ABUSO DE CONFIANÇA
SEGURANÇA SOCIAL
Sumário

No âmbito do RGIT, o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social prescinde do elemento apropriação.

Texto Integral

Acordam, em audiência, na Secção Criminal da Relação do Porto:

I - Relatório:

I - 1.) No 2.º Juízo Criminal do Porto, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, foram submetidos a julgamento B................. e “C............... S.A.”, pronunciados, o primeiro, da prática de um crime de abuso de confiança à segurança social p. e p. nos art.ºs 27.º-B e 24.º, n.º 1, do DL n.º 20-A/90 de 15/01, na redacção do DL 394/93, de 24/11, e DL n.º 140/95, de 14/06, a 2.ª arguida, da prática do mesmo crime, em face do disposto no art.ºs 7.º, 9.º, n.º 2 e 11.º do R.J.I.F.N.A.

Realizado o mesmo, veio a julgar-se totalmente procedente, por provada, a pronúncia formulada, e consequentemente, condenou-se:

- O arguido B..............., pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo art.ºs 107.º e 105.º da Lei n.º 15/2001 de 05/06, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à razão diária de € 30 (trinta) euros, o que perfaz a multa total de €.6000,00 (seis mil euros), ou subsidiariamente, na pena de 133 (cento e trinta e três) dias de prisão.

- A arguida “C..............., S.A.”, como autora de um crime de abuso de confiança à segurança social p. e p. nos art.ºs 27-B e 24.º, n.º 1, do DL n.º 20-A/90, de 15/01, na redacção do DL n.º 394/93, de 24/11, e DL n.º 140/95, de 14/06, face ao disposto nos art.ºs 7.º, 9.º, n.º 2 e 11.º do R.J.I.F.N.A., na pena de € 7.000,00 (sete mil euros) de multa.

I - 2.) Inconformados com o assim decidido, recorreram ambos os arguidos, que ao terminarem a sua motivação constante de fls. 450 e segts, produziram as seguintes conclusões:

