Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ADMINISTRADOR JUDICIAL PROVISÓRIO
REMUNERAÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário
I. Ao cálculo da remuneração do Sr. AJ que vier a ser fixada depois da entrada em vigor da Lei 9/2022, de 11 de Janeiro, são aplicáveis os critérios da lei nova, ainda que o encerramento da liquidação tenha ocorrido em data anterior, entendimento que não viola os princípios fundamentais constitucionalmente tutelados da segurança jurídica e da confiança, enquanto princípios densificadores do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da CRP. II. Mantendo o legislador a parte variável da remuneração como incentivo à diligência do Sr. AJ e prémio pelos resultados obtidos com a gestão e venda do património do insolvente, o n.º 7 do artigo 23.º do EAJ deve ser interpretado no sentido de que um dos factores a considerar no cálculo é a percentagem de créditos satisfeitos para efeitos de apuramento do montante sobre o qual irá depois incidir a percentagem de 5% relativa à majoração. III. O cálculo da majoração implica assim duas operações sucessivas: a primeira, tendo em vista apurar o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, obtém-se dividindo o valor da liquidação disponível para distribuição, calculado nos termos prescritos no n.º 6, pelo montante dos créditos reconhecidos; de seguida, a percentagem obtida, correspondente ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, é aplicada ao mesmo valor da liquidação, sendo sobre o resultado desta segunda operação que vai incidir a percentagem de 5%. IV. A norma correctiva do n.º 8 permite limitar eventual desproporção entre a actividade desenvolvida, o resultado obtido e o montante da remuneração que se atinja pela aplicação das regras de cálculo expostas nas precedentes disposições, podendo / devendo ser actuada pelo juiz sempre que a remuneração variável, incluindo portanto a majoração, exceda o montante de € 50.000,00. V. O n.º 10 do preceito contém também uma norma “travão”, fixando para a remuneração variável de AJ no caso de liquidação – sentido em que deve ser interpretada a remissão para a alínea b) do n.º 4 – um limite de € 100.000,00. VI. Verificando-se que foram apreendidos para a massa 36 bens imóveis, constituindo os móveis apreendidos o recheio das fracções e sendo o resultado da liquidação produto essencialmente da venda destas últimas – das quais 23 foram adjudicadas à credora hipotecária –, atendendo ainda a que a lista de créditos reconhecidos não foi objecto de impugnação, não tendo ocorrido incidentes com complexidade a demandar a intervenção do Sr. AJ, justifica-se a redução da remuneração para € 80.000,00 ao abrigo do n.º 8 do artigo 23.º se os € 6.738.370,96 obtidos com a liquidação, deduzidas as despesas, satisfazem 51% dos créditos reconhecidos. (Sumário da Relatora
Texto Integral
Processo n.º 1157/17.7T8OLH-M.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Faro Juízo do Comércio de Olhão – Juiz 2
I. Relatório
Nos autos de processo especial de insolvência de que os presentes constituem o apenso M, foi a devedora (…) Developments, Lda. declarada insolvente, tendo sido nomeado AJ o Sr. Dr. (…).
Por requerimento de 29/4/2022 o Sr. AI apresentou nos autos o cálculo da remuneração variável, “efetuado ao abrigo do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, alterado pela Lei n.º 9-2022, de 11 de janeiro” e, tendo apurado o valor de € 807.772,76, concluiu que “atentos os valores apurados e considerando o limite imposto no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ (€ 100.000,00), vem o AJ requerer muito respeitosamente a V.ª Ex.ª que se digne fixar a remuneração variável devida, por forma a poder elaborar o mapa de rateio final”.
A credora (…), Unipessoal, Lda. pronunciou-se no sentido de a remuneração dever ser fixada de acordo com o limite previsto no artigo 23.º, n.º 10, do anterior EAJ.
Por despacho de 27 de Maio de 2022, ora recorrido, foi a remuneração variável fixada em € 431.795,55, acrescida de IVA, no valor total de € 531.108,53.
Inconformada, apelou a credora (…), Unipessoal, Lda. e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
a) Mediante requerimento de 29-04-2022, o Senhor Administrador de Insolvência, apresentou a sua proposta de remuneração variável no montante de € 807.772,76.
b) Por discordar da referida remuneração, a presente credora, em 10-05-22, juntou aos autos um requerimento pugnando pela sua redução, por considerar a inaplicabilidade do “novo” Estatuto dos Administradores Judiciais, decorrente da alteração da Lei n.º 9/2022, de 11-01, ao caso em apreço, por manifesta violação das legítimas expectativas do credor, inerentes aos novos cálculos da referida remuneração.
c) Dado que aqueles acarretam um imprevisível e substancial aumento da remuneração do Administrador de Insolvência, com redução da expectativa de ressarcimento dos credores.
d) Os quais assentaram as suas decisões, designadamente financeiras, no tocante à adjudicação de bens e aceitação de valores de venda a terceiros, em pressupostos de encargos e despesas que foram “a posteriori” substancialmente alterados e encarecidos.
e) O que, manifestamente coloca em causa a segurança jurídica destes credores.
f) Sucede que, tal requerimento não mereceu qualquer apreciação por parte do tribunal, em violação do disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
g) Tendo sido proferido o supramencionado despacho ora recorrido, mediante o qual foi fixada a remuneração variável na quantia de € 531.108,53.
h) Acontece que, conforme referido, tal despacho não se pronunciou acerca do teor do requerimento da recorrente, tendo somente fixado a remuneração variável no valor acima referido e por aplicação do disposto no “novo” Estatuto do Administrador Judicial.
i) Pelo que, e salvo melhor entendimento, o despacho aqui recorrido encontra-se ferido de nulidade nos termos e efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) e 608.º, n.º 2, todos do CPC, porquanto é omisso no que respeita ao teor do requerimento da recorrente de 10-05-22.
j) Defende a Recorrente que a instância recorrida não se pronunciou e não fez qualquer apreciação relativamente às questões alegadas naquele requerimento, pelo que se conclui aqui, forçosamente, que ocorre a este propósito vício de omissão de pronúncia quanto à matéria em causa.
k) A omissão de pronúncia verifica-se quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidas pelas partes na defesa das teses em presença.
l) Ora, a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C. sanciona com o vício de nulidade a sentença em que “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar [...]”.
m) Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 608.º do C.P.C., “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
n) Atentas as razões expostas, infere-se que o despacho recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, pois o Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre a questão suscitada pela Recorrente, questão essa da qual não poderia deixar de conhecer.
