CLÁUSULA DO CONTRATO DE SEGURO
INTERPRETAÇÃO
Sumário

I -  Basta, para a aplicação da cláusula de contrato de seguro que exclua a responsabilidade da seguradora  quando o segurado «abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”,  que o abandono se verifique com consciência por banda deste da necessidade de tal chamamento, pelo que é irrelevante que aconteça antes ou depois do mesmo.
II -  Provado tal abandono, sem justificação, num acidente ocorrido cerca das 6,00 horas da manhã de um sábado e em que a entidade policial tinha de  ser chamada, pois que provocou danos avultados em veículos e em bens do domínio publico, tem de concluir-se que o interveniente se quis escapulir a ser fiscalizado, por motivos de atuação menos lícita, pelo que, mesmo que a tal atuação não se subsumisse na aludida clausula excludente,  sempre estaria inquinada de abuso de direito, ao menos na modalidade do tu quoque

Texto Integral

Relator: Carlos Moreira
Adjuntos: João Moreira do Carmo
Fonte Ramos

ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA, instaurou contra  Generali Seguros, S.A ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Alegou, em síntese:

Celebrou com a ré contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, incluindo várias coberturas facultativas, entre as quais “choque, colisão ou capotamento” e um complemento de “indemnização extra max”.

Sofreu um despiste e que, depois de acionar as referidas coberturas, a ré declinou a assunção da responsabilidade pelo sinistro.

Pediu:

A sua condenação no pagamento da quantia de €14.813,86, a título de indemnização por danos, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral pagamento, a quantia de €3.800,00 a título de indemnização pelo atraso na comunicação da assunção de responsabilidade e  €5.954,57 a título de complemento indemnização extra, acrescida de juros.

A ré contestou.

Por exceção, alegou verificar-se uma exclusão contratual na situação em que o sinistrado voluntariamente abandone o local do acidente.

No mais impugnou os factos alegados.

Pediu

A improcedência do pedido.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Atento o exposto, e em consequência, decide-se:---

I – Absolver a ré Generali Seguros, S.A. (anteriormente denominada “Seguradoras Unidas, S.A.”) de todos os pedidos deduzidos pelo autor AA, com as legais consequências.-»

3.

Inconformado recorreu o autor.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo Exmo. Senhor Juiz do Juízo Local Cível ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, que ABSOLVEU A RÉ GENERALI SEGUROS S.A. DE TODOS OS PEDIDOS DEDUZIDOS PELO AUTOR, ORA RECORRENTE.

2. Com base na factualidade provada, o Tribunal de 1ª Instância julgou improcedente a ação, por falta de fundamento legal, absolvendo assim na totalidade a Ré de todos os pedidos deduzidos pelo A., ora recorrente, sustentando que: “No caso dos autos, o autor, ao pretender prevalecer-se de um comportamento da ré que apontava num determinado sentido (in casu, formando a expectativa de que iria ser indemnizado em face da proposta da ré) estará a pretender prevalecer-se de um direito que, formalmente, será válido (houve proposta de indemnização e aceitação, logo irrevogabilidade: cf. C. Civil. art. 230º-1), mas na substância, materialmente, é injusto, por exceder os limites impostos pela boa-fé, porquanto não cumpriu com as suas obrigações contratuais, integrando-se os factos que praticou na prevista exclusão contratual de abandono do local do sinistro, pois, ao fazê-lo, ao abandonar o local do sinistro, inviabilizou o apuramento de toda a verdade, nomeadamente, como acima se explanou, se estava ou não a cumprir as prescrições legais que enformam a condução rodoviária.---

Razão por que, ao reclamar da ré o pagamento das quantias peticionadas, actua em evidente abuso do direito ao pretender prevalecer-se da referida expectativa ou esperança que a ré inicialmente lhe criou ou num apenas aparente e colidente venire contra factum proprium da ré seguradora e que consistiria que dar o dito pelo não dito, ou seja, oferecer e depois retirar a proposta indemnizatória, dando origem à presente acção – cf. C. Civil, art. 334º.---

Atento o exposto, conclui-se que à ré assiste o direito legítimo em declinar a responsabilidade pela regularização do sinistro e em recusar o pagamento da indemnização reclamada, com base na supramencionada exclusão contratual, razão por que a acção deve improceder, por falta de fundamento legal.---” (sublinhado nosso).

3. O âmago da divergência do recorrente à aliás douta sentença é quanto a determinação da existência de exclusão da responsabilidade, nomeadamente quanto ao conceito de abandono do local do sinistro.

4. Dos factos assentes não existe nenhum indício que o condutor do veículo, o ora recorrente, tivesse abandonado o local do sinistro para efeitos da exclusão da responsabilidade contratualmente prevista

5. A douta decisão proferida não efetuou uma correta ponderação da prova junta aos autos.

6. O Tribunal a quo considerou para formar sua convicção a prova documental – DOCUMENTO ... – que se reporta à declaração escrita em 19-06-2017, entregue a ré, assinado pelo Autor – ora recorrente, onde refere que “ausentei-me do local de táxi, uma vez ter compromissos muito importantes e estava com pressa.”

7. E, por outro lado e conjugadamente, considerou o depoimento da testemunha BB que “referiu não ter presenciado o acidente, tendo apenas visto uma viatura acidentada na via (…), tendo visto instantes depois “carros enfaixados”, razão por que chamou a polícia, não tendo visto o condutor no local (…)”.

8. Quanto a restante prova testemunhal, nenhuma faz inculcar a ideia de que o recorrente tivesse abandonado o local do acidente para efeitos de exclusão da responsabilidade.

