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JUSTO IMPEDIMENTO
INSOLVÊNCIA CULPOSA
REJEIÇÃO DO RECURSO
Sumário
- O conceito de justo impedimento sustenta-se na não imputabilidade do facto obstaculizador da prática atempada do acto ao mandatário ou à parte, precisamente por se evidenciar que não houve culpa na sua produção. - Incumbe à parte faltosa a alegação e prova da sua falta de culpa, ou seja, a ocorrência de um evento impeditivo. - Se não são mencionadas as circunstâncias específicas que permitam considerar que houve efectivamente um evento não imputável ao Mandatário, o tribunal não poderá avaliar se houve justo impedimento. - O atestado médico que declara a impossibilidade de exercício da profissão por parte do advogado/mandatário, sem esclarecer a gravidade da doença ou desacompanhado de outros meios de prova que demonstrem essa gravidade, não é suficiente para estabelecer o justo impedimento. - Provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do n.º 2 do art.º 186º. do CIRE, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
1-Relatório:
O credor Banco …, S.A., requereu a abertura do incidente de qualificação da insolvência de T…, pedindo seja a mesma julgada culposa.
O Ministério Público pugnou, igualmente, pela qualificação culposa.
Aberto o incidente de qualificação o Requerido T… foi regularmente citado e apresentou oposição, concluindo pelo carácter fortuito da insolvência.
Foi apresentada resposta pelo credor, B…, S.A. e pelo Magistrado do MP.
Foi realizada audiência prévia, identificado o objecto do litígio e os temas da prova e designada data para realização de julgamento.
Procedeu-se a julgamento.
Foi deduzido incidente de justo impedimento, pela Mandatária do insolvente.
Por despacho proferido em 24-11-2021, não se admitiu o mesmo por extemporâneo, mais se julgando não existir qualquer nulidade.
Foi apresentado recurso de tal despacho, o qual não foi admitido.
Veio a ser proferida sentença, com o seguinte teor na sua parte decisória:
«Pelo exposto, nos termos do disposto nos artigos 189.º, n.ºs 1 e 2 e 4 do CIRE, decide-se qualificar como culposa a insolvência de R…, declarando-o afectado e, em consequência:
a) Declara-lo inibido, pelo período de 5 (cinco) anos, para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
b) Condenar o Requerido em indemnização a favor dos credores, a liquidação em execução de sentença;
c) Condenar em custas o afectado pela qualificação da insolvência».
Inconformado recorreu o insolvente, concluindo as suas alegações:
1- O Recorrente não se conforma com esta douta sentença proferida pelo Tribunal a quo pelo que, da mesma interpôs o presente recurso.
2- Desde logo, o Recorrente não se conforma com o despacho, proferido em 24/11/2021, que não admitiu, por extemporâneo, o incidente de justo impedimento apresentado.
3- O incidente é manifestamente tempestivo porquanto a mi. mandatária do Recorrente procedeu à comunicação ao Tribunal e à alegação de justo impedimento logo que cessou a sua impossibilidade para prática dos atos próprios da profissão de advogada (bem como para a prática de quaisquer outros).
4- No agendado dia da audiência de discussão e julgamento, 20/09/2021, a mi. mandatária do Recorrente foi acometida por doença súbita, imprevisível e incapacitante.
5- A mi. mandatária do Recorrente por força de tal doença (súbita, imprevisível e incapacitante) ficou impossibilitada e impedida de estar presente em tal audiência;
6- Bem como ficou impossibilitada e impedida de praticar quaisquer atos judiciais…
7- Ficou mesmo impossibilitada e impedida de praticar atos de outra natureza, tendo, nomeadamente ficado impossibilitada de proceder, por si, à comunicação de tal facto ao Tribunal ora recorrido.
8- Reafirme-se: na data da realização da audiência de julgamento, em consequência da doença (súbita, imprevisível e incapacitante), a mi. mandatária do Recorrente ficou impossibilitada e impedida de comparecer em tal audiência bem como ficou impossibilitada e impedida de, por si, proceder a qualquer comunicação ao Tribunal ora recorrido, bem como ficou impedida de praticar quaisquer atos judiciais, nomeadamente de alegar justo impedimento para a sua não presença.
9- O Tribunal recorrido não tinha quaisquer indícios de que a comunicação que lhe foi prestada pela mi. advogada Dr.ª A… (informando que a mi. mandatária do Recorrente se encontrava com síndrome vertiginoso e, em consequência, impedida de estar presente bem como de praticar quaisquer atos no processo, próprios da profissão de advogada e de outra natureza) não era verdadeira.
10 - A mi. mandatária do Recorrente esteve impedida de praticar quaisquer atos próprios da sua profissão de advogada (para além de outros) até ao dia 24/09/2021 por força da doença súbita, imprevisível e incapacitante de que foi acometida.
11- No dia em que cessou a incapacidade, de imediato, a mi. mandatária do Recorrente, remeteu ao Tribunal o competente requerimento comunicando o seu impedimento e invocando a existência de justo impedimento, oferecendo de imediato a competente prova.
12 - A mi. mandatária do Recorrente deu cumprimento, logo que lhe foi possível, ao disposto no art.º 140º, n.º 1, conjugado com o n.º 1, do art.º 603º, in fine.
