CONTRATO DE SEGURO
DECLARAÇÃO AMIGÁVEL
VERIFICAÇÃO DO SINISTRO
Sumário

I - Segundo grau de julgamento da matéria de facto: no juízo sobre a confirmação ou a revogação da decisão da 1.ª instância, a Relação pode utilizar um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão o qual conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação.
II - O art. 35.º, n.º 3, do DL 291/2007, de 21.8, prevendo que a declaração amigável de sinistro assinada por ambos os condutores faz presumir ter-se aquele verificado nas circunstâncias, nos moldes e com as consequências constantes da mesma, insere-se na fase relativa à resolução extrajudicial da responsabilidade das seguradoras, não se impondo como presunção legal em julgamento.
III - Estando demonstrada, pela participação policial, declaração amigável e testemunho, uma aparência de acidente, está efetuada a prova prima facie da verificação do sinistro, cabendo àquele contra quem se apresenta a primeira aparência (a seguradora), infirmar tal juízo de probabilidade bastante, mediante a demonstração com grau de verosimilhança razoável de terem as circunstâncias em causa – dois veículos com aparência de sinistrados – sido encenadas pelos intervenientes tendo em vista burla de seguros.
IV - Essa tarefa não dispensa uma profusa indagação de todos os elementos factuais envolvidos, com recurso a prova exaustiva, nomeadamente, inspeção ao local, perícia independente, apuramento de pormenores das declarações do putativo lesado e terceiro interveniente.

Texto Integral

Processo n.º 1720/20.9T8GDM.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam as juízas abaixo-assinadas da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
AUTOR: AA, casado, residente na Rua ..., ..., 4.º Dtº, ....
RÉS: X..., com domicílio na Av. ..., Lisboa.
Y..., Companhia de Seguros, SA, Rua ..., Lisboa.

Por via da presente ação declarativa, pretende o A. obter a condenação da Ré Y... a pagar-lhe € 52.542, 66, com juros desde a citação, e o que se apurar posteriormente quanto ao dano da privação do veículo.
Subsidiariamente, a condenação das Rés naqueles valores, na proporção da culpa que venha apurar-se.
Ainda subsidiariamente, a condenação da Ré X... naqueles montantes.

Alegou para tanto ter sofrido acidente de viação causado pelo veículo seguro pela Ré Y... cujo condutor não parou perante o sinal de Stop.
O veículo do A. sofreu danos que determinam a sua perda total, tendo a sua seguradora, a X..., para a qual transferiu o risco pelos danos sofridos em consequência de choque ou capotamento, entendeu que o valor daquele era de € 25.000,00, valor que o A. não aceita, pretendendo receber € 36.427,66, correspondentes ao valor seguro de € 40.017,66, deduzidos os salvados, avaliados em € 3.590,00.
Pretende, ainda, € 15,00, diários, desde a data do sinistro, até ao pagamento da indemnização, pelo dano da privação do uso, e € 95,00, que despendeu com o auto de ocorrência.

Contestou a Ré X... afirmando que, no tocante ao veículo de substituição, de acordo com o contrato de seguro, cabia ao A. indicar a empresa de locação do veículo, o que este não fez. Tratando-se de responsabilidade contratual, não responde a Ré nos termos do seguro de responsabilidade civil extracontratual. Mais afirma que o valor do veículo do A. oscilava entre € 8.500,00, e € 11.500,00, devendo abater-se os salvados.

Defende-se a Ré Y..., desde logo, por exceção dilatória, arguindo a ilegitimidade do A. por não ser o titular registral do veículo sinistrado.
Mais afirma não decorrerem do sinistro os danos apresentados pela viatura, pelo que, entendendo não ter ocorrido qualquer acidente, declina qualquer responsabilidade.
Diz, ainda, que o valor venal do veículo em apreço era de € 11.727,00, insurgindo-se relativamente ao dano da privação do suso por o A. ter vendido o veículo logo após o sinistro. Ademais, não alegou o A. quaisquer factos concretos donde resulte tal dano. Termina pedindo a condenação do A. como litigante de má-fé.

O A. exerceu o contraditório.

Em despacho saneador, foi julgada improcedente a exceção de ilegitimidade.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 17.3.2022, julgando a ação improcedente e absolvendo as Rés do pedido.
Foram aí dados como provados e não provados os seguintes factos:
Factos Provados
1. O proprietário do veículo ..-SN-.. Mercedes ligeiro de passageiros por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ... havia transferido para a Ré X..., a obrigação de indemnizar terceiros pelos danos causados com a circulação rodoviária daquele e ainda, entre outras, tinha a cobertura facultativa de choque colisão e capotamento.
2. No entroncamento na Rua ... existe um sinal de STOP.
3. A PSP esquadra de trânsito de Gondomar elaborou o auto de participação de acidente junto aos autos a fls. 10 a 12.
4. O autor enviou à RR. seguradoras a declaração Amigável de Acidente Automóvel de fls. 12 v e 13 bem como o doc. referido em 3.
5. Na declaração amigável o condutor do veículo seguro na Ré Y... assumiu que "não respeitou um sinal de dar prioridade ou um semáforo vermelho”.
6. A Ré X... após ter conhecimento do sinistro, enviou ao A. a comunicação de fls. 13v e 14 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
7. À data da ocorrência descrita pelo A. a responsabilidade civil emergente da circulação do veiculo ligeiro de passageiros ..-..-VH encontrava-se transferida para a Y... através da apólice nº ....
8. O Autor despendeu com o auto de ocorrência a quantia de 95,00 (doc.5).
9. A propriedade do veiculo ..-SN-.. encontra-se registada a favor da sociedade “T..., Ldª” desde 09 de Abril de 2018.( fls. 149 e 150 )
10. No relatório de averiguações efectuado pela Ré X... apurou-se que os danos no veiculo de matricula ..-SN- .. situam-se na zona frontal direita, apresentando pequenos vestígios na lateral direita e o veiculo de matricula ..-..-VH apresenta danos pouco relevantes na zona frontal e lateral esquerda (canto do para-choques) conforme doc de fls. 168 a 176 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
11. O custo de reparação do veiculo do A. é de € 35.553,94 e valor do salvado é de € 3.590,00 (por acordo).

Factos não Provados
1. No dia 30 de Junho de 2017, pelas 05,50h horas, na Rua ... na Freguesia ... no, Concelho de Gondomar, ocorreu um acidente de viação entre o veiculo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-SN-.. Mercedes Benz propriedade do autor e conduzido pelo próprio, e o veículo ligeiro de passageiros, com a matricula ..-..-VH Citroen conduzido por BB e propriedade de CC.
