.. De facto, defende-se no primeiro destes arestos que “seria incongruente admitir a inexistência de qualquer limite temporal para o exercício do direito de denúncia dos defeitos e para a subsequente acção judicial” não obstante a “maior exigência da lei comercial, revelada pelo encurtamento do prazo de denúncia para oito dias, e uma mais premente relevância, neste domínio, das razões que justificam a aludida brevidade de prazos”. [15]Neste sentido, vejam-se, designadamente, os Acs. do STJ de 23/11/2006, de 28/03/2001 e de 26/01/1999 e do TRP de 15/01/2008 e de 09/05/2002, todos já mencionados [16]Cfr. Direito das Obrigações, vol. III, 2010, 7.ª edição, pág. 132. [17]Cfr. Das Obrigações em Geral», 10.ª ed, p 919 [18]Cfr. Direito das Obrigações (Parte Especial), Contratos, 2.ª Edição, (3.ª Reimpressão da edição de Maio de 2001), Almedina, pp. 133-134) [19]in “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, 4ª ed., revista e actualizada, Almedina, 2006, págs 73-74 e segs; [20]https://www.direitoemdia.pt/search/show/ca85c57745cc0b9698d52402b1f794fd763333ce719af8921f699bc6bc752ef2 [21]Disponível em www.dgsi.pt. [22]Sumário que, pela sua clareza, replicaremos parcialmente no sumário do presente acórdão.