1.ª - Os recorrentes não se conformam com a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” que condenou o arguido B.............. na pena de 200 dias de multa à razão diária de 30 euros, num total de 6.000,00 Euros, pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no art. 105º, no 1, da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho – Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) e a sociedade C........... na pena de multa 7.000,00 €.
2.ª - O recorrente apesar de todas as dificuldades, no interesse dos trabalhadores e do Estado, evitou paralisar a empresa e foi pagando, através de capitais próprios, os salários aos trabalhadores e outras despesas básicas.
3.ª - O art. 17º do C.P. dispõe que “Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro não lhe for censurável”.
4.ª - Esta norma integra um princípio geral do Direito Penal e como tal, deverá ser aplicada às infracções fiscais, as quais, embora tratadas autonomamente face ao direito Penal comum, devem subordinar-se aos seus princípios gerais.
5.ª - Assim, face ao quadro fáctico contextualizante das infracções imputadas ao recorrente, deve-se concluir pela incensurabilidade da sua conduta.
6.ª - O recorrente nos últimos 3 anos pagou ao Estado mais de 900.000,00 € (180.000 contos) de impostos e contribuições em dívida, estando a negociar com o mesmo Estado que originou o seu descalabro económico, um Plano Extrajudicial de Conciliação (DL 315/98, de 20/10), de forma a pagar todos os débitos do ACE – Cfr. docs. juntos aos autos pelo arguido.
7.º - As empresas do ACE onde se entrega a sociedade recorrente, cumpriram outras obrigações fiscais e parafiscais.
8.ª - Os recorrentes têm a seu favor o princípio do n.º 1 do art. 17.º do Código Penal que resultando da matéria de facto dada como provada, funciona aqui como causa de exclusão da sua culpabilidade.
9.ª - O recorrente agiu sem culpa por não ter consciência da ilicitude do facto, não podendo ser-lhe censurado qualquer erro, porquanto o mesmo não agiu com a intenção de cometer qualquer ilícito, mas sim com o propósito de salvar a empresa, salvaguardar os interesses dos seus trabalhadores e até os interesses do Estado, ao qual pagou quanto (até pessoalmente) e quando pôde.
10.ª - Ao decidir de modo contrário, ocorreu manifesto erro na apreciação da prova e no enquadramento jurídico de factos apurados, violando (por omissão de aplicação) o art. 17.º do CP.
11.ª - No processo não foi feita prova que existiam disponibilidades financeiras na empresa que permitissem a apropriação (mesmo que contabilística) das prestações da SS, após o pagamento do salário aos trabalhadores, sendo reconhecida a depauperada situação financeira da “C..........” e do grupo de empresas de que a mesma faz parte integrante.
12.ª - Não ficou provado “que o arguido tenha integrado as quantias no respectivo património pessoal” – Cfr. factos não provados.
13.ª - Tal falta de prova, deveria ter conduzido à absolvição dos recorrentes, com base no princípio “in dubio pro reo”, tudo porque não lhes cabia fazer prova da inexistência da verificação de todos os elementos integradores do tipo legal, mas sim ao MP e ao Assistente carrear para o processo prova suficiente para que o julgador verificasse o preenchimento de todos os elementos constituintes do tipo leal incriminador.
14.ª - Foram violados os art.ºs 27-B e 24, n.º 1, do DL 20-A/90 (RJIFNA), de 15/1, com a redacção do DL 394/93, de 24/11 e DL 140/95, de 14/6 e os actuais art.ºs 107º e 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT).
15.ª - O art. 22.º do Regime Geral das Infracções Tributárias instituído pelo Lei 15/2001, 5 de Junho, que no art. 2.º al. b) revoga o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não aduaneiras (excepto o seu artº 58º), sob a epígrafe “Dispensa e atenuação especial da pena”, dispondo que a pena pode ser dispensada se o agente repuser a verdade sobre a situação tributária e o crime for punível com pena de prisão igual ou inferior a três anos, a pena pode ser dispensada se:
- A ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves;
- A prestação tributária e demais acréscimos legais tiverem sido pagos, ou tiverem sido restituídos os benefícios injustificadamente obtidos;
- À dispensa da pena se não opuserem razões de prevenção.
16.ª - Nos termos do n.º 2 do mesmo espartilho a pena será especialmente atenuada se o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final.
17.ª - Os recorrentes preenchem na íntegra os requisitos legais para que sejam dispensados de pena, tendo sido violado, por omissão de aplicação, o art. 22.º do RJIFNA.
18.ª - Não procedendo, o n.º 2 do art. 22.º do RGIT dispõe que “A pena será especialmente atenuada se o agente repuser a verdade fiscal e pagar a prestação tributária e demais acréscimos legais até à decisão final ou no prazo nela fixado” - Tal comando jurídico foi absolutamente ignorado pelo Mmº Juiz “a quo”.
19.ª - Se, de facto, não for concedida aos recorrentes a isenção da pena, pelo menos, tem a mesma que ser especialmente atenuada, nos termos do art. 72º do Código Penal.