2. No dia e hora indicados o veiculo propriedade do Autor circulava na Rua ... na direcção à estação da CP em ..., seguindo o seu condutor com atenção e o cuidado devido.
3. Fazia-o pela faixa de rodagem da direita e no momento em que passava o entroncamento entre a Rua ... com a Rua ... surgiu da sua direita no referido entroncamento o veiculo ..-..-VH Citroen que não parou no STOP ou se parou arrancou no momento em que o Autor estava a transpor entroncamento.
4. No local do acidente, apesar de ter STOP o condutor do veículo seguro na Ré Y... invadiu a faixa de rodagem por onde passava o veiculo do Autor ..-SN-.. Mercedes Benz causando assim o acidente.
5. Ou seja, no momento em que o Autor passava o entroncamento em frente à Rua ..., acto continuo, o veiculo garantido na Ré Y... avançou inesperadamente.
6. A viatura do Autor era permanentemente utilizada nas suas deslocações diárias no âmbito da sua atividade de comércio de produtos alimentares.
7. O valor do veiculo do A. é de € 40.017,66.

Desta sentença recorre o A., visando a sua revogação e a condenação das Rés no pedido.
Para tanto argumentou do seguinte modo:
I) O presente recurso tem como objeto a matéria de facto e de direito,
II) Na sentença recorrida ficou provado que o custo da reparação do veículo do A. é de 35.553,94€ e valor do salvado é de 3.590,00€, mas tal não resulta de prova documental e testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nem foi aceite por acordo e, por isso, o ponto 11 da matéria de facto dado como provado deve passar a ter a seguinte redacção: "A Ré enviou comunicação ao Autor onde consta que o valor da reparação é de 35.553,94€, o valor do salvado é de 3.590,00€ e valor venal do veículo 25.000,00€."
III) No entender do Recorrente foram erradamente considerados não provados os pontos 1 a 7, pois foi produzida prova suficiente de modo que os factos constantes dos números suprarreferidos constassem no rol de factos provados, nomeadamente, os depoimentos do Sr. Agente da PSP e da testemunha DD, das declarações de parte do autor e prova documental.
IV) O tribunal não ficou convencido que o acidente tenha ocorrido conforme Declaração Amigável e Auto de Ocorrência, porque as declarações do Autor no Auto de Ocorrência elaborado pelas autoridades policiais não foram reproduzidas na íntegra na DAAA elaborada pelo mediador do Citroen ..-..-VH. No auto de ocorrência, o A. refere que "seguia na Rua ... no sentido descendente, quando surgiu uma viatura saída da Rua ... e veio embater na minha viatura, tendo eu ido embater contra a parede". A Sentença diz que para evitar as discrepâncias relatadas no auto de ocorrência, na declaração amigável já não refere quem embatem em quem, limitando-se a declaração a referir que existiu o embate. Ora, a declaração amigável foi feita pelo mediador, mas com o devido respeito, diz provocando o embate, o que se presume que embate na viatura do Autor; contudo, como se pode verificar pela letra da declaração amigável, o A. só assinou a frente e o verso da declaração amigável, conforme se pode concluir e pelas declarações do Autor em Tribunal (minuto 22 e 23) e pela própria declaração amigável.
V)A Sentença recorrida refere que nessa declaração curiosamente assinala-se que o veículo do A. apresenta danos na traseira, mas os danos não estão assinalados só na traseira, estão assinalados e descritos na "frente toda e traseira".
VI)Deve ter-se em atenção o depoimento da testemunha EE supratranscrito totalmente, concretamente nas passagens:
MANDATÁRIA 1: Há pouco, em instâncias da minha colega, estava a dizer que, se visse uma mancha de óleo, colocava no auto, porque poderia até ser uma causa do acidente, é isso? EE: Sim.
MANDATÁRIA 1: Portanto, o senhor agente [00:16:00] não sabe ou não lhe permite concluir se o que vê lá no local tem ou não nexo de causalidade, limita-se a reportar aquilo que vê, é isso?
EE: Exatamente.
VII) As testemunhas das Rés direta ou indiretamente tem com aquelas uma ligação, quer porque lhe prestam serviços e por elas são remuneradas, quer porque os documentos elaborados denotam uma tentativa clara de gerar suspeitas e desconfianças, sem qualquer sustentação fáctica. Por outro lado, verifique-se o que diz o averiguador, afirma que não encontrou nenhuma ligação entre ambos os subscritores da declaração amigável. Mas mesmo assim, conclui, dizendo pode existir.
VIII) Mais, o depoimento da testemunha DD foi claro quanto à ocorrência do sinistro; esta testemunha merecia total credibilidade, uma vez que não tem qualquer interesse nos presentes autos.
[00:04:00]
MANDATÁRIO: A senhora diz que ouviu o barulho, e veio cá fora, à janela. DD: Vim à janela, exato.
FF Advogado
MANDATÁRIO: Veio à janela? Isso, que horas... se calhar, (impercetível). DD: Aí, não sei. Não sei.
MANDATÁRIO: Pronto. E no dia anterior, o muro estava direito ou estava?... DD: Direito. MANDATÁRIO: Não tinha caído já?
DD: Não, não, não. O muro caiu nesta altura em que o carro bateu. MANDATÁRIO: Nunca houve assim um acidente tão forte aí?
DD: Não, não. Essas esmurradelas, que é o caso agora, e... mas assim um acidente grande, que o muro caísse mesmo, foi o primeiro.
IX) A testemunha DD confirmou as fotografias do acidente junto aos autos, pois foi por aí que se lembrou do acidente.
X) Contrariamente ao que diz o relatório da investigação científica, as fotografias mostram claramente que aquele carro causou aqueles danos naquele acidente, em que o condutor podia ter inclusive morrido. Aliás, o relatório científico contraria o próprio relatório de averiguação, enquanto o relatório da averiguação menciona que eram visíveis vestígios do sinistro (página 5), nomeadamente destroços do veículo e muros derrubados, o relatório científico diz que não existiam vestígios no local (página 18).
