DUPLA CONFORME
PODERES DA RELAÇÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
SUBSTITUIÇÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Sumário


I – Vigora no nosso sistema de recursos um modelo de substituição ou substitutivo, de acordo com o qual a procedência do recurso importa, em regra, além da revogação da decisão impugnada, a sua substituição por outra emitida pelo tribunal ad quem.
II - Atendendo à razão de ser da irrecorribilidade das situações de dupla conformidade – o presumido acerto da decisão coincidente em ambas as instâncias e a finalidade de concentrar o Supremo Tribunal de Justiça em casos complexos e que gerem dúvidas ou decisões contraditórias – tem que se constatar que, não obstante a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, houve, no plano substancial, uma dupla apreciação da matéria em crise, suscetível de dispensar o terceiro grau de recurso como revista normal.

Texto Integral


Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1.  SPORTING CLUBE DE BRAGA, notificado da Decisão Singular da Relatora que confirma o despacho reclamado (proferido pelo Tribunal da Relação), na parte em que neste não se admite o recurso de revista como revista “normal”, vem reclamar para a Conferência ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 3, do CPC, aplicável à revista por força da remissão do artigo 643.º, n.º 4, do CPC, com os seguintes fundamentos:

«1. O Recorrente, quando notificado do douto acórdão da Relação de Guimarães que confirmou o saneador-sentença que havia julgado a acção improcedente por não provada e absolvido o Réu AA dos pedidos, interpôs dele recurso de revista, nos seguintes termos:

a) Interpôs recurso de revista “normal”, nos termos do disposto no artigo 671.º, n.º 1, do C.P.C.;

b) Interpôs também, prevenindo a hipótese de aquele não ser admissível, recurso de revista excepcional ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º 1, al. a), do C.P.C., por estarem em causa questões cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é necessária para uma melhor aplicação do Direito.

2. No que se refere ao recurso de revista “normal”, o Mmo. Desembargador Relator não o admitiu por entender que existe no processo dupla conforme, pelo que não eria admissível recurso ordinário de revista.

3. A Mma. Conselheira-Relatora, pronunciando-se sobre a reclamação deduzida pelo Recorrente, entendeu, quanto à questão da dupla conformidade, que “tendo o Tribunal da Relação exercido os seus poderes de substituição, cumprindo o contraditório omitido no tribunal de 1.ª instância e decidido a questão da autoridade do caso julgado, ficou sanada a nulidade da sentença e estamos perante uma situação de dupla conformidade, impeditiva da revista normal”.

4. No entender do Recorrente, pese embora o douto entendimento contido na Decisão Singular a este respeito, não existe efectivamente dupla conformidade impeditiva da revista normal por não existirem duas pronúncias das instâncias sobre a questão da autoridade do caso julgado, razão pela qual deduz a presente reclamação para a Conferência, com os fundamentos que seguidamente expõe.

5. Como se disse, o recurso de revista “normal” foi rejeitado pela Mma. Conselheira Relatora por entender que existe dupla conforme, dado que a Relação usou os seus poderes de substituição e, cumprindo o contraditório omitido em Primeira Instância sobre a questão da autoridade do caso julgado, decidiu essa questão ficando assim sanada a nulidade da sentença recorrida.

6. O Recorrente permite-se discordar da afirmação de que a utilização dos poderes de substituição pela Relação, ao abrigo do artigo 665.º do C.P.C., sanou a nulidade da decisão recorrida — pelo menos se entendida com o sentido de que tal substituição convalida a decisão recorrida de modo a esta passar a valer com o sentido dado pela decisão do recurso.

7. Na realidade, e sempre ressalvado o respeito por diverso entendimento, afigura-se ao Recorrente que a substituição ao tribunal recorrido, quando o recurso se funda em nulidade da decisão recorrida, supõe que a Relação julgue nula esta decisão, caso em que, quando disponha dos elementos necessários para o efeito, a Relação pode ainda assim conhecer do objecto da apelação em lugar de ordenar a descida dos autos para ser proferida nova decisão pela Primeira Instância (artigo 665.º, n.º 1, do C.P.C.).