9. Ficheiro_20211125145545_3993154_ 2870955 Testemunha CC

 4’55 Mandatária do Autor: E então quando chegou ao local do acidente, encontrou o Senhor AA… 4´59 Testemunha: Ele já não… já não se encontrava no local do acidente. Estava aqui um pouco mais abaixo do local do acidente. Depois, apanhei-o. * * 6’04 Mandatária do Autor: E ele estava sozinho? Havia outras pessoas ali à volta, no passeio, na via…. 6’09 Testemunha: Não… Não havia lá ninguém à volta. * * 17’17 Testemunha: Só ‘Tor… ele pediu me para o transportar ao ..., em .... Foi onde o transportei. Tinha lá a rapariga a espera dele e que não… não sabia do telefone, não tinha telefone para entrar em contacto com (não se percebe) e foi essa a razão que…

10. Ficheiro_20211125152004_3993154_ 2870955 Testemunha DD

8’01 Mandatária do Autor: Na continuidade do Exmo. Senhor Doutor Juiz estava aqui a dizer do hospital, então e se o acidentado não tivesse meios de vos comunicar, podia se deslocar diretamente ao posto para assinalar o acidente? Ou tinha mesmo que ficar lá a espera sem meios de comunicar com o posto? 8’25 Testemunha: Alguém comunicou a ocorrência, não é? Nos dirigimos ao local do acidente e o mesmo já não se encontrava lá. 8’31 Mandatária do Autor: Mas o autor não sabia que alguém tinha comunicado… 8´35 Testemunha: …Comunicado. * * 9’23 Mandatária do Autor: Abandonou o local porque não tinha meios de entrar em contacto consigo certo? 9’23 Testemunha: Certo.

11. Ficheiro_20211125153323_3993154_2870955 Testemunha EE

14’34 Testemunha: O que é importante é… junto da autoridade, tentamos também perceber quem fez o contacto. Esta informação não nos foi dada. Portanto, temo o relato que terá sido pela testemunha.

12. Ficheiro_20220218135333_3993154_2870955 Testemunha BB

2’32 Testemunha: Não presenciei acidente nenhum. * * 3’07 Testemunha: Chamei as autoridades. * * 3’12 Mandatário da Ré: Mas o senhor chegou a ver o condutor a ausentar-se do local. 3’15 Testemunha: Não… Não me recordo não… acho que não. Não estava lá ninguém. * * 8’46 Testemunha: Senhor Doutor, vi o condutor do veículo, do ... branco quando parou à porta a perguntar se o estabelecimento ainda estava aberto. 8´51 Juiz: Ah, mas isso foi antes… 8’52 Testemunha: Foi antes. Agora no embate não vi.

13. Salienta-se desses depoimentos que efetivamente, o condutor do veículo seguro na ré, o ora recorrente, deixou o local onde ocorreu o acidente e se dirigiu, de táxi, para um hotel, sem ter chamado as autoridades policiais (estando sem telemóvel – cf. Testemunha CC) que o vieram a ser mais tarde, por um terceiro, in casu, a testemunha BB e que, portanto, quando a PSP chegou ao local, aquele já não se encontrava no local do acidente.

14. Mas, em nenhum momento é dito pela testemunha BB – alias, nem por qualquer outra, nem se salienta de qualquer prova documental junta aos autos -, que foi comunicado ao condutor do veículo, o ora recorrente/A., que tinha sido efetuado a dita chamada para as autoridades policiais.

15. Ora, o art.º 40º, n.º 1, alínea d) das cláusulas do contrato dispõe: (PONTO 21 DOS FACTOS PROVADOS)

“40.º - Exclusões 1. Para além das exclusões previstas na cláusula 5ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações: (…) d) … bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade.” (sublinhado nosso).

16. Porquanto, só ocorre a exclusão da responsabilidade, se a autoridade policial já tiver sido chamada no momento do abandono, mais se esse chamamento tiver sido efetuado por terceira pessoa, o condutor do veículo seguro tem de ter conhecimento desse facto.

17. Tal como bem explica o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. 1542/19.0T8LRA.C1.S1, Relator Maria do Rosário Morgado, 18-03-2021, in www.dgsi.pt, jurisprudência a que se adere:

“ (…) na referida cláusula é possível descortinar dois momentos relevantes para a verificação da exclusão: o do abandono do local do acidente antes da chegada das autoridades e o da chamada das autoridades policiais.

Neste contexto, somos levados a considerar que a exclusão da cobertura do sinistro só tem razão de ser se o condutor do veículo, sem motivo que o justifique, abandonar o local do acidente, depois de saber que as autoridades policiais foram chamadas para tomar conta da ocorrência.

Aliás, o segmento final da referida cláusula apenas adquire alguma utilidade quando interpretado no sentido que acabamos de enunciar, ou seja o de que a seguradora apenas poderá opor a exclusão da garantia contratada ao tomador se a autoridade policial tiver sido chamada ao local pelo condutor do veículo ou por outra entidade e, não obstante, aquele, depois disso, tiver voluntariamente e por sua iniciativa, abandonado o local do acidente de viação antes da chegada dessa autoridade.”

18. Ora, nenhuma das testemunhas afirmou que o recorrente sabia que terceira pessoa tinha chamado as autoridades policiais, nem se refere que esse “suposto” abandono do local do acidente pelo recorrente seja posterior à chamada das autoridades policiais pela testemunha BB.

19. Neste mesmo sentido, pode ainda ver-se, para além do supracitado Acórdão, o seguinte Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23-11-2021, Proc. n.º 3310/20.7T8LRA.C1, Relator Arlindo Oliveira in www.dgsi.pt:

“(…) o abandono só é relevante em termos de exclusão da responsabilidade da seguradora, se a autoridade policial já tiver sido chamada. A autoridade policial tem que ser chamada e o abandono, injustificado, tem que ocorrer já depois de ter ocorrido tal chamamento, sendo este do conhecimento do condutor do veículo que se ausentou do local do acidente.

Ocorrendo o abandono sem que a autoridade policial tenha sido chamada, não se verifica a factualidade ínsita em tal cláusula e, consequentemente, não se verifica a cláusula de exclusão de que a ora recorrente se pretende fazer valer. (…)

Se a ré queria abranger a situação em que o abandono se verificasse independentemente da chamada das autoridades policiais, bastava eliminar da referida clausula a menção ao “chamamento” das autoridades policiais, ficando apenas a constar que o abandono se verificou antes da chegada das autoridades policiais.” (sublinhado e negrito nosso)

20. Resulta da factualidade que o recorrente/A., condutor do veículo acidentado se ausentou do local do sinistro antes de as autoridades policiais terem sido chamadas para a ocorrência pela testemunha BB, a qual nem deu esse facto a conhecimento do ora recorrente.