XI) O outro interveniente não foi ouvido apesar do A. não ter prescindido do seu depoimento.
XII) O Autor requereu a inspeção judicial ao local do acidente, conforme requerimento com referência n.º 36691527, mas o tribunal entendeu não ser necessária.
XIII) O Tribunal não ficou convencido que o acidente se verificou conforme auto de ocorrência, mas tal auto foi confirmado pelo Sr. Agente da PSP.
XIV) Mas se o acidente não foi conforme o auto de ocorrência, o chamado relatório científico também está errado, dado que o mesmo tem por base o auto de ocorrência, os danos no muro e os danos nos veículos.
XV) A Declaração Amigável de Acidente de Automóvel serve precisamente para fazer fé das circunstâncias do acidente. Como meio de prova, sujeito ao princípio da livre apreciação, esse elemento probatório foi junto com a petição.
XVI)A DAAA presume-se verdadeira (artigo 35.º do DL. 291/2007, de 21 de agosto). A força probatória de tal documento apenas é desvirtuada, ilidida, mediante a arguição e prova de falsidade ideológica ou da prova da falsidade material do documento, o que com o devido respeito, não foi feito pelas Rés.
XVII) De facto, nos termos do artigo 35.º n.º 3 do DL 291/2007 de 21 de agosto, presume-se que o sinistro se verificou nas circunstâncias, nos moldes e com as consequências constantes da participação, salvo prova em contrário por parte da empresa de seguros.
XVIII) As RR. não produziram prova de que o sinistro não tivesse ocorrido conforme a declaração.
XIX) Pelo contrário, a própria R. X... aceita que o acidente se dá conforme a declaração amigável (ver artigo 2 da sua contestação).
XX)A X... diz no artigo 2 da contestação "tal como se deduz da declaração amigável, a obrigação de indemnizar A. por responsabilidade civil competiria à Ré Y..., seguradora do veículo ..-..-VH. A R. pagou os relatórios para declinar o sinistro; extrajudicialmente declinou o acidente por não estar conforme declaração amigável, judicialmente deduz que o acidente se verificou, conforme a declaração amigável, e que a responsabilidade é da Y....
XXI) A Sentença recorrida refere que existem adquiridos no processo determinados elementos objetivos que indicam que os veículos "SN" e "VH" se encontravam no local onde se diz ter ocorrido o acidente e que apresentavam os danos descritos nos factos provados.
XXII) Aquela concorda que o embate ocorreu pela forma descrita pelo A. na petição.
XXIII) Por outro lado refere que a dinâmica descrita, a velocidade alegada, a ausência de rastos travagem e despiste na via criam dúvidas relativamente à compatibilidade dos danos que os veículos apresentam.
XXIV) Ora, no que concerne à velocidade alegada, o Autor não alegou qualquer velocidade.
XXV) No que concerne aos rastos de travagem, do lado do STOP tem um muro que impede a visibilidade conforme se pode ver pelas fotografias. O Autor só se apercebe da existência do outro veículo no momento do embate, daí a inexistência de hipótese de travagem. Conforme fotografias tiradas no local do acidente e juntas aos autos, quem não conhecer o local, nem se apercebe do entroncamento, pois existe um muro que retira a visibilidade a quem da Rua ... para a Rua ... e de quem circula na Rua ... e se aproxima do entroncamento no sentido em que circulava o recorrente.
XXVI) Porém, os senhores peritos averiguadores, GG e em especial o Sr. Eng. Mecânico HH concluíram que o sinistro não ocorreu conforme o participado, elaborando o seu relatório com base no auto de ocorrência e no relatório de averiguação. Os averiguadores têm dúvidas que o sinistro tenha ocorrido conforme o participado devido a valores de importação do veículo seguro, capital seguro pela cobertura danos próprios, valor da reparação, comportamento segurado protelar o contacto e falta de enquadramento de danos.
XXVII) Não obstante, na página 4 do relatório de averiguação assevera que não foi encontrada qualquer ligação entre ambos os subscritores da declaração amigável, o que não quer dizer que não haja.
XXVIII) Mais, na página 5 menciona que eram visíveis vestígios do sinistro, nomeadamente destroços do veículo e muros derrubados.
XXIX) Com o devido respeito, é do entendimento do Autor que o Tribunal não pode valorar um documento em sede de audiência de julgamento, quando se sabe que quem o fez e assinou foi o perito GG. Este deveria ter sido chamado aos presentes autos para confirmar ou negar a autoria do mesmo e explicar como chegou ao não enquadramento
XXX) Por outro lado, o relatório científico concluí que os danos que o veículo do Autor apresenta na frente não são compatíveis com as características do muro e do poste de madeira onde alegadamente o veículo do autor terá embatido e que o veículo tinha que se imobilizar no interior da propriedade. Contudo, esta conclusão é contrária ao próprio relatório de averiguação da Ré que na página 5 diz que eram visíveis vestígios do sinistro, nomeadamente destroços do veículo e muros derrubados; com o auto de ocorrência da PSP, com as fotografias juntas aos autos, com o depoimento da testemunha DD, que fez na opinião do autor um depoimento concorde, congruente, isento e credível que afirmou sem qualquer dúvida que foi aquele carro que causou aqueles danos no muro naquele momento.
O Sr. Eng. autor do relatório científico diz em audiência de julgamento que na opinião dele o carro bateu lá sozinho. Quando no relatório diz que os danos no carro e no muro não são compatíveis, ao minuto ao minuto 19:29 Meritíssima Juíza: Então o que acha que aconteceu?
Testemunha: Bateu no muro antes de colidir com este carro, sem intervenção deste carro.
XXXI) Este relatório diz-nos que os danos não correspondem quer em altura, quer em textura. Porém, este relatório científico foi feito com as fotografias do averiguador que não veio a tribunal explicar como as tirou, como tal não devem ser valoradas, nem o Autor teve possibilidade de verificar se tais são verdadeiras, pois só foi conhecedor da averiguação após intentar ação em tribunal. Posto isto, sempre se dirá que normalmente os danos em qualquer acidente são causados de uma forma dinâmica e as medidas são tiradas de uma forma estática após o acidente, onde eventualmente as suspensões ficam danificadas, que deve ser o caso atendendo à violência do embate no lado das medidas, lado direito do Mercedes. Acresce que é possível que as deformidades resultantes se situem a alturas diferentes ao solo, basta que uma das viaturas acione o sistema de travagem, ou que o piso não esteja ao mesmo nível.