13- Não poderia a mi. mandatária do Recorrente, contrariamente ao que se fez constar do douto despacho recorrido, “ter feito chegar ao processo um requerimento nesse sentido, alegando a factualidade respectiva e requerendo em conformidade o adiamento da audiência e, juntando a respectiva prova ao abrigo do disposto no art.º 140º, n.º 1 e 2 do CPC.”
14- Porquanto, por força da doença súbita, imprevisível e incapacitante, de que foi acometida, ficou impedida e impossibilitada, totalmente, de praticar quaisquer atos próprios da profissão de advogado ou de qualquer outra natureza.
15- O incidente de justo impedimento apresentado deveria ter sido recebido e, no mínimo, caso não se entendesse como prova bastante, o competente atestado médico apresentado bem como a referência à comunicação recebida pelo Tribunal, serem ordenadas as diligências probatórias reputadas necessários, procedendo-se, a final, à decisão de provimento, declarando-se a nulidade da audiência de discussão e julgamento em causa, procedendo-se a nova marcação e aos ulteriores trâmites processuais.
16 - Ao assim não entender, o Tribunal a quo violou o exato entendimento do disposto nos n.ºs 1 e 2, do art.º 140º, conjugado com o n.º 1, do art.º 603º, in fine, ambos do CPC.
Sem conceder, nem conceber, com o devido respeito, subsidiariamente, sublinhe-se,
17- Realizada a audiência de julgamento (como já se alegou, em desrespeito pelo legal formalismo, sem a presença da mandatária do Recorrente, sem a observância do princípio do contraditório, o que constitui nulidade, como já se invocou) o Tribunal recorrido considerou provados, e bem, os factos constantes dos pontos 1 a 15 e 20 a 21, dos “Factos provados”, com base na prova documental produzida.
18- Mas o Recorrente não se conforma com a decisão proferida quanto à matéria de facto ínsita nos pontos 16 a 19 dos “Factos Provados” admitindo, todavia, como possível a exegese efetuada pelo Tribunal a quo tendo em conta a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento a qual foi realizada, reafirme-se, com inobservância das formalidades legais e do princípio do contraditório.
19 - De facto, a matéria essencial em discussão (a validade do contrato promessa de compra e venda celebrado em 09.02.2011, entre o aqui Recorrente e a credora reclamante S…) foi igualmente objeto de análise e discussão no processo executivo 4785/09.0TCLRS, do Juízo de Execução de Loures (em que foram partes os mesmos intervenientes, ou seja, o Recorrente e os credores reclamantes S… e o BCP, SA), sendo que aí foram considerados provados factos diversos, nomeadamente reconhecendo-se a validade de tal contrato, decisão esta confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, na sequência do recurso interposto pelo aqui requerente, BCP, SA (Acórdão proferido em 17/04/2018, na 7ª Secção, Proc. n.º 4785/09.0TCLRS-A.L1).
20- Reafirme-se, o Recorrente não se conforma com apreciação feita pelo Tribunal a quo no que respeita aos factos constantes dos pontos 16. a 19., nomeadamente quanto à referida vontade real dos contraentes no contrato promessa em crise e ao fim pretendido com a celebração de tal negócio (que o ora Recorrente se propõe provar em audiência de julgamento a realizar em primeira instância, a ser ordenada nos termos e fundamentos supra já alegados).
Ainda, sem conceder, nem conceber, sempre com o devido respeito, e, mais uma vez, subsidiariamente, considerando, a factualidade dada por provada na douta sentença recorrida,
21- Com relevo para a decisão da causa, sendo um dos temas da prova, não ficou provado que a credora reclamante S… vivia, desde 2012, maritalmente com o ora Recorrente.
22- Também não ficou provado que o Recorrente, em conjugação de esforços e vontades com a Credora reclamante (que viria a ser sua esposa a partir de 28/05/2016), tivesse(m) praticado quaisquer atos suscetíveis de criar ou agravar a situação com que o Recorrente se viu confrontado em 31/07/2017, quando foi requerida a sua insolvência.
23- Considerando que a factualidade dada por provada pelo Tribunal a quo é a correspondente à verdade dos factos, a decisão a proferir, após subsunção ao direito, não poderá ser a qualificação da insolvência do Recorrente como culposa.
24- Aquela factualidade, sempre com o devido respeito, não preenche os requisitos exigidos pelos invocados artigos 185º e 186º, n.ºs 1, 2 al. b) e n.º 4, do CIRE.
25- Os factos considerados como provados tiveram lugar até 4 anos e 6 meses antes do pedido de insolvência (que ocorreu em 31/07/2017).
26- O casamento do Recorrente com a credora reclamante, celebrado em 28/05/2016, ocorreu mais de 3 anos e 5 meses depois do último ato alegadamente praticado por ambos (ou seja a transação judicial efetuada em 27/12/2012, no processo 5974/12.6T2SNT).
27- O Recorrente, por si, não praticou, com culpa, qualquer ato suscetível de o colocar em situação de insolvência ou, muito menos, de agravar a sua situação sendo que, à data da outorga do contrato promessa em causa (09-02-2011) nada fazia prever que o mesmo viesse a ser confrontado com o facto de ser requerida a sua insolvência.
28- Os únicos créditos em que o Recorrente é o devedor principal, contraídos por si, são os titulados pelo requerente B…, SA.