8. O que, aliás, é consonante com a constatação de que a substituição ao tribunal recorrido conduz à supressão de um grau de jurisdição (LEBRE DE FREITAS e RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, tomo I, 2.ª ed., p. 132).

9. Assim, a sentença recorrida não fica sanada — pelo contrário, ela é julgada nula. O vício de que o processo padecia em resultado da sua nulidade é que é sanado por força da substituição da sentença recorrida pelo julgamento feito em sede de recurso.

10. Ora, se assim é, como parece dever ser, então não ocorre no processo dupla conforme e não tem aplicação o disposto no n.º 3 do artigo 671.º.

11. Na situação sub judice, a decisão proferida pela Relação assenta no juízo que a Relação fez sobre a existência de uma vinculação do Tribunal, na acção, ao decidido no recurso de revisão que foi interposto numa acção laboral que a precedeu.

12. Concretamente, entendeu a Relação que, tendo aquele recurso de revisão decidido pela não verificação da falsidade de um recibo de vencimento apresentado pelo aqui Réu na acção laboral, e sendo essa questão da falsidade do recibo causa de pedir da presente acção, tal questão não pode ser novamente apreciada e decidida sob pena de desrespeito pela autoridade do caso julgado ali formado.

13. Sucede que o acórdão recorrido reconhece, do mesmo passo, que a questão da autoridade do caso julgado não foi discutida em Primeira Instância, e reconhece também que isso é causa de nulidade do saneador-sentença por excesso de pronúncia, por constituir decisão-surpresa, em violação do contraditório.

14. É inequívoco o acórdão a este respeito: “A sentença recorrida padece pois de nulidade por excesso de pronúncia, podendo este Tribunal supri-la ao abrigo do disposto no art. 665º, nº 1 do C. P. Civil”.

15. Usando os seus poderes de substituição, a Relação, tendo considerado que as partes tiveram oportunidade de discutir a questão nas alegações do recurso de apelação, conheceu do objecto do recurso.

16. Ora, daqui decorre que a questão da autoridade do caso julgado só foi efectivamente discutida nos autos uma única vez, perante a Relação, no recurso de apelação. E também só foi validamente apreciada uma vez, pela própria Relação, em decisão do recurso de apelação, uma vez que a decisão proferida em Primeira Instância é nula nessa parte.

17. Assim sendo, esta questão da autoridade do caso julgado constitui, no processo, uma questão nova que, para todos os efeitos, só foi discutida perante a Relação e validamente decidida pela Relação.

18. Por conseguinte, deve admitir-se o recurso de revista para se assegurar, relativamente a esta questão, um grau de recurso.

19. Assinale-se que, na doutrina e na jurisprudência do S.T.J., é reconhecido o direito a revista “normal” sempre que a Relação, no âmbito do recurso de apelação, apreciou uma questão nova que não foi contemplada na decisão da Primeira Instância e que justifica, por isso, que possa haver lugar à sua reapreciação pelo Supremo Tribunal (assim, ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., p. 430).

20. Ora, como se disse, deve ficar submetida ao mesmo regime a situação em que a questão é nova porque não foi suscitada e discutida em primeira instância, pelo que, apesar de ter sido objecto da sentença, tudo se passa como se tal não tivesse acontecido, uma vez que a sentença é nula nessa parte.

21. É essa, como se viu, a situação dos presentes autos relativamente à questão da autoridade do caso julgado, que indiscutivelmente constituiu a ratio decidendi do douto acórdão recorrido.

22. Por conseguinte, não ocorre dupla conforme que obste à admissão do recurso como revista “normal”, pelo que o recurso deve ser como tal admitido.

