- A lei disponibiliza para os créditos resultantes do não cumprimento do contrato promessa, sempre que tenha havido traditio da coisa prometida, uma tutela particularmente vigorosa: o direito de retenção (artigo 755.º, n.º 1, f), do Código Civil).
- Para que o direito de retenção se deva reconhecer ao promitente adquirente, é suficiente uma transmissão dominial com o mero acordo entre as partes, a traditio ficta – a entrega de um objeto que representa simbolicamente a coisa e permita a atuação material sobre ela.
- É comum, no caso de prédios urbanos ou de frações de prédio urbano, a traditio verificar-se com a mera entrega das chaves.
- Sendo por acordo das partes, promitente vendedora e promitentes compradores, feita a traditio do imóvel a favor dos segundos, passam estes a ficar contemplados pela previsão normativa do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil que lhes confere direito de retenção.
- Porque o direito de retenção dispõe de sequela, isto é, mantém o direito inseparável da coisa, estamos perante um verdadeiro direito real, direito real de garantia. Logo dotado de eficácia erga omnes. Sem necessidade da obtenção prévia de decisão judicial que o reconheça.
(Sumário da Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
- Em 17/08/2021 os ora apelantes, CC e mulher DD, terceiros nos autos de execução, e terceiros fiéis depositários nomeados pelo Sr. Agente de Execução (AE) da fração autónoma penhorada na execução e, em fase de arrematação, vieram aos autos requerer a suspensão da execução nos termos do disposto no artigo 793.º do CPC e que fosse admitido nos autos o crédito do requerentes no valor de 40.000,00 euros, bem como fosse reconhecido o direito de retenção sobre a mesma fração nos termos do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC e, por fim, que fosse advertido o Sr. AE para não proceder à entrega do prédio ao comprador, não devendo ainda o produto da venda ser entregue ao(s) exequente(s) sem este(s) prestar(em) caução até satisfação do pagamento do crédito dos requerentes.
Fundamentaram tal pedido na sentença proferida nos autos n.º 2484/19.... que condenou a aqui executada, ali Ré, “J..., Lda.» a pagar-lhes o montante de 40.000,00 € correspondente ao dobro do sinal entregue com a celebração do contrato promessa de compra e venda respeitante à mesma fração, que estão a habitar e, ainda, a quantia a apurar em liquidação de sentença, correspondente ao valor da reparação realizada no anexo da mesma.
- Em 30/10/2021 foi proferida decisão que:
Considerou não terem os Requerentes, decisão donde constasse como reconhecido, o alegado direito de retenção, o qual deveriam ter invocado naqueles autos n.º 2484/19....; Estando apenas reconhecido o seu direito de crédito poderiam reclamá-lo no apenso de Reclamação de Créditos. Mas ainda que se entendesse que os Requerentes tinham reconhecido o seu direito de retenção sobre a fração autónoma, a solução seria a mesma, porquanto esse direito teria caducado com a venda judicial efetuada na presente execução.
Tendo o M.º Julgador indeferido o requerido por estes intervenientes fundamentando que “não assiste aos mesmos a faculdade de recusar a entrega da fração autónoma designada pela letra “B” ao adquirente EE, porquanto o mesmo é atualmente o seu legítimo proprietário, e também não existe qualquer fundamento legal para declarar nulos os atos praticados nos autos de execução e para declarar sustada a execução.”
- Em 11/11/2021 vieram os Requerentes interpor recurso daquela decisão.
Concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:
I. Recorre-se do douto despacho que não apreciou o requerimento interposto nos autos nos termos do artigo 793.º do CPC que requereu a suspensão da execução com vista a impedir a venda do prédio penhorado nos autos , indeferindo o requerido pelos recorrentes.
II. Os alegantes requereram a suspensão da execução e a sustação imediata dos termos da execução e a anulação de todos os atos praticados na mesma relativamente ao bem penhorado e venda que o douto Tribunal a quo não se pronunciou permitindo a venda do bem único do acervo da executada cometendo assim a injustiça de permitir o desaparecimento do direito dos requerentes que o processo de insolvência que contra a executada intentaram garantia.
III. Os requerentes detinham um crédito sobre a sociedade executada que à data do requerimento ascendia a 40.000,00 euros de capital e de juros de 3.248,22 euros que não tiveram hipóteses de atempadamente reclamar no processo de execução mas que por força do cumprimento legal do disposto no artigo 793.º do CPC cuja pronuncia o douto Tribunal a quo omitiu poderia vir a obter pagamento.