XXXII) O relatório científico confirma que ambos os veículos apresentam uma cor esbranquiçada com textura rugosa nos danos que alegadamente terão sido causados pelo embate entre ambos.
XXXIII) No auto de ocorrência é possível ver que há espaço para fazer o desvio, pois o muro está após o entroncamento, não são 4,60 metros desde o local do acidente ao muro como afirmou o Eng. HH em julgamento contrariando o seu próprio relatório que refere 15 metros na página 37 do relatório.
XXXIV) No relatório da averiguação o perito averiguador tem dúvidas que o sinistro tenha ocorrido conforme o participado e no relatório científico concluem que o sinistro não ocorreu conforme o participado; os peritos criaram dúvidas, mas com o devido respeito, com contradições e fundamentos falsos. Senão vejamos; o Sr. Eng. diz-nos que:
a) Existe um espaço de 4 metros do carro Citroen até o muro, não é o muro que foi derrubado, pois que foi derrubado consta que, após o embate, o VI imobiliza-se a cerca de 15 metros do local provável de embate constante no auto policial.
b) Foi ao local mais ao menos setembro e o relatório científico data de 8 de dezembro de 2017.
c) Assevera que o Autor bateu no muro antes de colidir com este carro, sem intervenção deste carro, o que também contraria o relatório, pois na segunda conclusão afirma que os danos que o VI apresenta na frente são incompatíveis com as características do muro e do poste de madeira.
d) Deslocou-se 4,60 metros após ter batido no outro carro, o que mais uma vez contraria o relatório científico, mais concretamente na página 31, onde afirma que o veículo ter-se-á imobilizado a 7,50 metros de distância do local do alegado acidente.
e) Na página 37 "apos o embate o VI imobilizou-se a cerca de 15 metros do local provável de embate constante do auto policial, conforme representado no croqui elaborado à escala.
XXXV) Quanto aos danos, resulta que os danos causados no veículo do A. resultaram do sinistro em que se viu envolvido com a viatura Citroen, seguro na Y....
XXXVI) De realçar que o veículo do A. era o carro em que o Autor ia de casa para o trabalho e para os seus clientes, o que lhe fez muita falta.
XXXVI) Por tudo isto, a matéria de facto dada como não provada nos pontos impugnados (ponto 1 a 7), deve passar a constar do rol dos factos provados, revogando-se a decisão recorrida, alterando-a por outra que julgue a ação totalmente procedente por provada.
XXXVIII) Em relação à matéria de direito, dispõe o artigo 483, n.º l, do Código Civil que "aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesse alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
XXXIX) Está pois mais do que verificada a culpa do condutor do veículo Citroen, conforme resulta da dinâmica do acidente já descrita, pois violou o sinal de cedência de passagem sinal B2, vulgo STOP, previsto no artigo 21.2 do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de outubro.
XL) O Mercedes estava avaliado em 40.017,00€, conforme avaliação feita pela Ré X... que, para o efeito peritou o veículo e tirou fotografias antes de efetuar o seguro conforme requerimento com ref. s 39922689 e apólice junta com a referência 36691527, bem como com a petição inicial doc.l; como o valor do salvado é de 3.590;00€, conforme comunicação da Ré X..., doc. 4 junto com a petição inicial, assim o prejuízo do Autor em relação ao veiculo foi de 36.427,66€; e de imobilização do veiculo 16.115,00€ o que perfaz 52.542,66€.
XLI) Nestes termos deve a Ré Y... ser condenada no pagamento ao Ré de 52.542,66€ e no pagamento de juros à taxa legal, desde a citação até efetivo pagamento conforme o peticionado.
Pedido Subsidiário
XLII) Contudo, verificando-se concurso de responsabilidades, podemos optar pelo Regime da Responsabilidade Contratual, porquanto este é o regime que melhor tutela os interesses do lesado, nos termos do artigo 799.º 2 do Código Civil.
XLII) Caso se entenda que a R. Y... não deve assumir a responsabilidade no que concerne ao ressarcimento dos danos produzidos na esfera jurídica do Autor, a indemnização integral do prejuízo causado àquele deve ser imputada à R. X..., pois conforme apólice junta por esta, requerimento com referência n.236691527 e doc. n.º 24 junto com a petição inicial, o âmbito de cobertura da apólice do Autor garante o ressarcimento dos danos causados ao veículo do Autor em virtude de choque, colisão e capotamento.
XLIII) Mostram-se assim violados os artigos 35.2 do DL 291/2007 de 21 de agosto, arte. 483.5, 487.2, 342.º, 373.5, 376.2, 362.2, 793.2, 799.º do código Civil e art. 607.2 do CPC, assim como o artigo 128.2 do Decreto-Lei 72/2008 de 16 de Abril e o Decreto-Lei 153/2008 de 06 Agosto.
Ambas as Rés contra-alegaram, opondo-se à procedência do recurso.
Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil:
- da impugnação da matéria de facto;
- medida da reparação ressarcitória dos danos, em caso de perda total;
- do dano da privação do uso.

FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentos de facto
Pretende o A. se altere o juízo de facto constante da sentença, fazendo-se consignar, nos factos provados, algo distinto do que aí se encontra no ponto 11, e dando-se como provados os factos não provados de 1 a 7.
O importante, no segmento do julgamento de facto, é a consideração de que este não é uma operação despida de alguma subjetividade, conquanto a mesma seja explicitada na motivação da decisão e, por via disso, sindicável.
A reconstrução do passado, de um dado recorte da vida, depende dos meios ao dispor, das provas e de entre estas, dos testemunhos. Os testemunhos encerram já em si muito do que é a perceção pessoal, o filtro ou a lente própria que cada pessoa transporta na sua observação da realidade. Depois deste, há a memória e o que nesta permanece, mais ou menos reforçado pelas motivações e enviesamentos próprios, sem esquecer o grau de afastamento ou proximidade com as partes e a noção do que seja uma solução justa. De modo que, como Schopenhauer, pode concluir-se que “a verdade e objetividade de uma afirmação e sua validade em termos de aprovação de opositores e ouvintes são duas coisas muito distintas”[1], isto porque Dico ego, tu dicis, sed denique dixit et ille. Dictaque post toties, nil nisi dicta vides[2].