21. Pelo que nos termos expostos, não se verifica a factualidade em que poderia assentar a exclusão da responsabilidade da Ré em indemnizar o ora recorrente pelos danos sofridos em consequência do acidente.

22. POSTO ISTO, UMA VEZ QUE NÃO SE ENCONTRAM VERIFICADOS OS PRESSUPOSTOS DA APLICAÇÃO DA CLÁUSULA DE EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE PREVISTA NA ALÍNEA D), DO N.º 1 DA CLAUSULA 40ª DAS CONDIÇÕES GERAIS DO SEGURO, DEVE SER REVOGADA A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO QUE ABSOLVEU A RÉ DOS PEDIDOS, E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE CONDENE A RÉ NA TOTALIDADE DO PEDIDO.

23. Como se não bastasse, a decisão enferma de erro de direito ao absolver a ré com fundamento na declaração negocial “revogável” da Ré, violando assim o art.º 230º do C.C.

24. A douta sentença reconhece a validade da proposta enviada a 07/07/2017 (PONTO 14 E 15 DOS FACTOS PROVADOS) e a respetiva aceitação feita a 17/07/2017 (PONTO 16 DOS FACTOS PROVADOS), mas tira a errada conclusão dessa premissa.

25. Não resultou controvertido o valor da indemnização proposta pela ré.

26. São várias as contradições entre o sentenciado e sua fundamentação.

27. POIS, O Tribunal a quo não foi coerente na sua decisão:

“Nos casos dos autos, o autor, ao pretender prevalecer-se de um comportamento da ré que apontava num determinado sentido (in casu, formando expectativa de que iria ser indemnizado em face da proposta da ré) estará a pretender prevalecer-se de um direito que, formalmente, será válido (houve proposta de indemnização e aceitação, logo irrevogável: Cf. C. Civil. Art. 230º-1), mas na substância, materialmente, é injusto, por exceder os limites impostos pela boa-fé, porquanto não cumpriu com as suas obrigações contratuais, integrando-se factos que praticou na prevista exclusão contratual de abandono do local do sinistro, pois, ao fazê-lo, ao abandonar o local do sinistro, inviabilizou o apuramento de toda a verdade, nomeadamente, como acima se explanou, se estava ou não a cumprir as prescrições legais que enformam a condução rodoviária” (negrito e sublinhado nosso).

28. Ora, há uma proposta – verdade indiscutível, dada como assente (PONTOS 14 E 15 DOS FACTOS PROVADOS).

29. Há uma aceitação, dada igualmente como assente (PONTO 16 DOS FACTOS PROVADOS), formando-se assim o contrato.

30. A proposta caracteriza-se assim como irrevogável dada que entrou na esfera jurídica do destinatário, tornando-se assim eficaz.

31. Alias, o recorrente/autor concluiu actos executivos relativos a esse contrato/proposta: a venda do salvado à M... conforme constava da proposta aceite (PONTO 18 DOS FACTOS PROVADOS).

32. Bem andou o Tribunal a quo ao considerá-la como irrevogável “houve proposta de indemnização e aceitação, logo irrevogável: Cf. C. Civil. Art. 230º-1”.

33. Mas, depois para absolver a ré, o Tribunal a quo baseou-se num abuso de direito, o qual por sua vez, se baseou no abandono do local que, conforme supra se alegou, não existe.

34. Há uma violação absoluta quer do art.º 40º, n.º 1, alínea d) das cláusulas do contrato de seguro relativamente ao conceito de abandono, quer do artigo 230º n.º 1 do Código Civil quanto a irrevogabilidade da declaração.

35. HÁ UM DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO E NÃO UMA EXPECTATIVA QUE SE CRIOU NA ESFERA JURÍDICA DO RECORRENTE/AUTOR, PELO QUE TEM DE SER REVOGADA E SUBSTITUÍDA A DOUTA SENTENÇA POR OUTRA QUE CONDENE A RÉ NA TOTALIDADE DO PEDIDO.

36. De todo o modo e por outro lado, a absolvição da ré de todos os pedidos resulta de uma errada interpretação efetuada pelo Tribunal a quo da não aplicação dos artigos 36º e 40º do Decreto-Lei 291/2007 de 21 de Agosto, Lei do Seguro Obrigatório Automóvel, ao caso concreto.

37. O D.L. de 291/2007 introduziu regras relativamente às participações de sinistros e à resposta da seguradora, mais especificamente, introduziu prazos legais para a regularização do sinistro “com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil”.

38. O artigo 36º, n.º 1 do DL 291/2007 dispõe:

“1- Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve:

a) Proceder ao primeiro contacto com o tomador do seguro, com o segurado ou com o terceiro lesado no prazo de dois dias úteis, marcando as peritagens que devam ter lugar; (…)

e) Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico; (…).”

39. Acontece que o Tribunal a quo não considerou esses prazos.

40. Ora, resulta claro da matéria provada que a Ré não cumpriu o prazo previsto no art.º 36º n.º 1 al e) para a comunicação da assunção ou não da responsabilidade.

41. Porquanto, recebida a participação do sinistro efetuado pelo ora recorrente/A. em 25-05-2017 (PONTO 10 DOS FACTOS PROVADOS), tinha a Ré que contactar o recorrente no prazo de 2 dias uteis seguintes, marcando a peritagem do veículo, e nos 30 dias uteis seguintes, comunicar-lhe a assunção ou não da sua responsabilidade relativamente ao acidente e aos danos sofridos pelo recorrente/A.

42. O prazo (30+2 dias uteis) para lhe fazer tal comunicação terminou em 07-07- 2017, sendo o 1º dia de atraso no dia 10-07-2017 (Cf. Artigo 44º da PI).

43. A comunicação que a Ré fez ao recorrente/A. nesse período foi a carta enviada em 07-07-2017, com o seguinte teor: “ (…) face ao exposto, propõe-se esta seguradora liquidar-lhe a quantia de 14.813,86€, já deduzida a franquia contratual de 700,00 €” (PONTO 14 E 15 DOS FACTOS PROVADOS).