9- Sendo os restantes, de valor avultado, resultantes do não pagamento dos créditos contraídos pelas sociedades M… SA e A… Lda., os quais, atenta a sua qualidade de sócio sem quaisquer responsabilidades de gerência, garantiu através de fiança (porque a tanto foi obrigado pelas Instituições Bancárias em causa, sob pena de não serem concedidos tais créditos àquelas Sociedades que ficariam, assim, impedidas de prosseguirem a sua atividade comercial).
30- Resulta igualmente dos Autos e Apensos, que o requerente B…, SA, apresentou a sua reclamação de créditos (relativa aos créditos garantidos pela hipoteca voluntária do imóvel objeto do prometido contrato de compra e venda, em 18/03/2010) sem que, à data, o Recorrente estivesse em incumprimento (o que ocorreu no processo n.º 4785/09.0TCLRS, do Juízo de Execução de Loures, proposto pela Caixa de Crédito …, CRL, no valor de 27.665,59€ no qual o Recorrente era executado, enquanto fiador da sociedade M… SA conjuntamente com mais seis co-executados, para além da sociedade devedora…)!
31- Foi a partir de tal situação (ocorrida no ano de 2010), à qual acresceram outras decorrentes dos incumprimentos das Sociedade já identificadas de que era fiador, que o Recorrente, sem que nada tivesse feito para tal, foi colocado numa situação, absolutamente indesejada, de incapacidade de cumprir os seus compromissos.
32- O Recorrente sempre teve a expectativa de que os compromissos por si assumidos, enquanto fiador, fossem cumpridos pelas Sociedades devedoras.
33- Reafirme-se, o ora Recorrente não praticou quaisquer atos suscetíveis de criar ou agravar, artificialmente, passivos ou prejuízos, nem celebrou quaisquer negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas.
34 - E admitindo-se que o tenha feito, nos termos dados por provados na douta sentença recorrida, tal ocorreu apenas até 19/12/2012 (data em que foi efetuada, no Proc. 5974/12.6T2SNT, a transação judicial já referida), data a partir da qual, mesmo nos termos dos “Factos provados” não foram praticados quaisquer outros atos pelo Recorrente suscetíveis de o colocar em situação de insolvência ou, muito menos, de agravar a sua situação.
35- Nunca foi intentada qualquer ação declarativa ou executiva contra o ora Recorrente, enquanto devedor principal, porquanto o mesmo sempre foi cumpridor das suas obrigações, até ao momento em que, por via das fianças prestadas, foi objeto de execução.
36- A prova documental existente nos autos, bem como nos processos de execução que foram intentados contra o Recorrente fundamenta a qualificação da insolvência do Recorrente como fortuita, como é parecer do mi. Administrador de Insolvência, como o conhecimento que lhe advém do exercício das suas funções no processo em causa.
37- Ao assim não entender, o Tribunal a quo violou o exato entendimento do disposto nos invocados art.ºs 185º e 186º, n.ºs 1, 2 al. b) e n.º 4, do CIRE.
Por seu turno, contra-alegou o Ministério Público:
1 - A simples comunicação, na data e hora do julgamento, a dar conta que a I mandatária do insolvente estava impossibilitada de comparecer em virtude de se encontrar com síndrome vertiginoso, sem que, em momento algum, tenha sido invocado o justo impedimento ou pedido o adiamento da audiência de julgamento, nem tendo sido oferecida qualquer prova, não configura uma situação de justo impedimento.
2 - A invocação de justo impedimento efectuada pela I mandatária do insolvente após (sete) dias da data da audiência de discussão e julgamento é claramente extemporânea.
3- A falta ao julgamento por parte da I mandatária do insolvente foi de imediato e correctamente apreciada e decidida pela Mma Juíza, que entendeu, e bem, que se devia prosseguir com a realização da audiência de discussão e julgamento, uma vez que nada foi requerido nem invocado pela I mandatária do insolvente.
4- O recorrente impugnou os factos dados como provados nos factos 16 a 19, mas não deu cumprimento às exigências constantes do art.º 640.º do CPC, razão pela qual o recurso deve ser rejeitado no tocante à matéria de facto.
5- Embora os principais actos praticados pelo insolvente e a «credora» S… (assinatura do contrato promessa, acção de execução específica e transacção judicial) tenham sido praticados fora da janela temporal dos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência, está demonstrado que se tratou de uma actuação conluiada entre ambos, que se prolongou no tempo e continua a produzir efeitos neste momento e que lhes permite manter-se a salvo dos credores (e, conjuntamente com o beneficio da exoneração do passivo restante, permite ao insolvente não pagar o crédito titulado pela hipoteca, arrecadando para o agregado familiar o alegado valor em dívida de 300 000,00€).
6- A conduta ilícita é continuada no tempo, ocorrendo o seu termo dentro do período a que alude o art.º 186º n.º 1 do CIRE, pelo que está preenchida a previsão da alínea b) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
7- Inexiste qualquer motivo para ser concedida razão ao recorrente, pelo que deve a douta decisão recorrida ser mantida, negando-se provimento ao recurso.
Foram colhidos os vistos.
2- Cumpre apreciar e decidir:
As alegações de recurso delimitam o seu objecto, conforme resulta do teor das disposições conjugadas dos artigos 608º, nº2, 5º, 635º e 639º, todos do CPC.
As questões a dirimir consistem em aquilatar:
- Da situação de justo impedimento.