Contudo, caso assim não se entenda e sem se conceder,
o) Com o devido respeito, e conforme anteriormente referido, a apelante discorda da fixação do valor de remuneração variável fixado pelo tribunal na quantia de € 531.108,53.
p) Sendo que tal cômputo resulta da aplicação direta dos critérios para o cálculo da referida remuneração, nos termos da recente Lei n.º 9/2022, de 11.1.22, a qual veio significativamente alterar o cálculo da remuneração, incrementando a majoração daquela, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos.
q) Acontece que à data do encerramento da liquidação (11-06-21) a referida lei ainda não se mostrava em vigor.
r) Pelo que, no decurso da liquidação referente aos presentes autos, as decisões do credor (nomeadamente financeiras), relativas à venda/adjudicação dos bens sobre os quais detinha garantia real, foram assentes em pressupostos (legais) referentes aos encargos e despesas processuais (designadamente no que respeita à Remuneração do Administrador de Insolvência), previamente estabelecidos.
s) E que pressupunham que se mantivessem com aplicabilidade até ao encerramento do processo.
t) O que não veio a suceder.
u) Abalando a segurança jurídica e a tutela devida aos intervenientes processuais, nomeadamente os credores, bem como a confiança que lhes é devida no decurso de um processo judicial de insolvência.
v) De facto, os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança – que decorrem do princípio do Estado de Direito ínsito no artigo 2.º da CRP, entendido como uma dimensão do princípio da boa-fé e que constitui um dos princípios jurídicos fundamentais da aplicação da lei pelos tribunais.
w) Com efeito, este princípio inerente ao Direito, supõe um mínimo de certeza, previsibilidade e estabilidade das normas jurídicas de forma que as pessoas possam ver garantida a continuidade das relações jurídicas onde intervêm e calcular as consequências dos atos por elas praticados, confiando que as decisões que incidem sobre esses atos e relações tenham os efeitos estipulados nas normas que os regem.
x) Acresce ainda que, apesar de o texto da Constituição não aludir expressamente a este princípio, ele é pacificamente dedutível do princípio do Estado de Direito consagrado no seu artigo 2.º. A afirmação deste princípio significa que, num Estado de Direito, a atuação dos poderes públicos deve ser previsível e confiável.
y) Neste sentido, não se afigura, salvo opinião diversa, existirem legitimas expectativas a acautelar, senão as dos credores que, desde junho de 2021, aguardam pelo pagamento dos seus créditos, após liquidadas as custas e demais despesas da massa, incluindo a fixação da remuneração variável ao Senhor Administrador à luz dos critérios legais à data vigentes.
z) Tendo-se verificado que todo o trabalho desenvolvido pelo Senhor Administrador de Insolvência foi praticado antes da entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, de 11.01.2022, tendo a liquidação sido encerrada por sentença de 10-06-21, pelo que e salvo melhor e diverso entendimento, deverá ser a remuneração variável fixada em harmonia com a legislação vigente à data do processamento da liquidação.
aa) Não se mostrando razoável que seja o credor, presentemente confrontado com um menor ressarcimento do seu crédito, derivado de uma maior percentagem de despesas (que se estima em cerca de dez vezes superior) decorrente do abrupto aumento da remuneração devida ao Senhor Administrador de Insolvência e que afeta as legítimas expectativas de recuperação da credora.
bb) Deste modo, e salvo melhor entendimento, a aplicação imediata ao caso em apreço, do estatuído no artigo 23.º e seguintes da Lei n.º 9/2022, de 11-01-22, para cálculo da remuneração do Administrador de Insolvência, viola o princípio constitucional da segurança e proteção da confiança, integrador do Estado de Direito Democrático.
cc) Por outro lado, importa referir que, com o presente recurso, não se tem como objetivo colocar em causa a remuneração do senhor Administrador de Insolvência, que presta serviços no processo com vista à obtenção dessa compensação, sendo igualmente justo considerar que não poderá a mesma implicar um sacrifício injusto, iníquo e desequilibrado face ao crédito reconhecido aos credores.
dd) Razões aliás, pelas quais, terá certamente o legislador previsto a possibilidade de redução da remuneração dos senhores Administradores no número 8 do artigo 23.º do “novo” EAJ, quando aquela remuneração exceda € 50.000,00 de acordo com critérios de ponderação de resultados e serviços prestados.
ee) Acresce ainda que, e com o devido respeito pela atuação e desempenho do Senhor Administrador de Insolvência nos presentes autos, o valor ora fixado a título de majoração é manifestamente excessivo e desajustado, quer atentos os serviços prestados, quer atenta a complexidade dos autos.
ff) Sendo que o essencial da liquidação incidiu na venda dos imóveis, sendo que a maioria foi adjudicada pela ora credora.
gg) Pelo que, não resulta da análise dos autos que os serviços prestados pelo senhor AI, não apresentaram uma complexidade para além do expectável num processo desta natureza, não justificando, certamente uma remuneração de € 531.108,53, salvo melhor opinião e o sempre devido respeito, que se reafirma.
