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ARMA PROIBIDA
ELEMENTOS SUBJECTIVOS DO TIPO
Sumário
“O dolo é o elemento subjetivo do tipo de crime que consiste no conhecimento (elemento intelectual) dos elementos objetivos desse tipo e na vontade (elemento volitivo) de praticar um certo ato ou de atingir um certo resultado - dolo corresponde, portanto, ao conhecimento e à vontade de praticar um certo ato que é tipificado na lei como crime. O elemento intelectual, ou seja, o conhecimento, desdobra-se em dois vetores, quais sejam, o descritivo e o normativo. Os elementos descritivos do facto típico correspondem a conceitos da linguagem comum, vulgar, como, por exemplo, pessoa para o crime de homicídio e coisa para os crimes de furto ou dano. Os elementos normativos do facto típico são aqueles que, constando do tipo, não são reconduzíveis à linguagem comum, consistindo em conceitos jurídicos derivados de regras legais, como, por exemplo, coisa alheia ou arma branca. Assim, em todos os tipos de dolo, é necessário, em primeiro lugar, representar um facto que preenche um tipo de crime. Representar é um vocábulo com imensos significados, mas o que para aqui importa é o de “trazer à memória”. Assim, representar é ter presente no intelecto, na memória, um determinado cenário (palavra também intimamente ligada à representação), por assim dizer, que corresponde a um (tipo de) crime previsto na lei. Só depois de realizar esta operação intelectual, racional, é possível então atuar com o intuito de levar a cabo a cena que se representou no intelecto. A inclusão na acusação e nos factos dados como provados das sacramentais fórmulas o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente e sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei não é suficiente para demonstrar o preenchimento da tipicidade subjetiva. O chamado elemento emocional do dolo tem que ver com a culpa, ou, mais rigorosamente, com o tipo de culpa, e não propriamente com o dolo. O caso julgado do despacho de recebimento da acusação em processo penal impede apenas que se profira, depois daquele, um despacho a rejeitar a acusação. Todos os poderes do tribunal na apreciação da perfeição técnica da acusação se mantêm incólumes, como não podia deixar de ser, bem como a total liberdade de absolver ou condenar, fundamentadamente, em conformidade.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I RELATÓRIO
No processo n.º 230/21.1FLSB, que correu termos no Juízo Local Criminal de Lisboa – J 12, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, teve lugar a audiência de julgamento, na qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: a) Absolve-se o arguido A, da prática, do crime de que se encontra acusado. Objectos: b) Ao abrigo do disposto no artigo 109º, n.º 1, do Código Penal, declara-se perdida a favor do Estado a faca que se encontra apreendida no âmbito dos presentes autos e respectivo coldre de transporte (auto de apreensão que constitui fls. 8). * Sem custas.
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Não se conformando com a decisão, o Ministério Público interpôs o presente recurso, no qual formulou as seguintes conclusões: a) O Ministério Público deduziu acusação (fls. 89 a 91), para julgamento em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, pelos factos ali descritos que aqui se dão por integralmente reproduzidos, contra o arguido A imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos do artigo 86º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23.02, por referência ao disposto nos artigos 2º, n.º 1, alínea m), e 3º, n.º 2, alínea ab), do mesmo diploma legal. b) Como bem resulta do despacho proferido em 20/04/2022 que recebeu a acusação, transitado em julgado, caso julgado formal, o Mmº Juiz “a quo” decidiu, atentos os fundamentos materiais invocados e a sua correção formal, receber a acusação inserta nos autos, deduzida pelo Ministério Público, a fls. 89 a 91, contra o arguido A Martins - melhor identificado no despacho de acusação -, pelos factos nela descritos e qualificação jurídica. c) Mantendo-se a instância válida e regular, da audiência de julgamento resultou provado que: 1º) No dia 19.02.2021, por volta das 22h40m, na Rua Douradores, n.º 134, em Lisboa, o arguido tinha consigo uma faca afeta à prática venatória, com 30,2 cm de comprimento total e 17,2 cm de comprimento de lâmina. 2º) A faca referida em 1) encontrava-se fora do local do seu emprego normal. 3º) O arguido não justificou a posse da faca referida em 1) e não tinha quaisquer motivos para a deter no circunstancialismo de modo, tempo e lugar ali referido. 4º) Ao actuar do modo acima descrito, o arguido: - Agiu de forma livre, deliberada e consciente; - Sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei. d) Como bem resulta do texto da decisão recorrida, encontra-se preenchido, na sua globalidade, o elemento objetivo do artigo 86º. e) No que concerne ao preenchimento do elemento subjetivo do tipo do crime, o Mmº Juiz “a quo” entendeu que “apenas” se provou que, ao actuar do modo acima descrito, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, e sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei, factualidade que, entende, é insuficiente para o preenchimento do elemento subjetivo, absolvendo em consequência o arguido da prática do crime imputado. f) Afigura-se-nos que o assim decidido quanto ao (não) preenchimento do elemento subjetivo do tipo do crime padece de erro de julgamento de direito, com violação do artigo 86º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23.02, por referência ao disposto nos artigos 2º, n.