20.ª - Assim, no quantum da multa fixada deveria ter-se em consideração o disposto no art. 73º do CP, ou seja, a redução em um terço do limite máximo da pena de multa (de 360 dias), que se fixaria em 240 dias, sendo assim excessivo os 200 dias de multa fixados.
21.ª - Outro lapso indescritível na sentença ora em crise: O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos pelos quais vinha acusado, circunstância que tem, forçosamente, que ser tida em conta.
22.ª - Sem prescindir, face à assente factologia, são clara e patentemente desajustadas quer a multa em que foi condenada a sociedade – 7.000 euros - quer a multa imposta ao arguido, - 6.000 Euros – tudo num total de 13.000,00 Euros/2.600 contos!
23.ª - O valor não entregue à Segurança Social é de cerca de 4.000 Euros/800 contos, valor e respectivos juros de mora que, como se alegou e conforme resulta do processo, se encontram integralmente pagos - Cfr. fls. 59, 60, 145 e 172 dos autos.
24.ª - As multas aplicadas pelo Tribunal “a quo” aos recorrentes são 325% mais elevadas de que o valor inicialmente devido à Segurança Social.
25.ª - A determinação, em concreto, das penas de multa aplicadas aos recorrentes, carecem de uma autónoma e adequada ponderação face aos princípios subjacentes à determinação da medida da pena em abstracto, em razão da punibilidade pretendida, da sua proporcionalidade (tendo em conta o carácter de substituição) e o da sua exigibilidade.
26.ª - O objectivo da aplicação das penas de multa emana, essencialmente, de princípios de ressocialização e prevenção, por forma a evitar a tentação do cometimento de novos crimes e de evitar a gravosidade extrema da prisão efectiva.
27.ª - O tribunal para além de permitir o efectivo cumprimento das sanções penais e o evitar a prisão carcerária, não deverá deixar de assegurar ao arguido um mínimo de rendimento para que possa fazer face ás suas despesas e do seu agregado familiar.
28.ª - O rendimento mensal per capita do agregado familiar liquida-se em 436,61 €, sendo que a pena multa implica o pagamento de 13.000,00 €.
29.ª - Na fixação das penas não se teve em conta a colaboração do arguido na prossecução da justiça, a sua confissão integral dos factos da acusação, a inexistência de quaisquer antecedentes criminais e o facto de o débito à segurança social estar já integralmente liquidado.
30.ª - Quanto à sociedade arguida, foi erradamente fixada a moldura da multa, com referência RGIT - 240 a 1200 dias, tudo porque tal moldura é apenas aplicável, nos termos do disposto no art. 105.º n.º 5, quando o abuso de confiança seja qualificado, ou seja quando o valor das prestações a entregar ao Estado, que devam constar de cada declaração (n.º 7, do art. 105.º do RGIT) seja superior a 50.000 €.
31.ª - Nos termos do art. 105.º, n.º 1, do RGIT, a pena a fixar à sociedade, no actual regime, claramente mais favorável, é a multa até 720 dias – art. 105.º, n.º e 12.º n.º 3 do RGIT.
32.ª - Nos autos constata-se facilmente que o Mmº Juiz em relação à sociedade não refere expressamente o número de dias de multa, nem a taxa diária aplicável, também não se teve também em conta a real condição económica da empresa, que como resulta dos factos provados, atravessa uma profunda crise financeira.
33.ª - A empresa através dos seus corpos sociais, sempre remeteu os mapas de retribuições, nunca tentando ocultar a sua verdadeira situação, e só devido às dificuldades económicas que atravessou (e continua a atravessar) relacionadas com o incumprimento Estadual de apoios ao projecto de internacionalização, à crise profunda do comércio a retalho, ao elevado valor dos créditos incobráveis, não pagou atempadamente as contribuições parafiscais auto liquidadas.
34.ª - As exigências de prevenção geral e especial e mesmo a finalidade de retribuição não foram devidamente tomadas em conta: as prestações devidas à SS foram integralmente pagas empregando o grupo, directamente, cerca de 300 trabalhadores.
35.ª - A pena aplicada à sociedade 7.000,00 €/1.400 contos e ao arguido 6.000,00 €/1.200 contos, colidem frontalmente com o disposto no nº 2 als. d) e e) do art. 71º do Código Penal, aplicável por remissão do art. 4.º do RJIFNA.
36.ª - O recorrente B............. reclama a aplicação de uma pena de multa de 75 dias à taxa diária de 10,00 €, num total de 750,00 €, quanto à sociedade “C............”, reclama-se a aplicação de uma pena de 100 dias de multa à taxa diária de 10,00 €, num total de 1.000,00 €.
37.ª - Quanto à apropriação das contribuições, e à sua efectiva retenção, à consciência do arguido sobre a ilicitude dos factos, a sentença recorrida comporta insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, nos termos do art. 410.º, n.º 2, als. a) e c) do Código de Processo Penal.
38.ª - Quanto à não consideração do regime de isenção de pena, ou, não procedendo, da sua atenuação especial – art. 22.º do RGIT, da fixação do quantum das penas de multa e da sua moldura abstracta, a sentença recorrida comporta contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e errada eleição do comandos jurídicos aplicáveis, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. b, do Código de Processo Penal.