IV. O Tribunal a quo não se pronunciou contra a existência do crédito dos requerentes aliás reconhece da existência do mesmo.
V. Os requerentes preenchem os requisitos legais de que depende o pedido e obtenção da suspensão da execução, como tal verificados no douto despacho, mas que da mesma não se pronunciou.
VI. A omissão de pronuncia no douto despacho sobre o facto apresentado a Tribunal para decidir constitui nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC .
VII. O douto despacho fez errada interpretação da Lei coartando o direito do credor obter a suspensão da execução a fim de impedir pagamentos.
Termos em que se requer a Vexas Srs. Doutores Juízes Desembargadores que substituam a douta sentença por outra que se pronuncie de acordo com a Lei – artigo 793.º do Código de Processo Civil.
Não foram apresentadas contra-alegações.
- Saber se o crédito dos apelantes está garantido por direito de retenção e, por isso deve ser suspensa a execução no respeitante à entrega da fração a terceiro adquirente, bem como ser suspensa a entrega do preço aos exequentes até estes prestarem caução que satisfaça o pagamento do crédito aos recorrentes.
1- A execução de sentença a que estes se apensam foi instaurada em 01/02/2019, sendo exequentes: AA e BB e executada: J..., Lda., pretendendo aqueles o pagamento por esta da quantia de € 10.891,05, que, por requerimento de cumulação posteriormente entrado, em 28/05/2019, passou a ser de € 35.852,24.
2- Consta dos autos de execução de sentença um auto de penhora datado de 03/02/2020 onde, entre outros imóveis, figura penhorada como verba 2: a Fração autónoma designada pela letra B do prédio urbano sito na Rua ..., em ..., denominado Lote n.º ..., correspondente ao ... direito, tipo ..., com logradouro, destinada a habitação, com a área útil de 42,58m², inscrita na matriz sob o artigo ...18... e descrita na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...48..., da freguesia ....
3 – Do auto de penhora constam as seguintes observações:
“Verba 2: encontra-se registada anteriormente uma hipoteca voluntária a favor de (…) STC, S.A. e uma ação a favor de CC e DD. 4 – Consta também do auto de penhora serem os ora Recorrentes terceiros fiéis depositários nomeados pelo Sr. Agente de Execução (AE), como segue:
“Encontrando-se o imóvel na sua posse, fica V. Exª notificado(a) de que, por força do artigo 756.º do Código de Processo Civil, passará, a partir da presente data, a exercer o cargo de fiel depositário(a) do imóvel penhorado, pelo que deverá cumprir os deveres prescritos nos artigos 760.º, 771.º e 818.º do CPC.
Assim, nos termos do artigo 818.º do Código de Processo Civil, sendo o fiel depositário obrigado a mostrar o bem a quem pretenda examiná-lo, deverá V. Exª, fixar as horas m que, durante o dia, faculta o acesso ao imóvel, e comunicar ao processo no prazo de 10 dias.”
5 – Do registo predial desta fração consta inscrito um registo de ação pela apresentação 2019/08/09 na Conservatória de Registo Predial respetiva:
Como sujeitos ativos: CC e DD no estado de casados-
E como sujeitos passivos: (…) STC, S.A. e J..., Lda.
O registo da ação intentada por estes tem o seguinte PEDIDO: “a) ser proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da RÉ faltosa, transferindo o direito de propriedade da fração autónoma correspondente ao contrato celebrado entre AA e a primeira RÉ, que esta prometeu vender.”
6 – Os ora Recorrentes em 03/02/2021 requereram a insolvência de J..., Lda.
7 – Em 25/05/2021 este imóvel foi nos presentes autos de execução colocado em venda (leilão on-line) – com data limite fixada para apresentação das propostas a de 07/07/2021.
8 – Com data de 09/07/2021 consta Informação do Agente de Execução (AE) “da venda da verba 2 penhorada nestes autos (fração autónoma designada pela letra ... do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...18... e descrito na Conservatória do Reg. Predial de ..., sob o nº ...48..., da freguesia ...), na modalidade de venda em leilão eletrónico, pelo preço de € 64.388,51. Mais se informa que o arrematante foi EE.