Termos em que deve julgar-se procedente a presente reclamação e, consequentemente, admitir-se o recurso de revista como revista “normal”, com as legais consequências — sem prejuízo de, caso assim não se entender, se manter a douta Decisão Singular de anulação do despacho reclamado e remessa do processo à Formação constituída nos termos do n.º 3 do artigo 672.º do C.P.C.».


2. AA, Recorrido nos presentes autos, tendo sido notificado da Reclamação para a Conferência da decisão singular proferida pela Relatora, vem, nos termos dos artigos 643.º, n.º 2 do CPC, apresentar a sua resposta, nos termos e com os seguintes fundamentos:

«Entende o Reclamado que a Exma. Conselheira Relatora deveria ter decidido admitir a revista “normal”, uma vez que considera não existir dupla conforme.

A falta de fundamento para a pretensão manifestada pelo Reclamante resulta das razões que doutamente são explicitadas no douto despacho que não admite o recurso e que o Reclamante pretende colocar em crise - e que aqui se dão por reproduzidas -, as quais deverão levar necessariamente à sua confirmação.

Vejamos, pois:

Quer o Reclamante ficcionar como admissível um Recurso de Revista (seja ao abrigo do normal regime previsto no artigo 671.º nº 1 do CPC, seja a título excecional, em consonância com o disposto nos artigos 671.º nº 3, in fine e 672° do mesmo diploma), o que faz não só ao arrepio da lei aplicável, como, ademais, com assento em supostos factos, inteiramente falsos, que sem qualquer pejo apresenta como verdadeiros.

Em primeiro lugar, por forma a tentar justificar a sua posição, vem o Reclamante invocar a inexistência da chamada “dupla conforme”.

No entanto, efetivamente foi isso que se verificou, pelo que o presente recurso não é admissível e, como tal, bem andou a Exma. Conselheira Relatora em negar o recurso com base nesta premissa.

De forma sintética, RUI PINTO elucida que a existência de “dupla conforme” pressupõe um requisito subjetivo (ausência de voto de vencido) e dois requisitos objetivos

– (i) a conformidade decisória (reportado à decisão) e a (ii) conformidade essencial de fundamentação (incidindo sobre a fundamentação).

Na situação dos autos verifica-se que a Relação confirmou a sentença da primeira instância (confirmação decisória recorrida) e confirmou exaustivamente cada um dos fundamentos aduzidos da sentença (“a decisão proferida no recurso de revisão impõe a sua autoridade à presente” e que “a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado”).

Neste contexto, porque o fundamento da força do caso julgado material foi confirmado em ambas as instâncias, há conformidade de fundamentação, logo dupla conforme.

De facto, é esse o entendimento da douta decisão recorrida: “Relativamente à questão da dupla conformidade entendo que, tendo o Tribunal da Relação exercido os seus poderes de substituição, cumprindo o contraditório omitido no tribunal de 1.ª instância e decidido a questão da autoridade do caso julgado, ficou sanada a nulidade da sentença e estamos perante uma situação de dupla conformidade, impeditiva da revista normal.”

Assim, ainda que se considere que o Reclamante não teve oportunidade de se pronunciar sobre o caso julgado em primeira instância, a verdade é que o Venerando Tribunal da Relação colmatou essa falha, a existir.

Como tal, não pode o Reclamante alegar que não teve oportunidade de emitir a sua opinião sobre a autoridade do caso julgado, e que essa questão apenas foi discutida perante a Relação.

Acresce, ainda, que a questão da omissão do contraditório, sendo causa que pode influir na decisão da causa, se configura como uma nulidade que deveria ter sido arguida perante o tribunal de primeira instância e não perante o tribunal de recurso! –

“Não se pondo em causa que a omissão em causa é suscetível de influir na decisão da causa, tal nulidade deveria ter sido invocada no prazo de 10 dias, a contar do conhecimento da mesma, perante o tribunal onde foi cometida.”

Em todo o caso, como se considera na douta decisão singular recorrida, mesmo admitindo-se que a arguição da existência de uma nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório possa ocorrer em sede de recurso interposto da decisão, o Tribunal da Relação supriu a mesma ao abrigo do disposto no art.º 665º, nº 1 do C. P. Civil.