Revogando-se a sentença recorrida, nos termos expostos far-se-á justiça

I – 3.) Na sua resposta, a Digna magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido, terminou também a nível conclusivo, pela forma seguinte:

- A sentença recorrida não enferma dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, al.s a) b) e c) do Código do Processo Penal;
- Deve ser mantida a condenação dos arguidos pela prática do crime de Abuso de Confiança Contra a Segurança Social, previsto e punido pelos art.ºs 7.º, 9.º, n.º 2, 11.º, 27.º-B e 24.º, n.º 1 do DL n.º 20-A/90, de 15/01, com a redacção introduzida pelo DL n.º 394/93, de 24-11, e DL 140/95, de 14-06, e actualmente, pelos art.ºs 107.º e 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, nas multas já fixadas.
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II – Subidos os autos a esta Relação, o Exmº Sr Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido de não haver motivo ponderoso determinante do reenvio para novo julgamento, e de o recurso dos arguidos merecer parcial provimento no que se refere à redução das penas de multa impostas.

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Na sequência do cumprimento do preceituado no art. 417.º do Cód. Proc. Penal, nada mais foi acrescentado.
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Seguiram-se os vistos legais e procedeu-se a audiência com observância do legal formalismo.

Cumpre apreciar e decidir.

III - 1.) Definindo-se o objecto dos recursos pelas conclusões extraídas pelos recorrentes a partir das motivações apresentadas, resulta que se apresentam para apreciação, no caso presente, a esta Relação, as seguintes questões:

- Actuou o arguido B................, sem consciência da ilicitude, sendo pois de lhe aplicar a causa de exclusão da culpa constante do art. 17.º do Cód. Penal?
- Devia tal arguido ser absolvido já que não se provou “que tenha integrado as quantias retidas no respectivo património”?
- Foi violado o art. 22.º do RGIT, uma vez que, verificando-se os seus pressupostos, o Tribunal não dispensou nem atenuou as penas?
- As penas de multa aplicadas mostram-se desproporcionadas no seu quantum concreto, não tendo sido considerados factores que relevavam para a sua determinação concreta, tais como, em relação ao primeiro arguido, a confissão integral e sem reservas e ter havido pagamento total do débito fiscal?
- Em relação à arguida sociedade, ouve erro na fixação da respectiva moldura abstracta, sendo que a condenação não menciona sequer o número de dias e a respectiva razão diária?
- A sentença recorrida comporta insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, quanto à apropriação das contribuições, à sua efectiva retenção e à consciência do arguido sobre a ilicitude dos factos, nos termos do art. 410.º, n.º 2, als. a) e c) do Código de Processo Penal?
- Comporta igualmente contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quanto à não consideração do regime de isenção de pena, ou, não procedendo, da sua atenuação especial, da fixação do quantum das penas de multa e da sua moldura abstracta?

III - 2.) Passemos, então, a procurar dilucidar as questões acima elencadas, havendo que as abordar, porém, numa ordem lógica diferente da apresentada pelos recorrentes, já que prevalecerão as que podem prejudicar o conhecimento das demais, com prevalência das que incidam sobre a matéria de facto.
Vejamos, no entanto, primeiro o que neste domínio foi considerado como assente pelo Tribunal Criminal do Porto:

Factos Provados:

A arguida sociedade comercial, contribuinte n.º 126317681, com sede na Rua .........., n.º ....-..º. Porto, é uma sociedade comercial anónima, tendo como objecto a prestação de serviços de contabilidade e organização administrativa, que iniciou actividade e inscreveu-se como sujeito passivo de contribuições no Centro Regional de Segurança Social do Norte desde Agosto de 1986.
O arguido B..............., desde, pelo menos, o mês de Março de 1995 e até 1997, foi Presidente do Conselho de Administração da sociedade comercial ora arguida.
A sociedade arguida, nos anos de 1995 a 1997, tinha nove trabalhadores assalariados contratados.
O arguido foi Presidente do Conselho de Administração da arguida “C............, S.A.” e nessa qualidade, designadamente, durante o ano de 1995 e até 1997, dirigiu os negócios da referida sociedade, nomeadamente, procedendo ao pagamento de salários e impostos.
O arguido sabia que estava legalmente obrigado a entregar ao competente organismo da Segurança Social, até ao 15º dia do mês seguinte àquela a que respeitavam, as quantias descontadas, a título de contribuições devidas àquela, nos salários dos trabalhadores da sociedade arguida, inscritos no regime geral de trabalhadores por conta de outrem, bem assim como nas remunerações dos membros dos seus órgãos estatutários;
Ora, a arguida sociedade comercial, agindo através do seu representante, o arguido, descontou as contribuições da previdência nos salários pagos aos seus trabalhadores, apropriou-se daquelas e integrou-as na sua esfera patrimonial, não as entregando à Segurança Social Portuguesa, como podia e devia. Descontos estes que efectuaram de acordo com as taxas em vigor e nos montantes parcelares que a seguir se discriminam:
Dezembro de 1996 - Esc. 224.076$00;
Janeiro de 1997 - Esc. 110.719$00;
Fevereiro de 1997 -Esc. 114.609$00;
Março de 1997 - Esc. 127.215$00;
Abril de 1997 - Esc. 116.138$00;
Maio de 1997 -Esc. 116.138$00;
Perfazendo o valor ou montante global de contribuições retidas e não entregues pelos arguidos o montante de Esc. 808.895$00 (oitocentos e oito mil, oitocentos e noventa e cinco escudos).
Em data indeterminada de 1996, o arguido decidiu deixar de realizar os pagamentos das contribuições à Segurança Social referentes aos salários dos trabalhadores da sociedade arguida, o que efectivamente fez.
Uma vez na posse dos montantes mensais acima, o arguido omitiu a respectiva entrega à Segurança Social Portuguesa, sua legítima proprietária, integrando-os no património da sociedade arguida, não obstante saber que deveria ter procedido à entrega das aludidas quantias mensais até ao fim dos 90 dias sobre o termo legal do prazo legalmente fixado para o pagamento das contribuições, ou seja, o dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam;
O arguido, enquanto representante da arguida sociedade comercial, estava ciente de que as quantias retidas não lhes pertenciam mas sim ao Estado, e que as deveria entregar, conjuntamente com as folhas de remuneração, nos prazos legais, nos competentes Serviços da Segurança Social, conforme impõem os artºs 5º, nºs 2 e 6 do Dec.-Lei n.º 103/80, de 9/5, art. 18.º do Dec.-Lei nº 140-D/86, de 14/6, e art. 24.º, nº 3, da Lei nº 28/84, de 14/08, tendo, contudo, optado voluntariamente por guardá-las para si.
Os arguidos procederam posteriormente à liquidação junto da Segurança Social das quantias supra descriminadas em datas muito posteriores ao prazo de noventa dias subsequentes aos meses a que as mesmas respeitavam.
Agiu o arguido com a intenção concretizada de fazer suas as quantias mensais e descontos dos salários que reteve, acima discriminados, não obstante saber que tais quantias não lhe pertenciam e que actuava em prejuizo e contra a vontade da Segurança Social Portuguesa;
Actuou o arguido por si e na qualidade de representante legal da sociedade arguida, enquanto administrador responsável pela gestão da mesma, em nome e no interesse colectivo desta pelo que, ao decidir omitir a entrega das referidas contribuições, fê-lo com a intenção concretizada de as fazer suas e da sociedade arguida.
Agiu ainda de forma livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
A empresa arguida – “C...........”- pertence a um grupo empresarial de comercialização e fabrico de calçado, com mais de trinta anos de existência no mercado nacional, que no ano de 1985 tomou a forma jurídica de um agrupamento complementar de empresas designado por ACE – a “Socobel, Distribuição de Calçado, ACE.”
O arguido, conjuntamente com esposa e filhas detém a totalidade do capital desta ACE, a ele cabendo a gerência efectiva de todos os negócios e obrigações da sociedade, chamando a si a responsabilidade pelas decisões mais importantes.
Em 1994 inicia-se o projecto desta ACE “quarenta lojas na Europa”, que mais tarde – 1996 – sofre uma descapitalização de financamento prometido pelo IAPMei que não se concretizou, havendo que recorrer ao crédito bancário e património pessoal do 1.º arguido, alienando ainda vários estabelecimentos.
Em finais de 1996 opta a ACE por encerrar os estabelecimentos no estrangeiro de forma a salvar o mercado nacional.
A ACE fica então, mercê de toda a conjuntura económica existente no mercado nacional com graves dificuldades económicas, optando por direccionar as suas disponibilidades financeiras para pagar salários aos trabalhadores, pagar despesas correntes dos vários estabelecimentos da ACE.
A “C...........”, como parte desta ACE sofreu pois as vicissitudes de todo o grupo, e também nesta empresa se optou por pagar salários e despesas correntes deixando por liquidar as obrigações ao Estado.
O arguido não tem antecedentes criminais.
Em 2002 o arguido auferiu o rendimento bruto de € 27.736,15 euros.