44. Mas, depois, já após o prazo dos 30 dias, através de carta datada de 01-09-2017 (PONTO 19 DOS FACTOS PROVADOS), a ré tomou posição definitiva sobre a matéria, declarando ao recorrente/A. não assumir a responsabilidade invocando que, após reanálise do processo, os sinistros se encontram excluídos, “quando voluntariamente e por sua iniciativa, abandono o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial (…)”.

45. Ora, se a seguradora não assumir a responsabilidade, prevê o artigo 40º a forma que a comunicação deve assumir, prevendo o n.º 2 que “em caso de atraso no cumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas nos n.ºs 1 dos artigos 38 e 39, quando revistam a forma constante do numero anterior, para além dos juros devidos a partir do 1º dia de atraso sobre o montante previsto no n.º 2 do artigo anterior, esta constitui-se devedora para com o lesado e para o Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, de uma quantia de 200,00 euros por cada dia de atraso”, sendo que o n.º 2 do artigo anterior remete para os n.º 2 e 3 do artigo 38º.

46. Mesmo assim, a douta sentença entendeu não ser de aplicar nenhuma dessas “sanções” do artigo 40º, apesar da posição da ré tenha acabado por ser a de não assunção da responsabilidade.

47. In casu, verifica-se efetivamente a violação do prazo legal na comunicação da Ré ao recorrente/A. que acabou por ser a de não assunção da responsabilidade mais de 3 meses depois da participação do sinistro e o Tribunal a quo deveria ter aplicado o artigo 40.º do DL.

48. Nesse sentido, podemos citar o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03-04-2014 in www.dgsi.pt:

“1. O DL 291/2007 de 21/8 veio estabelecer prazos para a seguradora comunicar ao tomador de seguro ou ao terceiro lesado se assume ou não a responsabilidade, estabelecendo também sanções civis para a seguradora que não respeite esses prazos. 2. A aplicação destas sanções civis é da competência do tribunal, (…).”

49. Pelo que, entende-se, face ao quadro factual provado, que a Ré não tomou atempadamente a posição que se exigia de assunção ou recusa de responsabilidade, sendo clara e fundamentada o atraso na comunicação.

50. Portanto, impunha-se a aplicação pelo Tribunal a quo das “sanções” previstas no artigo 40º n.º 2 do DL 291/2007, conjugado com os artigos 39.º, n.º 2 e art.º 38º, n.º 2 do DL.

51. O Tribunal a quo, por erro de interpretação e aplicação da lei violou e/ou não considerou corretamente o disposto nos art.ºs 36º e 40º, n.º 2 do DL 291/2007.

52. TERMOS EM QUE SE REQUER A REVOGAÇÃO DA DOUTA SENTENÇA NA PARTE EM QUE ABSOLVE A RÉ DE TODOS OS PEDIDOS E A SUA SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA QUE A CONDENE NAS SANÇÕES PREVISTAS NO ARTIGO 40 DO DECRETOLEI 291/2007 DE 21/08.

Contra alegou a ré pugnando pela manutenção do decidido.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

 Procedência da ação por: i) Inexistência da clausula de exclusão de responsabilidade; ii) Existência de proposta irrevogável de indemnização.

5.

Foram dados como provados os seguintes factos que urge considerar.

1. Em 27-11-2015, o autor e a ré (esta através da sua marca denominada “Seguros Logo”), celebraram um acordo, denominado “contrato de seguro do ramo automóvel Logo Max”, seguro danos próprios, relativamente ao veículo de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-PF-.., incluindo as seguintes coberturas:

“Responsabilidade Civil”, “Morte ou Invalidez Permanente”, “Despesas de Tratamento do Condutor”, “Despesas de Tratamento dos Ocupantes”, “Quebra Isolada de Vidros”, “Choque, colisão ou capotamento”, “Incêndio, Raio e Explosão”, “Furto ou Roubo”, “Atos de Vandalismo”, “Fenómenos da Natureza”, “Veículo de Substituição Opção Classe C” e “Indemnização Extra - Max”, a que foi atribuída a apólice n.º ...39.---

2. Este contrato foi renovado nos mesmos termos em 25-11-2016.---

3. É proprietária do aludido veículo automóvel FF, mãe do Autor, a quem tinha cedido o seu uso e direção efetiva, figurando esse segurado como “condutor habitual”.---

4. No dia 20-05-2017, pelas 06h55m, na Rua ..., ..., ocorreu um acidente de viação, nos termos abaixo descritos, onde foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros matrícula ..-PF-.., na ocasião conduzido pelo Autor.---

5. Ao tentar descrever uma curva, com ligeira inclinação, para o lado esquerdo atento o seu sentido de marcha, junto à sede do “...”, o Autor perdeu o controlo do mesmo e entrou em despiste, tendo colidido do lado direito com o veículo ligeiro de passageiros matrícula ..-..-TR, que ali se encontrava estacionado.---

6. No mesmo dia, o Autor deslocou-se às instalações da Esquadra ... - PSP de ..., sita no Largo ... em ..., para participar o acidente e identificar-se como condutor.---

7. Do acidente resultaram danos num poste de iluminação público metálico e em duas árvores de pequeno porte.---

8. O veículo ..-PF-.. sofreu danos dianteiros vários, tanto ao nível da sua estrutura como a nível de elementos de funcionamento (radiadores e suspensão dianteira), os quais impediam que a viatura se deslocasse pelos próprios meios.---

9. Após o embate, o veículo ..-PF-.. foi transportado de reboque do local do acidente para o Parque de Viaturas da “R...”, sito na Rua ... 792, ..., tendo sido depositado, em 08-06-2017, na oficina ... – Comércio de V..., Lda., sita na rua ..., ..., em ...---

10. O Autor efetuou, por contato telefónico com a ré, a respetiva participação do sinistro a 25-05-2017.---

11. Na sequência desta participação, a Ré efectuou a peritagem aos danos sofridos pelo veículo, sem desmontagem, tendo-se estimado para a reparação do mesmo o valor de €30.790,31.---