É neste contexto fluido que se constrói a convicção judicial, a intime conviction na terminologia francesa ou a legal reasoning, para os anglo-saxónicos. Também ela é própria e pessoal, se bem que norteada pelo legislador segundo um critério de prudência em cuja concretização intervêm vetores diferentes como a experiência, o senso comum e mesmo a imediação.
É, pois, por via desta fluidez que o art. 662.º, n.1º CPC prevê o dever funcional a cargo da Relação de alterar a decisão sobre a matéria de facto apenas quando os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Assim, cumprido o ónus a cargo do recorrente que impugna matéria de facto no recurso de apelação, que consiste em especificar, sob pena de rejeição do recurso, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (art. 640.º CPC) e os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo da gravação nele realizada que imponham decisão diversa da recorrida, a Relação deve reapreciar os meios de prova indicados relativamente a esses pontos da matéria de facto que o recorrente questiona, almejando uma autónoma convicção probatória – por isso se fala de segundo grau de julgamento da matéria de facto.
Resulta daqui que a Relação só pode alterar as respostas dadas à matéria de facto quando a reapreciação da prova conduza com segurança a um resultado diverso, não se exigindo apenas erro notório.
Sobre a forma como há-de processar-se a reapreciação da decisão da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, foi proferido ac. pelo STJ, em 7.9.2017, no processo nº 959/09.2TVLSB.L1.S1:
“1. É hoje jurisprudência corrente, mormente do STJ, que a reapreciação, por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.
2. No âmbito dessa apreciação, dispõe o Tribunal da Relação de margem suficiente para, com base na prova produzida, em função do que for alegado pelo impugnante e pela parte contrária, bem como da fundamentação do tribunal da 1.ª instância, ajustar o nível de argumentação probatória de modo a revelar os fatores decisivos da reapreciação empreendida.
3. Todavia, a análise crítica da prova a que se refere o n.º 4 do artigo 607.º do CPC, mormente por parte do Tribunal da Relação, não significa que tenham de ser versados ou rebatidos, ponto por ponto, todos os argumentos do impugnante nem que tenha de ser efetuada uma argumentação exaustiva ou de pormenor de todo o material probatório. Afigura-se bastar que dessa análise se destaquem ou especifiquem os fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do tribunal.
(…)
5. O nosso regime de sindicância da decisão de facto pela 2.ª instância tem em vista não um segundo julgamento latitudinário da causa, mas sim a reapreciação dos juízos de facto parcelares impugnados, na perspetiva de erros de julgamento específicos, o que requer, por banda do impugnante, uma argumentação probatória que, no limite, os configure.
Ainda sobre a questão do critério a seguir na reapreciação da decisão da matéria de facto, veja-se o ac. RC de 7.2.2017 (3029/15.0T8VIS.C1);"O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade. Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova, o juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.
Comentando este ac., escreve Teixeira de Sousa, a 18.5.2017, no blogue do IPPC:
É verdade que os elementos de que a Relação dispõe não coincidem -- nomeadamente, em termos de imediação -- com aqueles que a 1.ª instância tinha ao dispor para formar a convicção sobre a prova do facto. No entanto, isso não significa que, como, aliás, o STJ tem unanimemente entendido, nem que a Relação esteja dispensada de formar uma convicção própria sobre a prova do facto, nem que funcione uma presunção de correcção da decisão recorrida.
Importa, pois, verificar quais os elementos que devem ser considerados pela Relação para a formação da sua convicção sobre a prova produzida. Quanto a estes elementos, há uma diferença entre a 1.ª instância e a Relação: a 1.ª instância apenas dispõe dos meios de prova; a Relação dispõe daqueles meios e ainda da decisão da 1.ª instância. Como é claro, esta decisão, cuja correcção incumbe à Relação controlar, não pode ser ignorada por esta 2.ª instância.
É neste sentido que se pode afirmar que, no juízo sobre a confirmação ou a revogação da decisão da 1.ª instância, a Relação pode utilizar um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação. Correspondentemente, a decisão deve ser revogada se a mesma se situar fora desta margem.
Tendo em conta estes pressupostos, temos que o caso que se nos propõe respeita à verificação ou não de um acidente de viação.
O A. descreve-o na petição inicial, valendo-se do que consta da participação policial e da declaração amigável que subscreveu com o condutor do outro veículo supostamente interveniente.
As Rés suportam-se num relatório de averiguações e num outro de investigação científica de acidente, este último subscrito por duas pessoas que foram inquiridas em audiência, e com base naqueles relatórios e nestes testemunhos, expressam a convicção de não ter ocorrido qualquer sinistro, com o que acabam por traz à liça a hipótese de encenação de sinistro para efeitos de burla relativa a seguros (art. 219.º CP).
A sentença não deu como provada a ocorrência do sinistro por considerar serem insuficientes as declarações do A., inócuos a participação policial do sinistro e a declaração amigável e imprestável o testemunho de terceira pessoa que terá ouvido o barulho e espreitado através da janela.
Não tendo sido inquirido o terceiro interveniente, que faltou à audiência por duas vezes (segundo atestado médico, por se encontrar a efetuar quimioterapia), salienta a sentença “que, se o embate ocorreu pela forma descrita pelo A. na petição inicial, os danos que ambos os veículos apresentam são, com efeito, incompatíveis, face à dinâmica descrita, bem como a velocidade alegada e a ausência de rastos de travagem ou despiste na via, sendo que tais incompatibilidades criam a duvida sobre a realidade do facto”.
A primeira questão colocada pelo A. é um argumento retirado do art. 35.º, n.º 3, do DL 291/2007, de 21.8, por ter sido subscrita por ambos os condutores declaração amigável.
Estipula aquele normativo que, quando a participação do sinistro seja assinada conjuntamente por ambos os condutores envolvidos no sinistro, se presume que o sinistro se verificou nas circunstâncias, nos moldes e com as consequências constantes da mesma, salvo prova em contrário por parte da empresa de seguros.
Resultaria, assim, uma norma de direito probatório material, em concatenação com a previsão do art. 344.º, n.º 1 CC, que dispensaria a parte que, em princípio, estaria onerada com o ónus da prova, da prova do facto constitutivo do seu direito, cabendo a contraprova do facto contrário à outra parte.