Factos não Provados:
Que o arguido tenha integrado as quantias retidas no respectivo património pessoal.

Com eventual interesse para a decisão, poderá importar igualmente a fundamentação consignada para a formação da respectiva convicção:

“Base factual:
Fundamentais foram os documentos de fls. 23 a 26, 40 a 45, 64 a 80, 129 a 148, 290, 297, 311 a 329, 335 a 337, 344 a 348, 354 a 355, 358 a 389, 395 a 400, 411 a 423 e CRC dos autos.
As testemunhas (a cópia digitalizada fornecida não inclui esta parte da sentença).
Os factos não provados devem-se a inexistência de prova.”

III - 3.1.) A primeira questão que importa pois enfrentar, é se a sentença recorrida comporta insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, quanto à apropriação das contribuições, à sua efectiva retenção e à consciência do arguido sobre a ilicitude dos factos, nos termos do art. 410.º, n.º 2, als. a) e c) do Código de Processo Penal?

Dispõe o art. 410.º desta lei adjectiva, que:

“2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.

Podemos afirmar que ocorre insuficiência da matéria de facto provada “quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição”.
A insuficiência da matéria de facto há-de ser de tal ordem que patenteie a impossibilidade de um correcto juízo subsuntivo entre a materialidade fáctica apurada e a norma penal abstracta chamada à respectiva qualificação, mas apreciada na sua globalidade e não em meros pormenores, divorciados do contexto em que se descreve a sucessão de factos imputados ao agente.” Simas Santos Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, II Vol., 2. Ed., pág.ª 737.
Genérica e tendencialmente, o que em termos simples a mencionada alínea pretende traduzir, é a ideia da impossibilidade da matéria de facto apurada permitir a aplicação da solução de direito preconizada pelo tribunal.

Já por erro notório na apreciação da prova se deve entender «(…) aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente». (Obra citada pág.ª 740).
E acrescentam tais autores:
«Verifica-se erro notório quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que normalmente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida».
«O erro notório previsto na al. c) do n.º 2 do art. 410 do CPP é aquele que, usando de um processo racional e lógico de análise sobre um facto provado na decisão em crise, dele se colhe uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou violadora das regras da experiência comum, tudo por forma notória, ou susceptível de ser alcançada pelo cidadão comum minimamente prevenido.» – Ac. do STJ de 24/10/96, Proc. n.º 680/96.

Ora neste particular, tanto quanto alcançamos, a questão suscitada pelos recorrentes relativamente aos pontos específicos que acima menciona, não se situa na falta de qualquer elemento fáctico conexo com eventuais requisitos objectivos próprios do crime de abuso de confiança à segurança social ou a factos por ambos alegados tendentes a conformar o objecto do processo, nem se nos afigura que tenha a ver com a eventual anormalidade de uma qualquer conclusão extraída pelo Tribunal Criminal do Porto relativamente a uma concreta enunciação factual, perspectivada de forma racional ou natural.
Por outras palavras, insuficiência da matéria de facto no específico segmento acima reportado pelos recorrentes, não a detectamos.