12. Para o valor venal da viatura foi considerado o capital seguro à data do sinistro de €29.772,86.-

13. A melhor proposta para o salvado foi da “M...”, pelo valor de €14.259,00.---

14. A Ré enviou uma carta ao Autor, em 07-07-2017, com o seguinte teor: “(…) face ao exposto, propõe-se esta seguradora liquidar-lhe a quantia de 14.813,86€ , já deduzida a franquia contratual de 700,00€”.---

15. Propôs, ainda, na eventualidade de o Autor pretender comercializar o salvado pelo valor de €14.259,00, de o vender à M..., alertando que a proposta de aquisição tinha uma duração de 15 dias.---

16. Em 17-07-2017, o Autor aceitou a proposta apresentada pela Ré, apresentando o seu IBAN para realização da transferência bancária.---

17. A Ré entregou ao Autor veículo de substituição, através da T..., S.A. – Estação ..., de marca ..., matrícula ..-OZ-.., que este manteve entre 12-06-2017 a 27-06-2017.---

18. O Autor recebeu a quantia de €14.259,00 referente à venda do salvado à M....---

19. Em 1 de setembro de 2017, a Ré declarou ao autor não assumir a responsabilidade invocando que, após reanálise do processo, os sinistros se encontram excluídos “quando voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial (…)”.---

20. A cláusula relativa à indemnização extra das condições especiais dispõe:

 “Cláusula 1ª – Âmbito da Cobertura 1. (…) 2. Quando tenham sido contratadas simultaneamente as coberturas de Choque, Colisão e Capotamento, de Incêndio, Raio e Explosão e de Furto ou Roubo, a presente Condição Especial poderá igualmente garantir o pagamento de um Complemento de Indemnização em caso de Perda Total do veículo seguro quando a mesma for consequência de qualquer facto ao abrigo das referidas coberturas, desde que expressamente contratualizada esta opção. Cláusula 2ª – Limites de Indemnização O valor do Complemento de Indemnização a pagar em caso de Perda Total do veículo seguro será determinado em função das seguintes regras:

a) (…)

b) Após o vigésimo quinto (25º) mês, inclusive, a contar da data da primeira matrícula do veículo seguro, o Complemento de Indemnização a pagar corresponderá a 20% do valor venal do veículo seguro à data do sinistro”.---

21. A cláusula relativa às exclusões dispõe:

“40.º - Exclusões 1. Para além das exclusões previstas na cláusula 5ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações: (…) d) … bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”.---

22. O autor entregou à ré um documento intitulado “Declaração”, por si assinado, com a data de 19-06-2017, onde manuscreveu, além do mais, que “(…) circulava no sentido ascendente da rua (…) ao fazer a curva (…) o veículo entrou em despiste (…) indo colidir noutra viatura (…) estacionada (…) Após o acidente (…) no local passou um taxista (…) e pedi para chamar as autoridades (…) ausentei-me do local de táxi uma vez ter compromissos muito importantes e estava com pressa. Desloquei-me na mesma data à Esquadra da PSP ... por volta da 14:00 H para participar e me identificar como condutor”.--

6.

Apreciando.

6.1.

O julgador decidiu aduzindo o seguinte, sinótico e essencial, discurso argumentativo:

«Em face da primeira comunicação da ré, e da aceitação do autor, podemos concluir, com razoabilidade, que o autor formou a convicção e a expectativa de que iria ser indemnizado pela ré nos termos propostos. É verdade. E esta situação jurídica pode merecer, em princípio, tutela jurídica. Sim, em princípio.---

Contudo, deve esta expectativa sobrepor-se aos termos do contrato, às cláusulas previstas no contrato de seguro, livremente negociadas entre as partes? Ou, até, do interesse público em geral relacionado com a propria ratio das exclusões?---

Impõe-se ponderar ambos os interesses em jogo – expectativa de o autor vir a ser indemnizado pela ré, por um lado; e regulação contratual por outro – em face dos contornos do caso concreto.---

A ré verificou, após melhor análise do processo de sinistro, que, afinal, em face dos elementos disponíveis, ocorria uma causa de exclusão contratual prevista no contrato.-

E está impedida de a invocar? Estará legalmente impedida de voltar atrás? – pensamos que não.-

Vejamos o caso: o autor conduziu o indicado veículo seguro na ré, despistou-se, embateu num terceiro veículo, causando-lhe danos, bem como danos na via pública e decidiu ausentar-se do local, de livre vontade, bem consciente que abandonava o local antes da eventual chegada das autoridades policiais. E, de acordo com os elementos disponíveis nos autos, não o fez por mero acaso.---

Tendo em conta a natureza e extensão dos danos causados a terceiros na sequência do despiste e embate (noutro veículo e em equipamento da via pública: poste de iluminação e árvores), e considerando o valor estimado – elevado - para a reparação do veículo seguro, pode concluir-se que seguia imprimindo uma velocidade desadequada, excessiva, seguramente, de acordo com as regras da experiência, superior a 50 kms/h (vd. pontos 7, 8 e 11 dos factos provados).---

Depois, declarou que se ausentou do local alegando “ter compromissos muito importantes e estava com pressa”, tendo, muito convenientemente - refira-se a latere - apenas “aparecido” no posto policial para se identificar como como condutor “por volta da 14:00 H (…)”. São palavra do próprio autor.---

Quer dizer: o autor, abandonado o local, eximiu-se, de caso pensado, à pesquisa de álcool no sangue ou ao teste de pesquisa de consumo de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas que, na hipótese de “dar positivo”, lhe trariam responsabilidade, não só eventualmente contraordenacional ou penal, mas sobretudo, para o que agora interessa, contratual, pois daria, em tese, a possibilidade à seguradora ré de demandar o autor em via de regresso por prejuízos que tivesse de suportar por danos causados a terceiros - cf. DL n.º 291/2007, de 21-08, art. 27º-1-c).---

Da prova produzida, resultou que o embate se deu de madrugada (entre as 6/7 da manhã) do dia 20.05.2017 (um Sábado), perto de um conhecido bar de ... (vd. depoimento da testemunha CC), sendo que apesar de o autor ter alegado, como motivo para se ausentar do local do acidente “ter compromissos muito importantes e estava com pressa”, foi deixado, a seu pedido, num Hotel ... onde aparentemente foi ter com a sua namorada (cf. depoimento do taxista que o transportou, CC), o que não permite conferir credibilidade e justificação ao abandono do local, para além de apenas ter decidido deslocar-se ao posto policial várias horas depois, nesse dia, já cerca das 14,00 horas (ponto 22 dos factos provados e doc. ... junto pelo autor na p.i.), portanto cerca de 7 horas depois, muito convenientemente, numa altura em que era já ineficaz qualquer diligência tendente a apurar se conduzia sendo portador de álcool ou de qualquer outra substância ilícita durante a condução.---

É verdade – reconhece-se – que é no mínimo estranho que a ré seguradora tenha enviado uma proposta de indemnização ao autor (incúria?, negligência?, descuido dos serviços?, deficiência na análise da documentação?... o tal envio de “carta automática”, por lapso, a que aludiu em audiência de julgamento a testemunha GG?...)num momento (07.07.2017) posterior à declaração do autor (de 19.06.2017: vd. Ponto 22 dos factos provados); no entanto, decorre dos autos que a ré procedeu à reanálise do processo de sinistro e, reavaliando-o, concluiu que o autor abandonou o local do acidente, deliberadamente, injustificadamente, dolosamente (i. é, intencionalmente), para, com isso, se furtar a eventuais responsabilidades (já que não se apurou qualquer justa causa para o abandono do local), enquadrando os factos apurados na exclusão contratualmente prevista consignada na cláusula 40ª do contrato de seguro (vd. o ponto 21 dos factos provados) que prevê que no caso de abandono voluntário (foi o caso: o autor não necessitou de ser assistido no local ou no hospital, onde não consta qualquer registo: vd. depoimento do agente da PSP ...) do local antes da chegada da entidade policial, quer esta seja ou não chamada pelo segurado, pouco importa, ocorre exclusão contratual, eximindo a ré seguradora de quaisquer responsabilidades, nomeadamente do pagamento ao autor das quantias que reclama ao abrigo das coberturas facultativas.-

Cabe, então, perguntar: aquela expectativa do autor, fundada aliás, de que a ré lhe pagaria a indemnização aludida no ponto 14 dos factos provados, na sequência do recebimento da missiva, merece maior tutela que o interesse da ré em eximir-se ao pagamento da indemnização reclamada pelo autor, fundada nas circunstâncias de facto que melhor ponderou em torno do acidente e que permite enquadrar na cláusula de exclusão contratual?---

Cremos que ao segurado, neste caso o autor, não assistem só direitos, mas recaem também deveres. E deveres, não só éticos e de transparência, mas também de boa-fé contratual (cf. CC, art.ºs 227º-1 e 762º-2) …

No caso dos autos, o autor, ao pretender prevalecer-se de um comportamento da ré que apontava num determinado sentido (in casu, formando a expectativa de que iria ser indemnizado em face da proposta da ré) estará a pretender prevalecer-se de um direito que, formalmente, será válido (houve proposta de indemnização e aceitação, logo irrevogabilidade: cf. C. Civil. art. 230º-1), mas na substância, materialmente, é injusto, por exceder os limites impostos pela boa-fé, porquanto não cumpriu com as suas obrigações contratuais, integrando-se os factos que praticou na prevista exclusão contratual de abandono do local do sinistro, pois, ao fazê-lo, ao abandonar o local do sinistro, inviabilizou o apuramento de toda a verdade, nomeadamente, como acima se explanou, se estava ou não a cumprir as prescrições legais que enformam a condução rodoviária.---

Razão por que, ao reclamar da ré o pagamento das quantias peticionadas, actua em evidente abuso do direito ao pretender prevalecer-se da referida expectativa ou esperança que a ré inicialmente lhe criou ou num apenas aparente e colidente venire contra factum proprium da ré seguradora e que consistiria que dar o dito pelo não dito, ou seja, oferecer e depois retirar a proposta indemnizatória, dando origem à presente acção – cf. C. Civil, art. 334º.»

6.2.

Esta exegese apresenta-se curial, em tese, e, para os contornos fáctico circunstanciais apurados, adequada e justa.

6.2.1.

Desde logo e no atinente à emergência/presença da cláusula de exclusão contratual ela, perante os factos apurados, verifica-se.

Tal como uma norma jurídica, ou uma declaração negocial, os factos provados podem não ter de ser interpretados necessariamente  no seu exato sentido literal, mas antes com consideração e amparo de outros elementos da hermenêutica jurídica, como sejam o lógico e o teleológico.

Tal como já diziam os antigos, por vezes, a letra da lei – aqui da cláusula contratual – mata a justiça, mas o seu espírito e ratio,  pode vivificá-la.

Ou seja, bastas vezes, só com apelo aqueles elementos não literais da interpretação jurídica,  e sem obediência cega e acrítica à literalidade do quid interpretando, se pode almejar a consecução do fito último da atividade jurisdicional, qual seja, a prolação da decisão que reflita e alcance não apenas a, por vezes a mais cómoda e fácil, justiça formal, mas antes atinja a verdade e, assim, realize  a justiça material do caso concreto.

Nesta senda tem de concluir-se que in casu, o cerne substantivo da aludida cláusula de exclusão prende-se com o facto de, para um acidente rodoviário, ser, ou não ser, necessário, ou até conveniente, chamar a autoridade policial.

Nos pequenos sinistros com consequências materiais nocivas minudentes – pequenos riscos ou amolgadelas – normalmente tal chamamento não se impõe, nem as autoridades policiais o aconselham, ficando a resolução dos mesmos entregues aos intervenientes, vg. com o preenchimento da chamada declaração amigável.

Nos acidentes com maiores e mais graves consequências, humanas e/ou materiais, tal chamamento impõe-se ou é aconselhável.

O caso vertente inclui-se nesta última hipótese.

Tal como observa o julgador, o sinistro provocou danos materiais, vg, em bens públicos, elevados e de monta.

Logo, a intervenção policial impunha-se ou era patentemente aconselhável.

Destarte, alguém teria de chamar a autoridade policial.

E porque, perante os factos apurados, o autor foi o único ou principal causador do acidente, sobre ele impendia - em função e homenagem a um dever, legal e ético social, de colaboração -, esse poder/dever principal ou primário de tal chamamento.

E o recorrente sabia isso, ou era-lhe exigível que soubesse.

Não obstante,  fez exatamente o contrário: saiu do local do embate e escapuliu-se, ao que parece mais ou menos sub repticiamente, antes da chegada da autoridade policial que ele sabia, fosse chamada por quem fosse, iria chegar.

E ia chegar quanto mais não fosse porque o causador do acidente  já não se encontrava no local e, assim, aquela autoridade era nececessária para apurar as causas e circunstancias do embate, pois que o próprio causador do acidente não quis contribuir de imediato para as esclarecer, ou até, se fosse possível, para resolver o assunto sem necessidade da intervenção policial.

Ou seja, o recorrente sabia que, máxime devido à sua saída do local, a autoridade policial teria de deslocar-se ao local do acidente.

Por conseguinte não pode ele agora argumentar que tal cláusula de exclusão apenas se aplica quando a autoridade já tenha sido chamada.

Se assim fosse, estava encontrado o ovo de colombo para os infratores e culpados de um acidente rodoviário se eximirem à aplicação de tal cláusula: fugiam antes de eles ou alguém chamar a polícia e ficavam imunes a tal exclusão.

É bom de ver que o entendimento defendido pelo recorrente, podendo levar a esta atuação, fere todas as normas e princípios legais possivelmente aplicáveis e a própria consciência ético jurídica do normal cidadão, pelo que não pode ser acolhida.

A assim ser, a interpretação da letra da cláusula de exclusão em apreço tem de ser operada sagaz e habilmente, cum granno sallis, como diziam os antigos.

Ou seja, se ela se aplica quando a polícia já tiver sido chamada, por igualdade ou maioria de razão se deve aplicar quando, sendo tal chamamento necessário, o infrator se escapulir do local,  mesmo antes de ele ser efetivado.

Reitera-se, o que importa é saber se é necessário, ou não, chamar a polícia.

Se for necessário, o interveniente no acidente não pode ausentar-se do local, nem antes nem depois de ter sido chamada.

É esta a interpretação que deve ser dada a tal cláusula de exclusão.

Podendo e devendo concluir-se, em abono da verdade e da justiça, que a seguradora, ao acrescentar em tal cláusula a expressão « quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade»,  pleonástica e desnecessariamente, maius dixit quam voluit,

Pois que, naturalmente, não quereria desaplicar tal exclusão de responsabilidade sua aos intervenientes nos acidentes, os quais, sabendo que era necessária a intervenção da autoridade policial, fugissem do local antes de ela ter sido chamada.

Nesta conformidade, a  correta interpretação de tal cláusula, ou seja, a que se coaduna  com, e vai de encontro  à, vontade da ré,  tem de ir no sentido de que ela quis abarcar a fuga do local do sinistro tanto antes como depois de a autoridade ter sido chamada.

Mais.

Mesmo que se concedesse na versão do recorrente, provada que foi a sua saída do local  e que alguém chamou a autoridade policial, competia-lhe provar – em sede e com o ónus de contra exceção – que  o abandono se verificou antes e não depois  de tal chamamento.

Ora não obstante o alegado na conclusão 20ª tal prova, visto o acervo factual apurado, não foi por ele consecutida.

O que, neste conspeto, se provou – ponto 22 – foi a versão do recorrente de que:

«Após o acidente (…) no local passou um taxista (…) e pedi para chamar as autoridades (…) ausentei-me do local de táxi..».

Ora não só este facto  é a simples versão do autor e não um facto objetivo provado por outros meios probatórios, único relevante, como de tal versão não se pode concluir que a sua ausência do local se verificou  antes do chamamento da polícia.

 Antes pelo contrário, dele emerge, ou vincadamente se indicia, que se ausentou já depois de tal chamamento ter sido efetivado, ou ao menos – o que é o qb-   já depois de ter sido decidido; e decido, segundo alega, por ele próprio.

Pelo que, mesmo na sua versão, e porque ele próprio estava ciente da necessidade da intervenção policial, não podia ter-se ausentado, a não ser que por ponderosas razões ou caso de força maior, o que não logrou minimamente convencer e provar.

6.2.1.

A ré fez uma proposta de indemnização ao autor que foi por este aceite.

Pelo que, tal como doutamente se expende na sentença com maior desenvolvimento, tal proposta é, em tese, tendencialmente irrevogável, produz efeitos e vincula as partes.

No caso vertente não se verificam as hipóteses legais de revogação.

Nesta conformidade, estando a ré vinculada de  lege stricta, apenas por apelo a alguns princípios jurídicos a ré poderia ficar desonerada do pagamento da indemnização que aceitou.

O Sr. Juiz entendeu que estamos perante um caso em que a figura do abuso de direito pode ser chamada à colação.

Perscrutemos.

Preceitua o artº 334º do CC:

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

O abuso de direito é um postulado axiológico-normativo do direito positivo, que não precisaria sequer de ser afirmado em lei para se aceitar a sua vigência.

Surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social.

Sabe-se que as normas jurídicas, enquanto gerais e abstratas disciplinam relações- tipo, que atendem ao comum dos casos.

Consequentemente, pode acontecer que um preceito legal, certo e justo para as situações normais, venha a revelar-se injusto na sua aplicação a uma hipótese concreta, por virtude das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram: é o problema da fronteira, do “fio da navalha”, da dialética entre a justiça formal e a justiça material ou equidade.

Ora, o princípio do abuso de direito constitui uma válvula de escape do sistema, ditada pela consciência jurídica para obtemperar a algumas das consequências de injustiça clamorosa e iniquidade num certo caso concreto, advenientes da pura perspetivação e aplicação formal e rígida de normas legais.

O abuso de direito é pois um limite normativo ou interno dos direitos subjetivos – pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativo–jurídicos do direito particular invocado que são ultrapassados – cfr. Castanheira Neves in Questão de facto e Questão de Direito, 526 e nota 46.

Destarte, há abuso de direito quando este, atento o circunstancialismo do caso concreto, é exercido de uma forma injusta e iníqua, com excesso ou desrespeito pelos limites axiológico-materiais da comunidade, de tal modo que o sentimento de justiça imanente à ordem jurídica, impõe a retirada do mesmo ou a responsabilização do titular.

Importa é que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça atentas as conceções ou o sentimento ético-jurídico dominante na coletividade e os juízos de valor positivamente consagrados na lei- cfr.”- Vaz serra “in” Abuso de Direito no BMJ 85º/253 e Pires de Lima e Antunes Varela “in” CC Anotado, anotação ao referido artigo 334º

Em suma, o direito não pode ser exercido arbitrária e exacerbada ou desmesuradamente, mas antes exercício de um modo equilibrado, moderado, lógico e racional.

A conceção adotada neste conceito é a objetiva, não sendo, assim, necessária a consciência de que com a sua atuação se estão a exceder os apontados limites.

São seis  as tipologias ou situações padrão em que tem sido colocada a ocorrência do abuso do direito: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

No caso vertente podem configurar-se as modalidades da exceptio doli e do tu quoque.

Na exceptio doli  está em causa a prática, pelo autor, de dolo, no momento em que a situação jurídica levada a juízo se forma.

Equivale à impugnação da base jurídica da qual o autor pretende retirar o efeito judicialmente exigido: havendo dolo inicial, toda a cadeia subsequente fica afetada.

Tal figura evoluiu e designadamente manifestou-se nos vícios na formação e exteriorização da vontade: os artigos 253.°/1 e 254.°/1 são, dessa forma, herdeiros da  mesma.

O tu quoque (também tu!) exprime a máxima segundo a qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode, depois e sem abuso:
i) ou prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente;
ii) ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio;
iii) ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada.

A pessoa que viole uma situação jurídica perturba o equilíbrio material subjacente. Nessas condições, exigir à contraparte um procedimento idêntico ao que se seguiria se nada tivesse acontecido equivaleria ao predomínio do formal: substancialmente, a situação está alterada, pelo que a conduta requerida já não poderá ser a mesma. Digamos que, da materialidade subjacente, se desprendem exigências ético-jurídicas que ditam o comportamento dos envolvidos.» - Menezes Cordeiro - Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, In Revista da Ordem dos Advogados (ROA) , 2005, setembro, Vol. II.

No caso sub judice assim é.

O autor, ao ausentar-se do local do sinistro, sabendo que, pelas suas magnas dimensões e consequências nocivas, a presença da autoridade policial era necessária -  tanto que ele próprio solicitou a terceiro o seu chamamento -, infringiu um dever legal, por violação de regras do CEstrada; contratual, perante a cláusula em causa; e ético moral, por desrespeito a uma conduta social de correção, respeito, lisura e verdade.

E assim subsumindo, como se viu, a sua conduta na aludida clausula excludente de responsabilidade da ré.

Ora o autor não justificou minimamente, com a concretude exigível, tal ausência.

Se ele tinha alguém à sua espera, apenas tinha de contactar telefónicamente tal pessoa, por si ou por terceiro, explicando-lhe o sucedido.

Ou, no máximo e concedendo, deslocar-se ao local pretendido, resolver a situação/problema, grave e inadiável (única que justificaria a ausência) e retornar imediatamente ao local do acidente.

Mas não. Escapuliu-se e, muito convenientemente, apenas se apresentou à autoridade policial cerca de oito horas depois.

Destarte, do provado e das circunstâncias envolventes do caso, devida e sagazmente escalpelizadas -  como aliás operado pelo julgador –,  resulta que ele se procurou eximir a ser fiscalizado e, assim, a que a autoridade policial verificasse qualquer irregularidade no veículo automóvel, ou na documentação a ele atinente.

  Ou, inclusive, procurou evitar que fosse submetido a testes que, possivelmente, determinariam que ele estava sob o efeito de álcool e/ou substâncias estupefacientes.

Efetivamente, há um elemento fulcral que é muito sintomático neste sentido, qual seja,  o dia e hora em que estava a circular: cerca das seis da manhã de um sábado numa cidade onde existem bares e locais de diversões.

Ora nem o autor teve a ousadia de alegar que vinha de trabalhar ou de outra atividade, evento ou situação, diversos das do aludido jaez hedonista, e que justificasse estar a circular aquela hora matutina.

Decorrentemente, tudo visto e, reitera-se, sagazmente dilucidado, atentas as regras da lógica, da experiência e senso comuns, e do normal devir, a final conclusão a retirar é que a ausência do recorrente do local do embate teve em vista evitar tal fiscalização e exame pessoais porque alguma coisa de menos legal, lícito ou regular tinha a esconder – cfr. artº 349º e segs do CC.

Do que, inelutavelmente, dimana que o autor - mesmo que a sua atuação não se incluísse, que se inclui, como se viu, na aludida clausula contratual de exclusão de responsabilidade -, agiu e continua a agir em abuso de direito nas aludidas modalidades.

Perante certos factos e circunstancias patentemente demonstrados nos autos – e a falta neles de outros que acobertassem a posição do recorrente - não vale a pena nem normalmente compensa querer tapar o sol com uma peneira, passe o vulgarismo.

  E assim se vislumbrando a postura e pretensão do recorrente temerárias e peregrinas.

E apenas na consideração de que, posto que com o seu decisivo contributo, existe ainda alguma indefinição/nebulosidade sobre as causas da sua atuação no iter do acidente – mas não suficiente para obviar à exegese e conclusão supra efetivadas -,  e com alguma condescendência, se não sanciona o recorrente ao menos com aplicação de taxa de justiça excecional nos termos do artº 531º do CPC.

Improcede o recurso.

(…)

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar, a, aliás douta, sentença.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2022.12.13.