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PROVAS
Sumário
O facto de ter sido excedido o prazo referido no n. 6 do artigo 328 do Código de Processo Penal de 1998 não leva à perda de eficácia da prova produzida, se esta tiver sido documentada.
Texto Integral
Acordam em audiência, no Tribunal da Relação do Porto.
No Tribunal Judicial de Vila Real foi submetido a julgamento, em processo comum singular, B.........., devidamente identificado nos autos, tendo, a final, sido decidido:
1 - Absolver o arguido da prática em autoria material de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200º nºs 1 e 2 do C.P.;
2 - Condenar o arguido, pela prática. em autoria material de um crime de condução sem carta p. e p. pelo art. 3º nº 2 do Dec.-Lei nº 2/98 de 03/01, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 3 (três), num total de € 300 (trezentos euros).
Da sentença interpôs recurso o arguido, motivado com as conclusões que se transcrevem:
1. A prova em que se apoia tal condenação não poderá valer, por ineficaz, já que ofende o estatuído no nº 6 do artº 328º do CPP já que entre as duas audiências decorreram mais de trinta dias.
2. Entre a produção da prova ouvida em 09/12/03, onde se alicerçou a condenação do arguido, e a leitura da sentença recorrida a 03/02/04, também decorreram mais de trinta dias, pelo que a prova perdeu eficácia, e a sentença não pode subsistir, já que ofende o estatuído no nº 6 do artº 328º do CPP.
3. A douta sentença é nula, nos termos do artº 374º, nº 2 e artº 379º do CPP por a convicção condenatória não estar fundamentada nem se fez, na parte fundamentada, um exame crítico das provas que fundamentaram, mal, a condenação.
4. A condenação foi alicerçada para além da prova que se produziu em audiência, o que ofende o estatuído no artº 355º do CPP.
5. Todas as testemunhas da acusação não puderam afirmar ser o arguido o condutor do veículo automóvel aqui em causa, e tal prova, onde se alicerçou o libelo acusatório, a ser correctamente julgada deveria ditar a absolvição do arguido.
6. A situação que foi explicada em audiência é no máximo duvidosa e devia ter tal dúvida, sido resolvida em favor da tese da defesa, aplicando-se o princípio in dubio pro reo com a consequente absolvição do arguido.
7. Já que os pontos de facto indicados na motivação a acompanhar a transcrição feita foram incorrectamente julgados, deveria se ter dado os factos como não provados (artigo 412º, nº 3, a) CPP).
8. A douta sentença recorrida violou por erro de interpretação o disposto nos citados preceitos e diplomas legais, devendo ser revogada e substituída por outra que julgue no sentido antes exposto, absolvendo o arguido e assim se fazendo justiça.
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Respondeu o Mº. Pº. defendendo a manutenção da decisão recorrida.
O Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer, no sentido do não provimento do recurso.
Cumprido o nº 2 do artº 417º do CPP, respondeu o arguido mantendo a posição assumida na motivação.
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Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.
Na sentença recorrida foi proferida a seguinte decisão de facto:
«FACTOS PROVADOS
No dia 17/12/99, pelas 07h30 horas, na Av......, em Vila Real, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-NR, propriedade de X.......... e alugado pelo seu pai C.........., sem que estivesse habilitado com a respectiva carta de condução, que lhe permitisse conduzir aquele tipo de veículo.
O arguido sabia que não podia conduzir o referido veículo, numa via pública, sem possuir a necessária carta de condução e que tal conduta era proibida e punida por lei.
Na mesma ocasião de tempo e lugar, o ofendido D.......... encontrava-se parado na Av. ....., aguardando a mudança de sinal para verde, a fim de prosseguir a sua marcha.
O arguido foi embater com a parte da frente na retaguarda do ciclomotor conduzido pelo ofendido, projectando-o para o chão.
O ofendido após o embate levantou-se de imediato e dirigiu-se para o veículo conduzido pelo arguido, tendo com este trocado algumas palavras até que o arguido fez marcha-atrás e rodeando o ciclomotor do ofendido que se encontrava caído no chão abandonou o local.