Sem embargo do que, estamos de acordo em como existem afirmações que encerram contradições entre alguns dos factos que a decisão recorrida enuncia.

III – 3.2.) Senão vejamos:

“Ora, a arguida sociedade comercial, agindo através do seu representante, o arguido, descontou as contribuições da previdência nos salários pagos aos seus trabalhadores, apropriou-se daquelas e integrou-as na sua esfera patrimonial, não as entregando à Segurança Social Portuguesa, como podia e devia.”
(...)
“Uma vez na posse dos montantes mensais acima, o arguido omitiu a respectiva entrega à Segurança Social Portuguesa, sua legítima proprietária, integrando-os no património da sociedade arguida, (...)”
(…)
“Agiu o arguido com a intenção concretizada de fazer suas as quantias mensais e descontos dos salários que reteve, acima discriminados, não obstante saber que tais quantias não lhe pertenciam e que actuava em prejuizo e contra a vontade da Segurança Social Portuguesa.”
“Actuou o arguido por si e na qualidade de representante legal da sociedade arguida, enquanto administrador responsável pela gestão da mesma, em nome e no interesse colectivo desta pelo que, ao decidir omitir a entrega das referidas contribuições, fê-lo com a intenção concretizada de as fazer suas e da sociedade arguida.”

Ora aparentemente em relação às mesmas quantias, o tribunal afirma que as mesmas foram integradas no património da sociedade, do arguido e conjuntamente do arguido e da sociedade.

É certo que poderá haver uma explicação para esta eventual disparidade de apropriações, que note-se, não foi iniciada na decisão final.
Sabemos pelo processo, que o que está em causa em termos omissivos é a Taxa Social Única que tem uma decomposição percentual que é retida pelo empregador do vencimento do seu assalariado, e uma outra, que é suportada pela entidade patronal.
Só que não é obviamente seguro que a eventual diferença de apropriações tenha a ver com as distinctas fracções ou omissões daí decorrentes, como mesmo por esse caminho a contradição não se esbateria por completo, nem ficaria capazmente resolvida.
É que, ainda que nos reportemos apenas às quantias mensais decorrentes dos descontos dos salários, é dito que foram apropriadas e feitas suas (isto é, no sentido corrente utilizado judicialmente com esta expressão, equivalente a integração no respectivo património) pelo 1.º arguido, quando no início se havia deixado referido que tinham integrado a esfera patrimonial da sociedade comercial.

Ora mesmo que fosse procedente (o que não concedemos) a interpretação fundada na dicotomia das diferentes fracções da mencionada taxa, para superar as dificuldades assim encontradas, a verdade é que se estava a fazer apelo a elementos estranhos à decisão, e o vício a ser detectado em função de elementos que lhe eram alheios e não apoiados na esperiência comum, o que traduziria uma possibilidade legalmente não permitida.

Note-se que os recorrentes não impugnam directamente a matéria de facto apurada pela Instância, nos termos do art. 412.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, pelo que os poderes de cognição desta Relação se acham confinados aos mencionados vícios.

Sobraria ainda uma outra razão ponderosa: é que mesmo em relação às quantias que a sentença afirma que o arguido fez suas, que têm forçosamente que ser «as quantias mensais e descontos que reteve», acaba por dizer também, numa forma totalmente antitética, nos factos considerados não provados, que afinal «não as integrou no respectivo património pessoal».

III – 3.3.) Não se olvida que no actual crime de abuso de confiança contra a segurança social (art. 107.º do RGIT), o “tipo de ilícito prescinde do elemento da apropriação da prestação tributária, bastando-lhe a mera falta de entrega passados os prazos legais” João Ricardo Catarino - Nuno Victorino, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2.ª Ed. 575.
Ou seja, estando provada esta segunda realidade, e pese embora o vício detectado, poder-se-ia pensar em prescindir do reenvio.
Todavia, tal exigência continha-se no art. 27-B, do RJIFNA, o que de per si constitui um óbice decisivo para essa solução, já para não falarmos da sua desadequação à forma como se apresenta a discussão do objecto deste processo.

