INTERPELAÇÃO PARA PAGAMENTO
INTERPELAÇÃO INDEVIDA
OFENSA DO BOM NOME DO INTERPELADO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DANOS MORAIS
Sumário

1 – A conduta ilícita passível de ofender ou prejudicar o bom nome de uma pessoa, enquanto expressão da sua personalidade, é aquela que tenha a virtualidade de diminuir ou abalar o prestígio de que a pessoa goza ou a consideração positiva em que é tida no meio social em que se integra ou a consideração que tenha de si própria.
2 – Não tendo resultado provados quaisquer factos que revelem que a exigência do pagamento de quantia não devida pelo autor tenha sido conhecida de terceiros e que a sua consideração ou imagem tenha sido afectada junto destes ou que o próprio tenha, por via disso, sentido afectada a consideração que tinha de si mesmo, não se verifica ofensa ao seu bom nome que dê lugar à atribuição de indemnização ressarcitória.

Texto Integral

Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A, com o NIF ..., portador do Cartão do Cidadão n.º ..., emitido pela República Portuguesa e válido até 08-08-2022, com residência na Rua ..., Almada intentou contra SERVDEBT, CAPITAL ASSET MANAGEMENT, S. A., pessoa colectiva n.º ..., com sede na Praça ... Lisboa e WHITESTAR ASSET SOLUTIONS, S. A., pessoa colectiva n.º ..., com sede no Edifício ..., Rua ... Paço de Arcos a presente acção declarativa de condenação, com processo comum formulando os seguintes pedidos:
i. A condenação solidária das rés:
a) A cessar o comportamento ilícito de cobrança de montantes indevidos pelos meios que têm vindo a utilizar, reconhecendo que as quantias cobradas não são devidas;
b) No pagamento da quantia de 10 000,00€ ao autor a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora contabilizados à taxa legal desde a citação e até integral pagamento.
Alegou para tanto, muito em síntese, o seguinte (cf. Ref. Elect. 28630469):
* Em 30 de Agosto de 2006, o autor contratou um cartão de crédito Barclaycard, com o número ..., cuja dívida foi anulada e cancelado o cartão;
* O autor recebeu missiva remetida pela 1.ª ré em que esta lhe imputava uma dívida no valor de 2.345,63€ relativas ao mencionado cartão, o que lhe causou grave comoção, tendo contactado com a ré e explicado que nada devia; no entanto, a ré tornou a insistir no pagamento de valores que não devia, incluindo através de mensagens para o seu telemóvel;
* Por carta de 6 de Novembro de 2020 foi o autor informado que a segunda ré passou a gerir os créditos que estavam sob gestão da primeira ré e novamente interpelado para pagamento;
* As rés sabiam que nada podiam exigir ao autor por referência ao mencionado cartão e, não obstante, isso, fizeram-no, sendo que enquanto instituições de crédito estão sujeitas a especiais deveres de cuidado e diligência, que não cumpriram;
* O autor perdeu algumas noites sem dormir, temendo pelo seu futuro e deixou de participar em jogos amigáveis de futebol, mantendo os seus gastos controlados, abstendo-se de fazer férias ou adquirir algum produto que não fosse absolutamente necessário, tendo visto o seu bom nome violado
Regularmente citadas as rés deduziram contestação.
A ré Servdebt, Capital Asset Management, S.A. alegou, em síntese, o seguinte (cf. Ref. Elect. 28918855):
- É uma empresa que actua no contexto do seu objeto social que é, entre outros, o de gestão e recuperação de créditos, identificação de carteiras de créditos para cessão e ainda os actos que se revelem adequados à boa gestão de créditos, das respetivas garantias, mobiliária ou imobiliárias, bem como a prestação de toda a classe de serviços de consultoria e assessoria, serviços que presta para os seus clientes, que têm a qualidade de cessionários, o que sucede com a AOF4, S. A. R. L., que adquiriu os créditos do Banco Barclays PLC;
- No âmbito da prestação dos seus serviços para a cessionária, a ré contactou com o autor com vista à regularização do crédito;
- Mais tarde, o crédito foi objecto de nova cessão para a Arrow Global Limited, mantendo a ré a prestação de serviços para a nova cessionária;
- No âmbito dos contactos mantidos, o autor indicou que a dívida estava saldada mas não enviou o documento que o comprovava, o que apenas fez em Maio de 2020, depois de ter sido contactado em 2012, pelo que, a existirem danos não patrimoniais, tal deve-se à inacção do próprio autor, sendo que a ré, enquanto prestadora de serviços, agiu de acordo com as informações de que dispunha;
- A partir de 1 de Outubro de 2020, a ré transferiu, de forma total e a pedido da titular do crédito, a gestão e recuperação deste para a segunda ré;
- A ré Servdebt limitou-se a agir com base nas informações e documentos que possuía, sem ter assumido qualquer comportamento menos próprio para com o autor, não existindo dolo ou culpa da sua parte.
Concluiu, consequentemente, pela sua absolvição do pedido.
Contestou também a ré Whitestar, S. A. suscitando a sua ilegitimidade passiva referindo que a Arrow Global Limited contratou os seus serviços para efetuar a gestão dos créditos de que é titular, o que sucedeu neste caso, pelo que não é titular do crédito mencionado nos autos e a acção não deveria ter sido dirigida contra si, pugnando pela sua absolvição da instância (cf. Ref. Elect. 29221054).