E verifica-se que, no caso, o Reclamante pronunciou-se sobre a autoridade do caso julgado no seu recurso e o Reclamado teve igual oportunidade de se pronunciar nas suas contra-alegações, estando assim cumprido o contraditório.  

Assim sendo, como se entende ser, falece o argumento do Reclamante, que invoca a questão da omissão de contraditório como forma de se “esquivar” da dupla conforme e, consequentemente, procurar encontrar um argumento para conseguir a admissão da revista.

Nessa conformidade, e tendo em conta tudo quanto foi exposto, só se pode concluir que a decisão não merece censura.

TERMOS EM QUE,

como certamente Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser negado provimento à Reclamação e manter-se a douta decisão recorrida e, deste modo, farão V/ Exas. a tão acostumada

JUSTIÇA !».

Cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação


1. A questão decidenda diz respeito à existência ou inexistência de dupla conforme num caso em que o acórdão da Relação, declarando a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, com base na violação do princípio do contraditório, vem, exercendo o seu poder de substituição, a adotar uma decisão idêntica à do tribunal de 1.ª instância e com o mesmo fundamento, sem que haja qualquer voto de vencido no acórdão do tribunal superior.

 

2. Tendo sido proferida decisão singular que entendeu verificada a dupla conforme e remeteu o processo para a formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, o recorrente, agora reclamante, entende que “a questão da autoridade do caso julgado constitui, no processo, uma questão nova que, para todos os efeitos, só foi discutida perante a Relação e validamente decidida pela Relação. Por conseguinte, deve admitir-se o recurso de revista para se assegurar, relativamente a esta questão, um grau de recurso.” Por seu lado, o recorrido, agora reclamado, entende que o reclamante apenas pretende furtar-se à dupla conformidade em virtude de o tribunal de 1.ª instância ter omitido o contraditório em relação à questão da autoridade do caso julgado, contraditório que foi cumprido pelo Tribunal da Relação, assim se sanando o vício.

 

3. Com relevância para a decisão a proferir, cumpre considerar os seguintes elementos:

3.1. Em 17-11-2021, foi proferido despacho saneador-sentença que concluiu pela verificação da exceção de autoridade do caso julgado e, em consequência, absolveu o réu dos pedidos formulados pelo autor;

3.2. O recorrente interpôs recurso de apelação, invocando, no que aqui releva, a nulidade da sentença da 1.ª instância por violação do princípio do contraditório e ainda por excesso de pronúncia por ter o tribunal da 1.ª instância conhecido de matéria que não lhe era lícito conhecer.

3.3. O Tribunal da Relação proferiu acórdão, tendo concluído pela nulidade do saneador-sentença, por excesso de pronúncia, com o seguinte fundamento:

«A sentença recorrida padece pois de nulidade por excesso de pronúncia, podendo este Tribunal supri-la ao abrigo do disposto no art. 665º, nº 1 do C. P. Civil.

No caso, o Recorrente, no seu recurso, já se pronunciou sobre a autoridade do caso julgado e o Réu, ao serem-lhe notificadas as alegações do recurso interposto pelo Autor, teve igual oportunidade, estando cumprido o contraditório relativamente a tal matéria, pelo que, atualmente, não há qualquer necessidade de fazer cumprir o preceituado nos arts. 3º, nº 3 ou no 665º, nº 3, ambos do C. P. Civil, estando, pois, o presente processo pronto para se conhecer do objeto da apelação, o que se irá fazer de seguida».