º 1, alínea m), e 3º, n.º 2, alínea ab), ambos do mesmo diploma legal, e 14º do C.P.. g) O dolo traduz-se num saber (ou, pelo menos, representar) e num querer, tendo factualmente que resultar dos factos narrados na acusação que o agente representou e quis os factos do tipo objetivo - os factos do dolo do tipo, os quais não são de especificação obrigatória no despacho de acusação, sob pena de o terem de ser todos os restantes elementos da doutrina do crime. h) Na verdade, da leitura do despacho de acusação resulta o infundado da referida afirmação exarada na sentença recorrida, já que a descrição do dolo não exige especificação, sendo suficiente o enunciado “o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente”, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei, o que não é infirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015. i) A acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito. j) Analisando os factos narrados na acusação e aproveitáveis para uma conclusão sobre o preenchimento do dolo (do tipo), conclui-se que a mesma os descreve, minimamente é certo, mas ainda suficientemente, sendo certo que o ónus de especificação factual do dolo inclui os factos relativos ao dolo do tipo e não impõe a narração dos factos relativos ao dolo da culpa e, por isso, também não é exigível a narração factual do elemento emocional do dolo, sob pena de terem de ser então descritos todos os restantes elementos da doutrina do crime, o que se apresenta como indefensável. l) Esta factualidade, ainda que possa não ter sido alegada de forma exemplar, permitirá ter por preenchido o dolo genérico, traduzido na intenção e vontade de praticar o facto, sabendo que o mesmo era ilícito (elementos volitivo e intelectual do dolo), bem como o dolo específico/ intenção, e ainda a consciência da ilicitude (elemento emocional do dolo), contendo assim, de modo suficiente, a totalidade dos elementos subjetivos do tipo de crime de imputado ao arguido. m) A assim se não entender, o vício formal de falta de narração na acusação de factos relativos aos elementos subjetivos do tipo pode ser suprido mediante o procedimento previsto no art. 358.º do CPP, por razões que se prendem com o princípio ou regra da conservação dos atos processuais inválidos. n) Tendo o Mmº Juiz “a quo”, por despacho proferido em 20/04/2022 ao abrigo do disposto no art.311º do C.P.P., atentos os fundamentos materiais invocados e a sua correcção formal, recebido a acusação inserta nos autos, deduzida pelo Ministério Público, a fls. 89 a 91, contra o arguido A Martins - melhor identificado no despacho de acusação -, pelos factos nela descritos e qualificação jurídica, que aí dá por integralmente reproduzido e tendo depois, em sede de sentença proferida em 2/06/2022, dando como provados os factos narrados no despacho de acusação e entendendo agora não se mostrar neste indicado o elemento subjetivo do tipo do crime imputado ao arguido, o assim decidido violou o caso julgado formal da decisão proferida ao abrigo do disposto no art.311º do C.P.P. transitada em julgado e o princípio do esgotamento do poder jurisdicional. o) A não rejeição da acusação no momento próprio frustrou a pretensão punitiva do Estado, impedindo a decisão surpresa proferida em sede de sentença a dedução de nova acusação/correção que suprisse a tida por insuficiente narração do elemento subjetivo do tipo do crime imputado ao arguido. p) Face a todo o exposto, ao decidir como decidiu, o Mmª Juiz “a quo” na douta sentença recorrida violou o disposto nos arts.86º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23.02, por referência ao disposto nos artigos 2º, n.º 1, alínea m), e 3º, n.º 2, alínea ab), do mesmo diploma legal, 14º do C.P., 311º e 358º do C.P.P. e 282º, nº3, da C.R.P.. Termos em que, decidindo em conformidade com as conclusões que antecedem, deve ser revogada a douta sentença e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos do artigo 86º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23.02, por referência ao disposto nos artigos 2º, n.º 1, alínea m), e 3º, n.º 2, alínea ab), do mesmo diploma legal, não deixando assim V.Exªs de, em alto critério, fazer a habitual justiça.
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Não foi apresentada resposta.
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Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu o seu parecer, pugnando pela procedência do recurso, aderindo aos fundamentos invocados na motivação apresentada na primeira instância.
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Foi dado cumprimento ao disposto ao art.º 417.º, n.º 2, do CPP, nada tendo sido dito.
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Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
II FUNDAMENTAÇÃO
1 Objeto do recurso:
A
Os factos dados como provados na decisão recorrida permitem a conclusão de que se encontra preenchido na sua totalidade o elemento subjetivo do tipo, ou dolo, designadamente quanto ao seu segmento intelectual?
B
Em caso de resposta afirmativa à anterior questão, deve ser revogada a decisão recorrida e proferida decisão de condenação do arguido pela prática do crime pelo qual está acusado?