Mais alegou que a acção deve ser julgada improcedente, o que fez referindo que a mensagem de 5 de Janeiro de 2021 diz respeito a outro contrato de crédito, que não o dos autos, sendo que, quando foi contactada pelo autor, em 3 de Dezembro de 2020, após a apreciação do documento apresentado, foram dadas instruções para que o crédito fosse considerado incobrável, pelo que à data da interposição da presente acção já o crédito figurava como incobrável; sustentou também que não causou quaisquer danos patrimoniais ou não patrimoniais ao autor, nem a sua actuação foi ilícita, pois não violou quaisquer direitos do autor, qualquer norma legal ou regulamentar, nem agiu em abuso de direito, nem o autor sofreu quaisquer prejuízos com a actuação da ré Whitestar.
Conforme convite para tanto, o autor respondeu às excepções deduzidas pugnando pela respectiva improcedência, referindo nunca lhe ter sido solicitada a comprovação da inexistência da dívida, sendo que após a apresentação do documento, a ré manteve a sua actuação de tentar cobrar o crédito, além do que, quanto à ilegitimidade da segunda ré, não está em causa a titularidade do crédito, mas a ilicitude da actuação da ré com violação dos direitos subjectivos do autor (cf. Ref. Elect. 30248493).
Em 25 de Novembro de 2021, foi proferido despacho saneador em que se apreciou a excepção de ilegitimidade passiva, que foi julgada improcedente, sendo depois designada data para a realização da audiência final (cf. Ref. Elect. 409866676).
Realizada a audiência final, em 1 de Julho de 2022 foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, com o seguinte dispositivo (cf. Ref. Elect. 416210473):
a) Condenar a 2ª ré WHITESTAR ASSET SOLUTIONS, S.A a abster-se de, por qualquer forma, tentar cobrar do autor qualquer importância relativa à utilização cartão de crédito tinha o número 4064740080324672 que o autor contratou junto do Barclays.
b) Absolver as rés dos demais pedidos formulados pelo autor.”
Inconformado com esta decisão, o autor vem interpor o presente recurso cuja motivação concluiu do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 33662479):
1. Estão reunidos os pressupostos constituintes de responsabilidade civil das RR.;
2. O A. sofreu danos de natureza não patrimonial;
3. A Decisão sob censura andou mal ao não atribuir indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos;
4. No dano não patrimonial busca-se não uma indemnização estribada na teoria da diferença mas uma compensação que permita ao lesado “esquecer” a ofensa sofrida;
5. Coisa que a sentença sob censura não faz;
6. Nos termos do artigo 496.º, n.º 4 do Código Civil, são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito;
7. Merecendo os danos sofridos pelo Recorrente tutela jurídica;
8. Por outro lado, o n.º 4 do referido preceito refere que o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal e tendo em conta o disposto no artigo 494.º do Código Civil;
9. Dispondo-se no dito preceito que se deve atender a: Grau de culpabilidade do agente; Situação económica deste e do lesado e; As demais circunstâncias do caso o justifiquem;
10. O Grau de culpabilidade dos agentes é elevado;
11. Com efeito, o A./Recorrente sofreu um ataque ao seu património, ataque esse profundamente ilícito;
12. A “piorar a situação”, as RR. comprovadamente sabiam que não havia dívida e, ainda assim, tentaram cobrá-la;
13. Pelo que cumpre concluir que o dolo é directo e elevado;
14.Quanto às condições económicas das partes, as RR. são grandes empresas com elevado nível de facturação e o A. é um trabalhador honesto que, infelizmente, não aufere muito mais que o salário mínimo;
15. Finalmente, quanto às demais circunstâncias do caso, além do supra referido quanto ao modo de execução do alegado, ao agirem como agiam, as RR./Recorridas demonstraram uma conduta anti-jurídica censurável e, também, injustificável, pelo que, no final de contas, ser condenado, “apenas”, numa abstenção parece insuficiente, mercê do quadro legal a ter em conta;
16. A falta de indemnização atribuída ao A., salvo devido respeito, que é todo, constitui um “prémio” às RR./Recorridas, que conseguem pagar um preço bem diminuto pela sua toada anti-jurídica, não só contra o A., mas contra vários valores sociais constituídos;
17. Mercê do supra exposto, deve a decisão proferida ser alterada por outra que cumpra os ditames legais, devendo as RR./Recorridas ser condenadas na integralidade do pedido. A decisão sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais: - 483.º, 496.º, 562.º a 564.º e 566.º, todos do Código Civil.
Termina pugnando pela procedência do recurso.
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª Edição, pág. 95.
Assim, perante as conclusões da alegação do autor/apelante o objecto do presente recurso consiste em apreciar a responsabilidade civil das rés por violação do direito de personalidade do autor.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Na primeira instância foram considerados provados os seguintes factos:
1. Em 30 de Agosto de 2006, o autor contratou um cartão de crédito Barclaycard.
2. Tal cartão de crédito tinha o número ....
3. A dívida relativa a esse cartão foi anulada e cancelada desde, pelo menos, 17 de Outubro de 2012.
4. O A. foi contactado pela 1.ª R..
5. O A. recebeu missiva remetida pela 1.ª R., a qual imputava ao A. uma dívida no valor de €2.345,63 relativas ao cartão com o número referido em 2..