- Da impugnação da matéria de facto dos pontos 16 a 19 dos factos assentes.
- Da qualificação da insolvência.
A matéria de facto delineada na 1ª. Instância foi a seguinte:
1. Por requerimento apresentado em 31.07.2017 o credor Banco …, S.A. requereu a declaração de insolvência de T….
2. Foi proferida sentença de declaração de insolvência datada de 13/9/2017 e publicada no portal citius a 18/9/2017.
3. A Assembleia de Credores para apreciação do Relatório realizou-se no dia 30 de Outubro de 2017, pelas 14:00 horas, vindo a decidir pela proposta de prosseguimento dos autos para liquidação do imóvel prédio urbano sito…, Azenhas do Mar, freguesia de Colares, concelho de Sintra, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Sintra, sob o n.º …, freguesia de Colares, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …, apreendido para a massa Insolvente.
4. Sobre o imóvel prédio urbano sito na …, Azenhas do Mar, freguesia de Colares, concelho de Sintra, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º …, freguesia de Colares, consta inscrição de hipotecas a favor do credor B…, S.A, datadas de 19.02.2008, no valor global de €436.514,06.
5. Estavam presentes na Assembleia de Credores o Administrador de Insolvência, a mandatária do Insolvente e os credores B… e Caixa de Crédito … CRL.
6. Nos presentes autos de insolvência S… reclamou, nos termos do art.º 128º do CIRE, um crédito no montante de €300.000,00, invocando o direito de retenção sobre o imóvel identificado no ponto 4 supra.
7. Por decisão proferida em 14.06.2017 no âmbito do processo nº 4785/09.0TCLRS-A, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo de Execução de Loures, Juiz 2, apenso ao respectivo processo executivo, o crédito da reclamante S… reclamado nestes autos de insolvência foi graduado em 1º lugar por força do direito de retenção, relativamente ao produto da venda do prédio urbano sito na…, Azenhas do Mar, freguesia de Colares, concelho de Sintra, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º…., freguesia de Colares, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …. Em 2º lugar foi graduado o crédito do credor B…, S.A, garantido por hipotecas voluntárias constituídas a seu favor pelo executado T…, no valor global de €436.514,06, tudo conforme teor da sentença que consta como documento que integra a certidão junta com o R/ 29.01.2019, fls. 16 e ss do processo digital, que se dá por reproduzido.
8. No âmbito do apenso de reclamação de créditos em referência no ponto 7 dos factos provados, o banco B…, S.A e S… apresentaram-se na acção como credores reclamantes.
9. No âmbito da acção de Processo ordinário com o n.º 5974/12.6T2SNT, a aqui reclamante S… demandou o aqui Insolvente, T…, invocando a celebração de um contrato promessa de compra e venda, datado de 9 de Fevereiro de 2011, no âmbito do qual consta que este prometeu vender e aquela prometeu comprar o prédio urbano sito na Avenida …, Azenhas do Mar, pelo valor de €300.000,00, e a promitente compradora pago, nessa data, ao promitente vendedor, a quantia de €150.000,00 a título de sinal. Ainda, a posse do imóvel e o incumprimento definitivo do alegado contrato.
10. Deduziu como pedido que o tribunal «se digne considerar resolvido o contrato promessa celebrado por facto exclusivamente imputável ao réu, devendo o mesmo ser condenado a pagar à autora a quantia de trezentos mil euros, quantia correspondente ao dobro do preço entregue – art.º 442º, n.º 2 do Código Civil.
(…) seja o réu condenado a reconhecer o direito legal de retenção sobre a fracção objecto dos presentes autos, nos termos do art.º 755º, al. f) do Código Civil.
Para o caso de assim não se entender, requer se digne a proferir decisão judicial que, substituindo-se à declaração de vontade da titularidade do móvel (…) a favor da autora, livre de quaisquer ónus ou encargos.», tudo conforme teor do documento que integra a certidão junta com o R/ 29.01.2019, fls. 41 e ss do processo digital, que se dá por reproduzido.
11. Em 27 de Dezembro de 2012 autora e réu, ou seja, respectivamente, S…, apresentaram na susodita acção (referida nos pontos 9 e 10 acima) um documento intitulado «Transacção Judicial», no âmbito da qual declararam que:
conforme teor do documento junto com o documento que integra a certidão
junta com o R/ 29.01.2019, fls. 55 e ss do processo digital, que se dá por reproduzido.
12. Este acordo foi homologado por decisão judicial datada de 14.01.2013, que decidiu:
conforme teor do documento que integra a certidão junta com o R/ 29.01.2019, fls. 60 e ss do processo digital, que se dá por reproduzido.
13. A sentença referida no ponto 12 acima transitou em julgado em 20.02.2013.
14. Em 12 de Janeiro de 2018, o Administrador de Insolvência procedeu à junção no presente processo de insolvência a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos a que alude o artigo 129º do CIRE, reconhecendo todos os créditos conforme reclamados, entre eles contando-se o crédito de S… no valor de €300.000,00 como crédito garantido por Direito de Retenção.
15. Foi reconhecido ao B…, S.A. um crédito de natureza garantida – por hipoteca voluntária – sobre o prédio urbano sito na…, Azenhas do Mar, freguesia e Colares, concelho de Sintra, descrito na 2ª. CRP de Sintra sob o n.º …, freguesia de Colares, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …-, tal como reclamado.
