A nulidade da decisão, por oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº1, c) do CPC), é um vício intrínseco da mesma, não se confunde com um hipotético erro de julgamento, nem pode ser invocada para manifestar discordância com a decisão.
Bávaros Sociedade Agropecuária, Lda e outros, Recorrentes nos autos à margem indicados, notificados do acórdão proferido nos autos, vêm ao abrigo do disposto nos artºs. 615º nº 1 alíneas c) e d), 666º nº 1 e 685º CPC, apresentar reclamação, visando a sua revogação, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1) No douto acórdão reclamado verifica-se uma manifesta contradição entre os fundamentos da decisão sobre a matéria de facto e a decisão de direito no que respeita às questões elencadas nas conclusões 3) a 9) do recurso revista, sendo causa de nulidade à luz do disposto no artº 615º nº 1 alínea c) CPC;
2) O douto acórdão reclamado não decide sobre a questão “sub judice” colocada na conclusão 11) do recurso de revista, omissão que é causa da nulidade à luz do disposto no artº 615º nº 1 alínea d) CPC;
3) No douto acórdão reclamado verifica-se uma manifesta contradição entre os fundamentos da decisão sobre a matéria de facto e a decisão de direito no que respeita às questões elencadas nas conclusões 13) a 15) do recurso revista, sendo causa de nulidade à luz do disposto no artº 615º nº 1 alínea c) CPC.
A Recorrida Unicol – Cooperativa Agrícola, CRL, respondeu pugnando pela indeferimento da reclamação.
Cumpre decidir em conferência.
É imputado ao acórdão contradição entre os fundamentos de facto e a decisão, e omissão de pronúncia, duas causas de nulidade da decisão previstas no art. 615º, nº1 c) e d), ex vi do arts. 666º e 679º do Cód. Processo Civil.
No que tange à primeira, diz a alínea c) do nº1, art. 615º, que é nula a sentença/acórdão quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão (…)”.
Ocorre este causa de nulidade quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil anotado, I, pag. 737/738).
Como decidiu o Acórdão do STJ de 05.03.2015, P. 316/08, Sumários, 2015, p. 130, “a contradição entre os fundamentos e a decisão é aquela que se verifica quando o juiz explana na sentença certos fundamentos que logicamente deveriam conduzir a uma decisão num determinado sentido mas que, ao invés, conduzem a um sentido oposto ou, pelo menos, diferente.”
Dito isto, vejamos se o acórdão sofre deste vício.
Dizem os Reclamantes que ocorre contradição entre os fundamentos de facto e a decisão de direito no que respeita às questões que suscitaram nas conclusões 3 a 9 do recurso de revista.
Naquelas conclusões os Recorrentes sustentaram a nulidade do Regulamento Interno por não fixar nem o preço do leite nem as quantidades de leite que cada cooperador podia vender à cooperativa, ao contrário do exigido pelo Regulamento (UE) nº 261/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de março de 2012, pelo D.L. nº 42/2013, de 22-3, e a Portaria nº 196/2013, de 28-5.
Como assim, estando ferido de nulidade, o Regulamento Interno da Recorrida não pode servir de suporte regulamentar para imposição de quantidades e preços de venda de leite, e aplicação de penalizações aos Recorrentes.
Ora, se o acórdão reconhece a aplicação do normativo legal europeu e nacional invocado pelos Recorrentes, que o mesmo vincula o teor do Regulamento Interno da UNICOL, decide em sentido contrário ao determinado no normativo legal aplicável, que indubitavelmente conduz a uma solução diametralmente oposta sobre as questões “sub judice”.
Não se verifica contradição invocada.
Considerou o acórdão que na venda de leite cru por um associado a uma cooperativa não é necessário a celebração de contrato escrito desde que dos estatutos desta, do regulamento interno ou decisões dos seus órgãos, resulte o cumprimento das exigências do art. 3º do DL nº 42/2013, designadamente as que se referem ao preço e à quantidade de leite que cada cooperador tem direito de entregar.
Mais se entendeu que o regulamento interno da Ré não sofre de nulidade, que os AA, todos cooperantes da Ré, conheciam os limites de produção de leite de cada um e a fórmula de cálculo para a formação do preço do leite, e com base nestas premissas entendeu-se que a Recorrida estava legitimada a aplicar as sanções.