9 – Em 17/08/2021 deu entrada nos autos de execução um requerimento formulado pelos intervenientes ora apelantes, do seguinte teor:
“CC, e mulher DD, na qualidade de terceiros fiéis depositários nomeados pelo Sr. Agente de Execução (AE) da fração autónoma penhorada na execução e, em fase de arrematação, vieram aos autos requerer a suspensão da execução nos termos do disposto no artigo 793.º do CPC e que fosse admitido nos autos o crédito dos requerentes no valor de 40.000,00 euros e reconhecido o direito de retenção sobre o prédio nos termos do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC e, ainda, que fosse advertido o Sr. AE para não proceder à entrega do prédio ao comprador e que o produto da venda não seja entregue ao exequente sem prestar caução até satisfação do pagamento do crédito dos requerentes.
Fundamentaram tal pedido na sentença proferida nos autos n.º 2484/19.... que condenou a aqui executada, ali Ré, “J..., Lda.» a pagar-lhes o montante de € 40.000,00 correspondente ao dobro do sinal entregue com a celebração do contrato promessa de compra e venda respeitante à mesma fração, que estão a habitar e, ainda, a quantia a apurar em liquidação de sentença, correspondente ao valor da reparação realizada no anexo da mesma.
Alegando em concreto:
«1. Os requerentes residem no imóvel supra identificado e dele detêm um direito de retenção de crédito incumprido.
2. Os Requerentes foram notificados pelo AE da arrematação do imóvel , melhor identificado nos autos , pelo valor de 64.388,51 euros pelo Sr. EE.
3. Pedindo ainda a entrega do imóvel.
4. Acontece que correu termos no TJ da Comarca de Faro-Juízo Central Cível de Faro- Juiz 3 com o n.º 2484/19...., ação de condenação onde em suma os aqui Requerentes pediam que fosse proferia sentença que produza os efeitos da declaração negocial da Ré faltosa – aqui executada ( J..., Lda.) – em contrato promessa de compra e venda de imóvel (sentença que se junta como doc.1)
5. Depositando os Requerentes à ordem dos autos o valor em falta acordado no contrato promessa.
6. Os Requerentes demandaram conjuntamente o credor hipotecário (…) STC, S.A., cuja hipoteca abrange 7 prédios (incluído o prédio objeto do contrato promessa).
7. A (…) STC, S.A., contestou que a expurgação da hipoteca custaria o valor em dívida que a sociedade teria à data de 326.236,80 Euros.
8. Mostrando em julgamento irredutível quanto à aceitação do pagamento do valor em divida referente à parte correspondente à fração em apreço (doc. 2).
9. Apenas aceitando pagamento integral ( 326.236,80 Euros).
10. Nestas condições para não assumir a hipoteca que abrange 7 prédios.
11. Os Requerentes forçosamente desistiram do pedido principal.
12. E a J..., Lda. foi condenada no pedido alternativo da restituição do sinal em dobro ou seja no 40.000,00 euros reconhecido na douta sentença do processo identificada em 4 como crédito dos requerentes.
13. Com o contrato promessa celebrado em a 5 de Outubro de 2018, entre os Requerentes e a J..., Lda., os Requerentes tomaram posse da fração autónoma designada pela letra ... , correspondente ao ..., direito, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ... , inscrito na matriz sob o artigo ...18 e descrito na CRP ... sob o número ...05..., com alvará de licença de utilização para habitação n.º …, de 27/08/1996.
14. Passando a ser a sua habitação própria e permanente, lá tendo a sua economia familiar, pagando água e luz e outros serviços.
15. Os Requerentes aí residem com a neta e a filha desta.
16. Com a outorga do contrato promessa e entrega das chaves da fração autónoma foi feita a traditio do imóvel a favor dos Requerentes.
17. Atendendo ao estado de conservação da fração, foi acordado pelo legal representante da Sociedade que as reparações necessárias seriam custeadas pelos Requerentes, o que veio a acontecer sendo a R aqui executada condenada a pagar aos reclamantes o valor de 40.000,00 euros referidos aqui em 12 e as despesas das reparações custeadas pelos requerentes apuradas em execução de sentença.
18. A ação de condenação foi registada na CRP ... em 09/08/2019 pela AP. ...95 , aguardando a sua conversão por força da interposta execução de sentença que corre termos no Juízo de Execução-J1 com o Processo n.º 796/20.....
19. Correm ainda termos no Juízo de Comércio de Olhão – J2 com o Processo n.º 97/21.... a insolvência da sociedade J..., Lda., intentada pelos requerentes em 3 de Fevereiro de 2021 por forma a acautelar o pagamento do seu crédito.