16. O Insolvente T… e a reclamante S…, celebraram o contrato que denominaram de contrato promessa de compra e venda relativo ao imóvel prédio urbano sito…, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, conforme documento junto que integra a certidão junta com o R/ 29.01.2019, fls. 47 e ss do processo digital, que se dá por reproduzido, nele declarando, sem que essa fosse a real vontade das partes, que prometiam vender e reciprocamente prometiam comprar, pelo preço de €300.000,00 o imóvel objecto do contrato.
17. E falsamente declararam que havia sido entregue pela reclamante Suzi Silva e recebido pelo aqui Insolvente T… a quantia de €150.000,00, a título de sinal.
18. Agiram os dois outorgantes com o propósito de ficcionar a existência de um crédito que sabiam não existir na esfera patrimonial de S…, com vista a propor a acção judicial referida no ponto 9 supra.
19. De igual modo, ao propôs a acção judicial referida em 9, a reclamante S… actuou de forma concertada com o ora Insolvente T…, com o propósito alcançado de obter uma decisão judicial de reconhecimento de um crédito com direito de retenção sobre o imóvel sito na …, bem sabendo que esse crédito não existia, e sabendo que o imóvel era objecto de hipoteca por parte do credor B…, S.A., com o fim único de frustrar a satisfação do crédito deste em sede de processo executivo ou outro.
20. O Insolvente T… e a credora reclamante S… casaram no dia 28 de Maio de 2016, tendo celebrado convenção antenupcial estipulando o regime da separação de bens documento que integra a certidão junta com o R/ 29.01.2019, fls. 127 e ss do processo digital, que se dá por reproduzido.
21. Por decisão transitada em julgada, proferida no apenso A deste processo, o crédito reclamado por S… nos termos do art.º 128º do CIRE no montante de €300.000,00, invocando o Direito de Retenção sobre o imóvel identificado em 4, não foi reconhecido, tendo sido excluído da lista de créditos reconhecidos, com fundamento na «ocorrência de uma simulação fraudulenta, cuja consequência necessária é a declaração de nulidade do negócio simulado, a qual é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e, inclusive (cf. art.º 286º do Código Civil).»
Facto não provado:
- Em 9 de Fevereiro de 2011 ou noutra data, a credora S… pagou a título de sinal, no âmbito do contrato promessa de compra e venda do prédio urbano sito na…, Azenhas do Mar, celebrado com o ora Insolvente T…, a quantia de €150.000,00.
Vejamos:
Discorda o apelante da sentença proferida, bem como, nos termos plasmados no nº. 3 do art.º 644º do CPC., da decisão que julgou improcedente o incidente de justo impedimento por extemporâneo, que ora cumpre conhecer.
Tendo em conta o disposto no nº. 2 do art.º 663º em conjugação com o nº. 3 do art.º 607º, ambos do CPC., incumbe aditar a seguinte factualidade, a qual se mostra pertinente para a apreciação do recurso atinente ao justo impedimento:
- A audiência de discussão e julgamento foi agendada por acordo para o dia, 20-9-2021, pelas 9,30 horas.
- Consta da acta de julgamento o seguinte:
«Pelas 09:10 horas foi o Tribunal informado que a ilustre mandatária de T…, a saber, Dra. A…, se encontrava incapacitada de comparecer em virtude de se encontrar com um síndrome vertiginoso, o que de imediato comuniquei à Mm.ª Juiz.
- Pelas 09:51 horas, pela Mm.ª Juiz foi declarada aberta a audiência e proferido o seguinte,
DESPACHO
Sem prejuízo da comunicação realizada telefonicamente e acima referida não deu entrada no processo qualquer requerimento no qual a Ilustre mandatária manifeste a intenção de pretender comparecer, nem foi transmitido, na referida comunicação oral, que a mesma tenha requerido o adiamento da audiência de julgamento.
Com efeito, limitou-se a proceder, oralmente, à comunicação da impossibilidade de comparência, nada requerendo, pelo que, desconhece o tribunal se, por força da incapacidade manifestada, pretendia o adiamento audiência. Igualmente, não indicou impossibilidade de se fazer representar por outro colega.
Assim, inexiste qualquer fundamento para não prosseguir com os trabalhos».
- Por requerimento datado no citius, em 27-9-2021 foi suscitado incidente de justo impedimento.
- Por despacho proferido em 24-11-2021 foi decidido a final: «Assim, a invocação do justo impedimento, a posteriori, após a realização a audiência
final, mostra-se extemporâneo. Outrossim, pelos fundamentos aduzidos, inexiste nulidade processual que afecte a prova produzida em audiência de julgamento.
Pelo exposto, improcede a pretensão do insolvente, não se admitindo o incidente de justo impedimento por extemporâneo, mais julgando a inexistir qualquer nulidade».
Ora, na situação vertente, a audiência de discussão e julgamento, tendo por base o princípio da cooperação, foi marcada com a aquiescência das partes e do tribunal.
Nos termos do disposto no nº. 5 do art.º 151º do CPC., os mandatários judiciais devem comunicar prontamente ao tribunal quaisquer circunstâncias impeditivas da sua presença.
Com efeito, uma vez designada audiência por acordo, a mesma não poderá ser adiada, salvo se houver impedimento do tribunal ou ocorra uma situação de justo impedimento, conforme resulta do nº. 1 do art.º 603º do CPC.
