INVENTÁRIO
DIVÓRCIO
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário

I - Constituem pressupostos do decretamento da deserção da instância, nos termos do disposto no artigo 281º do CPC: a paragem do processo por mais de seis meses, por ter sido omitida a necessária prática do ato de que dependia o seu prosseguimento e ser essa omissão devida à negligência da parte e que tinha o ónus da sua prática.
II - O instituto da deserção da instância tem uma natureza de sanção legal para a parte que, devendo impulsionar o processo, não o faz. O art.º 281.º do CP Civil tem ínsita uma ideia de presunção de abandono da instância pela parte onerada com o impulso processual e como fundamento o interesse público de não duração indefinida dos processos judiciais.
III - A negligência pressupõe um juízo subjetivo de censura/culpa, no sentido de responsabilizar as partes (ou alguma delas), devido à sua incúria/imprevidência, pelo não andamento do processo.
IV - Este último requisito subjetivo, deve ser interpretado no sentido de apenas fazer relevar a paragem imposta pelo cumprimento de um ónus, a omissão de um dever que impeça o normal prosseguimento dos autos, o que não se verifica se os interessados não deixaram de cumprir qualquer ónus, apenas deixaram de exercer uma faculdade que lhes foi cometida pelo tribunal.

Texto Integral

9268/19.8T8VNG-A.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Gaia - Juiz 3


SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO:
AA, veio por apenso aos autos de divórcio, requerer, em 8.10.2020, INVENTÁRIO PARA PARTILHA DOS BENS POR EFEITO DO DIVÓRCIO, entre a ora Requerente e BB.
Foi Nomeado cabeça de casal o Requerido por despacho de 16. 10.2020.
O Requerido requereu escusa do cargo, o que foi deferido por despacho de 7.01.2021, tendo sido nomeada a Requerente do inventário, cabeça-de-casa e notificada para juntar aos autos os elementos aludidos nos art.ºs 1097.º, n.ºs 3 e 4, e 1098.º do CPC.
A Requerente veio também ela pedir escusa do cargo, o que o que foi deferido por despacho de 9.7.2021, tendo os interessados sido ouvidos acerca da designação de terceira pessoa para o exercício do cargo de cabeça-de-casal.
Foram notificadas três pessoas da Lista Oficial, as quais não se mostraram disponíveis para assumir o cargo de cabeça de casal no âmbito dos presentes autos de inventário.
Foi então proferido o seguinte despacho em 10.11.2021: “Notifique os Interessados do teor dos e-mails de 22/9, 7/10 e 6/11 para, querendo, se pronunciarem, nomeadamente para informarem os autos se pretendem que o tribunal continue a diligenciar junto dos peritos avaliadores constantes da Lista Oficial no sentido de encontrar alguém disponível para assumir o cargo de Cabeça de casal.”
Deste despacho foram os interessados notificados em 11.11.2021.
Por despacho datado de 24/01/2022, o tribunal a quo ordenou que os autos aguardassem o impulso processual sem prejuízo do art. 281º do CPC.
Face ao silêncio dos interessados, veio a ser proferido o despacho datado de 15.6.2022 e retificado em 5.9.2022 com o seguinte teor: “ Atendendo a que, por negligência dos Interessados, que nada se apresentaram a requerer, encontrando-se o processo a aguardar impulso processual há mais de seis meses, a instância considera-se deserta, face ao que dispõe o n.º 1 do art.º 281.º do Cód. Processo Civil.
Custas a cargo da Requerente que deu causa à deserção, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido nos autos.
Registe e notifique. “
Inconformada a Requerente AA, veio interpor o presente recurso de APELAÇÃO, tendo apresentado as seguintes CONCLUSÕES:
“A. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo que declara a extinção da instância por deserção, nos termos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Civil.
B. Salvo o devido respeito, não pode a Apelante concordar com a decisão, porquanto carece dos fundamentos necessários para o seu decretamento nos moldes em que o foi.
