LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário

Para que conclua que uma parte litigou de má fé não basta que a parte não veja acolhida a sua pretensão ou a sua versão dos factos. Pode defender convicta, séria e lealmente uma posição sem dela convencer o tribunal. As circunstâncias do caso hão-de permitir se conclua que a parte apresentou pretensão ou fez oposição conscientemente infundadas, estar-se perante uma situação em que não deva deixar dúvida razoável sobre a conduta dolosa ou gravemente negligente da parte.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. B................... Lda, com sede ........., Cinfães, requereu injunção contra C................., Lda, para o pagamento da quantia de € 2 175,74, incluídos os juros vencidos de € 36,50, referentes a um fornecimento de bens e serviços, concretizados no fornecimento e colocação de rufos, caleiras e tubos.
Juntou a factura respectiva.
A requerida deduziu oposição.
Nesta, além de arguir a ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir, impugna o alegado pela requerente, nomeadamente que desconhece a requerente, desconhecia a sua existência, nunca contratou nada com a mesma, que a requerente nunca forneceu nem sequer colocou qualquer material em alguma obra da requerida, que a requerida nunca celebrou qualquer contrato com a requerente e desconhece o contrato referida na douta injunção.
Pede a sua absolvição do pedido e a condenação da requerente em multa como litigante de má fé.

Foi realizada a audiência de julgamento.
Nesta, a requerente pediu a condenação da requerida/recorrente em multa e indemnização não inferior a € 350,00 como litigante de má fé, tendo esta respondido que não houve prova de conduta sua censurável.
Proferida sentença, foi a acção julgada procedente e a requerida/recorrente condenada no pedido e, bem assim, em multa de 8 UC e indemnização à requerente, correspondente ao reembolso dos honorários ao seu mandatário, por litigar de má fé.

II. Da condenação como litigante de má fé recorreu a requerida, que alegou e concluiu:
“1) Refuta-se a condenação da Agravante como litigante de má fé, porque nunca faltou á verdade no decorrer do processo, sendo certo que, como já alegado, a prova produzida quanto á celebração do contrato é manifestamente insuficiente.
2) A ré exerceu o seu direito de resposta, procurando evitar uma situação injusta, senão atente-se no facto do senhor Juiz ter que recorrer à sócia gerente da Autora por esta não ter conseguido fazer prova suficiente com a testemunha arrolada pela autora.
3) A Agravante entende que fez um uso legítimo do processo, não tendo actuado com culpa ou má-fé, aliás, como refere o Acórdão da Relação de Coimbra, de 04 de Abril de 1996, BMJ 446º - 336, a responsabilidade por má fé não se basta com a existência de culpa grave ou erro grosseiro, pois implica o requisito essencial da consciência de não ter razão, o que não acontece no presente caso.
4) Nesses sentido, também o Acórdão da relação do Porto, de 24 de Fevereiro de 1992, P. nº 9150666, ao afirmar que “não se verifica a litigância de má-fé se a desconformidade entre o alegado nos articulados de defesa e o provado não releva uma virtualidade suficiente para se concluir pela”(sic)

Deste modo ao decidir como decidiu, o Senhor Doutor Juiz violou, por erro de interpretação o disposto nos artigos 456 e 515 do Código de Processo Civil.

Nestes termos, e nos demais que Vossas Excelências certamente suprirão, deve a presente acção ser julgada provada e procedente, e em consequência, deve revogar-se o despacho ora em crise e, consequentemente, ordenar-se o prosseguimento dos autos (sic).
Assim se fazendo se fará, como habitualmente
JUSTIÇA.”