Como consequência directa e necessária do acidente descrito, o ofendido D.......... sofreu as lesões descritas a fls. 11, 51 e 75, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, as quais lhe demandaram 20 dias de doença com incapacidade para o trabalho.
O arguido não prestou qualquer socorro ao ofendido, bem como não se identificou na altura, antes prosseguiu a marcha do seu veículo pela Av. ....., pondo-se em fuga.
O arguido não quis prestar quaisquer declarações quanto à matéria factual em apreço; frequenta o curso de formação de animador de turismo e vive com os pais; não apresenta quaisquer antecedentes criminais.
FACTOS NÃO PROVADOS
Com interesse para a causa não se provou que:
O arguido apercebeu-se que o veículo que conduzia colheu nas circunstâncias descritas o ofendido e, que em resultado desse embate, este seguramente apresentava lesões corporais.
O arguido bem sabia que enquanto condutor, estava obrigado a prestar auxílio a um sinistrado que fora vítima de acidente por ele provocado, ou pelo menos, inteirando-se da situação do ofendido, desencadear todos os meios que estivessem ao seu alcance no sentido daquele ser socorrido.
MOTIVAÇÃO DE FACTO
O Tribunal baseou a sua convicção em toda a prova documental junta aos autos, designadamente na supra indicada e ainda C.R.C. de fls. 74, documento de fls. 236 a 240 e documento da D.G.V. de fls. 76.
Foi ainda relevante para a identificação do arguido como sendo o condutor do veículo automóvel interveniente no acidente dos autos, as declarações prestadas pelo assistente, o qual não tendo demonstrado qualquer intuito persecutório para com o arguido, tanto assim que desistiu da queixa apresentada contra o mesmo, soube identificar peremptoriamente o arguido como sendo o condutor do veículo que embateu no seu ciclomotor. Sendo certo que nenhum meio probatório foi apresentado no decurso da audiência de julgamento que, de alguma forma, tivesse abalado este testemunho, uma vez que o próprio arguido, exercendo um direito que lhe assiste de não prestar declarações, entendeu nem sequer negar a prática desta conduta.
Por outro lado, no que se refere à factualidade relativa ao ilícito de omissão de auxílio, e se é certo que as testemunhas de acusação inquiridas foram unânimes em confirmar ao Tribunal a ocorrência do embate e o modo em que este se deu, entre a viatura conduzida pelo arguido e o ciclomotor que era conduzido pelo ofendido, também é certo que todas elas referiram que o ofendido se levantou de imediato e que se dirigiu para o veículo do arguido, tendo ali permanecido alguns instantes até este se ter retirado do local.
Aliás, estes depoimentos, prestados, designadamente, pelas testemunhas E.......... e F.........., ainda que elas próprias não tivessem podido identificar o condutor do veículo automóvel como sendo o ora arguido, foram ambas unânimes em declarar que o assistente teve oportunidade de se lhe dirigir e, portanto, reforçando a noção de que este ofendido bem sabia quem era o condutor por o ter visto naquela ocasião.».
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Esta Relação conhece de facto e de direito, nos termos dos artºs 364º e 428º do CPP, encontrando-se a prova oralmente produzida em audiência documentada e totalmente transcrita.
Em face das conclusões da motivação de recurso, que delimitam e fixam o seu âmbito, as questões a decidir são: nulidade do julgamento por utilização de prova que perdeu eficácia em violação do artº 328º, nº 6 do CPP; nulidade da sentença por deficiente fundamentação; valoração da prova produzida.
Nulidade do julgamento.
Resulta dos autos que a 1ª sessão da audiência de julgamento ocorreu no dia 9/12/03, tendo-se procedido a produção de prova, que ficou devidamente documentada. Nessa sessão de julgamento, na qual se encontrava presente o arguido, foi proferido despacho designando para continuação da audiência de julgamento o dia 20 de Janeiro seguinte. Nesta sessão foram inquiridas duas testemunhas, tendo o seu depoimento sido documentado e encontrava-se presente o arguido. A sentença foi proferida em 3/2/04.
Entre as duas sessões em que existiu produção de prova decorreram mais de 30 dias, pelo que terá perdido eficácia a prova produzida na 1ª sessão, conforme o disposto no artº 328º, nº 6 do CPP?