6. De acordo com tal missiva, o A. deveria pagar um valor de €1.410,00, correspondente a um desconto de 40% da quantia em dívida até 30-6-2019.
7. Sendo facultadas referências e formas de pagamento, bem como contactos telefónicos.
8. De imediato, ligou para a 1.ª R. e explicou que nada devia e por que razão não devia.
9. Conforme e-mail remetido pelos serviços da 1.ª R. a 5 de Agosto de 2020, a 1.ª R. veio novamente exigir ao A. o pagamento da quantia de €2.436,91.
10. Quantia essa respeitante ao cartão com o número referido em 2..
11. Nesse mesmo e-mail, é dada “oportunidade” ao A. de pagar a quantia de €609,00 até ao dia 28/09/2020, sendo que tal corresponderia a um “desconto”.
12. Ainda nesse e-mail, é facultada uma referência para pagamento e um convite ao contacto com a 1.ª R.
13. De imediato, o A. telefonou para o número facultado e explicou que nada devia.
14. O A. recebeu mais 3 mensagens escritas para o seu telemóvel da 1ª Ré.
15. A primeira, datada de 7 de Agosto de 2020, dizia: BOAS NOTÍCIAS. PODERA LIQUIDAR A SUA DIVIDA COM UM DESCONTO DE 50%. AGORA ATÉ 30/07/2020 P/IBAN PT500.... TEL 21....
16. A segunda, datada de 01 de Setembro de 2020, dizia: APROVEITE OPORTUNIDADE E LIQUIDE A SUA DIVIDA COM UM DESCONTO DE 75%. PAGUE 609 EUR ATE 28/09/2020 P/IBAN PT5000....
17. Uma última mensagem oriunda da 1.ª R., dizia: ÚLTIMA OPORTUNIDADE, LIQUIDE A SUA DIVIDA ATE 28/09/2020 OU AVANCAREMOS COM PROCESSO EM TRIBUNAL. EVITE PENHORAS. CONTACTE 21....
18. Por carta datada de 6 de Novembro de 2020, o A. foi informado que a 2.ª R. passou a gerir os créditos que estavam sob gestão da 1.ª R..
19. E nessa mesma carta, o A. é interpelado ao pagamento de uma dívida.
20. Antes do recurso aos tribunais de jurisdição civil, apresentou queixa-crime, a qual deu origem ao processo n.º ..., que correu termos no D.I.A.P de Almada, Comarca de Lisboa.
21. Tendo tal processo vindo a ser encerrado, por arquivamento.
22. Após receber os contactos supra descritos, o autor ficava ansioso, com dificuldades para dormir e procurava manter os seus gastos controlados.
23. A Servdebt é uma empresa que tem como objeto social “a gestão e recuperação de créditos, identificação de carteiras de créditos para cessão e ainda os actos que se revelem adequados à boa gestão de créditos, das respectivas garantias, mobiliária ou imobiliárias, bem como a prestação de toda a classe de serviços de consultoria e assessoria, designadamente os relacionados com a administração, gestão e comercialização de bens móveis ou imóveis. Prática de todos os actos necessários à realização do objecto social ou de actividades com estas conexas”.
24. No dia 30 de Novembro de 2011, através de um contrato de cessão de créditos, o crédito aqui sub judice foi cedido pelo Banco Barclays PLC, agindo sob a denominação Barclaycard – cedente - à AOF4, S.A.R.L. – cessionária.
25. A 30 de Setembro de 2015 foi o presente crédito objecto de nova cessão de créditos, desta feita entre a AOF4, S.A.R.L., como cedente, e a Arrow Global Limited, como cessionária.
26. Não obstante o novo contrato de cessão de créditos, a R. Servdebt manteve a gestão atendendo ao contrato de prestação de serviços celebrado com a nova cessionária.
27. O A. procedeu ao envio à 1ª ré do documento que demonstrava que este não era responsável pela dívida em causa, no dia 28 de Maio de 2020.
*
O Tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos:
28- O A. deixou de participar em jogos amigáveis de futebol.
29- O A. absteve-se de fazer férias.
30- Em 5 de Janeiro de 2021, a 2.ª R remete ao A. e-mail tentando lograr um pagamento do autor.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Da responsabilidade civil das rés por violação do direito de personalidade do autor
O autor demandou as rés deduzindo a pretensão de ser indemnizado pelos danos não patrimoniais que alega ter sofrido em consequência do facto de por estas ter sido interpelado, por diversas vezes, para saldar uma quantia atinente à utilização de um cartão de crédito Barclaycard, que contratou em Agosto de 2006 e que, em Outubro de 2012, foi cancelado e a dívida anulada, e apesar de ter informado as demandadas desse facto, estas tentaram cobrar quantias que não eram devidas, causando-lhe noites sem dormir, temendo pelo seu futuro e levando-o a deixar de participar em jogos amigáveis de futebol, abstendo-se de gozar férias ou adquirir algum produto que não fosse necessário, considerando que o seu bom nome foi afectado ao ser-lhe imputada uma dívida inexistente.
Realizada a audiência de julgamento, a 1ª instância julgou a acção parcialmente procedente e quanto à atribuição de uma indemnização pelos danos não patrimoniais suportados pelo autor consignou o seguinte:
“O autor demonstrou que a dívida que tinha para com instituição financeira foi anulada e cancelado o cartão desde, pelo menos, 17 de Outubro de 2012, extinção essa que já se verificava aquando dos negócios de cessão acima retratados, pelo que temos que os putativos detentores dos créditos (cessionários) não os poderiam cobrar, ainda que por intermédio de terceiros.
As aqui rés desenvolvem a sua atividade, prestando os seus serviços de gestão e recuperação de créditos para os seus clientes, os quais, assumem a qualidade de cessionários, por via da aquisição de carteiras de crédito em incumprimento (através de contratos de cessão de créditos), porém, esta condição de prestadoras de serviços para os verdadeiros titulares dos créditos não as exonera de cuidar sobre a existência, ou não, dos créditos e sendo portadoras de informações/elementos seguros em como tais créditos estão extintos a insistência junto de antigos devedores, seja de que forma for, com vista ao pagamento de importâncias que já não são devidas não deixa de ser considerar um comportamento ilícito.
Existindo um documento que atesta que a dívida foi anulada e cancelado o dito cartão desde, pelo menos, 17 de Outubro de 2012, estava o autor investido numa situação que lhe permitia junto das rés demonstrar a inexistência da dívida, contudo o autor somente procedeu ao envio à 1ª R. do documento que demonstrava que este não era responsável pela dívida em causa, no dia 28 de maio de 2020, este facto é relevante, dado que atento o que dispõe o art. 570º nº 1 do CPC, o autor, com a sua omissão, concorreu culposamente para a insistência das rés na cobrança das dívidas, o que na nossa perspectiva afasta o direito do autor à indemnização até ao momento em que comunicou à 1ª ré a existência de documento que o exonerava do pagamento da dívida.
Quanto à eventual responsabilidade da 1º ré SERVDEBT, CAPITAL ASSET MANAGEMENT.
Deu-se como assente que:
-O A. recebeu mais 3 mensagens escritas para o seu telemóvel.
-A primeira, datada de 7 de Agosto de 2020, dizia: BOAS NOTÍCIAS. PODERA LIQUIDAR A SUA DIVIDA COM UM DESCONTO DE 50%. AGORA ATÉ 30/07/2020 P/IBAN PT5000…. TEL 21….
- A segunda, datada de 01 de Setembro de 2020, dizia: APROVEITE OPORTUNIDADE E LIQUIDE A SUA DIVIDA COM UM DESCONTO DE 75%. PAGUE 609 EUR ATE 28/09/2020 P/IBAN PT5000….
- Uma última mensagem oriunda da 1.ª R., dizia: ÚLTIMA OPORTUNIDADE, LIQUIDE A SUA DIVIDA ATE 28/09/2020 OU AVANCAREMOS COM PROCESSO EM TRIBUNAL. EVITE PENHORAS. CONTACTE 21….
As mensagens referidas foram enviadas ao autor já depois de a 1ª ré ter na sua posse um documento que exonerava o autor de qualquer dívida, pelo que o comportamento da ré, pelas razões acima expostas, não poderá deixar de considerar-se ilícito e gerador do dever de indemnizar, uma vez verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
Conforme dispõe o n.º 1, do artigo 25.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) “A integridade moral e física das pessoas é inviolável.”
Todos têm, portanto, “…direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover”; assim como “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.” – cfr. artigos 64.º, n.º 1 e 66.º, n.º 1 da CRP.
Por seu tuno, o artigo 24.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê que “Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres (…)”.
De igual modo, dispõe o artigo 70.º do Código Civil, sob a epígrafe “Tutela geral da personalidade”, que “1 - A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral. 2 - Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.”
Está provado que o autor em consequências das mensagens ficava ansioso, com dificuldades para dormir e procurava manter os seus gastos controlados.
A única condição de ressarcibilidade do dano não patrimonial é a sua gravidade (artº 496º, nº 1 do Código Civil).
Se atentarmos que só três mensagens, enviadas num curto espaço de tempo (Agosto e Setembro de 2020 - dois meses) foram susceptíveis de causar perturbação na tranquilidade e sono do autor, entendemos que não têm o grau de gravidade necessário para serem ressarcíveis. O mesmo se diga quanto à responsabilidade da 2º ré WHITESTAR ASSET SOLUTIONS, já que esta apenas enviou uma mensagem ao autor.”
O autor/apelante insurge-se contra o assim decidido argumentando que na sentença recorrida se consideraram verificados os pressupostos do direito à indemnização – facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade -, tendo o autor sofrido danos não patrimoniais, cabendo ao tribunal, em cada caso, dizer se o dano é ou não merecedor de tutela jurídica, fixando a indemnização com observância do disposto no art.º 494º do Código Civil, ou seja, no caso, havia que ter em conta o grau de culpabilidade dos agentes, que é grande, pois que as rés sabiam que a dívida não existia e não obstante enviaram mensagens e fizeram telefonemas, impedindo-o de ter paz, são empresas com elevado grau de facturação e o recorrente não aufere mais que o salário mínimo, pelo que não basta a condenação na abstenção de tentarem cobrar qualquer valor, devendo ser fixada a indemnização peticionada (dez mil euros).
A decisão recorrida reconheceu, de facto, que se mostravam verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, referindo ter o autor demonstrado que não tinha qualquer dívida para com a entidade cessionária para quem as rés prestavam serviços de gestão e recuperação de créditos, sendo que estas estavam obrigadas a verificar a existência dos créditos antes de exigirem o respectivo pagamento, pelo que ao actuarem como actuaram o seu comportamento deve ser considerado ilícito.
No entanto, considerou-se ali ainda que o autor estava munido, desde 17 de Outubro de 2012, de um documento que lhe permitia comprovar junto das rés a inexistência da dívida e apenas o enviou à ré/recorrida Servdebt, Capital Asset Management, S. A. em 28 de Maio de 2020, concorrendo, desse modo, para a insistência das rés quanto à cobrança da dívida, concluindo que pelo menos até à data dessa comunicação não tinha o autor direito a qualquer indemnização.
O recorrente não se dirigiu directamente contra tal conclusão, vindo apenas sustentar que a decisão recorrida tem de ser modificada, no sentido de lhe ser atribuída uma indemnização, por estarem reunidos os pressupostos da responsabilidade civil imputável às rés, em face dos danos que suportou e das circunstâncias do caso, referindo terem as rés actuado com dolo elevadíssimo, actuando de acordo com uma intenção, causando humilhação ao autor.
Apesar disso, o recorrente não colocou em crise a apreciação jurídica efectuada pela 1ª instância, seja quanto ao facto de entender que o direito à indemnização estava afastado até ao momento em que aquele comunicou à primeira ré o documento comprovativo da extinção da dívida, concorrendo, desse modo, culposamente para a insistência na cobrança das dívidas, seja quanto ao segmento da decisão que, relativamente às três mensagens posteriores àquela comunicação (mensagens de Agosto e Setembro de 2020), em que a ré Servdebt mantém a interpelação para pagamento da dívida, entendeu que a ressarcibilidade do dano não patrimonial depende da sua gravidade, concluindo que a perturbação do sono causada pelas mencionadas mensagens não possui o grau de gravidade necessário para os danos causados serem passíveis de indemnização.
De todo o modo, porquanto o recorrente vem sustentar que os danos apurados são merecedores da atribuição de uma indemnização, cumpre apreciar se tem razão à luz do Direito aplicável.
Na sua petição inicial, o autor invocou a violação do seu direito de personalidade, na vertente de violação do seu bom nome, para sustentar o pedido de indemnização deduzido.
Dado que está em causa uma conduta ilícita das rés – traduzida na exigência de uma dívida extinta –, que o autor alega ter afectado o seu bom nome, causando-lhe ansiedade e dificuldade em dormir (cf. ponto 22. dos factos provados), a questão deve, à partida, ser apreciada no contexto da responsabilidade civil extracontratual decorrente do estatuído nos art.ºs 483º, 484º e 497º do Código Civil.
O instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos exige o preenchimento de certos requisitos, ínsitos no mencionado art.º 483º do Código Civil, que podem ser enunciados do seguinte modo:
a) a existência de um facto voluntário do agente – um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana, que pode ser um comportamento afirmativo (acção) ou negativo (omissão), onde se incluem “as figuras da vontade presumida e da vontade ficta ou mesmo da vontade que se esconde por dentro da negligência consciente ou inconsciente, mais não são do que formas de reajustamento da vontade normativa, ao sentido do dever ser”;
b) um facto ilícito – isto é, que se traduza na violação de um direito alheio ou de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios;
c) um nexo de imputação do facto ao lesante, ou seja, que exista dolo ou mera culpa;
d) um dano decorrente da violação do direito subjectivo ou da lei, pois que a responsabilidade é obrigação nascida de um prejuízo e tem por objecto a reparação deste; e ainda;
e) um nexo de causalidade entre esse dano e o facto praticado pelo agente, de modo a que se possa afirmar, à luz do direito, que o dano/prejuízo é resultante da violação - cf. art.º 563° do Código Civil, por força do qual o problema do nexo de causalidade resolve-se pela probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão, aferindo-se, a partir desse normativo, que se aceitou a teoria da causalidade adequada traduzida pela “exigência de que o acontecimento tenha sido de natureza a produzir normalmente o dano” – cf. Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, volume III, pág. 33.
O art.º 16º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa estipula que “Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional”, acrescentando o n.º 2 que os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, significando este princípio que “no caso de polissemia ou plurissignificação de uma norma constitucional de direitos fundamentais, deve dar-se preferência aquele sentido que permita uma interpretação conforme à Declaração Universal; [ ] na «densificação» dos conceitos constitucionais relativamente indeterminados referentes a direitos fundamentos [ ] deve recorrer-se ao sentido desses conceitos na Declaração Universal, salvo se esse sentido for contra constituionem.” – cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, pág. 138.
O art.º 12º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de Dezembro de 1948[2] dispõe que “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.
A Constituição da República Portuguesa estabelece logo no seu art.º 1º que a República Portuguesa se baseia na dignidade da pessoa humana e prescreve no art.º 26º que a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar.
A personalidade moral de uma pessoa, o seu bom-nome e consideração social são valores legalmente tutelados tal como se extrai do conteúdo dos art.ºs 70º e 484º do Código Civil.
O direito ao bom-nome e reputação “consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação []. Neste sentido, este direito constitui um limite para outros direitos (designadamente, a liberdade de informação e de imprensa).” – cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. cit., pág. 181.
No dizer de Rabindrath Capelo de Sousa, a honra “abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela natureza igualmente para todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância… Em sentido amplo inclui também o bom nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político” – cf. O Direito Geral da Personalidade, pp. 303-304 apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-05-2002, CJ (STJ), II, pág. 65.
Maria Paula Andrade define a honra como “bem da personalidade e imaterial, que se traduz numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade e que constitui modalidade do livre desenvolvimento da dignidade humana []; enquanto bem da personalidade e nesta sua vertente externa, trata-se de um bem relacional, atingindo o sujeito enquanto protagonista de uma actividade económica, com repercussões no campo social, profissional e familiar e mesmo religioso.” – cf. Da ofensa do Crédito e do Bom Nome, pág. 97, apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-05-2002 acima referido.
A honra será, enfim, o apreço de cada um por si; a consideração que tem ou pode ter a comunidade no sentido de considerar alguém como um bom elemento social ou de não lhe conceder um valor negativo.
Dispõe o art.º 484º do Código Civil: “Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.”
A inserção deste normativo na subsecção da responsabilidade civil por actos ilícitos tem implícita a exigência de verificação dos demais pressupostos de responsabilidade civil constantes do art. 483º, n.º 1 do Código Civil acima enunciados, dado que a ofensa a que se alude em tal normativo constitui apenas um caso especial de facto antijurídico definido naquela disposição legal, que se tem de ter por subordinado ao princípio geral nele vertido, não apenas quanto aos requisitos fundamentais da ilicitude, mas também relativamente à culpabilidade – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-05-2002 já mencionado e acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9-10-2008, processo n.º 08A2452[3].
O “acto” mencionado no art.º 484º do Código Civil deve ser entendido como “uma afirmação ou uma insinuação, feita pela palavra (escrita ou oral), pela imagem ou pelo som, que impliquem ou possam implicar desprimor para o visado. Este resultará (ou poderá resultar) apoucado, aviltado ou, por qualquer modo, diminuído na consideração social ou naquela que ele tenha de si mesmo. A pessoa média normal (bonus pater familias) sentir-se-ia bem consigo próprio e com os outros se fosse vítima da afirmação ou da insinuação em causa? A resposta dir-nos-á, em regra, se há facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome do visado.” – cf. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II Direito das Obrigações - Tomo III, 2010, pág. 553.
Aquilo que está em causa no art.º 484º do Código Civil, em termos de conduta ilícita, é a afirmação ou difusão de um facto capaz de prejudicar ou ofender o “crédito” ou o “bom nome” de uma pessoa, enquanto expressões da sua personalidade. “Há ofensa do crédito no caso de o facto divulgado ter a virtualidade de diminuir a confiança quanto ao cumprimento pelo visado das suas obrigações. Há ofensa do bom nome se o mencionado facto tiver a virtualidade de abalar o prestígio de que a pessoa goza ou o conceito positivo em que é tida no meio social em que se integra. Trata-se da representação que os outros têm, do valor de uma pessoa, a consideração social. Ou seja, formulada nestes termos a específica tutela contida no art.º 484º do C. Civil, mais do que referindo-se à honra em sentido subjectivo, à auto consideração, dirige-se à honra em sentido objectivo.” – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9-10-2008, processo n.º 0833626.
Menezes Cordeiro refere que a lei não exige como pressuposto do funcionamento do artigo 484º, a falsidade de quaisquer afirmações; limita-se a remeter, ainda que implicitamente, para os direitos de personalidade.
Em idêntico sentido pronuncia-se Mário Júlio de Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 472:
“Conforme se infere da lei, tem de haver a imputação de um facto, não bastando alusões vagas e gerais. Parece indiferente, todavia, que o facto afirmado ou difundido seja verdadeiro ou não. Apenas interessa que, dadas as circunstâncias concretas, se mostre susceptível de afectar o crédito ou a reputação da pessoa visada [ ]”
E Antunes Varela afirma que “pouco importa que o facto afirmado ou divulgado seja ou não verdadeiro – contanto que seja susceptível, ponderadas as circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que ela seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade.” – cf. Das Obrigações em Geral, vol. I, 6ª edição, pág. 518.
Conforme se referiu, o funcionamento do disposto no art. 484º do Código Civil exige a imputação ou difusão de um facto e não a mera formulação de juízos valorativos ou considerações abstractas.
 “Tudo o que seja amputar a verdade, transmiti-la a sugerir algo diverso do que dela resulte, redigi-la de modo a provocar valorações tendenciosas, levantar dúvidas ou reticências ou fabricar notícias por qualquer modo, não pode reivindicar a veritas. Assim sendo, será ilícito desde que atinja a honra de alguém.” – cf. Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 556.
No âmbito da afirmação ou divulgação de factos susceptíveis de prejudicar o crédito ou o bom-nome de alguém a existência de culpa por parte do agente exige, tão-somente, que este queira afirmar ou difundir o facto, sendo indiferente que ele soubesse ou não que, em consequência disso, o lesado perderia algo ou sofreria um qualquer prejuízo.
Assim, desde que o agente conheça ou devesse conhecer a ilicitude ou o carácter danoso do facto deve ser ele a suportar o encargo de reparar os danos que ocorrerem em virtude desse facto.
Não é, pois, indispensável, para a punibilidade, uma intencionalidade ofensiva, bastando a simples reprovabilidade da actuação.
A intencionalidade, ou dolo, é inócua relativamente ao dever de indemnizar. Releva, apenas, para efeitos de graduação sancionatória, na falta de prova de dolo – cf. art.º 494º do Código Civil.
Há que apurar, assim, se em face dos factos provados se pode falar de culpa por parte das rés (mera culpa ou culpa stricto sensu), sendo certo que a demonstração dessa culpa incumbe ao autor – cf. art.º 487º, n.º 1 do Código Civil.
A imputação do facto ao agente pressupõe a formulação de um juízo jurídico-normativo que se deve socorrer do critério da diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, nos termos do n.º 2 do art.º 487º do Código Civil, isto é, de acordo com a conduta normal do cidadão comum e com a ética, a deontologia, o civismo exigíveis à generalidade das pessoas.
Por outro lado, a ofensa passível de afectar a honra do visado deve ser aferida por padrões de sensibilidade média, própria do homem médio (um bonus pater familias), salvo se apurada uma concreta hipersensibilidade conhecida do lesante, de que este se aproveitou para denegrir a personalidade geral do lesado – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2005, processo n.º 04B4244.
No que diz respeito à interpelação para pagar dirigida ao autor pela primeira ré em Junho de 2019 (cf. pontos 4. a 7. da matéria de facto provada), não se pode deixar de reconhecer, tal como a 1ª instância, que nada se apurou que permita afirmar que aquela conhecia a ilicitude de tal interpelação, porquanto não está demonstrado que tivesse conhecimento da extinção da dívida em causa.
Certo é que não estava a ré desobrigada de verificar a existência do crédito e a sua exigibilidade, mas não se pode deixar de ter em atenção que a ré é uma sociedade que se dedica à gestão e recuperação de créditos, sendo nesse âmbito que actuou, enquanto prestadora desse tipo de serviços para a entidade para quem o crédito foi cedido, pelo que não é a cessionária, nem foi a ela que a existência do crédito foi garantida – cf. pontos 23. a 26. dos factos provados.
Com efeito, no âmbito da cessão de créditos, o cedente garante ao cessionário a existência e a exigibilidade do crédito ao tempo da cessão, nos termos do art.º 587º, n.º 1 do Código Civil, mas tal deve ser enquadrado em função do negócio, gratuito ou oneroso, subjacente à cessão, sendo que o cedente deve prestar ao cessionário todas as informações pertinentes, relativas ao crédito cedido – cf. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IX – Direito das Obrigações, 3ª Edição Totalmente Revista e Aumentada, pág. 795.
Ora, nada se apurou quanto aos termos do negócio celebrado entre a cessionária (Arrow Global Limited) e a ré Servdebt, sabendo-se apenas que esta assumiu a gestão e cobrança do crédito cedido e cujo pagamento tentou cobrar junto do autor, sem que qualquer um dos factos revele que tinha conhecimento ou que podia ter tido conhecimento da extinção do crédito se tivesse actuado com maior diligência.
Mas se assim era até 28 de Maio de 2020, a partir desta data a primeira ré não podia desconhecer a extinção da dívida, dado que tal lhe foi comunicado pelo autor através do envio de documento que atestava que nenhuma responsabilidade tinha pelo pagamento do montante que aquela pretendia cobrar – cf. ponto 27..
Desse modo, as mensagens dirigidas para o endereço de correio electrónico do autor em 5 de Agosto de 2020 e, bem assim, para o seu telemóvel, nesse mesmo mês e em Setembro de 2020 (cf. pontos 9. e 14. a 17.) ocorreram num momento em que a primeira ré não podia deixar de ter conhecimento da extinção da dívida, pelo que a insistência na cobrança de uma quantia que sabia não ser devida não pode deixar de revestir natureza ilícita, devendo suportar os danos que ocorrerem por via dessa sua actuação.
Contudo, a actuação da ré – e, bem assim, da segunda ré quanto à mensagem de idêntico teor de Novembro de 2020 – não se apresenta, face à factualidade apurada, susceptível de abalar, por si só, o prestígio do autor, a sua imagem social ou a consideração que terceiros dele tivessem.
Note-se que, embora a interpelação para pagamento pressuponha a aceitação ou afirmação de que o autor mantinha uma dívida para com a cessionária do alegado crédito, nada se apurou no sentido de que esse facto tenha sido do conhecimento de terceiros, sejam familiares, amigos ou conhecidos do autor e que, por via disso, a sua imagem e o seu bom nome possam ter sido afectados no contexto do seu círculo familiar e/ou social.
Atente-se que a ofensa do bom nome implica que o facto tenha a virtualidade de abalar o prestígio de que a pessoa goza ou o conceito positivo em que é tida no meio social em que se integra, nada tendo sido apurado no sentido de a consideração social do autor ter ficado afectada.
E se nada foi alegado ou provado quanto à repercussão que essa indevida interpelação possa ter causado na imagem do autor, no seu bom nome junto de terceiros ou daqueles com quem convive (sendo que sequer foi mencionado o respectivo conhecimento do facto por outros), também nada resultou demonstrado quanto a uma eventual repercussão na imagem que o autor tem de si próprio, ou seja, que a pressuposta afirmação de que o autor era devedor tenha, de algum modo, sido entendida pelo autor como um avilte, um apoucamento da sua pessoa e que tenha diminuído a consideração que tinha de si mesmo.
Na verdade, o ter ficado ansioso e ter tido dificuldades para dormir ou sentido necessidade de controlar os seus gastos (cf. ponto 22.) não determinam, por si só, que o autor tenha sentido que tal interpelação o diminuía no conceito que tinha de si próprio, nem tão-pouco é bastante, atendendo ao padrão do homem médio, para se entender que qualquer pessoa colocada naquela situação se sentiria aviltada apenas por força desse erro na gestão dos créditos por parte das rés (tanto mais que, in casu, também como se realça na decisão recorrida, o próprio autor aguardou quase um ano para enviar à primeira ré o documento comprovativo da extinção da dívida).
Assim, não se tem sequer por demonstrado que o bom nome do autor – direito convocado pelo recorrente como tendo sido violado e fundamento da indemnização peticionada – tenha resultado afectado por via da actuação das rés, pelo que, não estando tal dano suficientemente indiciado em sede factual, não há que reconhecer a responsabilidade civil das rés, com a consequente obrigação de indemnizar nessa sede.
De todo o modo, resultou provado que o autor, após receber os contactos das rés, ficava ansioso e com dificuldades para dormir, o que pode ser enquadrado ainda como danos não patrimoniais decorrentes de violação do seu direito de personalidade, na vertente de afectação do seu direito ao repouso/sossego ou de assédio (enquanto criação de um ambiente hostil ou ofensivo).
Nos termos do disposto no art.º 496º, n.º 1 do Código Civil, o dano não patrimonial abrange qualquer dano que, não tendo natureza económica, assuma uma tal gravidade (dentro de um padrão objectivo) que requeira e mereça a tutela do direito.
Podem assumir essa característica as perdas suportadas quer no bem-estar físico (dores físicas e psíquicas), quer no equilíbrio psíquico (perturbação da pessoa, os sofrimentos morais, desgostos, depressão, os prejuízos na vida de relação, entre outros).
Seguro é que a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais circunscreve-se aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
A gravidade do dano há-de medir-se, como se disse, por um padrão objectivo e a sua apreciação deve ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso, pelo que se desprezarão factores subjectivos (uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada), sendo seguro que os simples incómodos ou contrariedades não justificam a indemnização por danos não patrimoniais.
Ficam abrangidos atentados a direitos de personalidade não-patrimoniais, com relevo para a vida, a integridade física e moral, a honra e a intimidade; ingerências em áreas de sensibilidade humana, tuteladas por normas ou princípios de protecção; inobservância de deveres do tráfego relativos a essa mesma sensibilidade e, bem assim, danos morais conexos com inadimplementos contratuais (inobservância de deveres acessórios que tutelem a integridade moral – cf. António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado – II – Das Obrigações em Geral, 2021, pág. 441.
Ainda que a actuação das rés, ao insistir na cobrança de um crédito cuja extinção lhes havia já sido comunicada, não deixe de revelar a desorganização e falta de cuidado na gestão dos créditos que estava sob a sua alçada (nenhum facto apurado permite afirmar qualquer intenção por parte das recorridas no sentido de humilhar o autor, ao contrário do que este vem sustentar nas suas alegações) e mesmo sabendo que as interpelações efectuadas causaram ansiedade ao recorrente e dificuldades em dormir, ainda assim crê-se que estas perturbações não assumem uma gravidade significativa ou bastante para justificar a atribuição de uma indemnização.
Com efeito, colocando-se qualquer cidadão normal na posição do apelante, não deixaria de reconhecer que se trata de uma situação que interfere com a normalidade do correr dos dias, mas apenas enquanto contrariedade ou um problema de gestão das relações negociais que se estabelecem ao longo da vida e que em dado momento originam conflitos, até por via de mal entendidos ou falta de comunicação e que implicam um desgaste de tempo para a sua resolução e, eventualmente até, um certo desgaste físico ou emocional, mas que, no caso, não assume uma dimensão de tal ordem que justifique a atribuição de uma indemnização, situando-se ainda no contexto das contrariedades, imprevistos e escolhos que vão surgindo no correr normal da vida e que cumpre cada um debelar, com maior ou menor serenidade, mas, ainda assim, enquanto incómodo que não extravasa essa natureza ou assume repercussão relevante seja na estabilidade emocional, seja na honra da pessoa visada.
Assim, também por esta razão, não há que atribuir qualquer indemnização ao autor, pelo que improcede a presente apelação, devendo manter-se inalterada a decisão recorrida.
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Das Custas
Nos termos do art.º 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais[4], considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
Uma vez que o apelante decai na pretensão recursória estaria, em princípio, obrigado ao pagamento das custas devidas.
No entanto, o apelante litiga com benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nomeação e pagamento da compensação de patrono (cf. Ref. Elect. 28630469).
Nestas circunstâncias, não há sequer lugar a elaboração de conta de custas, nos termos do art.º 29º, n.º 1, a) do RCP, o que sucede pelo facto de a parte vencida beneficiária do apoio judiciário na mencionada modalidade não poder ser condenada no pagamento de custas (taxa de justiça, encargos e custas de parte).
Como tal, não há lugar ao pagamento de custas seja pelo recorrente, seja pelas recorridas.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 10 de Janeiro de 2023
Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Alexandra Castro Rocha
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[1] Adiante designado pela sigla CPC.
[2] Publicada no Diário da República I Série A, n.º 57/78, de 9 de Março de 1978.
[3] Acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[4] Adiante designado pela sigla RCP.