Não foram apresentadas contra-alegações
Foi mantida a decisão quanto à condenação por má fé.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir.
III. Face ao teor das conclusões, importa apenas decidir se resulta provada conduta da recorrente que deva ser sancionada como litigante de má fé.
IV. Insurgem-se a recorrente contra a condenação em multa e indemnização como litigante de má fé.
Na decisão recorrida foi a recorrente condenado em multa e indemnização à parte contrária por se entender que deduziu oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar e alterou a verdade dos factos relevantes para a decisão e omite factos de igual forma relevantes para a decisão da causa.
O art. 456º do CPC, no seu nº 2, estatui:
“Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
A) - tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
B) - tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
C) - tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
D) - tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
A sanção para tal conduta está prevista no nº 1 – multa e indemnização à parte contrária (a determinar de acordo com o disposto no artigo 457º do mesmo Código), se esta a pedir.
Pela lei processual actual (em vigor desde 1/1/97 – art. 16º do DL 329-A/95, na redacção do DL 180/96, de 29/5), a má fé processual não exige que a parte actue com dolo, basta que acura com negligência grave ou grosseira. Este novo regime ampliou substancialmente o dever de boa fé das partes no processo, ao alegar o tipo de comportamentos que podem ser objecto daquela censura. A sanção por má fé pode ser imposta à parte que actue dolosamente como aquela que se comporta com negligência grave ou grosseira, desrespeitando, desse modo os seus deveres processuais de verdade, lealdade e cooperação.
Na sua actuação no processo estão as partes vinculadas aos deveres de probidade e cooperação, agir de boa fé e cooperar para se obter, com brevidade e eficácia a justa composição do litígio (arts. 266º e 266º-A do C.P.C.). Se a parte, com propósito malicioso pretende convencer o tribunal de um facto ou pretensão que sabe não ser legítima, distorcendo ou omitindo a verdade dos factos, fizer do processo um uso reprovável ou deduz oposição cuja falta de fundamento não pode ignorar, actua de má fé e, por essa razão, pode e deve ser sancionada em multa e indemnização à parte contrária, no caso desta a pedir.
Actua com má fé (material) a parte que, com dolo ou negligência grave, para convencer o tribunal de um facto ou pretensão que sabe ilegítima, distorce ou deturpa a realidade de si conhecida ou omite factos relevantes, também por si conhecidos, para a decisão (violando conscientemente o dever de verdade) bem como a que deduz oposição cuja falta de fundamento não pode ignorar ou fizer do processo uso reprovável (má fé instrumental), entorpecendo a acção da justiça. A sanção adequa-se aquele que, conscientemente, litiga de modo desconforme ao respeito devido ao tribunal, cujo fim é a busca da verdade e a realização da justiça, e, de igual modo, ao seu antagonista no processo.
Uma tal conduta viola aqueles deveres de probidade e cooperação e representa não apenas uma falta de respeito devido ao tribunal, na busca da verdade e realização da justiça, mas também à parte contrária.
Mas a sanção por litigância de má fé pede que a parte que tal conduta adopta actue com dolo ou negligência grave, o que não sucederá, normalmente, com a lide simplesmente temerária ou ousada ou assente em erro, mesmo que grosseiro, com a dedução de pretensão ou oposição que vieram a decair por mera fragilidade da prova e de não se convencer o tribunal da realidade trazida a julgamento ou resultar da discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos.
A simples proposição de uma acção ou contestação, embora sem fundamento, pode não constituir uma actuação dolosa ou mesmo gravemente negligente da parte. A incerteza da lei, a dificuldade em apurar os factos e os interpretar, podem levar as consciências honestas a afirmar um direito que não possuem e a impugnar uma obrigação que devem cumprir. O que releva é que as circunstâncias devam levar o tribunal a concluir que a parte apresentou pretensão ou fez oposição conscientemente infundada (em Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, II, 263). Se na vigência da lei processual, anterior à redacção do DL 329-A/95, subjacente ao disposto no artigo 456º do CPC, existia uma intenção maliciosa, ou má fé em sentido psicológico, e não apenas um a leviandade ou imprudência (má fé em sentido ético), a lei actual apenas exige que exista negligência grave ou grosseira para censurar a parte, quando esta actua com a falta de precaução pela mais elementar prudência que deve ser observada nos usos correntes da vida.
Mas só quando o processo fornece elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente deverá a parte ser censurada como litigante de má fé, o que pede prudência ao julgador, sabendo-se que a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro (a verdade absoluta só está ao alcance da divindade e a humana corre o risco da contingência e relatividade) mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico (cfr. Ac. STJ, de 11.12.2003, no proc. 03B3893, em www.dgsi.pt).
Não basta que a parte não veja acolhida a sua pretensão ou a sua versão dos factos. Pode defender convicta, séria e lealmente uma posição sem dela convencer o tribunal. As circunstâncias do caso hão-de permitir se conclua que a parte apresentou pretensão ou fez oposição conscientemente infundadas, estar-se perante uma situação em que não deva deixar dúvida razoável sobre a conduta dolosa ou gravemente negligente da parte.
Por não se provar determinado facto ou factos, não poderá concluir-se pelo facto contrário (em sede de censura à parte por má fé). Nem será por a parte não provar a veracidade de determinada afirmação que pode concluir-se, só por essa situação negativa, pela falsidade ou desconformidade do alegado com a verdade. Significa apenas que não logrou convencer o tribunal dessa posição. A falta de razão não significa sempre má fé, a não ser que a parte dela tenha consciência e, apesar disso, formule pretensão ou deduza oposição em juízo.