3.4. Nessa sequência o Tribunal da Relação, considerando ter sido já cumprido o contraditório quanto à matéria da autoridade do caso julgado e fazendo uso dos seus poderes de substituição proferiu, de imediato, decisão quanto à mencionada exceção de autoridade do caso julgado, deixando escrito, a esse propósito, que “concorda-se, pois, com a decisão recorrida ao considerar que a decisão proferida no recurso de revisão impõe a sua autoridade à presente, sendo certo que, como é entendimento dominante da jurisprudência a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado, pois, como refere Rui Pinto (ob. cit, pág. 19) “a parte dispositiva constitui a conclusão decorrente de silogismos internos de uma decisão, nos quais os fundamentos de facto ou de direito são as permissas. (…) Em suma: apenas à luz dos fundamentos de uma decisão se pode dar a qualificação jurídica à parte dispositiva. O título jurídico de onde emanam os afeitos para a esfera do destinatário da decisão é, assim, a parte dispositiva nos termos dos fundamentos.”.

3.5. O Tribunal da Relação julgou, assim, improcedente o recurso de apelação, proferindo o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida».

3.6. O sumário do acórdão da Relação foi o seguinte:

«1 – Quando há violação do princípio do contraditório, constituindo a sentença uma decisão surpresa, a nulidade processual decorrente dessa violação é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia, dado que, sem a prévia audição das partes, o tribunal não podia conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão.

2 – O Tribunal de recurso pode suprir tal nulidade ao abrigo do disposto no art. 665º, nº 1 do C. P. Civil, uma vez que o Recorrente, no seu recurso, já se pronunciou sobre a matéria analisada na decisão surpresa e o Réu, ao serem-lhe notificadas as alegações do recurso interposto pelo Autor, teve igual oportunidade, estando cumprido o contraditório relativamente a tal matéria, não havendo nesta fase necessidade de fazer cumprir o preceituado nos arts. 3º, nº 3 ou no 665º, nº 3, ambos do C. P. Civil, estando o processo pronto para se conhecer do objeto da apelação.

 3 - A autoridade de caso julgado tem a ver com a existência de relação de prejudicialidade entre ações, quando a decisão de uma pode afetar o julgamento a proferir na outra».

 

4. Chegados aqui, cumpre tomar posição quanto à eventual verificação de uma situação de dupla conformidade decisória, sendo certo que como as partes reconhecem a fundamentação propugnada pelas instâncias é, na sua essência, a mesma.

A questão que se coloca é, então, a de saber se a anulação da sentença da 1.ª instância seguida do proferimento de acórdão pelo Tribunal da Relação com o mesmo teor pode ser equiparada à confirmação da sentença da 1.ª instância para efeitos de verificação de uma situação de dupla conforme, ou se, pelo contrário, como defende o recorrente, o modelo da substituição conduz à supressão de um grau de jurisdição.

5. Dispõe o artigo 665.º, n.º 1, do CPC que “Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.”.

Vigora na nossa ordem jurídica, o modelo de substituição ou de plena jurisdição, que implica que a procedência do recurso pode ter por consequência apenas a revogação (ou a anulação) da decisão recorrida ou, cumulativamente, a sua revogação e a sua substituição por outra. Designa-se este regime de recurso de substituição ou substitutivo. Este modelo é o predominante no nosso sistema de recursos: a procedência do recurso importa, em regra, além da revogação da decisão impugnada, a sua substituição por outra emitida pelo tribunal ad quem. A doutrina tem entendido que esta regra da substituição (da Relação) ao tribunal recorrido acarreta, na hipótese prevista no n.º 2 do artigo 665º e, por vezes, também na do seu nº 1, a supressão de um grau de jurisdição e, consequentemente, a instituição de uma instância única (cfr. Carlos Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2020, pp. 466 e 559).

Como afirma Abrantes Geraldes (in Recursos em Processo Civil, 6.ª edição atualizada, Almedina, Coimbra, 2020, p. 381): «(…) a anulação da decisão (v.g. por contradição de fundamentos ou por omissão de pronúncia) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objeto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários. Só nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo. Ao invés, deve prosseguir com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, nos termos do art. 665.º, n.º 2».