Dispõe o nº. 1 do art.º 140º do CPC. que se considera justo impedimento, o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do acto.
Aludindo o nº. 2 do preceito que, a parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respectiva prova.
O conceito de justo impedimento sustenta-se na não imputabilidade do facto obstaculizador da prática atempada do acto ao mandatário ou à parte, precisamente por se evidenciar que não houve culpa na sua produção.
Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC. anotado, vol. I «Com tal regime pretende-se evitar que, a pretexto de qualquer evento, pudesse ser perturbada a marcha processual ou, mais do que isso, pudessem ser afectados actos já praticados, tanto mais que sempre restaria uma larga margem de incerteza quanto à sua imputabilidade, na medida em que tais eventos ocorrem na esfera particular do sujeito envolvido, tornando difícil o seu escrutínio».
Assim, incumbe à parte faltosa a alegação e prova da sua falta de culpa, ou seja, a ocorrência de um evento impeditivo.
Segundo Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, Almedina «Com a redacção actual, o que deverá relevar decisivamente para a verificação do justo impedimento – mais do que a cabal demonstração da ocorrência de um evento totalmente imprevisível e absolutamente impeditivo da prática atempada do acto – é a inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário no excedimento ou ultrapassagem do prazo peremptório, a qual deverá ser valorada em consonância com o critério geral estabelecido no nº. 2 do art.º 487º do C. Civil e sem prejuízo do especial dever de diligência e organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das causas».
Como se disse no Ac. do STJ. de 13-7-2021, in www.dgsi.pt «É manifesto que a decisão que a lei atribui ao julgador (art.º 140º, 2, CPC.) depende da alegação de factos que habilitem o tribunal a formular um juízo sobre a conduta culposa da parte, do mandatário ou dos seus auxiliares, sendo essa culpa apreciada à luz do critério geral do art.º 487º, 2 do CCiv.».
No caso dos autos, aquando do dia do julgamento, não foi invocado em concreto, qualquer justo impedimento, nem foi requerido o adiamento do julgamento.
Os factos trazidos ao conhecimento do tribunal foram parcos e insuficientes.
Invocou-se a impossibilidade de comparecer ao julgamento por acometimento de um síndrome vertiginoso, mas sem se esclarecer se tal evento foi imprevisto, ocorrido naquele momento e estranho à vontade da parte.
Por seu turno, o atestado médico apresentado, com o requerimento do justo impedimento, não esclarece qual o tipo de doença que impossibilitava o exercício da profissão pelo período de cinco dias, limitando-se a dizer: «A Srª. Drª. A…, Advogada, se encontra doente, motivo pelo qual está impossibilitada de exercer a sua profissão, por um período provável de cinco dias».
O atestado não certifica factos concretos que permitam comprovar se a doença da Mandatária foi inesperada e incapacitante com surgimento naquele momento.
Como se escreveu no Ac. TRG de 23-6-2004, no mesmo site «A doença do Advogado da parte só constitui justo impedimento se for súbita e tão grave que o impossibilite, em absoluto de praticar o acto, avisar o constituinte ou substabelecer o mandato».
Se não são mencionadas as circunstâncias específicas que permitam considerar que houve efectivamente um evento não imputável ao Mandatário, o tribunal não poderá avaliar se houve justo impedimento.
Pode-se admitir que uma doença seja um acontecimento alheio à vontade da parte ou mandatário, mas nem toda a doença obsta à prática de um acto processual.
O justo impedimento, como escreve Teixeira de Sousa, in CPC., não se basta com uma mera dificuldade ou uma dificuldade acrescida na prática do acto, exige a verdadeira e radical impossibilidade da prática do acto.
Ora, a mandatária não alegou e muito menos provou, ter tentado subestabelecer noutro colega, ainda para mais, quando foi uma colega com escritório no mesmo edifício que informou o tribunal do ocorrido.
A prova oferecida, consistente no atestado médico junto, menciona que a doença seria pelo período de cinco dias, ou seja, de 20-9-2021 a 25-9-2021.
Porém, o incidente só foi suscitado em 27-9-2021, ou seja, já depois de ter cessado o evento.
Na data designada para julgamento, como resulta da factualidade, apenas o tribunal foi informado de que a Mandatária se encontrava incapacitada de comparecer devido encontrar-se com síndrome vertiginoso, nada mais sendo requerido.
Só decorridos sete dias foi deduzido incidente de justo impedimento, onde a Srª. Mandatária veio invocar que por força da doença súbita, imprevisível e incapacitante de que foi acometida, esteve impedida de praticar quaisquer actos próprios da sua profissão.
Como se refere no Ac. RC. de 20-4-2018, in www.dgsi.pt. «O atestado médico que declara a impossibilidade de exercício da profissão por parte do advogado/mandatário, sem esclarecer a gravidade da doença ou desacompanhado de outros meios de prova que demonstrem essa gravidade, não é suficiente para estabelecer o justo impedimento».
Efectivamente, quer das justificações apresentadas aquando da audiência de julgamento, quer aquando da formalização do incidente, jamais poderemos concluir que no caso em apreço, se materializou uma situação de justo impedimento, pois, a ausência de factos não permite aferir sobre a impossibilidade não culposa da presença da Mandatária na data do julgamento.