20. Tendo falecido todos os sócios e gerente e designadamente em 02/05/2020 gerente J..., Lda. e não apresentando contas a sociedade há mais de três anos.
21. A declaração de insolvência afigura-se inevitável, com as suas consequências nos processos pendentes.
22. Os Requerentes foram notificados com data de 14 de janeiro de 2021, pelo Sr. AE que foram nomeados fieis depositários, por saber que estes lá residem (doc. 3 e 4).
23. Dando a conhecer ao Sr. AE que decorria a ação de insolvência e para proceder em conformidade (doc. 5) que junta e reproduz.
24. O sr. AE nada atendeu embora sabendo que deveria suspender a execução nos termos do artigo 793.º do CPC.
25. Prosseguindo ilegalmente com a execução até à venda do prédio, que por isso é ilegal.
26. Os requerentes têm o direito de retenção do prédio por força da traditio do mesmo e têm um crédito judicialmente reconhecido de promitente comprador resultante do incumprimento definitivo do contrato promessa.
27. É com alguma perplexidade que os Requerentes fazem a leitura da comunicação da arrematação.
(…)
10 – Em 30/10/2021 foi proferida a decisão em recurso que considerou não terem os requerentes decisão donde constasse como reconhecido, o alegado direito de retenção, mas ainda que o tivessem a solução seria a mesma, porquanto esse direito teria caducado com a venda judicial efetuada na presente execução.
Nos presentes autos de execução foi penhorada a fração autónoma designada pela letra ..., do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...05 e inscrito na matriz sob o artigo ...18, penhora essa registada pela Ap. ...82 de 2019/12/13, a qual foi vendida a EE, que registou a respetiva aquisição pela Ap. ...02 de 2021/07/28, sendo certo que a dita fração autónoma está ocupada pelos ora Requerentes CC e mulher DD, alegando os mesmos que detêm o direito de retenção sobre a fração autónoma por terem obtido sentença proferida nos autos n.º 2484/19.... que condenou a aqui executada, ali Ré, “J..., Lda.» a pagar-lhes o montante de € 40.000,00 correspondente ao dobro do sinal entregue com a celebração do contrato promessa de compra e venda e ainda a quantia a apurar em liquidação de sentença, correspondente ao valor da reparação realizada no anexo da referida fração autónoma.
Alegam os Requerentes que na ação n.º 2484/19.... pediram, a título principal, que fosse proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da Ré faltosa, a promitente vendedora “J..., Lda.” e depositaram mesmo à ordem daqueles autos o valor em falta acordado no contrato promessa, mas depois desistiram desse pedido principal por o credor hipotecário não prescindir do depósito do valor de 7 frações hipotecadas, razão porque a ali Ré foi apenas condenada no pedido alternativo da restituição do sinal em dobro.
Entendeu o Mm.º Julgador a quo que, para que os Requerentes pudessem agora vir invocar o seu direito de retenção sobre a fração autónoma, era necessário que os mesmos, naquela ação n.º 2484/19...., tivessem pedido o reconhecimento desse seu direito e que o vissem reconhecido, sendo certo que não o fizeram e, aliás, como os próprios admitem desistiram do pedido principal de execução específica, mantendo apenas o pedido subsidiário, ou seja, a devolução do sinal em dobro, pedido que foi julgado procedente. E, assim, não tendo esse direito de retenção reconhecido não podem recusar a entrega da fração autónoma ao adquirente EE que é o seu atual legítimo proprietário. Mas ainda que se entendesse que os Requerentes tinham reconhecido o seu direito de retenção sobre a fração autónoma, a solução seria a mesma, porquanto esse direito teria caducado com a venda judicial efetuada na presente execução.
Invoca o Senhor Juiz jurisprudência em abono da sua posição.
Com todo o respeito, o maior respeito por tal posição, não tem a mesma, no presente caso, a nossa adesão.
A jurisprudência não é unânime quanto à necessidade de uma decisão judicial de reconhecimento do direito de retenção, nomeadamente quando, esse direito de retenção se efetivou por via dum acordo entre as partes.
Prescindindo-se neste caso de tal decisão.
É disso exemplo o muito esclarecedor Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-01-2013 proferido no Proc. 511/10.0TBSEI-E.C1 (Henrique Antunes), in www.dgsi.pt, cuja assertiva fundamentação seguimos de perto.
Vejamos pois, quais os pressupostos do direito de retenção e a sua relação com o contrato promessa.
Contrato promessa é o contrato pelo qual as partes, ou uma delas, se obriga a celebrar novo contrato – o contrato definitivo (artigo 410.º, n.º 1, do Código Civil).
A distinção mais relevante no domínio desta convenção é a que separa o contrato promessa com eficácia real (artigo 413.º, n.º 1, do Código Civil) e o contrato promessa com eficácia meramente obrigacional.
Sendo o direito do adquirente dotado de eficácia real ele é investido, não apenas no direito de crédito à celebração do contrato definitivo – mas simultaneamente num direito real de aquisição; faltando eficácia real à promessa, como acontece no presente caso, o promitente adquirente apenas tem a seu favor um direito de crédito à celebração do contrato definitivo.
Neste caso, havendo incumprimento do contrato promessa, o promitente fiel pode obter a execução específica dele, através da emissão de sentença substitutiva da declaração negocial do promitente faltoso (artigo 830.º, n.º 1, do Código Civil).
A emissão da sentença nos termos do artigo 830.º tem como pressupostos o incumprimento do contrato promessa; a falta de convenção em contrário; a compatibilidade com a natureza da obrigação assumida.
Havendo sinal e o promitente fiel for o adquirente, e este não opte pela execução específica ou abdique da mesma como terá acontecido no presente caso, assiste-lhe o direito de exigir o dobro do que prestou, ou caso tenha havido tradição da coisa objeto do contrato definitivo prometido, o valor desta, objetivamente determinado ao tempo do não cumprimento, com dedução do preço convencionado, e a restituição do sinal e da parte do preço que tenha pago (artigo 442.º, nºs 1 e 2, 2ª parte, e 3, do Código Civil).
A lei disponibiliza para estes créditos resultantes do não cumprimento do contrato promessa, sempre que tenha havido traditio da coisa prometida, uma tutela particularmente vigorosa: o direito de retenção (artigo 755.º, n.º 1, f), do Código Civil).
Preceitua a alínea f), do n.º 1, do o artigo 755.º do Código Civil que:
“1-Gozam ainda do direito de retenção:
(…)
f) O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º”.
Coloca-se então a questão de saber se o promitente-comprador, beneficiário da tradição da coisa objeto mediato do contrato definitivo prometido, pode ou não considerar-se possuidor, se tem a posse da coisa.
Como se desenvolve o acórdão por nós referenciado:
«Do contrato promessa de compra e venda emergem simples prestações de facto jurídico positivo; obrigação de emitir, no futuro, as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido.
O contrato promessa não é, portanto, causal da transmissão de qualquer direito real, como não o é, em regra, da entrega da coisa objeto mediato do contrato definitivo.
Maneira que a entrega dessa coisa tem de ser imputada a um segundo acordo (artº 405 do Código Civil). Salvo melhor reflexão, o caso é de uma específica união de contratos, funcionando a antecipação do pagamento do preço objeto do contrato definitivo prometido como prestação correspetiva da antecipação traditio do bem prometido vender.
Nada obsta, portanto, à inclusão, logo no contrato promessa, de uma cláusula autorizando a tradição da coisa, ou à conclusão, paralelamente ao contrato promessa, de um segundo acordo, que tenha por objeto específico a traditio da coisa.
Nestas condições, a questão de saber se o promitente adquirente que viu traditada para si a coisa objeto do contrato definitivo prometido é ou não possuidor dela, não é suscetível de uma resposta de valor universal – mas de uma resposta diferenciada: tudo dependerá da vontade das partes, que poderá obter-se, por exemplo, através da interpretação do acordo à luz do qual a tradição operou, e da natureza dos concretos poderes de facto exercidos pelo beneficiário dela, sobre aquela coisa corpórea.
Concluindo-se, v.g., que a traditio visou antecipar a realização das prestações objeto do contrato definitivo, o que sucederá, por exemplo, quando o preço está pago na totalidade ou em grande parte, e o promitente adquirente exerce sobre a coisa poderes de facto correspondentes ao direito real de propriedade, haverá posse nos termos deste último direito real.
A traditio exigida para que se constitua o direito de retenção reclama apenas a detenção material lícita da coisa – não sendo necessário, para esse efeito, uma posse.
Por outras palavras: a posse não constitui requisito daquela garantia real.
Deste modo, os pressupostos do direito de retenção do promitente adquirente são apenas estes: a traditio da coisa ou coisas, objeto mediato do contrato definitivo prometido; o incumprimento definitivo do contrato promessa pelo promitente alienante; a titularidade pelo promitente adquirente, por virtude desse incumprimento, de um direito de crédito.