Todavia, aquele art. 35.º insere-se no capítulo do citado diploma relativo aos procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel (art. 31.º), só tendo aplicação no âmbito da resolução extrajudicial dos litígios.
Uma vez frustrada essa fase graciosa, em contencioso judicial, já a declaração amigável é um documento particular que faz prova plena quanto às declarações, isto é, que as mesmas foram efetuadas (art. 376.º, n.º 1 CC), mas os factos a que se referem as declarações apenas se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (n.º 2).
Neste sentido podem ver-se, v. g., ac. RL, de 2.10.2012, Proc. 483/12.6YRLSB-1[3], ac. RG, de 4.4.2013, Proc. 518/10.7TBFLG.G1[4] e ac. RP, de 1.12.2014, Proc. 371/16.8TBVNG.P1[5]
Sendo assim, cabe ao A. a demonstração dos elementos factuais donde promana a obrigação de indemnizar, começando pelo facto ilícito e culposo.
E, aqui, a primeira observação que se impõe é a de que, no dia em causa, 30.6.2017, o veículo do A. e o veículo segurado pela Ré Y... se encontravam no local indicado na petição como sendo o da ocorrência do acidente e apresentavam danos materiais. É isso que resulta da participação policial elaborada pelo agente da PSP, ouvido em audiência, EE, e bem assim, do testemunho de DD, moradora no local, que ouviu o barulho e viu o carro do A. já contra o muro onde foi encontrado pelo agente da PSP, estando este muro destruído. Acrescentou esta última testemunha que aquele é um local onde ocorrem muitos acidentes, tanto que “ainda agora o muro está lá todo escavacado”.
Sendo assim, o A. efetuou uma prova de primeira aparência.
Ora, «a prova da primeira aparência é um mecanismo de aligeiramento do ónus probatório, cujo ponto de partida, mais do que no facto conhecido, como sucede na presunção, reside na máxima da experiência em si. A prova prima facie não é um mecanismo da inversão do ónus da prova, não dispensa o demandante da atividade probatória, não faz recair sobre o demandado a prova do contrário, exigindo apenas, para o seu afastamento, a produção de contraprova. Quer isto dizer que, àquele contra quem se apresenta a primeira aparência, incumbe apenas “infirmar o juízo de probabilidade bastante, assente nas lições práticas da vida e na experiência do que acontece normalmente”, assim fazendo renascer o ónus da prova pleno a cargo daquele a quem a primeira aparência beneficiava» (ac. RG, de 12.3.2020, Proc. 564/18.2T8FAF.G1).
Desta forma, o que cabe verificar é se as Rés lograram infirmar aquela primeira aparência, mediante a demonstração com grau de probabilidade razoável de terem as circunstâncias em causa – dois veículos com aparência de sinistrados por ocorrência de acidente de viação – sido encenadas pelos intervenientes, o aqui A. e o condutor do Citroen VH.
E, neste tocante, a explicação da sentença revela-se algo frouxa e, aqui e ali, incompreensível.
Começa por afastar as declarações do A., sem indicar o vício intrínseco e concreto que as inquinaria.
Ora, a verdade é que não existe uma patologia interna que manche, de imediato e abstratamente, as declarações da parte na prova de factos que à mesma compete demonstrar.
Como se escreve no ac. RG, de 18.1.2018, Proc. 294/16.0Y3BRG.G1, citando ac. da mesma Relação, de 20.4.2017, Proc. n.º 2653/15.6T8BRG.G1, em face do novo CPC, o depoimento de parte, na parte não confessória pode ser livremente apreciado pelo julgador. Ponto, é claro está, que se tenham as devidas cautelas, já que se trata por natureza de um depoimento interessada.”
Acrescentando que este meio de prova se dirige “às situações de facto em que apenas tenham tido intervenção as próprias partes, ou relativamente às quais as partes tenham tido uma percepção directa privilegiada em que são reduzidas as possibilidades de produção de prova (documental, testemunhal ou pericial), em virtude de terem ocorrido na presença circunscrita das partes. (…) Importa salientar que tais declarações serão sempre livremente apreciadas pelo tribunal, conforme resulta do nº 3 do artigo 466.º do CPC., na parte em que não representem confissão”.
Citando Lebre de Freitas (A acção Declarativa Comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013, pág. 2), escreve-se ainda que “atualmente é comumente aceite que as declarações de qualquer uma das partes, proferidas em depoimento de parte, ainda que não sejam susceptíveis de levarem à confissão, não impedem o Tribunal de se socorrer das mesmas para melhor esclarecer e apurar a verdade dos factos, estando sujeitas à livre apreciação do julgador, ao abrigo do disposto no artigo 361º do C.C., conjugadas com os demais meios probatórios”.
No mesmo sentido, Luís Filipe Sousa (As Malquistas Declarações de Parte, Revista Julgar, julho de 2015, 20150713-ARTIGO-JULGAR-AS-MALQUISTAS-DECLARAC¸OES-DE-PARTE.pdf): “Num sistema processual civil cuja bússola é a procura da verdade material dos enunciados fáticos trazidos a juízo, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação não pode estar condicionada a máximas abstratas pré-assumidas quanto à sua (pouca ou muita) credibilidade mesmo que se trate das declarações de parte. Se alguma pré-assunção há a fazer é a de que as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. A aferição da credibilidade final de cada meio de prova é única, irrepetível, e deve ser construída pelo juiz segundo as particularidades de cada caso segundo critérios de racionalidade”.
Não vemos, por isso, por que razão não admitir as declarações de parte do A. que, ouvidas agora em segunda instância, nos pareceram claras, sem hesitações, falta de firmeza ou defensivas que indiciassem – quanto ao sinistro - comprometimento resultante de uma atuação criminosa como a pressuposta na burla de seguros. Verifica-se, todavia, uma nota dissonante nas suas declarações: o autor negou explicitar de onde provinha (sendo também interessante saber para onde se dirigia) àquela hora da manhã. Sendo certo poder antever-se existirem razões de ordem íntima que justifiquem reserva quanto a determinadas circunstâncias, a verdade é que a ter-se invocado – com prova circunstancial não despicidenda – uma possível burla de seguros, não se compreende aquela reserva na demonstração do sinistro e é importante que se deslinde essa situação.
Concentremo-nos nos restantes meios à disposição.
Não vemos, como se diz na sentença, existir contradição entre o relato dos condutores contido na participação policial e o integrante na declaração amigável. Em ambos se narra o acidente de modo consentâneo com a pi, sendo absolutamente inócuo que na declaração amigável não se diga quem bateu em quem, sendo certo que aí se refere que o veículo segurado da Y... provocou o embate.
Contudo, neste segmento, é importante apurar o que disse o A. nas suas declarações. A saber, a intervenção do mediador na elaboração da declaração amigável, posto atribuir-se a este o preenchimento, pelo menos parcial, deste documento.
Também não resulta sinal em favor da burla a indicação de danos na traseira do Mercedes do A. Sendo certo que o embate terá sido na frente deste veículo, seria muito imprudente, na perspetiva de quem pretende enganar terceiros, assinalar estes danos na traseira. De resto, sequer foi perguntado ao A. a razão dessa indicação, o que deveria ter sido, assim como àquele mediador.
Resta, assim, verificar os motivos que, de forma sucinta e sem densificar, foram considerados pela sentença para tornar provável, em grau razoável, a existência de uma encenação de acidente, própria da burla de seguros.
Respeitam as mesmas ao elenco de conclusões contidas na chamada investigação científica de acidente, corroborada em audiência pelos respetivos subscritores, II e HH.
Consignou-se, neste documento, o seguinte:
Com base no local provável de embate assinalado pelos condutores, assim como nas posições finais dos veículos, em termos cinemáticos o veículo V1 de matrícula ..-SN-.. teria de ter uma velocidade no momento pré impacto de 65 Km/h, considerando as deformações visíveis no mesmo e o local onde este terá ficado imobilizado.
Do ponto estático os danos que o veículo V1 apresenta na frente, não são compatíveis com as características do muro e do poste de madeira onde alegadamente terá embatido, pois este tipo de construção não possui uma resistência ao impacto passível de provocar as deformações verificadas na frente do veículo V1 em termos de intensidade.
Assim sendo, e considerando a energia necessária para provocar os danos da frente do veículo V1, então a posição final deste nunca poderia ser a constante do auto policial, pois uma vez que o muro e o poste de madeira não têm resistência para aguentar forças de impacto desta natureza, a energia remanescente faria com que o veículo imobilizar-se-ia no interior da propriedade pela inércia do movimento.
Por outro lado, os danos provocados alegadamente pelo embate do lateral direito do veículo V1, com o para-choques da frente do veículo V2 também não correspondem quer em altura, quer em textura.
Ambos os veículos apresentam uma cor esbranquiçada com textura rugosa nos danos que alegadamente terão sido causados pelo embate entre ambos, porém e contrariamente ao que seria expectável não existe transferência de cor quer numa quer noutra viatura.
Em termos dinâmicos, considerando o sentido de circulação do veículo V1 de matrícula ..-SN-.., o cruzamento à direita com a Rua ... surge no seu campo visual a cerca de 120 metros de distância, necessitando este apenas de 27,93 metros para imobilizar o veículo em perfeitas condições de segurança se circulasse à velocidade declarada e considerando já o tempo de reação do condutor.
Acresce ainda, que considerando os danos ao longo do lateral direito do veículo V1, a descrição de sinistro feita pelos intervenientes resulta numa incongruência, pois a posição relativa dos dois veículos nas circunstâncias declaradas inabilitava a manobra de desvio por forma ao veículo V1 posicionar-se conforme consta de croqui do auto policial, dado que o veículo já não tinha espaço suficiente para realizar esta manobra.
De salientar ainda, que a velocidade de circulação declarada, a manobra de desvio anteriormente referida faria com que o veículo entrasse automaticamente em subviragem e/ou capotamento.
Observando criticamente estes argumentos, verificamos, desde logo, não ter sido debatida a questão da velocidade a que seguia quaisquer dos condutores (nem na pi isso se refere), pelo que a primeira das indicadas conclusões nada nos diz sobre a inverdade da versão do A.
Seria importante, convidar o A. a esclarecer este pormenor.
Também não vemos como possa afirmar-se não terem os danos do Mercedes, por extensos, sido produzidos pelo muro e poste de madeira, onde terá embatido depois do embate no terceiro veículo e, menos ainda, que este tivesse que passar para a zona do interior da propriedade caso ali tivesse embatido. É que não há dúvida que se verificou aquele embate (a testemunha DD ouviu-o, no local acharam-se vestígios do automóvel – cfr. ponto 5. de p. 18 da tal investigação científica – e o agente da PSP viu ali o veículo), pode é o embate não ter sido antecedido pela presença do terceiro veículo, nisso se centrando o embuste.
Ora, é consabido que a construção dos veículos hodiernos prioriza a segurança, em caso de sinistro, sendo os automóveis (nomeadamente a carroçaria) construídos de modo menos robusto para evitar danos aos ocupantes. Os fabricantes projetam os carros para se deformarem em colisões e absorverem parte da energia do impacto. Os testes de impacto promovidos pela indústria automobilística ao longo das décadas mostraram que as antigas carrocerias extremamente rígidas traziam mais danos aos passageiros, pois não eram capaz de dissipar a energia do impacto.
Assim, não é necessário que o muro seja em concreto ou de betão para que, colidindo sobre o mesmo de forma violenta, um veículo fique com a frente destruída, como a que se observa no SN.
Depois, também se não vê que fosse necessário existir transferência de tinta entre os dois veículos para se demonstrar ter havido colisão entre eles. Já se percebeu que o embate na esquina da frente, esquerda, do VH não terá sido violento porque este veículo apresenta apenas os pequenos danos que se observam nas fotografias dos autos. Porém, nem isso surpreende porque compatível com a alegação de que o A., surpreendido por este veículo, que provinha da sua direita (não respeitando o Stop), se desviou para a sua esquerda, razão pela qual foi embater no muro e poste do outro lado da via.
Finalmente, não se antolha o sentido da última conclusão pois que se nos afigura perfeitamente possível que, depois de embater no VH, com a sua direita (e, daí, os danos ao longo da lateral direita), o SN se desviasse para a sua esquerda.
Para que o tribunal de primeira instância pudesse concluir de forma distinta, seria mister que, em inspeção ao local – que não realizou – porventura com reconstituição do sinistro, apurasse a incongruência a que alude de forma conclusiva a perícia privada da Ré.