Não só essa matéria é relevante em termos de incriminação, como o é em termos de culpa, tendo em vista a determinação da pena que em concreto a cada um dos arguidos tenha que ser aplicada, como ainda se reveste de particular significado na economia da defesa do 1.º arguido, maxime, quando alega que de nada se apropriou, que todas as quantias foram aplicadas na sociedade, com o propósito de a salvar financeiramente, não tendo consciência da ilicitude e invocando a aplicação da causa de exclusão da culpa vertida no art. 17.º do Cód. Penal.
Por outro lado, tal factualidade acaba por gerar alguma dúvida, quando articulada com aquela outra em que se referencia que o ACE, “perante as dificuldades económicas, optou por direccionar as suas disponibilidades financeiras para pagar salários aos trabalhadores e pagar despesas correntes” e que a “C..........”, como parte deste ACE optou pela mesma actuação.

Afinal o arguido ficou com toda ou parte das referidas contribuições para si, aplicou-as no todo ou em parte para o pagamento de salários e despesas correntes, houve partes que também foram apropriadas pela sociedade, são essas as que foram utilizadas para solver os tais salários e despesas?

III - 4.1.) Mas não apenas em relação a estes pontos estendem os recorrentes a verificação dos vícios da sentença, alegando agora contradição insanável da fundamentação, em relação à não consideração do regime de isenção da pena ou da sua atenuação especial ex vi do art. 22.º do RGIT, e ainda quanto à fixação da multa e da sua moldura abstracta.

Ocorre contradição insanável de fundamentação “quando de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.”
Ora quanto à dispensa e atenuação especial da pena referida no art. 22.º do RGIT, a questão não pode ser vista desse ângulo.
Ou os factos necessários para a sua ponderação estão na sentença, ou não estão:
Se não estão e deveriam estar, prefigura-se o vício de insuficiência da matéria de facto.
Se estão e o tribunal omitiu pronúncia sobre essa matéria, quando a mesma ocorre ope legis ou foi alegada: verifica-se nulidade da sentença nessa parte, por força do art. 379.º, al. c), do Cód. Proc. Penal (questão de direito), e se a problemática foi incorrectamente perspectivada à luz daquele normativo, igualmente uma questão de direito.

III - 4.2.) Como é óbvio, a escolha da moldura abstracta de uma pena de multa radica também neste zona material do recurso, e não no domínio dos factos.

III - 4.3.) O mesmo sucedendo com a fixação do quantum de uma qualquer pena, já que decorrência das normas penais que presidem à sua doseometria.

III - 4.4.) Quanto à omissão da indicação do número de dias e da razão diária de uma multa que nesses termos deva ser fixada, não integra qualquer vício de contradição de fundamentação, mas antes e uma vez mais, uma questão de nulidade de sentença, embora os recorrentes não veiculem esta forma de alegação.

Em conformidade.

IV – Decisão:

Nos termos e com os fundamentos acima indicados, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelos arguidos B.................. e “C.............. S.A.”, e em conformidade:

- Determinar o reenvio do processo para novo julgamento tendo em vista eliminar as contradições apontadas na decisão recorrida, relativamente à determinação de quem e em que condições foram apropriadas as quantias devidas à Segurança Social, daí retirando as legais consequências.
- Considerar prejudicado o conhecimento das demais questões acima não mencionadas.

Atento o seu parcial decaimento, pagarão os recorrentes, a título individual, 3 (três) UCs de taxa de justiça (art.ºs 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, ambos do CPP e art. 87.º, n.º 1, al. b) do CCJ).

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1.º signatário.

Porto, 11 de Maio de 2005
Luís Eduardo Brando de Almeida Gominho
José do Nascimento Adriano
Joaquim Rodrigues Dias Cabral
Arlindo Manuel Teixeira Pinto