C. Sumariamente, e em primeira linha, quando foi proferida sentença de deserção da instância não se encontrava ainda decorrido, na sua totalidade, o prazo de seis meses para o efeito.
D. Ademais, e mesmo entendendo-se que tal prazo se havia já esgotado, não foi cumprido pelo tribunal a quo o dever da advertência das partes para as consequências da deserção com o necessário contraditório das mesmas para aferir de um eventual comportamento negligente.
E. Por último, também não se mostrou verificada a circunstância de se encontrarem as partes adstritas ao ónus do impulso processual, porquanto, sobre as mesmas não incumbia qualquer ónus, razão pela qual a paragem dos autos por mais de seis meses não lhes poderia ser imputada.
Ora vejamos:
F. Em 08/10/2020, por apenso ao processo de divórcio, a Recorrente deu entrada de um inventário tendo indicado para o cargo de cabeça de casal o ali Requerido.
G. Nessa sequência, o Requerido apresentou pedido de escusa, o qual foi deferido, tendo sido nomeada para o exercício das funções a aqui Recorrente, a qual, por sua vez, apresentou também pedido de escusa que foi devidamente deferido.
H. Assim sendo, em 09/07/2021, no mesmo despacho em que deferiu o pedido de escusa apresentado por aquela, o tribunal a quo posicionou-se no sentido de assumir, tal como decorre da lei, a procura por um terceiro para o exercício do cargo, deixando claro que “Em consequência e uma vez que já foi anteriormente deferido o pedido de escusa ao outro interessado, o cabeça de casal terá de ser designado pelo tribunal (art.º 2083.º do CC).”
I. Posteriormente, após ter recebido a recusa de três peritos para o exercício do cargo, solicitou às partes que se pronunciassem no sentido de lograr saber se aquelas pretendiam que o tribunal continuasse na procura de um terceiro, nada tendo sido dito.
J. Por despacho datado de 24/01/2022, o tribunal a quo ordenou que os autos aguardassem o impulso processual da Requerente, advertindo para o decurso do prazo a que alude o artigo 281.º do CPC.
K. Por requerimento datado de 28/06/2022 a Recorrente deu indicação ao Tribunal a quo de que este deveria permanecer na procura de um terceiro habilitado para o exercício do cargo de cabeça de casal.
L. Ora, sem considerações de maior profundidade, decorre com facilidade que, no seguimento da corrente preconizada por Lebre de Freitas, contando-se o prazo de seis meses por referência ao artigo ante mencionado, do despacho de advertência, tal prazo apenas se encontraria ultrapassado no dia 09/09/2022,
M. Razão pela qual, quando em 20/06/2022, a Exm.ª Sr.ª Juiz julga deserta a instância ainda não se encontrava decorrido o prazo para aquele efeito, pelo que tal decisão nunca poderia ter sido proferida.
N. Acresce ainda que, no decurso desse prazo a recorrente respondeu, conforme supra referido, à solicitação do Tribunal.
O. Não obstante, mesmo entendendo-se que tal prazo havia já decorrido, a instância nunca poderia ter sido julgada deserta uma vez que tal decisão não foi precedida da advertência às partes para as consequências da deserção e, consequentemente, não providenciou o tribunal pela audição das mesmas, de forma a avaliar se a falta de impulso processual seria imputável a qualquer uma delas e a que título.
P. De facto, por despacho com data de 24/01/2022, a advertência para o prazo a que alude o artigo 281.º do CPC foi efetuada, no entanto, o tribunal a quo não procurou obter junto das partes uma justificação para tal omissão, não respeitando, por via disso, o princípio do contraditório ao qual se encontra adstrito.
Q. Por via do sucedido encontramo-nos perante a omissão de um ato obrigatório que deveria ter sido praticado pela Exm.ª Sr.ª Juiz a quo, e que, não o tendo sido, tal preterição se consubstancia numa nulidade, nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil, que aqui se deixa arguida para os devidos e legais efeitos.
R. A esse respeito, veja-se o entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa que em acórdão proferido em 26/02/2015, conclui: “No despacho que julga deserta a instância o julgador tem de apreciar se a falta de impulso processual se ficou a dever à negligência das partes, o que significa que terá de efetuar uma valoração do comportamento das partes, por forma a concluir se a falta de impulso em promover o andamento do processo resulta, efetivamente, da negligência destas, pelo que, num juízo prudencial, deverá o julgador ouvir as partes por forma a avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas, ou de ambas, bem como e por força do principio da cooperação, reforçado o nCPC, alertar as partes para as consequências gravosas que possam advir da sua inércia em impulsionar o processo decorrido que seja o prazo fixado na lei (…).”
S. De igual modo, pode ler-se no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 07/05/2020, “Do que concluímos que o Supremo, com a indicada exceção, considera em alguns arestos necessário contraditório prévio à deserção, mesmo que tabelar pela referência ao artigo 281.º, n.º1, e em todos os outros, com aquela exceção, julga indispensável a apreciação da situação de negligência em concreto do que decorre do processo, não bastando a mera verificação da inércia.”
T. Mais se concluindo no acórdão referido que “no caso dos autos não pode superar-se a omissão de advertência para o regime da deserção no despacho de suspensão que, na ausência de outro facto para além da inércia, apenas pode ser salvaguardado mediante a notificação para prévia pronúncia. É o que decorre do regime do artigo 3.º, n.º 3, do CPC. (…) Em suma, na construção de norma geral de aplicação quanto ao regime da deserção, entende-se que, no regime do CPC de 2013, a apreciação da negligência justificativa da deserção deve ser feita face aos concretos elementos constantes dos autos, não bastando o mero decurso do prazo, pelo que deve ser operado o contraditório prévio quanto aos requisitos da deserção (…).”
U. Assim, decorre do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código Processo Civil que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”.
V. Sucede que a apelante não teve a oportunidade de debater a questão – fundamentos da deserção - perante o Tribunal a quo, que não lhe concedeu previamente a referida possibilidade, a que se encontrava obrigado, apartando-se completamente do dever de cooperação, colaboração e boa-fé que deve nortear o princípio de imparcialidade e de posição supra partes constitucionalmente atribuído ao Julgador.
W. De tal modo que, a decisão de que ora se recorre, do modo como foi proferida, sem conhecimento prévio da Recorrente, constitui inevitavelmente uma decisão surpresa com violação do princípio do contraditório.
X. Tivesse o tribunal a quo dado cumprimento ao princípio do contraditório adjacente à advertência para o prazo do artigo 281.º do CPC e facilmente teria concluído pela inexistência de qualquer negligência de alguma das partes associada à falta de impulso processual no cumprimento de um ónus que lhes pudesse incumbir e, bem assim, não teria também por esta via, vindo a julgar deserta a instância.
Y. Isto porque, resultou claro no despacho proferido em 09/07/2021 que a designação de um terceiro incumbia, por via dos pedidos de escusa apresentados e deferidos, de ambos os interessados, por fim, ao Tribunal.
Z. Pelo que, o ónus dessa procura incumbia tão somente ao tribunal a quo que era sobre quem impendia a obrigação imposta pelo artigo 2083.º do Código Civil, esgotadas as restantes opções, como dos autos resultava. AA. Ora, quando a Exm.ª Sr.ª Juiz, após ter diligenciado junto de três peritos avaliadores que se escusaram para o exercício do cargo, vem dar conta do sucedido às partes e as notifica para se pronunciarem se pretendiam que o Tribunal continuasse a diligenciar naquela procura, tinha ela própria o dever de, oficiosamente, continuar a diligenciar nesse sentido.
BB. Não havia circunstância alguma que fizesse depender essa procura da eventual resposta das partes a essa solicitação porque sobre elas não incumbia qualquer ónus mas, quanto muito, a faculdade de renovar a intenção já revelada pela Recorrente naqueles autos de que, em face da ausência de acordo entre as partes, deveria ser o tribunal a oficiar pela escolha de um terceiro para o exercício do cargo.
CC. Mas tal possibilidade seria sempre uma faculdade das partes e nunca um ónus porque, como se reitera, esse incumbia ao tribunal que, oficiosamente, deveria ter continuado a procura do terceiro que por lei lhe estava incumbida.
DD. Destarte, cumpre ainda referir a incompreensível menção, na sentença proferida, quanto às custas que, como se refere no aludido aresto, ficaram a cargo “da Requerente e cabeça de casal que deu causa à deserção”.
EE. Incompreensivelmente, vem o Tribunal a quo referir-se à Requerente, aqui Recorrente, como cabeça de casal quando, na verdade, há muito tinha deferido o seu pedido de escusa para o cargo.
FF. Forçoso é concluir que resulta comprovadamente dos autos que o processo não esteve parado mais de seis meses por incumprimento de um ónus da Recorrente (ou das partes), pelo que tal paragem jamais lhe poderia ter sido imputada fosse a que título fosse, porquanto a mesma se ficou a dever ao próprio Tribunal que tinha o ónus de prosseguir na busca de um terceiro para assumir o cargo de cabeça de casal.
GG. Destarte, não obstante o incumprimento deste ónus que se encontrava adstrito ao Tribunal, não se encontravam verificados os pressupostos da deserção da instância, nomeadamente, porque o prazo de seis meses ainda não se encontrava esgotado, bem como pela já mencionada inexistência da advertência às partes para cumprimento do contraditório antes de proferida a decisão de deserção pelo que, jamais poderia o tribunal tê-la declarado.
HH. Em face do exposto, deverá, assim, ser revogada a sentença que julgou deserta a instância, devendo os autos prosseguir seus termos.”
Não houve contra-alegações.
Admitido o recurso e colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II - OBJETO DO RECURSO
A única questão que importa dirimir refere-se à legalidade do despacho que decretou a extinção da instância por deserção e, portanto, é a questão de saber se esse despacho é ou não de manter.

III - FUNDAMENTAÇÃO
O circunstancialismo fáctico e processual a ter em conta na decisão a proferir é o descrito supra no relatório.

IV - APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:
A instância é a relação jurídica processual e inicia-se com a propositura da ação (cfr. art. 259º nº 1 do C.P.C.).
“Com a proposição da ação constitui-se a instância (art. 259ºnº 1), como relação jurídica entre o autor (solicitante da providência jurisdicional) e o tribunal (a quem a solicitação é dirigida). O ato de proposição produz efeitos em face do réu, com a citação (art. 259º nº 2), ato mediante o qual a relação jurídica se converte de bilateral em triangular e se torna em princípio estável (art. 260º).
O termo instância traduz, a partir daqui a ideia de relação, por natureza dinâmica, existente entre cada uma das partes e o tribunal, bem como entre as próprias partes na pendência da causa, isto é até que ocorra alguma das causas de extinção previstas no art. 277º)”, nas expressivas palavas de Lebre de Freitas.[1]
Uma das formas de extinção da instância, prevista no elenco das causas indicadas do art. 277º do C.P.C., é a da deserção (cfr. alínea c).
Com efeito estabelece o art. 281º nº 1 do Código de processo Civil a regra de que a instância se extingue, “quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual das partes há mais de 6 meses.”
Cabendo-lhe iniciar a instância, o autor mantém disponibilidade sobre a mesma. Cabe-lhe assim o poder de desistir da instância, assim como lhe cabe desistir do pedido (cfr. Artigos 283º do CPC).
Tratam-se ali de manifestações do princípio do dispositivo.
Porém no caso em apreço, está em causa uma situação diferente, em que a instância se extingue, mesmo contra a vontade do Autor.
O art. 281º do CPC fundamenta a extinção quando esteja em causa um ato ou atividade dependente da iniciativa do Autor, sendo o caso mais flagrante o da suspensão da instância por óbito de alguma das partes, a aguardar a habilitação os sucessores.[2]
O atual Código de Processo Civil, para além de ter reduzido significativamente o prazo de deserção da instância, eliminou a figura da interrupção da instância, substituindo-a pela figura da deserção, passando esta a depender do decurso do prazo de seis meses sem impulso do processo e da negligência da parte onerada com esse impulso e sendo exigível a prolação de um despacho judicial que declare a deserção da instância – artigo 281º, n.ºs 1 e 4, do novo CPC.
Por conseguinte, à luz desta norma legal são hoje pressupostos do decretamento da deserção da instância:
- a paragem do processo por mais de seis meses, por ter sido omitida a necessária prática do ato de que dependia o seu prosseguimento (respeitante ao próprio processo, ou a incidente de que dependia o prosseguimento da ação principal);
- ser essa omissão devida à negligência da parte que tinha o ónus da sua prática, isto é, dever o ato ser praticado por si - e não pela parte contrária, pela secretaria, pelo juiz, ou por terceiro -, e ter a sua omissão um carácter censurável.
Isto posto, vejamos as razões da discordância da Apelante e Requerente do processo de Inventário, do despacho recorrido:
A primeira respeita o decurso do prazo de deserção.
Diz a Apelante que quando o tribunal julga extinta a instância por deserção o prazo ainda não havia decorrido.
Esta discordância carece de razão, não obstante, porque, o prazo da inércia processual deve ser contado da notificação do despacho proferido em 11.11.2021, que convidou os interessados “a informarem os autos se pretendem que o tribunal continue a diligenciar junto dos peritos avaliadores constantes da Lista Oficial.”
Os interessados dispunham do prazo geral de 10 dias (art. 149º do CPC), para responder, findo o qual, o processo ficou a aguardar o impulso processual das partes.
Os interessados foram notificados desse despacho em 11.11.2021, sendo que o prazo de 6 meses é contínuo não se suspendendo nas férias judiciais como resulta do disposto no art. 138º nº 1 do C.P.C., pelo que na data em que o despacho recorrido é proferido já haviam decorridos mais de 6 meses e um dia.
Já o despacho que colocou o processo a aguardar, sem prejuízo do disposto no art.º 281.º CPCiv, que não continha, qualquer solicitação dirigida aos interessados, serviu apenas para alertar os interessados das consequências da paragem do processo.
Mostra-se assim decorrido o prazo de 6 meses, aquando da prolação do despacho recorrido.
Quanto á questão da necessidade de prévia audição das partes, perfilhamos o entendimento, que vem sendo sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente nos acórdãos de 14.12.2016 (relator Salazar Casanova), de 8.03.2018 (relatora Rosa Tching) e de 20.09.2016, (relator José Rainho) todos disponíveis in www.dgsi.pt, citando-se o que ficou a constar neste último arresto: “ Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência»; e, por isso, é “ à parte onerada com o impulso processual (…) que incumbe (aliás à semelhança do que sucede no caso paralelo do justo impedimento, art. 140º do CPCivil), e ainda como manifestação do princípio da sua autorresponsabilidade processual, vir atempadamente ao processo (isto é, antes de se esgotar o prazo da deserção) informar e mostrar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando assim a situação de negligência aparente espelhada no processo”, sendo ”em função desta atividade da parte que o tribunal poderá formular um juízo de não negligência”.