A jurisprudência tem-se dividido sobre se, no caso de documentação da prova produzida na sessão, houve ou não violação do artº 328º, nº 6 do CPP. No sentido de que a prova perdeu eficácia cfr., entre outros, Ac. RG, de 17/4/02, in CJ, A XXVII, t II, pág. 241. Em sentido contrário, entre outros, ver Ac. RL, de 27/2/02, in CJ, A XXVII, t I, pág. 153.
Entendemos ser de seguir a jurisprudência de que a prova, no caso de se encontrar documentada, não perdeu eficácia, apesar de entre as sessões em que se produziu tenham decorrido mais de 30 dias.
O que se pretende com tal preceito é que o julgador não se esqueça de prova que já foi produzida, entendendo que o espaço de 30 dias é um prazo razoável para evitar tal esquecimento. Estando a prova documentada tal desvanecimento não ocorre. Ou se ocorre, basta uma simples leitura, ou audição, para ser lembrada.
Além de permitir ao tribunal de recurso sindicar a apreciação da matéria de facto, a documentação da prova permite também que o tribunal que a documentou dela se socorra se ocorrer um eventual esquecimento, o que é perfeitamente normal em julgamentos onde a produção de prova se estende por várias sessões, ao longo de muitos meses.
O argumento de que existe violação dos princípios da imediação e oralidade não nos parece válido, quer pelo facto de sendo o julgador o mesmo a leitura ou audição da prova será suficiente para recordar o que ocorreu na sessão de audiência e a percepção que se teve da prova produzida, resultante desses princípios.
A “vingar” tal argumento também se teria que considerar como não válida a prova produzida quando a sentença é proferida mais de 30 dias depois da última sessão de prova, ou quando a sentença é declarada nula por tribunal superior e é ordenado que seja proferida nova decisão, o que não vem sendo seguido pela Jurisprudência do STJ (cfr., entre muitos, Acs. de 15/7/97 e 29/1/04, respectivamente, in CJ/STJ A V, t III, pág. 197 e A XII, t I, pág. 184).
Assim sendo entendemos que a prova produzida na sessão de 9/12/03 não perdeu eficácia, não existindo nulidade de julgamento.
Mesmo que tivesse perdido eficácia entendemos, no seguimento do Ac. desta Secção de 23/2/05, proferido no recurso nº 6208/03, que o ora relator subscreveu como adjunto, que o aproveitamento dessa prova constituiria uma irregularidade, já que “o nº 6 do artº 328º do Cód. Proc. Penal não comina, directamente, de nulo, nem o despacho que faz retomar a audiência que permaneceu adiada ou interrompida por um período superior a 30 dias, nem a audiência de julgamento realizada à sombra de tal despacho, nem a decisão proferida em resultado daquela audiência de julgamento” - Ac. do STJ de 15/10/97, acima citado. Não constituindo nulidade o acto é irregular (artº 118º, nºs 1 e 2 do CPP).
Não tendo sido arguida nos termos consignados no artº 123º do CPP, a ter existido irregularidade, o que, como procurámos demonstrar, não existiu, a mesma encontrava-se sanada.
Nulidade da sentença.
O recorrente considera a sentença nula por violação do artº 374º, nº 2 do CPP porque apesar de fazer uma referência a certas afirmações - contraditórias - pelo assistente, [não] fundamentou tais afirmações, nem as explicou e não existe motivação nesta condenação.
Ou seja a convicção condenatória não está fundamentada nem se fez o exame crítico das provas que fundamentaram, mal, a condenação.
Da fundamentação da decisão de facto, única que parece ser posta em causa, acima transcrita, que nos abstemos de voltar a repetir, verifica-se que foi feita a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, conforme o exige o nº 2 do artº 374º do CPP.
Dessa fundamentação, no seu conjunto, resulta com segurança a razão pela qual se deram como provados os factos integradores do crime pelo qual o arguido foi condenado. Nessa fundamentação estão suficientemente explicitadas as razões pelas quais o tribunal ficou convencido que era o recorrente (no uso do seu direito não prestou declarações) quem conduzia o veículo que foi interveniente num acidente de viação.