A decisão é a consequência lógica dos fundamentos, com os quais os Reclamantes têm toda a legitimidade de discordar, mas a discordância da parte vencida com a decisão não integra nenhuma das nulidades previstas no art. 615º, nº1 do CPC. (Ac. STJ 30.09.2014, P. 276/07, Sumários, Set/2014).
Nestas conclusões, os Recorrentes defenderam que o Regulamento Interno da Recorrida viola os princípios e regras fundamentais da legislação europeia e da legislação nacional do direito da concorrência, na medida em que aquela tem o monopólio da compra de leite na ..., tendo o poder de limitar o livre funcionamento do mercado de leite, anulando a competição e o funcionamento das regras de mercado.
Ora, sustentam os Reclamante que estando provado:
- O preço e as quantidades de leite vendidas em todo o mercado de leite da ... é fixado pela UNICOL por determinação da P..., numa situação de mercado de verdadeiro monopólio da compra de leite;
- A UNICOL funciona como (único) intermediário entre os produtores de leite e a P..., sendo esta que verdadeiramente determina as quantidades de produção de leite e o respetivo preço.
- É afinal a P..., a quem a UNICOL entrega o leite, que define as quantidades de leite e reduz o preço de venda de toda a produção.
É contraditória com estes factos a decisão que negou a violação dos princípios da livre concorrência invocada pelos Recorrentes.
Também aqui lhes falece razão.
Na fundamentação do acórdão, explicitaram-se as razões pelas quais se considerou que os factos provados não permitiam concluir pela violação das leis da concorrência, nem pelo abuso de posição dominante.
Mais uma vez, o que se constata é a discordância dos Reclamantes com o acórdão, não oposição entre os fundamentos e a decisão susceptível de gerar a nulidade.
É do seguinte teor a conclusão 11 da revista: “ Ainda que se admitisse a validade do Regulamento Interno da Recorrida para derrogar a obrigatoriedade da celebração de contratos escritos de compra e venda de leite cru com os Recorrentes, as normas regulamentares não preveem nem suportam a aplicação das penalizações impugnadas nos presentes autos, que assim são ilegais.”
A Autora, na resposta à reclamação, pronunciou-se nestes termos sobre esta matéria:
“De facto, se a quantidade de leite a adquirir pela UNICOL aos seus associados/cooperadores é determinada pela quantidade de leite que consegue vender ao transformador, daí resulta, sem outra alternativa, a necessidade de impor limites à produção de cada associado/cooperador.
Ora, se a UNICOL, apesar destes limites, recebe todo o leite que lhe é entregue, necessariamente terá de penalizar o leite excedentário, fazendo-o ao produtor/cooperador que exceda o direito de produção que lhe foi fixado por deliberação da assembleia geral, sendo certo que tais penalizações são mensalmente comunicadas aos cooperantes produtores de leite, que assinam a correspondente autofacturação que contém toda a informação necessária à gestão das suas manadas e ao conhecimento da sua situação e da sua evolução.”
No acórdão reclamado escreveu-se o seguinte a propósito das “penalizações”:
“Da validade das penalizações.
Do Regulamento interno da Recorrida consta que a quantidade de leite a adquirir anualmente pela Unicol será determinada pelos contratos de venda que a mesma venha a estabelecer previamente com o transformador.
Daí, a existência de limites máximos à produção de cada associado.
Existindo esses limites, e uma vez que a Ré não deixa de receber todo o leite que lhe é entregue, bem se compreende que o leite excendário seja pago a um preço inferior, aí radicando as penalizações de que se queixam os AA.
Não se vê nenhuma ilegalidade ou abuso neste procedimento da Ré. De outra forma, ficaria sem efeito útil a existência de limites no fornecimento do leite, e criar-se-ia uma situação de injustiça para os outros produtores/associados que cumprem as suas quotas.”
É patente do excerto transcrito que o acórdão pronunciou-se sobre a legalidade das penalizações, que consistem, afinal, no pagamento do leite excendentário a um preço inferior.
O que significa que a imputação ao acórdão de nulidade por omissão de pronúncia é também falha de fundamento.
Conclui-se do exposto que não assiste razão aos Recorrentes na imputação de nulidade ao acórdão.
Decisão.
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada pelos Recorrentes.
Custas pelos Recorrentes.
Lisboa, 10.01.2023
Ferreira Lopes (Relator)
Manuel Capelo
Tibério Nunes da Silva