De outro lado, em sítio algum estabelece a lei qualquer “audição” das partes (seja ou não a expensas do princípio do contraditório) em ordem à formulação de um juízo sobre essa negligência (aliás, mais do que ouvir as partes ou atuar o contraditório, tratar-se-ia então de um autêntico “incidente”, por isso que, dentro da lógica subjacente, as partes teriam que ser admitidas a demonstrar as razões que as levaram a não promover o andamento do processo, isto é, a sua não negligência). O que a lei pretende é que a parte ativa no processo não seja penalizada em termos de extinção da instância quando a razão do não andamento da causa lhe não seja imputável. E, repete-se, o nº 3 do art. 3º do CPCivil não importa ao caso, visto que não se trata aqui do direito de influenciar a decisão (em termos de factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto dialético da causa, nem tão-pouco é configurável uma decisão-surpresa, antes trata-se simplesmente de fazer atuar uma consequência processual diretamente associada na lei à omissão negligente da parte tal como retratada objetivamente no processo”.
Vejamos agora se ocorre negligência da parte.
Diz a Apelante que o ónus da procura do cabeça de casal incumbia tão somente ao tribunal a quo que era sobre quem a lei faz caber a obrigação imposta pelo artigo 2083.º do Código Civil, de designar o cabeça-de-casal, esgotadas as restantes opções. Ora, diz a Apelante, quando a Exm.ª Sr.ª Juiz, após ter diligenciado junto de três peritos avaliadores que se escusaram para o exercício do cargo, vem dar conta do sucedido às partes e as notifica para se pronunciarem se pretendiam que o Tribunal continuasse a diligenciar naquela procura, tinha ela própria o dever de, oficiosamente, continuar a diligenciar nesse sentido.
Não havia, conclui a Apelante, circunstância alguma que fizesse depender essa procura da eventual resposta das partes a essa solicitação porque sobre elas não incumbia qualquer ónus mas, quanto muito, a faculdade de renovar a intenção já revelada pela Recorrente naqueles autos de que, em face da ausência de acordo entre as partes, deveria ser o tribunal a oficiar pela escolha de um terceiro para o exercício do cargo.
Vejamos.
De acordo com a melhor jurisprudência do nosso tribunal superior,[3] a deserção da instância, tal como prevista no artº 281º nº 1 CPCiv pressupõe a verificação cumulativa de duas exigências: uma de natureza objetiva (falta de impulso processual das partes maxime do autor, para o prosseguimento da instância) e outra de natureza subjetiva (inércia causada por negligência).
Este último requisito subjetivo deve ser interpretado no sentido de apenas fazer relevar a paragem imposta pelo cumprimento de um ónus, a omissão de um dever que impeça o normal prosseguimento dos autos.
Estava em causa a aplicação do disposto no artigo 2083.º do Código Civil que estabelece que se todas as pessoas referidas nos artigos anteriores se escusarem ou forem removidas, é o cabeça de casal designado pelo tribunal, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado.
Em face da renúncia da Requerente e do Requerido, ao cargo de cabeça de casal, competia ao tribunal designar cabeça de casal, nos autos.
É ao cabeça-de-casal que pertence a administração da herança até à sua liquidação e partilha e que incumbe fornecer todos os elementos necessários para o prosseguimento do inventário (artºs 2079 do Código Civil e 1097º e ss do C.P.C.).
Dispõe o artº 2080º do Código Civil que:
“1- O cargo de cabeça-de-casal defere-se pela ordem seguinte:
a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal;
b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário;
c) Aos parentes que sejam herdeiros legais;
d) Aos herdeiros testamentários
2 De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau.
3 De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte.
4 Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho. Por outro lado, estipula o artº 2083º do Código Civil que Se todas as pessoas referidas nos artigos anteriores se escusarem ou forem removidas, é o cabeça de casal designado pelo tribunal, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado.”
Ora, considerando o tempo já decorrido desde o início do Inventário -neste momento decorreram já dois anos - sem lograr obter disponibilidade de alguém para exercer o cargo, isto é pessoa que deve ser investida no cabecelato, sendo que os ambos interessados pediram de escusa do cargo, o Tribunal chegou ao “impasse” criado pela indisponibilidade das pessoas que nomeou em observância do disposto no art. 2083.º do Código Civil.
Esta situação, apenas poderá ser solucionada (porque os autos não podem continuar indefinidamente a aguardar que apareça alguém disponível…), recorrendo o juiz ao poder-dever artigo 6.º do Código de Processo de Processo Civil - o dever de gestão processual, promovendo as diligências oficiosas necessárias ao prosseguimento dos autos, que poderão passar necessariamente pela obrigatória colaboração das partes.
Porém, no caso em apreço, o Tribunal limitou-se a dar conhecimento aos interessados do resultado negativo das diligências a que levou a cabo e a notificá-los, para “querendo, se pronunciarem, nomeadamente para informarem os autos se pretendem que o tribunal continue a diligenciar junto dos peritos avaliadores constantes da Lista Oficial no sentido de encontrar alguém disponível para assumir o cargo de Cabeça de casal.”
O Tribunal, através deste despacho solicita a colaboração dos interessados na resolução do “impasse” verificado em consequência da indisponibilidade das pessoas designadas pelo Tribunal para exercerem o cabecelato. Porém, como decorre das palavras utilizadas, solicita a colaboração daqueles de forma facultativa, como resulta da expressão utilizada, “para, querendo” se pronunciarem, também não cominou a eventual falta de colaboração com qualquer sanção, como seja a deserção da instância, que tem ínsita tal natureza sancionatória.
Assim sendo, atentas as particulares circunstâncias concretas não podemos afirmar que o processo tenha ficado parado por negligência das partes.
Este último requisito subjetivo, como vimos, deve ser interpretado no sentido de apenas fazer relevar a paragem imposta pelo cumprimento de um ónus, a omissão de um dever que impeça o normal prosseguimento dos autos, dever esse que no caso em apreço, nãos e vislumbra.
Com efeito, os interessados não deixaram de cumprir qualquer ónus, apenas deixaram de exercer uma faculdade que lhes foi cometida pelo tribunal de se pronunciarem nos termos referenciados.
Como se escreveu no Ac. S.T.J. 2/5/2019 citado, “(…) assim sendo, tal paragem não pode ser imputada à recorrente, porquanto ela não deixou de cumprir qualquer ónus, apenas deixou de exercer uma faculdade; ora o não exercício duma faculdade, ao contrário do não cumprimento dum ónus, não acarreta qualquer penalização, embora possa acarretar um prejuízo ou a perda dum benefício; estando demonstrado que o processo não esteve parado mais de seis meses por incumprimento de um ónus do autor, nunca tal paragem lhe pode ser imputável a título de negligência, porquanto ela é devida ao próprio tribunal e não a qualquer das partes; assim sendo, não estando verificados os pressupostos da deserção da instância, nunca o tribunal a poderia ter declarado; impõe-se pois a revogação da decisão que julgou deserta a instância, devendo os autos prosseguir seus termos.”
Do exposto resulta que se impõe a revogação do despacho recorrido, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores e normais termos.

V - DECISÃO:
Pelo exposto e em conclusão acordam os juízes que compõem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso e em consequência em revogar o despacho recorrido que julgou extinta a instância por deserção.

Custas pela recorrente, que do recurso tirou proveito (art. 527º nº 1 do CPC).


Porto, 14 de dezembro de 2022
Alexandra Pelayo
Fernando Vilares Ferreira
Alberto Taveira
_________________
[1] in Introdução ao Processo Civil, pg 160
[2] Ver O Código de Processo Civil Anotado, Abrantes Geraldes e outros, vol I, pg.328 e ss.
[3] De que são exemplos os Acórdãos do STJ de 3/10/2019, (pº 1980/14.4TBVDL.L1.S1 – Consª. Maria Rosa Tching); de 2/5/2019, (pº 1598/15.4T8GMR.G1.S1 – Consª. Bernardo Domingos); de 5/7/2018, (pº 105415/12.2YIPRT.P1.S1 – Consº. Abrantes Geraldes) e de 24.5.2022, pº. 31/13.0TVLSB.L1.S1 - Consº. Vieira e Cunha.