Mas, ainda que tal se tivesse apurado, ainda assim, a apresentação do incidente foi tardia, pois, só após a cessação do invocado evento foi oferecida prova, atestando uma ocorrência já cessada.
Destarte, não assiste razão ao apelante, nenhum reparo merecendo o despacho proferido, decaindo a sua pretensão neste segmento do recurso.
Também não se conforma o apelante com a apreciação feita pelo tribunal, a quo, quanto aos factos assentes constantes dos pontos 16 a 19.
Para tanto, sustenta-se no contexto de se ter realizado o julgamento sem a presença da sua mandatária, com violação do princípio do contraditório, bem como, a matéria essencial em discussão ter sido objecto de análise num processo executivo.
Ora, quanto à violação do contraditório, tal aspecto já foi apreciado supra, restando-nos apenas acrescentar que não houve qualquer violação de tal princípio, susceptível de conduzir a qualquer nulidade.
Quanto à impugnação fáctica, dispõe o nº. 1 do art.º 640º do CPC. que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: para além dos concretos factos que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, devia ser proferida.
Como alude Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, a pág. 123, em anotação àquele art.º 640º: «Encontra correspondência no art.º 685º-B do anterior CPC., mas com algumas alterações. Desde logo, o reforço do ónus de alegação, devendo o recorrente, sob pena de rejeição, indicar a resposta que no seu entender deve ser dada às questões de facto impugnadas. Em segundo lugar, tornando inequívoco que, relativamente a provas gravadas, basta ao recorrente a indicação exacta das passagens da gravação, não sendo em caso algum obrigatória a sua transcrição».
E, ainda o mesmo autor, na obra indicada, a fls. 126 e 128 «Com o art. 640º do novo CPC. o legislador visou dois objectivos: sanar dúvidas que o anterior preceito suscitava e reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a decisão alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação nas conclusões dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados;
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos».
Com efeito, as conclusões de recurso balizam as questões a dilucidar, ou seja, têm a função de delimitar o objecto do recurso, como resulta do disposto no nº3 do art.º 639º do CPC.
As conclusões devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que o recorrente pretende obter do tribunal superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo (cfr. Código de Processo Civil Anotado, António Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Pires de Sousa, vol. I, pág. 767-768).
Porém, na situação em apreço, compulsadas as conclusões do recurso apresentado, constatamos que ali não se encontra vertida qual a razão ou razões concretas da discordância do apelante com o tribunal a quo.
O apelante apenas menciona que o contrato promessa de compra e venda foi apreciado num processo executivo, sem mais.
Assim, por incumprimento dos requisitos supra aludidos e impostos por força do disposto no art.º 640º do CPC., não se admite a impugnação fáctica, decaindo nesta parte o recurso, com a consequente manutenção dos factos provados e não provados narrados na sentença.
Mas, e ex abundanti, sempre se dirá que compulsada a motivação da matéria de facto atinente aos factos questionados, ali se faz uma extensa análise sobre a sua demonstração e confirmação.
Assim sendo, também não lhe assiste razão nesta parte.
Por último, entende o apelante que não se encontram preenchidos os requisitos que materializam a caracterização da insolvência como culposa.
Nos autos foi declarada a insolvência culposa, com base no disposto no nº. 1 e nº. 2, al. b) do art.º 186º do CIRE.
Com efeito, dispõe o preceito:
1.A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2. Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas.
Provada qualquer uma das situações enunciadas nas alíneas do citado n.º 2, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
Pode-se concluir que, sejam presunções juris et de jure ou factos-índice, a verdade é que o legislador, estando preenchida alguma das situações previstas no nº 2 do citado preceito legal, prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de conduta culposa e da sua adequação para a insolvência ou para o seu agravamento.
Assim, a simples ocorrência de alguma das situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do aludido art.º 186º, conduz à atribuição de carácter culposo à insolvência, ou seja, à qualificação de insolvência como culposa (neste sentido, por todos, Carvalho Fernandes, J. Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. II, Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência).
Compulsada a factualidade apurada, consta da mesma o seguinte:
- Nos presentes autos de insolvência S… reclamou, nos termos do art.º 128º do CIRE, um crédito no montante de €300.000,00, invocando o direito de retenção sobre o imóvel.
- Por decisão proferida em 14.06.2017 no âmbito do processo nº 4785/09.0TCLRS-A, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo de Execução de Loures, Juiz 2, apenso ao respectivo processo executivo, o crédito da reclamante S… reclamado nestes autos de insolvência foi graduado em 1º lugar por força do direito de retenção, relativamente ao produto da venda do prédio urbano sito na Avenida …, Azenhas do Mar, freguesia de Colares, concelho de Sintra, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º …, freguesia de Colares, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo … Em 2º lugar foi graduado o crédito do credor B…, S.A, garantido por hipotecas voluntárias constituídas a seu favor pelo executado T…, no valor global de €436.514,06, tudo conforme teor da sentença que consta como documento que integra a certidão junta com o R/ 29.01.2019, fls. 16 e ss do processo digital, que se dá por reproduzido.
- No âmbito do apenso de reclamação de créditos em referência no ponto 7 dos factos provados, o banco B…, S.A. e S… apresentaram-se na acção como credores reclamantes.
- No âmbito da acção de Processo ordinário com o n.º 5974/12.6T2SNT, a aqui reclamante S… demandou o aqui Insolvente, T…, invocando a celebração de um contrato promessa de compra e venda, datado de 9 de Fevereiro de 2011, no âmbito do qual consta que este prometeu vender e aquela prometeu comprar o prédio urbano sito…, Azenhas do Mar, pelo valor de €300.000,00, e a promitente compradora pago, nessa data, ao promitente vendedor, a quantia de €150.000,00 a título de sinal. Ainda, a posse do imóvel e o incumprimento definitivo do alegado contrato.
- Deduziu como pedido que o tribunal «se digne considerar resolvido o contrato promessa celebrado por facto exclusivamente imputável ao réu, devendo o mesmo ser condenado a pagar à autora a quantia de trezentos mil euros, quantia correspondente ao dobro do preço entregue – art.º 442º, n.º 2 do Código Civil.
(…) seja o réu condenado a reconhecer o direito legal de retenção sobre a fracção objecto dos presentes autos, nos termos do art.º 755º, al. f) do Código Civil.
Para o caso de assim não se entender, requer se digne a proferir decisão judicial que, substituindo-se à declaração de vontade da titularidade do móvel (…) a favor da autora, livre de quaisquer ónus ou encargos.», tudo conforme teor do documento que integra a certidão junta com o R/ 29.01.2019, fls. 41 e ss do processo digital, que se dá por reproduzido.
- Em 27 de Dezembro de 2012 autora e réu, ou seja, respectivamente, S… e T…, apresentaram na susodita acção, um documento intitulado «Transacção Judicial».
- Este acordo foi homologado por decisão judicial datada de 14.01.2013.
- A sentença referida transitou em julgado em 20.02.2013.
- Em 12 de Janeiro de 2018, o Administrador de Insolvência procedeu à junção no presente processo de insolvência a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos a que alude o artigo 129º do CIRE, reconhecendo todos os créditos conforme reclamados, entre eles contando-se o crédito de S… no valor de €300.000,00 como crédito garantido por Direito de Retenção.
- Foi reconhecido ao B…, S.A. um crédito de natureza garantida – por hipoteca voluntária – sobre o prédio urbano sito na …, Azenhas do Mar, freguesia e Colares, concelho de Sintra, descrito na 2ª. CRP de Sintra sob o n.º …, freguesia de Colares, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo… -, tal como reclamado.
- O Insolvente T… e a reclamante S…, celebraram o contrato que denominaram de contrato promessa de compra e venda relativo ao imóvel prédio urbano sito na…, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, conforme documento junto que integra a certidão junta com o R/ 29.01.2019, fls. 47 e ss do processo digital, que se dá por reproduzido, nele declarando, sem que essa fosse a real vontade das partes, que prometiam vender e reciprocamente prometiam comprar, pelo preço de €300.000,00 o imóvel objecto do contrato.
- E falsamente declararam que havia sido entregue pela reclamante S… e recebido pelo aqui Insolvente T… a quantia de €150.000,00, a título de sinal.
- Agiram os dois outorgantes com o propósito de ficcionar a existência de um crédito que sabiam não existir na esfera patrimonial de S…, com vista a propor a acção judicial.
- De igual modo, ao propôr a acção judicial, a reclamante S… actuou de forma concertada com o ora Insolvente T…, com o propósito alcançado de obter uma decisão judicial de reconhecimento de um crédito com direito de retenção sobre o imóvel sito na Avenida …, bem sabendo que esse crédito não existia, e sabendo que o imóvel era objecto de hipoteca por parte do credor BCP, S.A., com o fim único de frustrar a satisfação do crédito deste em sede de processo executivo ou outro.
- O Insolvente T… e a credora reclamante S… casaram no dia 28 de Maio de 2016, tendo celebrado convenção antenupcial estipulando o regime da separação de bens.
- Por decisão transitada em julgada, proferida no apenso A deste processo, o crédito reclamado por S… nos termos do art.º 128º do CIRE no montante de €300.000,00, invocando o Direito de Retenção sobre o imóvel identificado em 4, não foi reconhecido, tendo sido excluído da lista de créditos reconhecidos, com fundamento na «ocorrência de uma simulação fraudulenta, cuja consequência necessária é a declaração de nulidade do negócio simulado, a qual é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e, inclusive (cf. art.º 286º do Código Civil).
Ora, os factos são eloquentes só por si, materializando o disposto no art. 186º, nº. 1, nº 2. al. b) e 4 do CIRE.
E não se diga que extravasam o período temporal de três anos, pois, como se alude na sentença recorrida «O plano é colocado em marcha em 2012 com a celebração do contrato promessa, todavia, o seu escopo só é atingido com a apresentação da sentença judicial reconhecendo o crédito e o direito de retenção sobre o imóvel, em sede de processo executivo, vendo a graduação do mesmo priorizada em relação ao credor hipotecário por sentença de 14-6-2019 e, num segundo momento, na presente acção – com a reclamação de créditos no âmbito do art. 128º do CIRE. Assim, a conduta ilícita é continuada no tempo, ocorrendo o seu termo dentro do período a que alude o art.º 186º, nº. 1 do CIRE».
Destarte, nenhum reparo merece a sentença proferida, decaindo na totalidade as conclusões do recurso apresentado.
3- Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença proferida.
Custas a cargo do apelante, sem prejuízo de apoio judiciário de que beneficie.
Lisboa, 24-1-2023
Maria do Rosário Gonçalves
Manuel Marques
Pedro Brighton