Todavia, a afirmação de que, nos casos de nulidade da sentença, existe apenas uma única decisão, a que substitui a declarada nula, não tem por consequência automática que na situação destes autos, em que o acórdão do Tribunal da Relação declarou a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, mas, supriu a mesma e decidiu do mesmo modo e com o mesmo fundamento do 1.º grau, confirmando-a, fique afastada a dupla conformidade para o efeito da aferição do acesso ao segundo grau de recurso.

Há que atender ao fundamento da nulidade da sentença.

Vejamos:

Tratando-se de uma nulidade por omissão de pronúncia fica afastada a dupla conforme, pois, se o tribunal ad quem suprir a nulidade, decide necessariamente uma questão nova e com uma fundamentação essencialmente diferente (cfr. Acórdãos de 11-03-2021, proc. n.º 1299/17.9T8LRA.C1.S1 e de 12-01-2021, proc. n.º 379/13.4TBGMR-B.G1.S1).

Se a nulidade se basear em falta de fundamentação de facto ou de direito também não se verifica dupla conformidade, «pois carecendo a sentença de fundamentação de direito não poder dizer-se que a fundamentação do acórdão não é “essencialmente diferente” (art. 671.º, n.º 3, do CPC)» (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-01-2021, proc. n.º 268/12.0TBMGD-A.G1.S1).

6. Todavia, no caso que nos ocupa, a conclusão é diferente. Estamos perante uma nulidade por excesso de pronúncia por violação do princípio do contraditório no tribunal de 1.ª instância. Esta nulidade foi suprida pelo Tribunal da Relação, notificando as partes para se pronunciarem, tendo depois o Tribunal da Relação conhecido do objeto do recurso e confirmado a sentença de 1.ª instância. É certo que, no plano jurídico-formal, existe apenas uma única decisão sobre a matéria em crise nos autos, mas no plano substancial, após a sanação do vício, pode dizer-se que existem duas decisões que se pronunciaram do mesmo modo sobre as mesmas questões, não se podendo ignorar que entre essas decisões se verifica uma sobreposição material, quer no dispositivo, quer na fundamentação.

A aparente simplicidade do artigo 671.º, n.º 3, do CPC não deixa de exigir algum esforço interpretativo, evitando a afirmação de uma desconformidade ou de uma conformidade aferidas exclusivamente por critérios formais. Tem-se entendido que o critério deve ser substancial e aferido em função da finalidade do regime da dupla conformidade: a racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

Assim, atendendo à razão de ser da irrecorribilidade das situações de dupla conformidade – o presumido acerto da decisão coincidente em ambas as instâncias e a finalidade de concentrar o Supremo Tribunal de Justiça em casos complexos e que gerem dúvidas ou decisões contraditórias – tem que se constatar que, não obstante a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, houve, no plano substancial, uma dupla apreciação da matéria em crise, suscetível de dispensar o terceiro grau de recurso como revista normal.

7. Tendo o recorrente invocado também, subsidiariamente, o recurso de revista excecional ao abrigo do artigo 672.º do CPC, deve remeter-se o processo à Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, para apreciação dos requisitos específicos desta espécie de recurso extraordinário expostos pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso.

8. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I – Vigora no nosso sistema de recursos um modelo de substituição ou substitutivo, de acordo com o qual a procedência do recurso importa, em regra, além da revogação da decisão impugnada, a sua substituição por outra emitida pelo tribunal ad quem.

II - Atendendo à razão de ser da irrecorribilidade das situações de dupla conformidade – o presumido acerto da decisão coincidente em ambas as instâncias e a finalidade de concentrar o Supremo Tribunal de Justiça em casos complexos e que gerem dúvidas ou decisões contraditórias – tem que se constatar que, não obstante a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, houve, no plano substancial, uma dupla apreciação da matéria em crise, suscetível de dispensar o terceiro grau de recurso como revista normal.

III – Decisão

Pelo exposto, indefere-se a reclamação, mantendo-se o despacho da Relatora e determinando-se a subida do recurso. 

Custas pelo reclamante.

Lisboa, 17 de janeiro de 2022

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)