2 Decisão recorrida (excerto relevante): 2) Fundamentação: 2.1) De facto: (…) 2.1.1.1) Provados: 1º) No dia 19.02.2021, por volta das 22h40m, na Rua Douradores, n.º 134, em Lisboa, o arguido tinha consigo uma faca afecta à prática venatória, com 30,2 cm de comprimento total e 17,2 cm de comprimento de lâmina. 2º) A faca referida em 1) encontrava-se fora do local do seu emprego normal. 3º) O arguido não justificou a posse da faca referida em 1) e não tinha quaisquer motivos para a deter no circunstancialismo de modo, tempo e lugar ali referido. 4º) Ao actuar do modo acima descrito, o arguido: - Agiu de forma livre, deliberada e consciente; - Sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei. 5º) No certificado do registo criminal do arguido, nada consta. 6º) O arguido: - Vive em casa da mãe, com a mesma e com três irmãos; - Não dispõe de qualquer fonte de rendimento, sendo o seu sustento assegurado pela sua mãe; - Não é titular de qualquer meio de transporte próprio; - Não tem filhos; - Tem como habilitações literárias, o 9º ano de escolaridade. (…) 2.2) De direito: 2.2.1) Enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos do artigo 86º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23.02, por referência aos artigos 2º, n.º 1, alínea m), e 3º, n.º 2, alínea ab), ambos do citado regime: Dispõe o artigo 86º do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23.02 (na redacção introduzida pelo artigo 2º da Lei 50/2019, de 24.07, que entrou em vigor no dia 22.09.2019 - artigo 11º da Lei 50/2019, de 24.07). “1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo: (...). d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3º, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão eléctrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, artigos de pirotecnia, excepto os fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6º e 7º do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28.07, e bem assim as munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3º, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias;”. (...). ” * O ilícito penal em apreço, trata-se de um crime comum e de perigo abstracto. As condutas descritas para este tipo legal não lesam assim de forma directa e imediata qualquer bem jurídico, apenas implicam a probabilidade de um dano contra um objecto/pessoa indeterminado, dano esse que a verificar-se será, não raras vezes, gravíssimo. Com esta incriminação pretendeu o legislador evitar toda a actividade idónea a perturbar a convivência social e pacífica, e garantir através da punição destes comportamentos potencialmente perigosos, a defesa da ordem e segurança publicas contra o cometimento de crimes, em particular contra a vida e integridade física. São elementos objectivos do tipo de crime (atento a factualidade imputada ao arguido): - O agente, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente; - Detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo; - Quaisquer dos objectos descritos na supra transcrita alínea d), e nas condições aí referidas. A definição legal de “detenção de arma” consta do artigo 2°, n.° 5, alínea g), do Regime Jurídico das Armas e Munições (na redacção introduzida pelo artigo 1º da Lei 12/2011, a qual entrou em vigor em 02.05.2011 - explicação: 5 dias após a publicação, por inexistir norma a estipular a entrada em vigor na Lei 12/2011, conforme estabelecido no artigo 2º, n.º 2, da Lei 74/98, de 11.11), onde se lê: “Detenção de arma», o facto de ter em seu poder ou disponível para uso imediato pelo seu detentor”. É elemento subjectivo do tipo o dolo, uma vez que o crime não é punido a título negligente. Verificando-se que, as armas detidas pelo agente da conduta se encontram previstas nas diferentes alíneas do citado normativo legal, há que punir o mesmo pelo crime mais grave, funcionando as demais armas como meras agravantes na determinação da medida concreta da pena (No mesmo sentido, vide acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01.10.2014, processo n.º 341/09.1PBCHV.P1, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.01.2014, processo n.º 82/13.5GCFVN.C1 e acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.11.2011, processo n.º 92/10.4GAENT.E1, todos disponíveis na internet, em www.dgsi.pt). * No caso em apreço, encontra-se provado que o arguido detinha, fora das condições legais (o artigo 4º, n.º 1, do Regime Jurídico das Armas e Munições preceitua: “1 - São proibidos a venda, a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte de armas, acessórios e munições da classe A).” e não se verifica qualquer das excepções previstas no n.° 2)), a faca identificada no facto provado n.º 1), que pelas suas características específicas (é um instrumento portátil dotado de uma lâmina de comprimento igual ou superior a 10 cm - arma branca), pelo facto de se tratar de um objecto afecto à prática venatória, pelo facto de ter sido encontrada fora do local do seu emprego normal (o arguido estava na rua e tinha consigo a faca, ou seja, não estava no exercício da caça ou em deslocação para esta actividade) e pelo facto de o arguido não ter justificado a sua posse (disse apenas que a utilizava para a sua segurança), e em razão do disposto no artigo 2º, n.º 1, alínea m), do Regime Jurídico das Armas e Munições (“Para efeitos do disposto na presente lei e sua regulamentação, entende-se por:... m) «Arma branca» todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões;”) e no artigo 3º, n.º 2, alínea ab), do citado regime (“2 - São armas, munições e acessórios da classe A: ... ab) As armas brancas com afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de colecção, quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse;”), se enquadra na supra transcrita alínea d) e, consequentemente, se encontra preenchido, na sua globalidade, o elemento objectivo do artigo 86º. Veja-se, agora, o elemento subjectivo. A este propósito, apenas se provou a seguinte factualidade: “Ao actuar do modo acima descrito, o arguido: - Agiu de forma livre, deliberada e consciente; - Sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei.” Esta factualidade é insuficiente para o preenchimento do elemento subjectivo, na medida em que, na acusação, não consta especificado factualmente qualquer das situações de representação previstas no artigo 14º do Código Penal, o mesmo é dizer, por exemplo, que o arguido representou que, ao estar na posse da faca em apreço, cujas características conhecia, estava na posse de tal objecto fora da condições legais e, ainda assim, quis ter consigo tal objecto, ou representou que, ao estar na posse da faca em apreço, cujas características conhecia, necessariamente estaria na posse de tal objecto fora da condições legais, e, ainda assim, quis agir, ou representou que, ao estar na posse da faca em apreço, cujas características conhecia, eventualmente estaria na posse de tal objecto fora da condições legais e, ainda assim, conformando-se com tal possibilidade, quis agir. Por conseguinte, não constando da acusação tal factualidade e não podendo o tribunal fixá-la como provada, sob pena de contrariar, ostensivamente, o acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o qual fixou jurisprudência no sentido de que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º do Código de Processo Penal.” (Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 1/2015, publicado no Diário da República, 1ª série, n.º 18, de 27.01.2015), conclui-se que a factualidade fixada como provada é, por si só, insuficiente para responsabilizar criminalmente o arguido pela actuação que lhe é imputável. Ainda para sustentação do entendimento supra explanado, chama-se à colação o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25.02.2015, processo n.º 290/13.9TACNT.C1, disponível na Internet, em www.dgsi.pt, cujo breve trecho da respectiva fundamentação se transcreve «ipsis verbis» para alumiar o aludido entendimento: “Num crime doloso – só esse está aqui em causa – da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo). Quanto ao elemento volitivo não se basta com a alegação isolada de uma actuação deliberada, mas antes com a descrição do que efectivamente foi querido pelo agente, ou seja, que a arguida quis ofender a honra e consideração do assistente ou que sabiam que as expressões utilizadas eram susceptíveis de ofender, nisso se traduzindo querer praticar um facto criminoso.”, isto é, conforme sumariado no mesmo acórdão, “Não é admissível a presunção do dolo com recurso à factualidade objectiva descrita na acusação; a lei exige a narração, ainda que sintética, dos factos - de todos os factos - que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, não se contentando, pois, com “subentendimentos” ou “factos implícitos. (Nota: os sublinhados e o negrito foram inseridos pelo exponente). Ainda para sustentação do entendimento supra explanado, chama-se à colação, entre muitos outros, os seguintes acórdãos, todos disponíveis na Internet, em www.dgsi.pt, cujo respectivo sumário se transcreve «ipsis vervbis»: - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18.09.2018, processo n.º - 1453/15.8S5LSB.L1-5: “- A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP”. - Se dos fundamentos de facto da decisão recorrida (factos provados) não consta a narração concretizada da factualidade integradora dos elementos do tipo subjectivo do crime imputado (que na acusação pública descritos também se não encontram) preenchidos não estão os elementos típicos desse crime nem, aliás, de qualquer outro, pelo que o recorrente tinha necessariamente de ser absolvido.” - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.09.2018, processo n.º 537/15.7PBPDL.L1-5: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP, sendo necessária a narração, na acusação, dos factos conformadores da consciência da ilicitude, enquanto elemento do dolo da culpa e, consequentemente, da sua comprovação (ou não) em julgamento.” - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2013, processo n.º 327/10.3PGVNG.P1: “I – A acusação necessita de abarcar a declaração expressa do elemento subjectivo do tipo de crime imputado, ... II – Sem essa alegação – que não pode ser suprida – a restante factualidade fica despida de relevância criminal, não podendo conduzir à condenação do arguido ... ”. Por conseguinte, sem necessidade de tecer mais considerações adjuvantes, tanto mais que, não se partilha de fundamentação diversa da fixada no aludido acórdão de fixação de jurisprudência, isto é, não se defende argumentos novos que não foram ali ponderados anteriormente (artigo 445º, n.º 3, do Código de Processo Penal), infra impõe-se absolver o arguido da prática do crime em apreço de que se encontra acusado. * 2.2.2) Destino da faca objecto de apreensão nos presentes autos (auto de apreensão que constitui fls. 8): Com interesse para a decisão parcial ora em apreço, estatuem os seguintes normativos legais: Sob a epígrafe “Perda de instrumentos, produtos e vantagens”, o artigo 109º, n.º 1, do Código Penal: “1 - São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.” (redacção introduzida pelo artigo 10º da Lei 30/2017, de 30.05, que entrou em vigor em 31.05.2017 - artigo 24º da citada lei). Sob a epígrafe “Armas declaradas perdidas a favor do Estado”, o artigo 78º, n.º 1, do Regime Jurídico das Armas e Munições: “1 - Sem prejuízo do disposto em legislação especial, todas as armas que, inexperientemente do motivo, da entrega ou da decisão, sejam declaradas perdidas a favor do Estado, ficam depositadas à guarda da PSP, que promoverá o seu destino.” Considerando; - Que a detenção da faca em causa por parte de um indivíduo, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, consubstancia a prática de um ilícito criminal (normativos legais abordados aquando da apreciação da responsabilidade criminal do arguido); - E o estatuído no supra transcrito artigo 109º, n.º 1. Impõe-se declarar a faca em apreço, e respectivo coldre de transporte, perdida a favor do Estado, cujo destino competirá à Polícia de Segurança Pública. *
3 O direito.
A
O que está em causa nos autos é saber se os factos dados como provados na decisão recorrida permitem ou não a conclusão de que se encontra preenchido (numa perspetiva finalista da teoria da infração penal) o elemento subjetivo do tipo, sob a forma de dolo, designadamente o elemento intelectual deste, uma vez que nenhum dissídio existe sobre o preenchimento do tipo objetivo de crime imputado ao arguido.
A este respeito, dispõe o Código Penal o seguinte: Título II Do facto CAPÍTULO I Pressupostos da punição. (…) Artigo 14.º Dolo 1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar. 2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta. 3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.
Resulta assim da lei que o dolo é um dos pressupostos da punição, ou, mais rigorosamente “(…) um dos fundamentos possíveis da imputação” – cfr. Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, II Vol., pag. 161, AAFDL.
“Dolo quer dizer, como aqui o entendemos, o elemento subjetivo do tipo de crime que consiste no conhecimento dos elementos objetivos desse tipo e na vontade de praticar um certo ato ou de atingir um certo resultado (…) dolo corresponde ao conhecimento e à vontade de praticar um certo ato que é tipificado na lei como crime.” – cfr. ob. cit., loc. cit., pag. 166.
“É vulgar distinguir, dentro do dolo, para efeitos de análise e de entendimento, fundamentalmente, dois elementos: o chamado elemento intelectual e o chamado elemento volitivo. O elemento volitivo corresponde ao elemento querer a prática de um certo facto ou querer a produção de um certo resultado.” – cfr. ob. cit., loc. cit., pag. 166.
“Para se poder dizer que há dolo em relação a um certo crime, é necessário, em primeiro lugar, que o agente tenha conhecimento dos elementos desse mesmo crime. Por exemplo, (…) para se poder dizer que alguém tem dolo de passagem de moeda falsa, esse alguém tem de saber que a moeda que lhe entregam para passar é falsa (..). Todos os elementos essenciais do facto típico, da parte objetiva do tipo de crime tem de ser conhecidos pelo agente para se poder dizer que ele atuou dolosamente e, portanto, preencheu, nesse aspeto subjetivo, o tipo legal e crime.” – cfr. ob.cit., loc. cit, pag. 167.
O elemento intelectual, ou seja, o conhecimento, desdobra-se em dois vetores, quais sejam, o descritivo e o normativo.
Os elementos descritivos do facto típico correspondem a conceitos da linguagem comum, vulgar, como, por exemplo, pessoa para o crime de homicídio e coisa para os crimes de furto ou dano.
Os elementos normativos do facto típico são aqueles que, constando do tipo, não são reconduzíveis à linguagem comum, consistindo em conceitos jurídicos derivados de regras legais: por exemplo, o caráter alheio da coisa subtraída no crime de furto, que resulta das disposições legais sobre o direito de propriedade – cfr. ainda ob. cit., loc. cit, pag. 170, e Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª Edição, pag. 349 e segs., em especial, pag. 351.
A disposição legal do Código Penal acima transcrita contém, evidentemente, estes dois elementos na sua previsão: Age com dolo quem, - representando um facto que preenche um tipo de crime (elemento intelectual), - actuar com intenção de o realizar (elemento volitivo).
Assim, em todos os tipos de dolo, é necessário, em primeiro lugar, tal como ensina a autora que se tem citado, e como diz a lei, representar um facto que preenche um tipo de crime. Representar é um vocábulo com imensos significados, mas o que para aqui importa é o de “trazer à memória” – cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, das Verbo, Vol. II pag. 3204. Assim, representar é ter presente no intelecto, na memória, um determinado cenário (palavra também intimamente ligada à representação), por assim dizer, que corresponde a um (tipo de) crime previsto na lei.
Só depois de realizar esta operação intelectual, racional, é possível então atuar com o intuito de levar a cabo a cena que se representou no intelecto.
Recordemos, com base na decisão recorrida, as normas que importam para a determinação do tipo objetivo do crime imputado ao arguido: Dispõe o artigo 86º do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23.02 (na redacção introduzida pelo artigo 2º da Lei 50/2019, de 24.07, que entrou em vigor no dia 22.09.2019 - artigo 11º da Lei 50/2019, de 24.07). “1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo: (...). d) (…), as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3º (…) é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias;”. A definição legal de “detenção de arma” consta do artigo 2°, n.° 5, alínea g), do Regime Jurídico das Armas e Munições (na redacção introduzida pelo artigo 1º da Lei 12/2011, a qual entrou em vigor em 02.05.2011 - explicação: 5 dias após a publicação, por inexistir norma a estipular a entrada em vigor na Lei 12/2011, conforme estabelecido no artigo 2º, n.º 2, da Lei 74/98, de 11.11), onde se lê: “Detenção de arma», o facto de ter em seu poder ou disponível para uso imediato pelo seu detentor”. O artigo 2º, n.º 1, alínea m), do Regime Jurídico das Armas e Munições define arma branca: Para efeitos do disposto na presente lei e sua regulamentação, entende-se por:... m) «Arma branca» todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm; Finalmente, o artigo 3º, n.º 2, alínea ab), do citado regime, classifica a arma em causa nos autos: São armas, munições e acessórios da classe A: ... ab) As armas brancas com afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias (…) quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse.
Não há qualquer dúvida, portanto, que: 1º) No dia 19.02.2021, por volta das 22h40m, na Rua Douradores, n.º 134, em Lisboa, o arguido tinha consigo uma faca afeta à prática venatória, com 30,2 cm de comprimento total e 17,2 cm de comprimento de lâmina.
Por outro lado, podemos afirmar que o está referido em 2.º (A faca referida em 1) encontrava-se fora do local do seu emprego normal), além de ser um juízo conclusivo ou de direito, é despiciendo nesta sede, porque resulta da lei (Lei geral da Caça e seus Regulamentos) que a R. dos Douradores, em Lisboa, não é local onde possa ser exercido o ato venatório. O que consta de 3.º dos factos provados (O arguido não justificou a posse da faca referida em 1) e não tinha quaisquer motivos para a deter no circunstancialismo de modo, tempo e lugar ali referido) é relevante, designadamente desde a alteração legal produzida na Lei n.º 5/2006 de 22/01 pela Lei n.º 50/2019, de 24/07, que aditou, precisamente, entre outras, a alínea ab) ao n.º 2 do art.º 3.º, a qual considera que este tipo de armas brancas são armas da classe A (ou seja, proibidas -cfr. art.º 4.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006) quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse. Nestes termos, se estas armas forem encontradas no seu normal local de uso (neste caso, na prática do ato venatório, ou na ida ou vinda do mesmo, mas sempre por pessoa habilitada legalmente para tal) ou se a sua posse fora dele for justificada (v.g., um caçador devidamente habilitado que acabou de comprar a arma e a transporta para casa), é inteiramente lícita a sua detenção.
Ora, temos então, aqui, os elementos descritivos e normativos do tipo objetivo de crime.
E note-se que “arma branca” é um elemento normativo, pois a sua definição consta da lei, como acima se viu: todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm.
Assim, é necessário, para que se considere que a conduta é dolosa que se alegue e prove que o possuidor do objeto conhecia as suas características, designadamente a medida da sua lâmina (pelo menos que tinha mais de 10 cms) e o campo de aplicação a que se destinava (ato venatório); só assim podemos afirmar que o agente representou o facto descrito na lei como crime. É a isto que se chama o elemento intelectual do dolo, em face do qual, o agente toma a decisão (elemento volitivo) de atuar com o intuito de o realizar.
O recorrente defende que a inclusão na acusação e nos factos dados como provados da sacramental fórmula o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente é suficiente para demonstrar o preenchimento da tipicidade subjetiva.
Ora, como acertadamente se demonstra nos Arestos citados na decisão recorrida, não é assim. O agente que age livre, fá-lo sem qualquer espécie de coação ou condicionamentos, ao passo que quando age de modo deliberado, fá-lo de forma decidida, determinada, e fazê-lo conscientemente quer dizer que não estava tolhido por qualquer contingência que lhe impedisse o normal pensamento (v.g. embriaguez, surto psicótico). Na verdade, é possível atuar com todos estes parâmetros impecavelmente afinados e desconhecer, neste caso, o essencial: o tamanho da lâmina e o campo de aplicação da arma detida. Basta pensar, por exemplo, na possibilidade de o agente ter transportado o objeto a pedido de um amigo, sem saber do que, em concreto, se tratava; ele acedeu ao pedido e tudo o que fez, fê-lo livre, deliberada e conscientemente, mas não sabia, em concreto, o que transportava. O mesmo se diga de uma pessoa que pede a outra para lhe levar um saco com pó branco para um amigo, ao que ele acede, vindo a apurar-se, por exemplo, numa operação de fiscalização de trânsito, que era cocaína: também fez o obséquio de modo livre, deliberado e consciente, mas é necessário assegurar que sabia que era cocaína, que conhecia as características do produto; se isso se não alegar e provar, não poderá, obviamente, ser condenado. Na verdade, esta parte dos textos das acusações e das decisões tem mais que ver com as questões de imputabilidade do agente do que com quaisquer outras, designadamente com o dolo.
É verdade que autores há que usam a palavra consciência também para se referirem ao elemento intelectual do dolo – cfr. Teresa Beleza, ob. ct., pag. 169, e nota 97, mas o termo conscientemente usado de modo formatado nas acusações e decisões não quer normalmente referir-se ao elemento intelectual do dolo, mas antes ao estado de domínio comportamental do agente, com relevância para o juízo de culpa. Para assim concluir basta pensar que em todas, ou quase todas, as acusações em que se encontra corretamente articulado o elemento intelectual do dolo também constatamos a articulação de que o agente agiu livre, deliberada e conscientemente, o que, não fora como acima se afirmou, constituiria tão recorrente quanto inútil redundância. E nestas coisas tão fulcrais do direito penal não pode nem deve haver necessidade de interpretações ou de afirmações implícitas. Tudo deve ser simples, claro e objetivo.
E muito menos se poder inferir ou deduzir ou concluir o preenchimento do elemento intelectual do dolo através do segmento final: sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei, elementos que têm que ver com a culpa. Na verdade, esta também usual fórmula tem que ver, dentro da culpa, sobretudo com a consciência da ilicitude e não com o dolo, sendo até mais rigoroso alegar que o agente conhecia a proibição e punição legais daquela conduta em vez da sua conduta – efetivamente, não fora o caráter padronizado e quase robotizado deste procedimentos, poderia até dizer-se que decisão seria nula, por contradição insanável entre os factos dados como provados, pois, por um lado, segundo a própria decisão, não existem factos para o elemento intelectual do dolo (portanto, não sabemos se o agente sabia, em concreto, o que tinha), e, por outro, dá-se como provado que ele sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei! A este respeito, ensina Teresa Beleza, ob. cit., loc. cit, pag. 292, em relação ao homicídio, que “(…) para que esse facto seja culposo é preciso que a pessoa que mate tenha consciência (…) de que é ilícito matar (…)”. Na verdade, se assim não for, por exemplo, no caso de se provar que A pegou e meteu ao bolso (subtração) uma caneta que estava numa mesa, que depois ofereceu a um amigo (apropriação-disposição), e que agiu livre, deliberada e conscientemente e que conhecia a proibição e punição legal da sua conduta, podemos afirmar, como faz o recorrente, que estão reunidos os pressupostos para a condenação por crime de furto – ora, aqui falta, pelo menos, alegar e provar que a coisa não era do agente e que este conhecia o carácter alheio da coisa subtraída, o que pode ser conseguido, por exemplo, com a simples expressão “sabia que lhe não pertencia”. Não esqueçamos que a ilegitimidade da intenção de apropriação constitui um elemento especial subjetivo da ilicitude, não integrando o dolo, sendo hoje pacífico que não constitui qualquer dolo específico, figura que se encontra completamente arredada da dogmática penal.
Assim, muito mais do que expressões pré-fabricadas, formatadas, sacramentais, ou como se lhe queira chamar, é deveras importante individualizar todos os elementos descritivos e normativos do tipo de crime que estiver em causa e escrever na acusação e na decisão de modo simples e claro esses factos, sejam eles provados ou não provados.
A este respeito, deve dizer-se, não obstante a devida consideração, que as sugestões apresentadas na decisão recorrida para suprir a falta em que incorre a acusação serão até demasiado complexas e extensas para dizer algo muito simples (o arguido sabia que tinha consigo uma faca com 17,2 cm de lâmina, e que tal faca se destinava ao ato venatório): “ (…) o mesmo é dizer, por exemplo, que o arguido representou que, ao estar na posse da faca em apreço, cujas características conhecia, estava na posse de tal objecto fora da condições legais e, ainda assim, quis ter consigo tal objecto, ou representou que, ao estar na posse da faca em apreço, cujas características conhecia, necessariamente estaria na posse de tal objecto fora da condições legais, e, ainda assim, quis agir, ou representou que, ao estar na posse da faca em apreço, cujas características conhecia, eventualmente estaria na posse de tal objecto fora da condições legais e, ainda assim, conformando-se com tal possibilidade, quis agir
Na verdade, o vetor “fora das condições legais” resulta do conhecimento da proibição e punição legal daquela conduta, e isso consta da acusação e dos factos provados (algo paradoxalmente, como já se disse). Assim, se o arguido conhece a proibição e punição legal, basta-lhe conhecer também as características do objeto para tudo estar, nesta sede, consumado. Por outro lado, o “quis agir” (elemento volitivo) resulta, como também já se disse, sem qualquer esforço, da provada atuação deliberada. Isto porque, note-se, os elementos descritivos do concreto tipo de crime imputado ao arguido não são extensos, reconduzindo-se à mera detenção de uma arma proibida (este último já é normativo), não havendo, portanto, necessidade de tão extensa narração do elemento volitivo como noutros crimes que preveem condutas e resultados mais complexos (v.g., ofensa à integridade física, burla, difamação, abuso sexual de crianças).
Lê-se nas conclusões do recorrente que: g) O dolo traduz-se num saber (ou, pelo menos, representar) e num querer, tendo factualmente que resultar dos factos narrados na acusação que o agente representou e quis os factos do tipo objetivo - os factos do dolo do tipo, os quais não são de especificação obrigatória no despacho de acusação, sob pena de o terem de ser todos os restantes elementos da doutrina do crime.
Cabe perguntar: onde estão na acusação os factos relativos ao saber/representar os factos do tipo objetivo? Como acima se expôs, em lado algum. Apenas estão esses factos objetivos: faca, tamanho da lâmina, afetação respetiva, local de apreensão e falta de justificação de detenção fora do local de uso normal. E se quando ao local da apreensão, é mais do que suficiente o facto de o arguido ali ser encontrado e o seu estado ser livre e consciente, já quanto aos outros factos urge saber se o arguido sabia deles. E, quanto a isso, nada vem dito na acusação, como já se demonstrou.
O recorrente diz ainda que: j) Analisando os factos narrados na acusação e aproveitáveis para uma conclusão sobre o preenchimento do dolo (do tipo), conclui-se que a mesma os descreve, minimamente é certo, mas ainda suficientemente, sendo certo que o ónus de especificação factual do dolo inclui os factos relativos ao dolo do tipo e não impõe a narração dos factos relativos ao dolo da culpa e, por isso, também não é exigível a narração factual do elemento emocional do dolo, sob pena de terem de ser então descritos todos os restantes elementos da doutrina do crime, o que se apresenta como indefensável.
Ora, em primeiro lugar, o conhecimento/representação dos elementos descritivos e normativos do tipo objetivo de crime, que não vem afirmado na acusação, como já se disse, tem que ver com o ilícito-típico doloso, e não se confunde com o elemento emocional do dolo que tem que ver com a culpa, ou, mais rigorosamente, com o tipo de culpa, e nos transporta para a “ (…) atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao direito.” – cfr. Prof. Figueiredo Dias. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pag. 259/530, 2.ª Edição, Coimbra Editora. Ora, o que aqui está tão-só em causa é saber se o arguido sabia/representava os elementos descritivos e normativos do tipo e (ainda) não a valoração da natureza da sua íntima atitude.
Em segundo lugar, não existe em processo penal a figura do ónus, muito menos para o Ministério Público, sobre o qual impendem deveres, designadamente de legalidade e objetividade, sendo seu dever jurídico, portanto, e não apenas ónus, articular no libelo acusatório todos os factos necessários para a subsunção de um determinado comportamento humano a um tipo legal de crime – sobre a distinção técnica entre ónus e dever, cfr., v.g, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição, pag. 180.
Não existe, portanto, na decisão recorrida, quanto ao (não) preenchimento do elemento subjetivo do tipo do crime, qualquer erro de julgamento de direito, com violação do artigo 86º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23.02, por referência ao disposto nos artigos 2º, n.º 1, alínea m), e 3º, n.º 2, alínea ab), ambos do mesmo diploma legal, e 14º do C.P., como propõe o recorrente.
Defende ainda o recorrente que: m) A assim se não entender, o vício formal de falta de narração na acusação de factos relativos aos elementos subjetivos do tipo pode ser suprido mediante o procedimento previsto no art. 358.º do CPP, por razões que se prendem com o princípio ou regra da conservação dos atos processuais inválidos.
Esta afirmação pressupõe, como é consabido, que se divirja fundamentadamente do AUJ do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015, publicado no Diário da República, 1ª série, n.º 18, de 27.01.2015, que é do seguinte teor: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º do Código de Processo Penal.”
Ora, independentemente do acerto ou desacerto dessa orientação, é de todo aconselhável, mais não seja por uma questão de segurança e previsibilidade das decisões judiciais, segui-la, até porque é fortemente disciplinadora, do ponto de vista intelectual, naturalmente, daqueles que têm obrigação legal de proferir decisões que levem cidadãos a julgamento, sejam juízes ou magistrados do Ministério Público, tendo os seus erros e omissões nesta sede consequências processualmente catastróficas, como está bom de ver.
Finalmente, o recorrente estriba a sua pretensão recursiva no caso julgado formado pelo despacho de recebimento da acusação, o qual impediria que na decisão final do processo se decidisse que a acusação não contém todos os elementos que deveria conter para uma condenação. Ou seja, segundo o recorrente, uma vez recebida a acusação, nenhum defeito ou imperfeição se lhe poderia assacar no futuro, pelo que, desde que provados os factos aí alegados, seguir-se-ia, necessariamente, uma condenação.
E fá-lo de forma extensa e intensa, citando textos doutrinais e jurisprudenciais de modo exuberante, textos e decisões que, aliás, são muito elucidativos da complexíssima questão do caso julgado, e em relação a cujo acerto, em geral, nada haverá a objetar, atendendo ao brilhantismo dos seus autores.
Todavia, nada do que ali se diz a propósito do caso julgado dá razão ao recorrente.
Não há qualquer dúvida que o despacho de recebimento da acusação constitui uma decisão de extrema relevância no processo penal, e que o mesmo forma caso julgado dentro do processo em que é proferido; contudo, tentemos ser claros e simples em matéria tão complexa como é a do caso julgado: o que a força do caso julgado do despacho de recebimento da acusação produz em processo penal é a impossibilidade de proferir, depois daquele, um despacho a rejeitar a acusação – nada mais. Todos os poderes do tribunal na apreciação da perfeição técnica da acusação se mantêm incólumes, como não podia deixar de ser, bem como a total liberdade de absolver ou condenar, fundamentadamente, em conformidade.
Assim sendo, fica prejudicada a apreciação da questão acima enunciada em B.
Por todo o exposto, o recurso deve ser julgado improcedente.
III DISPOSITIVO
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso apresentado pelo Ministério Público, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Sem tributação.
Data: 12/01/2023
António Bráulio Alves Martins
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros
Maria Manuela Barroco Esteves Machado