hh) Acresce que pese embora em termos absolutos o valor dos créditos satisfeitos seja muito elevado, o mesmo reflete resultados obtidos que, salvo o devido respeito por opinião diversa, não dependeram exclusivamente da atuação do Senhor Administrador da Insolvência, tendo resultado em grande parte da venda e adjudicação de bens e não propriamente numa atuação do senhor Administrador de Insolvência que tivesse exponenciado a receita final da massa insolvente.
ii) Assim, e sem se conceder no exposto acerca da inconstitucionalidade da aplicação da Lei n.º 9/2022, de 11.01.22 aos presentes autos, uma efetiva aplicação prudente e equilibrada do novo quadro legal, sempre implicaria a conjugação do número 7 do mencionado diploma, concatenado com o número 8 da mesma disposição e determinaria uma redução do valor da majoração para valores condizentes com a atividade do senhor AI e resultados obtidos na insolvência.
jj) Pelo que seria aplicável em pleno a previsão do número 8 do artigo 23.º do EAJ, isto é, que o Tribunal a quo tivesse determinado que a remuneração devida ao senhor AI fosse inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador no exercício das suas funções.
kk) O que não veio a ser realizado pelo Tribunal a quo, que no despacho recorrido limitou-se a realizar a aritmética constante dos preceitos legais, sem realizar qualquer análise casuística ao efetivo desempenho do Senhor Administrador de Insolvência bem como ao exame da relação entre os atos por si praticados e o resultado da liquidação.
ll) Em face do exposto, e com o devido respeito, o despacho aqui recorrido, viola diretamente o artigo 608.º, n.º 3, do CPC, o que motiva a nulidade do despacho aqui recorrido, por omissão de pronúncia do Tribunal a quo, face ao disposto no artigo 613.º, n.º 3 e artigo 615.º, n.º 1, alínea d), ambos do CPC.
mm) Acrescendo ainda que e sem se conceder no referente à alegada nulidade, considera ainda o Apelante que o despacho de 27-05-22, proferido pelas meritíssimas instâncias a quo, ao aplicar aos presentes autos, para efeitos de fixação da remuneração do Senhor Administrador de Insolvência, o disposto na Lei 9/2022 de 11-01-22, viola os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança – que decorrem do princípio do Estado de Direito ínsito no artigo 2.º da CRP e consequentemente, requer-se a V. Exas. A revogação do referido despacho e a sua substituição por outro que fixe a remuneração de acordo com ali vigente à data da tramitação e encerramento da liquidação”.
Conclui pela procedência da apelação, com consequente revogação do despacho recorrido.
O D. Magistrado do MP apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
i. Verificar se ocorre a nulidade da decisão por omissão de pronúncia;
ii. Determinar se a aplicação da lei nova viola os princípios constitucionais da segurança e proteção da confiança, integradores do Estado de Direito Democrático.
iii. Decidir se ocorreu erro na interpretação e aplicação das normas que disciplinam a fixação da remuneração variável devida ao Sr. AI.
*
i. da nulidade da decisão
A recorrente arguiu a nulidade da decisão por não se ter pronunciado sobre questão por si antes suscitada no requerimento apresentado em reacção ao cálculo da remuneração variável dado a conhecer pelo Sr. AI, pugnando para que fosse fixada de acordo com o limite previsto no artigo 23.º, n.º 10, do anterior EMJ, sob pena de violação do princípio da segurança jurídica, uma vez que o credor hipotecário tomou decisões relativas a valor base da venda dos bens e ofertas de aquisição dos mesmos no pressuposto de que os encargos, entre os quais a remuneração devida ao Sr. AI, teriam um valor máximo muito inferior àquele que resulta da aplicação da lei nova, assim resultando defraudadas legítimas expectativas jurídicas.
Apreciando:
A nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC sanciona o incumprimento da imposição constante do n.º 2 do artigo 608.º do mesmo diploma, disposição legal nos termos da qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.
Conforme enunciou o STJ no acórdão de 3 de Outubro de 2017 (processo n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1), “II. A nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos artigos 608.º e 609.º do CPC, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada. III. A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia”.
Numa outra formulação, deve entender-se que “as questões que o tribunal deve apreciar e decidir são apenas aquelas que contendem directamente com a substanciação da causa de pedir, do pedido ou das excepções, não se confundindo com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pela parte (e, portanto, quanto a estas últimas, o tribunal não só não tem o dever de se pronunciar, como nenhuma consequência daí advirá se o não fizer, nomeadamente não configurando tal uma situação de omissão de pronúncia)” (acórdão do TRP de 9 de Março de 2020, no processo n.º 1925/13.9T2AVR.P1).
Daqui decorre, pois, que a desconsideração na sentença de argumentos aduzidos pela parte não configura vício de omissão de pronúncia.
Não obstante quanto vem de se dizer, considera-se que a invocação de violação de um princípio estruturante e com assento constitucional constitui “questão” para efeitos de vincular o tribunal a pronunciar-se sobre ela (eventual inconstitucionalidade da norma ou da interpretação que dela fosse feita sempre seriam, de resto, de conhecimento oficioso), não se reconduzindo, portanto, à categoria de mero argumento.
Analisada a decisão impugnada, impõe-se reconhecer que a Sr.ª juíza nela omite qualquer referência à questão suscitada pela ora apelante, pelo que padece do assinalado vício da omissão de pronúncia, que é causa da sua nulidade. Todavia, e como decorre do disposto no artigo 665.º, n.º 1, do CPC, tal implica apenas a substituição do Tribunal da 1.ª instância por este Tribunal, que conhecerá da questão suscitada a qual, aliás, constitui objecto do presente recurso.