E, por não ser de aceitar, também aqui, qualquer interpretação restritiva - de qualquer direito de crédito emergente do incumprimento definitivo da obrigação de facto jurídico positivo resultante do contrato promessa.
Para a constituição da retenção não se exige sequer a declaração de incumprimento: é suficiente a tradição da coisa prometida vender, conjugada com a titularidade, pelo promitente adquirente de um direito de crédito relativamente à contraparte (sublinhado nosso).»
Em consonância com esta posição, para que o direito de retenção se deva reconhecer ao promitente adquirente, é suficiente uma transmissão dominial com o mero acordo entre as partes, a traditio ficta – a entrega de um objeto que representa simbolicamente a coisa e permita a atuação material sobre ela.
É comum, no caso de prédios urbanos ou de frações de prédio urbano, a traditio verificar-se com a mera entrega das chaves.
No presente caso, os recorrentes com a outorga do contrato promessa receberam as chaves da fração. Foi por acordo das partes, promitente vendedora e promitentes compradores, feita a traditio do imóvel a favor destes. Estes residem na fração.
Ora, estando contemplados pela previsão normativa do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil (casos especiais de direito de retenção) que lhes confere direito de retenção e porque o direito de retenção dispõe de sequela, isto é, mantém o direito inseparável da coisa, estamos perante um verdadeiro direito real, direito real de garantia. Logo, porque direito real, está dotado de eficácia erga omnes. Sem necessidade da obtenção prévia de decisão judicial que o reconheça.
É, por isso, dotado, para usar uma terminologia corrente e expressiva, de oponibilidade erga omnes, sendo, por isso, oponível quer relativamente a terceiros, quer relativamente ao próprio dono da coisa, que poderá ser o atual comprador da fração.
Logo, o direito de retenção não caducou com a venda efetuada a terceiro em venda executiva.
Nesse sentido, também o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 21-01-2016, Proc. 464/12.0TBAVV.G1 (Isabel Silva), assim sumariado:
“(…)
d) É hoje consensual o entendimento de que o direito de retenção é um direito real de garantia, e não simples instrumento de coerção.
e) Atento o caráter absoluto ou erga omnes dos direitos reais, é sua caraterística o de serem eficazes contra terceiros, o chamado direito de sequela, pelo que vincula todos, mesmo os terceiros que venham a adquirir posteriormente a propriedade do imóvel.
f) São pressupostos do direito de retenção, dito geral (artigo 754.º do CC): (i) a detenção lícita de uma coisa, suscetível de penhora, por alguém a quem ela não pertence; (ii) que esse detentor seja credor da pessoa a quem a coisa deve ser entregue; (iii) que a detenção da coisa lhe tenha originado despesas, efetuadas de boa fé, ou causado danos. Estes requisitos são de verificação cumulativa.
g) Para além dessa regra geral, entendeu o legislador alargar o âmbito do direito de retenção a casos específicos, os elencados no artigo 755.º do CC, nos quais se prescinde de um ou outro dos requisitos exigidos para o reconhecimento do direito de retenção em geral.
h) No caso do beneficiário de promessa de transmissão que obteve a tradição da coisa, alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC, para o reconhecimento do direito de retenção a lei basta-se com a demonstração: (i) da existência de um contrato promessa de compra e venda de uma coisa; (ii) que essa coisa tenha sido entregue ao promitente comprador; (iii) que a compra e venda se não venha a realizar por causa imputável ao promitente vendedor; (iv) existência de um crédito relativo ao dobro do sinal (ou qualquer dos outros direitos consignados no artigo 442.º do CC).”
Assim, porque o crédito dos apelantes está garantido por direito de retenção deve ser suspensa a execução no respeitante à entrega da fração a terceiro adquirente, até que o seu crédito seja satisfeito.
Caberá à primeira instância pronunciar-se quanto à suspensão da entrega do preço aos exequentes até estes prestarem caução que satisfaça o pagamento do crédito aos apelantes, questão que deverá ser decidida no desenvolvimento do ora exposto, mas sobre a qual não houve ainda pronuncia, devendo a mesma ter lugar após contraditório.
Em suma: (…)
Sem custas.
Évora, 15 de dezembro de 2022
Anabela Luna de Carvalho (Relatora)
Mário João Canelas Brás (1º Adjunto)
Jaime Pestana (2º Adjunto)