Pode não se concordar com a fundamentação, mas que foram indicadas as provas que serviram para formar a convicção do tribunal e se procedeu ao seu exame crítico, de modo a permitir aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação de tal convicção, não existe qualquer dúvida. Como se refere no Ac. do STJ de 29/6/95, in CJ, A III,T II, pág. 254, «Não se exige que o julgador exponha pormenorizada e completamente todo o raciocínio lógico que se encontra na base da sua convicção de dar como provado um determinado facto».
Assim sendo não se verifica a pretendida nulidade.
Valoração da prova.
O recorrente impugna ter-se dado como provado que dia 17/12/99, pelas 07h30 horas, na Av. ....., em Vila Real, conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-NR.
Não sendo a audiência nesta Relação uma repetição do julgamento em 1ª instância em matéria de facto, apenas se deverá apurar se a convicção do tribunal recorrido tem suporte razoável na prova presente nesta Relação.
Através da fundamentação da matéria de facto verifica-se a razoabilidade da convicção do tribunal e as razões que o determinaram a optar por tal decisão.
Entendemos que o tribunal “a quo” apreciou criticamente as provas produzidas em audiência de julgamento, fundamentando a opção que fez. O juiz da instância, devido à oralidade, imediação e contraditório, está numa situação de privilégio para apreender as emoções, a sinceridade, a isenção, as contradições, as solidariedades e cumplicidades, que escapam no recurso, onde domina o papel, de modo a poder proferir uma boa decisão de facto. Como se refere no Acórdão de 30/4/03, proferido no recurso nº 295/03, desta Secção, citando Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal., lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, pág. 158, a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes do processo, no julgamento da 1º instância, permite obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.
O artº 127º do CPP estabelece que a prova é, salvo se a lei dispuser diferentemente, apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Livre apreciação da prova “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica” (CPP de Maia Gonçalves, 11ª ed., pág. 325). Através da indicação dos meios de prova e do seu exame crítico, efectuados na fundamentação, como o impõe o artº 374º, nº 2 do CPP, é possível ao tribunal de recurso apreciar se a convicção do julgador está fundamentada num processo racional e lógico da valoração da prova.
Da prova oralmente produzida em audiência (D.......... - interveniente no acidente - e duas testemunhas de acusação) parece-nos perfeitamente lógico ter-se dado como provado que era o recorrente o condutor do veículo automóvel.
O D.......... afirma não ter qualquer dúvida em que era o recorrente que conduzia o veículo, nada indiciando a sua não credibilidade pois, como se refere na fundamentação, o mesmo não demonstrou qualquer animosidade contra o recorrente, tendo, inclusivamente, desistido, no início da audiência de julgamento, da queixa apresentada contra o recorrente pelo crime de ofensa corporal por negligência.
As duas testemunhas de acusação embora refiram não saberem quem era o condutor do veículo, dizem que o ofendido D.......... se levantou de imediato e dirigiu-se para o veículo que o atropelou, ali permanecendo alguns instantes, o que vem dar maior credibilidade ao depoimento do ofendido sobre o seu perfeito conhecimento de quem conduzia o veículo. A F.........., que não esteve junto do condutor, como o ofendido, refere que o condutor era jovem, antes de fazer marcha-atrás e fugir ainda insultou o ofendido, estava muito branco e ficou “muito pasmado”.
Perante a prova produzida, também nós não ficámos com dúvida séria, honesta e com força suficiente para se tornar um obstáculo intelectual à aceitação de que era o recorrente quem conduzia o veículo automóvel, não havendo lugar à aplicação do princípio “in dubio pro reo”.
Sendo correcta a valoração da prova feita pelo tribunal recorrido e não padecendo a sentença de qualquer dos vícios referidos no nº 2 do artº 410º do CPP, ou de outros de que cumpra conhecer, a decisão de facto proferida deve manter-se e, perante ela, a condenação do recorrente era inevitável.
DECISÃO
Em conformidade, decidem os juízes desta Relação em, negando provimento ao recurso, manter a decisão recorrida.
Taxa de justiça: seis (6) Ucs, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Honorários: os legais.
Porto, 18 de Maio de 2005.
Joaquim Rodrigues Dias Cabral
Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro
Arlindo Manuel Teixeira Pinto