* II. Fundamentação De Facto
Pese embora não tenham sido elencados na decisão recorrida os factos pertinentes, mostra-se adquirida nos autos com relevância para a decisão a proferir a seguinte factualidade, que se tem por assente:
1. Declarada a insolvência da devedora (…) – Developments, Lda. por sentença de 21 de Novembro de 2017, proferida na sequência da não aprovação do PER, foi nomeado administrador o Sr. Dr. (…).
2. O Sr. AI nomeado apresentou a lista de credores nos termos do artigo 129.º, n.º 1, do CIRE, reconhecendo créditos de 51 credores, no montante global de € 12.962.979,34, respeitando € 935.606,69 a juros de mora.
3. Não foram apresentadas impugnações à relação apresentada.
4. Foram apreendidos para a massa os bens discriminados nos autos de apreensão elaborados: 36 fracções autónomas, 3 veículos automóveis, 175 verbas de bens móveis que compunham o recheio das fracções, dois valores mobiliários e um saldo bancário.
5. Dos imóveis apreendidos para a massa foram adjudicados à ora recorrente, credora hipotecária, 23 fracções autónomas.
6. A liquidação foi declarada encerrada em 11 de Junho de 2021, tendo sido apurado o montante de € 7.092.747,71.
7. As despesas da massa ascendem a € 356.836,75.
8. Por apenso à insolvência correu termos acção de verificação ulterior de créditos (apenso C), que culminou com decisão de absolvição dos RR da instância.
* De Direito Da aplicação da lei nova
A apelante insurge-se contra a aplicação dos critérios de cálculo da remuneração constantes da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, considerando que à data do encerramento da liquidação (11 de Junho de 2021) a referida lei ainda não se encontrava em vigor e as “decisões do credor hipotecário (nomeadamente financeiras), relativas à venda/adjudicação dos bens sobre os quais detinha garantia real, foram assentes em pressupostos (legais) referentes aos encargos e despesas processuais (designadamente no que respeita à remuneração do Administrador de Insolvência), previamente estabelecidos”, e na expectativa de que se mantivessem até ao encerramento do processo.
A aplicação da lei nova veio assim, diz, abalar a segurança jurídica e a tutela devida aos intervenientes processuais, nomeadamente os credores, bem como a confiança que lhes é devida no decurso de um processo judicial de insolvência, pondo em causa princípios que decorrem do princípio do Estado de Direito ínsito no artigo 2.º da CRP, pelo que, conclui, deve a “remuneração variável ser fixada em harmonia com a legislação vigente à data do processamento da liquidação”. Assim não foi entendido na decisão recorrida, cumprindo tomar posição sobre esta primeira questão.
A propósito da aplicação das leis no tempo, o CC estabelece como princípio geral que a lei nova só dispõe para o futuro (cfr. artigo 12.º), aplicando-se, todavia, às situações jurídicas já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor (situações de trato sucessivo), desde que disponha directamente sobre o respectivo conteúdo, abstraindo dos factos que lhe deram origem.
A enunciada regra geral, todavia, só tem aplicação quando a lei nova não contenha disposições transitórias. Não é, porém, aqui o caso, uma vez que a Lei 9/2022, de 11 de Janeiro, veio consagrar, no seu artigo 10.º, a sua aplicação imediata aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor (vide n.º 1), pelo que é esta a disposição que prevalece.
Não se encontrando consagrado na nossa Lei Fundamental um princípio geral de não retroactividade das leis, não está vedado ao legislador ordinário atribuir efeito retroactivo à lei nova com excepção de algumas áreas do direito que para aqui não relevam, como são os casos das leis penais e fiscais. Todavia, se por via da retroactividade da lei resultarem atingidos direitos fundamentais constitucionalmente tutelados, princípios ou garantias assegurados na Constituição, como os da segurança jurídica e da confiança, enquanto princípios densificadores do princípio do Estado de direito, a lei será inconstitucional[1]
A Lei 9/2022, aplicada na decisão recorrida, veio afirmar a sua aplicação imediata aos processos pendentes, o que é a regra quando se trata de normas de cariz processual. Nestes casos, a aplicação imediata da lei nova, radicava, conforme explicava o Prof. A. dos Reis, na “própria natureza das leis de processo e justifica-se por elas se referirem em última análise ao exercício duma das funções do Estado – a função jurisdicional ou judiciária; quando se publica uma lei nova, isso significa que o Estado considera a lei anterior imperfeita e defeituosa para a administração da justiça ou para o regular funcionamento do poder judicial. Tanto basta para que a lei nova deva aplicar-se imediatamente.”[2]
Estando em causa os normativos que contêm os critérios de cálculo da remuneração devida ao Sr. AI, e sem questionar a sua natureza processual,[3] é inegável o seu reflexo material, posto que repercutem os seus efeitos na situação patrimonial das partes. E neste aspecto, abrangendo toda a actividade do Sr. AI, quer a desenvolvida no domínio de vigência da lei antiga, quer da lei nova, poderá falar-se em “retrospectividade ou retroactividade imprópria ou inautêntica: uma norma retrospectiva não é uma norma retroactiva, mas antes uma norma que prevê consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm nessa data” (do acórdão do TRC de 17/4/2012, processo 221/09-0TBCDN.C1, acessível em www.dgsi.pt).
A propósito das normas assim caracterizadas, o TC vem afirmando a sua conformidade à lei fundamental, ressalvados os casos em que da sua aplicação resultem afectados de forma desproporcionada princípios com assento constitucional. Assim, e conforme se reiterou no acórdão do TC de 27/6/2013 (processo n.º 917/12, no DR-2.ª série — N.º 234 — 3 de dezembro de 2013) “(…) fora dos casos de retroatividade proibida expressamente previstos na Constituição, o juízo-ponderação de que o Tribunal Constitucional vem lançando mão para apreciar as restantes situações potencialmente lesivas do princípio da segurança jurídica assenta no pressuposto de que o princípio do Estado de Direito contido no artigo 2.º da CRP implica “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”. Neste sentido, “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança (...), terá de ser entendida como não consentida pela lei básica” (cfr. Acórdão n.º 556/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Tudo está em saber, portanto, em que circunstâncias a afetação da confiança dos cidadãos deve ser considerada “inadmissível, arbitrária e demasiado onerosa”, sendo sobejamente conhecidos os critérios que a jurisprudência constitucional estabilizou a este propósito (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 287/90, 303/90 e 399/10, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Assim, a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não pudessem contar (i); e quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes, o que remete para uma ponderação a efetuar nos termos do princípio da proibição do excesso (ii). Por outras palavras, a conclusão pela inadmissibilidade de uma medida legislativa à luz do princípio da proteção da confiança dependerá, em primeiro lugar, de um juízo sobre a legitimidade das expectativas dos cidadãos visados, que deverão ser fundadas em boas razões, e cuja consistência carece, de acordo com a jurisprudência constitucional, da exteriorização de uma conduta estadual concludente e apta a gerar expectativas de continuidade, por um lado, e da materialização ou tradução em atos (“planos de vida”) da confiança psicológica dos particulares, por outro. Comprovada essa legitimidade, segue-se, em segundo lugar, um juízo quanto à prevalência do interesse público subjacente à medida sobre o interesse individual (a expectativa legítima) sacrificado pela mesma (Acórdão 556/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Mesmo quando as alterações legislativas evidenciem aquela prevalência, é ainda necessário apurar se a afetação da confiança assim implicada não é desrazoável ou excessiva, ou seja, “se o fim do legislador podia ser alcançado por via menos agressiva da confiança e dos interesses dos particulares – por exemplo, através da previsão de disposições transitórias ou indemnizatórias”.
Transpondo quanto vem de se dizer para o caso dos autos, faz-se notar que a remuneração dos senhores AI vinha sendo calculada de acordo com a Portaria 51/2005, de 20 de Janeiro, face à ausência de publicação daquela a que se aludia no EAJ aprovado pela Lei 22/2013, no reconhecimento de que a fórmula de cálculo ali expressa se adequava ainda aos critérios previstos nesse novo estatuto. De todo o modo, remetendo a lei vigente para uma Portaria cuja publicação era aguardada, não pode dizer-se que as partes nos processos de insolvência, designadamente os credores, tivessem uma expectativa legítima e justificada na manutenção das regras de cálculo, antes parecendo que deviam prever que as mesmas viessem a ser alteradas / actualizadas, uma vez que há muito se verificava a omissão legislativa.
Acresce que, como se verá infra, na interpretação da lei nova que perfilhamos o accionamento das normas-travão nela consagradas obsta à fixação de uma remuneração excessiva e desproporcionada, que seria susceptível de causar abalo considerável à confiança dos intervenientes no processo.
Deste modo e em conclusão, não se vendo que a aplicação dos novos critérios de cálculo da remuneração variável devida ao Sr. AI coloquem em causa os pela recorrente invocados princípios com assento constitucional e que, sem controvérsia, se entende dimanarem do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Lei Fundamental, é a lei nova a aplicável (cfr., neste mesmo sentido, o acórdão do TRL de 20/9/2022, no processo n.º 9849/14.6T8LSB-E.L1-1 e do TRP de 26/9/2022, processo n.º 1211/17.5 T8AMT.P1, acessíveis em www.dgsi.pt).
Aqui chegados, cabe então indagar da adequação da remuneração fixada ao Sr. Administrador.
*
III. Da fixação da remuneração variável devida ao Sr. AI.
Não se questiona nos autos que, conforme expressa o n.º 1 do artigo 60.º do CIRE, o Sr. AI, nomeado que foi pelo juiz, tem direito à remuneração prevista no seu estatuto (para além do reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis, o que aqui não releva).
Na decisão recorrida, depois de se ter apurado como resultado da liquidação o valor de € 6.738.370,96, que a apelante aceita como correcto, foi aplicada a percentagem de 5% prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 23.º do EAJ, limitado a € 100.000,00 por aplicação do limite consagrado no n.º 10, a que se adicionou a majoração de 5%, percentagem que incidiu sobre o valor de € 6.635.910,96 – valor da liquidação, a que foram subtraídos os valores da remuneração fixa e da apurada remuneração variável –, ascendendo esta última a € 431.795,55, sobre o qual incidiu IVA à taxa legal, obtendo-se o montante global de € 531.108,53.
A apelante insurge-se, alegando que “uma efetiva aplicação prudente e equilibrada do novo quadro legal, sempre implicaria a conjugação do número 7 do mencionado diploma, concatenado com o número 8 da mesma disposição e determinaria uma redução do valor da majoração para valores condizentes com a atividade do senhor AI e resultados obtidos na insolvência”, tendo em conta, designadamente “(…) os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador no exercício das suas funções”.
Pois bem, reconhecendo que a decisão recorrida se limitou a efectuar as pertinentes operações aritméticas, sem qualquer ponderação do efectivo desempenho do Sr. AI e medida em que a sua actuação contribuiu de forma efectiva para o resultado da liquidação, cremos ainda, sem negar as muitas dificuldades interpretativas colocadas pela lei nova, que não foi feita dos preceitos aplicados aquela que se nos afigura ser a melhor interpretação.
Dispondo sobre os critérios de fixação da retribuição variável, dispõe o artigo 23.º, no seu n.º 4, para o que aqui releva, que os AJ auferem ainda “uma remuneração variável em função do resultado da liquidação da massa insolvente, cujo valor corresponde a 5% do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6” (vide alínea b).
O n.º 6, por seu turno, especifica que “para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 [remuneração fixa] e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência”.
Dispõe-se de seguida no n.º 7 que “O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.
O n.º 8 contém uma norma que permite limitar eventual desproporção entre a actividade desenvolvida, o resultado obtido e o montante da remuneração que se atinja pela aplicação das regras de cálculo expostas nas precedentes disposições, dispondo que “Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50.000,00 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções”.
Faz-se aqui notar que esta norma “travão” pode ser activada pelo juiz sempre que a remuneração variável – incluindo a majoração, como resulta claro da referência ao “disposto nos números anteriores”, englobando quer a regra de cálculo do n.º 4, alínea b), quer do precedente n.º 7 – exceda o montante de € 50.000,00 por processo. E sublinha-se este aspecto porque uma leitura sistemática e integrada do preceito leva-nos a concluir que também o limite estabelecido no n.º 10, reportando-se à remuneração variável devida ao administrador em caso de liquidação, inclui a majoração – porque de remuneração variável se trata, ainda aqui – sendo esse o sentido a atribuir à referência feita à alínea b) do n.º 4. Tal interpretação, com o maior respeito por opinião diversa, é aquela que, afigura-se, melhor harmoniza as diversas disposições, por não fazer sentido que o legislador previsse, por um lado, a possibilidade de o juiz reduzir a remuneração que resultaria da aplicação dos critérios de cálculo adoptados, incluindo inequivocamente a majoração, tão logo atingisse os € 50.000,00, por apelo a critérios que apelam à qualidade do desempenho do Sr. Administrador e conexão com o resultado, para vir depois consagrar o limite de € 100.000,00 apenas para a remuneração base, admitindo uma majoração sem qualquer limite quantitativo.
Por outro lado, e tendo presente os critérios interpretativos plasmados no artigo 9.º do CC, do qual decorre que a interpretação da lei tem como base e limite a respectiva letra, afigura-se que a interpretação exposta encontra na letra da lei correspondência verbal bastante, uma vez que o artigo 4.º é aquele que, na sua alínea b), se ocupa do cálculo da remuneração variável do administrador em caso de liquidação. Parece evidente que o legislador poderia com maior clareza ter dito isso mesmo – que a remuneração variável do administrador em caso de liquidação não poderia exceder os € 100.000,00 – mas a remissão para o artigo 4.º, alínea b), permite pela via interpretativa alcançar idêntico sentido (perfilhando aparentemente a mesma posição, ainda que não fosse esta a questão directamente colocada, o acórdão deste mesmo TRE de 29/9/2022, no processo 260/14.0TBTVR.E1, em www.dgsi.pt).
Refira-se, em abono da interpretação feita, que sendo o limite constante do n.º 10, ao invés do consagrado no n.º 8, uma inovação da Lei n.º 9/2022, a sua consagração tornou-se necessária face à adopção de percentagens fixas. Com efeito, o artigo 20.º do anterior EAJ (aprovado pela Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho), previa que a remuneração variável a auferir pelo administrador fosse apurada “em função do resultado da liquidação da massa insolvente, cujo valor é [era] o fixado na tabela constante da portaria prevista no número anterior” (vide n.º 2). E prevendo-se igualmente uma majoração, ela variava, consoante estabelecia o n.º 4 do preceito, “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1”.
A portaria em causa era a Portaria 51/2005, de 20 de Janeiro, a qual anunciava aprovar “o montante fixo de remuneração do administrador da insolvência nomeado pelo juiz, bem como as tabelas relativas ao montante variável de tal remuneração, em função dos resultados obtidos”(é nosso o destaque). E com essa orientação estabelecia no seu artigo 2.º e tabelas anexas as taxas de cálculo e factores de majoração, verificando-se que quanto maior era o valor da liquidação, menores as taxas aplicáveis – taxas regressivas, portanto –, ao passo que o factor de majoração aumentava em função da maior percentagem de satisfação dos créditos, assim conexionando de forma eficaz a remuneração do Sr. AJ aos resultados obtidos. Da análise das tabelas em causa mais resulta que a partir de um produto que atingisse os € 7.500.000,00, por força da aplicação de uma taxa base de apenas 0,1%, o legislador limitou – a nosso ver, bem – o aumento da remuneração base do administrador, sendo que o factor de majoração incidia sobre os valores assim obtidos, num sistema que garantia desde logo uma relação de proporcionalidade entre o produto da liquidação dos bens do devedor e a remuneração do Sr. AI, por um lado, e um nexo efectivo entre esta e os resultados obtidos, medidos pela satisfação dos credores, afinal o fim último do processo de liquidação, pelo outro.
Conforme é sabido, o EAJ aprovado pela Lei 22/2013 previa igualmente a publicação de Portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça (na alteração introduzida pelo DL n.º 52/2019, de 17 de Abril, eliminou-se apenas a alusão a tabelas, subsistindo a referência a Portaria). Tal diploma nunca chegou a ser publicado, vindo agora a Lei n.º 9/2022 introduzir no próprio estatuto, quer a remuneração fixa, quer a fórmula de cálculo da remuneração variável, esta assente na aplicação de percentagens fixas de 5% o que, em nosso entender, conforme se referiu já, justifica a consagração de um montante máximo de € 100.000,00 para a remuneração variável, incluindo a majoração. E assim é porque as percentagens fixas de 5% consagradas pelo legislador, se incidentes sobre o resultado da liquidação, não garantem (ao invés do que ocorria com a Portaria n.º 51/2005) a proporcionalidade da remuneração face ao produto obtido, nem tão pouco o estabelecimento de uma justificada conexão entre a actividade desenvolvida pelo Sr. AI e a satisfação dos credores como factor de incremento da remuneração, satisfação que é, afinal, a finalidade precípua da liquidação do património do devedor insolvente expressamente consagrado no artigo 1.º do CIRE e que terá de ser assegurada, o que não ocorre quando se considere uma interpretação alternativa como a adoptada na decisão recorrida, com potencial para transformar o sr. AI num grande “credor” da insolvência e quiçá o único a obter a satisfação total do seu “crédito”.
Mas ainda que se recuse a existência de um limite absoluto de € 100.000,00, afigura-se que a melhor interpretação da regra do n.º 7 impõe a consideração da percentagem de créditos satisfeitos para efeitos de apuramento do montante sobre o qual irá depois incidir a percentagem de 5% relativa à majoração. Não só a letra do preceito a isso mesmo faz referência mas, como vimos, era essa a anterior solução, nada indiciando que o legislador tenha querido adoptar orientação diversa, elemento histórico que favorece a interpretação que aqui se defende.
A propósito, como justamente se acentua no acórdão do TRC de 25 de Outubro de 2022 (processo n.º 318/12.0TBCNT-V.C1, igualmente disponível em www.dgsi.pt), no qual se faz cuidada análise dos antecedentes legislativos, na sua literalidade, o citado n.º 7 “(…) tanto relaciona a majoração da remuneração variável com o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos como a associa ao montante dos créditos satisfeitos. Ao dizer que “o valor alcançado … é majorado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitido” relaciona a majoração com o grau de satisfação dos créditos reclamados. Ao afirmar que o “valor alcançado é majorado em 5% do montante dos créditos satisfeitos” associa a majoração com o montante dos créditos satisfeitos”, sendo que a interpretação proposta é aquela que, dando expressão a cada um dos segmentos que se analisam, confere sentido útil a toda a redacção do preceito (cfr., neste preciso sentido, acórdão do TRC de 11/10/2022, no processo n.º 3947/08.2 TJCBR-AY.C1, e deste mesmo TRE de 29/9/2022, processo n.º 260/14.0TBTVR.E1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
A questão havia sido já abordada no acórdão do TRC de 28 de Setembro de 2022, ao que cremos inédito mas de que se faz extensa citação no aresto do mesmo TRC proferido no processo n.º 3947/08.2 acima identificado, e que, pela sua clareza, se afigura pertinente citar. A propósito, nele se refere que “Mandam as regras de interpretação da lei – estabelecidas no artigo 9.º do CC – que, apesar de não poder ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, ali se determinando ainda que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Sendo certo – conforme referimos – que uma interpretação estritamente literal não é viável, importa tentar apurar e reconstituir o pensamento legislativo.
Ora, dizendo-se ali expressamente que a remuneração em questão é calculada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, parece que a intenção do legislador terá sido a de considerar que a remuneração em questão tomasse em conta essa variável. Tal pretensão/intenção está, aliás, em perfeita sintonia com aquilo que já constava da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 112/IX – que veio a dar origem ao anterior Estatuto do Administrador da Insolvência (aprovado pela Lei n.º 32/2004) – e que também se colhe na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 107/XII – que veio a dar origem ao actual Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei n.º 22/2013) – de onde resulta que a remuneração em questão visa também incentivar os administradores a desenvolver esforços no sentido de alcançar o melhor resultado possível e premiá-los pelo resultado efectivamente obtido e que se presume resultar, pelo menos em parte, do seu empenho e do seu esforço. Nessa perspectiva, surge como natural que o grau de satisfação de créditos surja como variável relevante na fixação da indemnização.
Veja-se que, na sua redacção inicial, o actual Estatuto já previa (no seu n.º 5) a remuneração em causa a calcular “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos” (o mesmo acontecia, aliás, com o anterior Estatuto que previa e regulava essa remuneração nos mesmos termos – cfr. respectivo artigo 20.º, n.º 4) e, à data, essa remuneração era fixada por aplicação de factores constantes de uma portaria (a Portaria n.º 51/2005, de 20/01) e que estavam estabelecidos com referência e em função da “percentagem de créditos admitida que foi satisfeita” (quanto maior fosse essa percentagem – ou seja, o grau de satisfação dos créditos admitidos – maior seria o factor aplicável com vista à fixação da remuneração).
Ora, apesar de – por força da alteração introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11/01 – o Estatuto ter passado a conter as regras de cálculo da remuneração (deixando, portanto, de o fazer com referência a qualquer portaria), a redacção da primeira parte do n.º 7 do artigo 23.º (anteriormente n.º 5) manteve-se inalterada, continuando a fazer referência ao facto de a remuneração ser majorada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos. Parece claro, portanto, que o legislador não teve o propósito de alterar o que anteriormente constava da lei – ou seja, que a remuneração em questão era calculada em função do grau de satisfação dos créditos ou percentagem de créditos admitidos que foi satisfeita – sucedendo apenas que a expressão escolhida para estabelecer o valor dessa remuneração não foi feliz, na medida em que parece apontar para uma remuneração que não leva em conta o grau de satisfação dos créditos.
Se o legislador tivesse pretendido alterar o regime até aí vigente (que, como se referiu, atendia expressamente à percentagem de créditos admitidos que havia sido satisfeita ou grau de satisfação), certamente que o teria deixado claro e, ao invés de reproduzir o que já constava da lei, não deixaria de eliminar a referência que ali era feita ao facto de a remuneração ser majorada, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, dizendo apenas – como seria mais lógico – que o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 seria majorado em 5% do montante dos créditos satisfeitos.
Não foi essa a opção do legislador. E não foi – pensamos nós – porque não foi sua intenção que aquela remuneração fosse calculada com referência exclusiva ao valor dos créditos satisfeitos sem considerar a percentagem que esses créditos representavam no valor global dos créditos que haviam sido admitidos, ou seja, o grau de satisfação destes créditos. A intenção do legislador – quando alterou a redacção da norma com a Lei n.º 9/2022 – terá sido apenas a de afastar a remissão que, anteriormente, era feita para uma portaria, passando a regular directamente essa matéria; e, tendo mantido o critério base que estava estabelecido (o grau de satisfação dos créditos), a sua intenção terá sido a de estabelecer a remuneração em 5% da percentagem de créditos satisfeitos em relação aos que haviam sido reclamados e admitidos, ainda que isso não tenha ficado expresso com clareza no texto legal.
A norma em questão deve, portanto – na nossa perspectiva – ser lida e interpretada com o sentido que lhe foi atribuído pela decisão recorrida, ou seja: a remuneração corresponderá a 5% do montante dos créditos satisfeitos, quando estes créditos (satisfeitos) correspondam à totalidade dos créditos admitidos, configurando-se, portanto, um grau de satisfação destes créditos de 100%; quando os créditos satisfeitos não correspondam à totalidade dos créditos admitidos, aqueles 5% terão que ser calculados com referência ao grau de satisfação dos créditos, ou seja, à percentagem dos créditos admitidos que foram satisfeitos.
Se o valor da remuneração correspondesse sempre a 5% dos créditos satisfeitos (como sustenta o Apelante), tal significaria que a remuneração seria idêntica quer esses créditos correspondessem à globalidade dos créditos admitidos, quer correspondessem a uma parte ínfima deles; o grau de satisfação dos créditos seria, portanto, totalmente desconsiderado ao contrário do que expressamente se dispõe na norma em causa e contrariando aquele que – pelas razões apontadas – pensamos ter sido o pensamento do legislador”.
Secundando-se o entendimento explanado no aresto que vem de se citar, somos a concluir que, mantendo o legislador a parte variável da remuneração como incentivo à diligência do Sr. Administrador Judicial e prémio pelos resultados obtidos com a gestão e venda do património do insolvente, parece evidente que não pode ser ignorado o segmento normativo que apela – agora como antes – ao grau de satisfação dos credores como medida do êxito da sua actuação. Na verdade, mal se compreenderia, atenta a finalidade precípua da liquidação, que uma fatia de quase 10% do resultado com ela obtido fosse afectada ao pagamento da remuneração do Sr. AI, com total indiferença pela eventual diminuta percentagem de satisfação dos créditos reconhecidos, ficando alguns (muitos) dos credores, como de resto se verifica no caso dos autos, sem qualquer reparação. Trata-se de interpretação da lei que, em nosso entender, deve ser recusada, quer atendendo à sua literalidade, quer aos elementos histórico e teleológico.
Aplicando quanto vem de se dizer ao caso dos autos, o cálculo da majoração prevista no n.º 7 do preceito implica, portanto, duas operações: a primeira, tendo em vista apurar o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, obtém-se dividindo o montante dos créditos reconhecidos pelo valor da liquidação disponível para distribuição, calculada nos termos do precedente n.º 6, sendo, no caso dos autos, de 0,512%. A percentagem assim obtida, correspondente ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, é aplicada ao mesmo valor da liquidação, sendo sobre o resultado desta segunda operação que vai incidir a percentagem de 5% correspondente à majoração, e que no caso dos autos ascende ao montante de € 169.879,32 (0,512 x € 6.635.910,96 x 5%). Tal valor acresceria aos € 100.000,00 antes obtidos, perfazendo € 269.879,32, acrescido de IVA, caso se perfilhasse entendimento diverso daquele que se deixou expendido quanto a estarmos perante um limite absoluto,.
Aqui chegados, é tempo de abordar a última questão suscitada no recurso, a saber se, como defende a recorrente, se justifica lançar mão da norma correctiva consagrada no n.º 8 do preceito que se vem apreciando. A resposta é, antecipa-se, positiva.
Efectivamente, e tal como a apelante não deixou de assinalar, o património apreendido para a massa encontrava-se concentrado – os bens móveis constituíam o recheio das fracções-, não revelando os autos a realização de diligências tendo em vista a localização de outros bens. Depois, sendo o resultado da liquidação produto essencialmente da venda de bens imóveis, 23 das fracções apreendidas foram adjudicadas à credora hipotecária aqui recorrente.
Verifica-se ainda que os créditos constantes da lista elaborada pelo Sr. AI – e muitos deles provinham já do PER – não foram objecto de qualquer impugnação, não tendo ocorrido quaisquer incidentes no âmbito do apenso da reclamação de créditos. Os demais apensos – ressalvados naturalmente os da apreensão de bens, prestação de contas e liquidação, que agregam boa parte da actuação do AJ –, também não demandaram, no caso, intervenção particularmente trabalhosa ou relevante por banda do Sr. administrador. Deste modo, e sem desvalorizar a forma eficaz e diligente como desempenhou as suas funções, a verdade é que não se registaram incidentes de complexidade acrescida, designadamente no apenso de liquidação, que se desenrolou de forma regular. O resultado obtido, com satisfação de um pouco mais do que 50% dos créditos reconhecidos, não é despiciendo, pese embora a maioria das fracções tenha sido objecto de adjudicação à própria credora hipotecária e apenas duas tenham alcançado o valor mínimo publicitado.
Tudo ponderado à luz dos critérios enunciados no convocado artigo 8.º, entende-se como adequada a remuneração de € 80.000,00, sobre a qual incide IVA.
Procede, assim, nos termos expostos, o recurso interposto.
*
III Decisão Acordam os juízes que constituem a 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso, fixando em € 80.000,00 (oitenta mil euros) a remuneração variável devida ao Sr. AI, sobre a qual incide IVA, no montante global de € 98.400,00 (noventa e oito mil e quatrocentos euros). Sem custas. * Sumário:
(…)
*
Évora, 15 de Dezembro de 2022
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
Vítor Sequinho dos Santos