Aqui chegados, temos diligências de prova que se impunham:
- inspeção ao local;
- reconstituição do acidente:
- perícia equidistante e objetiva, com perito nomeado pelo tribunal, para confirmar ou infirmar o resultado a que chegaram as pessoas que, ao serviço das Rés, averiguaram o sinistro consignando as suas conclusões nos dois relatórios juntos aos autos.
Sendo assim, ao abrigo do disposto no art. 662.º, n.º 2 als. a) e b) CPC, relativamente aos pontos 1 a 5 da matéria de facto não provada, entende-se ser de renovar a prova por declarações de parte do autor, no tocante àquelas duas circunstâncias, velocidade, local de proveniência e de destino.
Mais será de produzir novos meios de prova:
- inquirição do mediador que interveio na redação da declaração amigável;
- se possível, a inquirição do terceiro interveniente no acidente;
- inspeção ao local;
- reconstituição do acidente;
- perícia com perito nomeado pelo tribunal;
- outras diligências, mormente inquirição de testemunhas, em função das novas declarações prestadas pelo autor.
Resta a observação dos factos relativos às consequências do sinistro.
Quanto ao ponto 11 dos factos provados - O custo de reparação do veiculo do A. é de € 35.553,94 e valor do salvado é de € 3.590,00 – entende o A. que não deveria o tribunal considerar existir acordo entre as partes, devendo antes dar-se como provada a comunicação da Ré X... que refere aqueles factos.
Todavia, compulsando a pi, verificamos que o A. em lado algum coloca em causa estes elementos factuais. Certo afirmar ter a X... concluído que a reparação do Mercedes ascendia a € 35.553,94, e que o valor do salvado era de € 3.590,00. Mas a sua discordância não era relativamente a estes valores – não indicando quaisquer valores alternativos -, aceitando a perda total e fazendo a sua proposta de indemnização de € 40.017,66, menos o valor dos salvados de € 3.590,00 (art. 16.º da pi).
Sendo assim, é de manter o facto em apreço.
Relativamente ao ponto não provado - 6. A viatura do Autor era permanentemente utilizada nas suas deslocações diárias no âmbito da sua atividade de comércio de produtos alimentares.
O A. não indica qual a prova a considerar para ter como certos estes factos, não vendo nós que diferente perspetiva encetar para infirmar o juízo da primeira instância, pelo que este facto se mantém não provado.
Quanto ao ponto 7 não provado - O valor do veículo do A. é de € 40.017,66 - não foi obtida qualquer informação oficial, da marca e importadora, que tivesse em conta as caraterísticas concretas do mesmo (ano de fabrico, modelo, cilindrada, etc…), a fim se se apurar este ou outro montante que possa servir como referência – em caso de apuramento da responsabilidade de uma ou de ambas as Rés – para valorar a chamada perda total e valor de substituição.
Também o autor deverá informar há quanto tempo detinha o veículo, por quanto e como o adquiriu.
É, pois, de obter tal prova.

Dispositivo
Pelo exposto, decidem as Juízas deste tribunal da Relação anular a decisão recorrida e ordenar a renovação da prova, bem como a produção de nova prova, nos termos acima explicitados.
Sem custas.

Porto, 14.12.2022
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca
Maria José Simões
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[1] A arte de ter sempre razão, disponível em português em https://kosmotheories.files.wordpress.com/2016/02/38-estrategias-para-vencer-qual-arthur-schopenhauer.pdf
[2] Eu o digo, tu o dizes, mas, ao final aquele também o diz.
Depois que o disseram tantas vezes, não se vê outra coisa a não ser o que foi dito.
Ibidem.
[3] Tanto a Declaração Amigável de Acidente Automóvel subscrita, a um tempo, pelo lesado autor na acção e pelo segurado da companhia de seguros ré, como a Participação de Sinistro apresentada à mesma seguradora pelo seu segurado, que contenham ambas uma descrição fáctica do acidente de viação coincidente, na sua essência, com a que consta da PI da acção instaurada contra a seguradora, não possuem força probatória plena, no confronto da seguradora ré na acção, já que não estão subscritos por alguém que a represente ou obrigue.
5. A tanto não obsta o disposto no art.º 35º, n.º 3, do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto (que aprovou o novo Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), quando estatui que: “Quando a participação do sinistro seja assinada conjuntamente por ambos os condutores envolvidos no sinistro, presume-se que o sinistro se verificou nas circunstâncias, nos moldes e com as consequências constantes da mesma, salvo prova em contrário por parte da empresa de seguros.”. Efectivamente, esta norma de direito probatório material apenas vigora no âmbito do procedimento tendente à regularização extrajudicial dos sinistros ocorridos no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel instituído nos artigos 31º a 46º do cit. DL. nº 291/2007 – como resulta, inequivocamente, da sua inserção sistemática num capítulo do diploma que apenas tem por objecto fixar “as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel.” (cfr. o cit. art.º 31.º) -, pelo que não derroga as regras de direito probatório material contidas no Código Civil, designadamente, nos seus artigos 342º, nºs 1 e 3, e 487º, nº 1.
[4] I – A declaração amigável de acidente automóvel subscrita pelo lesado autor na acção e pelo segurado da seguradora ré, que contenha uma descrição fáctica do acidente de viação coincidente, no essencial, com a que consta da petição inicial da acção instaurada contra a seguradora, não possui força probatória plena, no confronto da seguradora na acção, uma vez que não foi subscrita por alguém que a represente ou obrigue. II – A tanto não obsta o disposto no artigo 35º, nº 3, do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto (que aprovou o novo Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), que apenas vigora em sede do procedimento tendente à regularização extrajudicial dos sinistros ocorridos no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel instituído nos artigos 31º a 46 do citado diploma legal, não derrogando assim as regras de direito probatório material contidas nos artigos 342º, nºs 1 e 3 e 487º, nº 1, do Código Civil.
[5] (…) a eficácia probatória de um documento particular diz apenas respeito à materialidade das declarações e não também à exactidão das mesmas, como supra se referiu, a veracidade daquelas só fica provada quando for contrária aos interesses de quem a emitiu e esses interesses estejam em causa. Ora, como nos parece evidente, a declaração amigável não é contrária aos interesses da Autora apelante quando produzida pelo marido, ou seja, ela não tem qualquer valor confessório para os efeitos pretendidos. Aliás, era o que mais faltava que uma simples declaração favorável aos interesses do declarante fizesse prova dos factos nela contidos”.