Mas que nos mostra a situação dos autos?
- a requerente/recorrida dedica-se ao fabrico e colocação de rufos, caleiras e tubos;
- no exercício da sua actividade, a requerente forneceu e colocou, a mando da requerida e numa obra que lhe havia sido adjudicada, vários rufes, caleira e tubos, pelo preço de € 2.094,74 (o preço reclamado na injunção);
- a requerida devia proceder ao pagamento da quantia supra referida na data de vencimento da respectiva factura, ou seja, 27 de Novembro de 2003.
Que alegou a recorrente?
Relembremos (no que à questão da má fé pode interessar):
- que desconhece a requerente, desconhecia a sua existência, nunca contratou nada com a mesma;
- que a requerente nunca forneceu nem sequer colocou qualquer material em alguma obra da requerida e
- que a requerida nunca celebrou qualquer contrato com a requerente e desconhece o contrato referida na douta injunção.
Rotundamente, afirma desconhecer a recorrida e nunca com ale ater contratado. São afirmações categóricas que contradizem a verdade (processual, é certo, mas não pode dispor-se de outra) que se apurou.
Ora bem, a recorrente não foi condenada por má fé por não provar a sua alegação. Se assim fosse, assistir-lhe-ia razão. Também não foi censurada por não obter a prova da sua oposição, do bem fundado da defesa que contrapôs à recorrida.
Foi censurada porque se provou o contrário, isto é, que a recorrente contratou com a recorrida, que esta forneceu e colocou, a mando da recorrente e numa obra que lhe havia sido adjudicada, rufos, caleira e tubos, pelo preço de € 2.094,74 (o preço reclamado na injunção);
A recorrente não podia desconhecer estes factos; são factos pessoais que não pode ignorar, pelo que ao alegar uma situação factual contrária, deduz oposição que não pode ignorar sem fundamento, ou melhor, que sabe sem razão e contrária à verdade dos factos que não desconhece. E isto, não por não provar a sua versão ou mesmo simplesmente por se provar a situação alegada pela recorrida, mas porque, além da prova da versão da requerente, articulou uma pretensa realidade factual contrária aquela; articulou factos, para sua defesa, que sabia ou não podia ignorar não corresponderem á verdade.
Não basta vir alegar que a prova produzida quanto á celebração do contrato é insuficiente. A prova bastou para convencer o tribunal da realidade da situação alegada pela requerente. E é evidente que os “factos apurados” apontam para a realidade dessa situação fáctica e para a censura da recorrente.
Tem fundamento a pretensão afirmada nas alegações de que “ambas as partes devem possuir em processo os mesmos poderes, direitos e deveres” e, por terem esse direito (inafastável), assim devem ser tratadas ao longo de todo o processo – o contraditório e a igualdade das partes são princípios basilares do direito processual civil.
E na situação em que se encontra a recorrente, podia encontrar-se a recorrida se do processo resultasse provado o que aquela alegou, quanto á inexistência de contactos e contratos entre as partes ou fornecimentos da requerente. Mas não é essa a situação que o processo revela. O espectro factual provado não permite outra conclusão que não seja que a recorrente deduziu defesa em manifesta oposição aos factos que se provaram, e que não os podia ignorar. Do que se conclui que alegou ou deduziu oposição que sabia sem fundamento ou, usando a sua expressão (com o devido respeito) com a “consciência de não ter razão”.
Não foi questionada a dimensão da multa.
A decisão deve manter-se.
V. Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Porto, 12 de Maio de 2005
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Raínho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira