REPÚDIO DA HERANÇA
SUB-ROGAÇÃO DOS CREDORES
HABILITAÇÃO DO SUB-ROGANTE NO INVENTÁRIO
OPOSIÇÃO À HABILITAÇÃO
Sumário

I – A lei qualifica como sub-rogação do credor ao devedor a situação prevista no art.º 2067.º CC, referente ao caso em que o devedor, em prejuízo dos seus credores, procede ao repúdio de uma herança que lhe tenha sido atribuída, permitindo aos credores do repudiante a possibilidade de aceitarem a herança em nome deste, nos termos previstos nos artigos 606.º e ss.
II - Não se está perante uma substituição pelo credor de um acto cuja prática o devedor omitiu, mas antes na destruição dos efeitos de um acto (o repúdio) que o devedor praticou, pelo que este procedimento sub-rogatório apresenta traços de sub-rogação e de impugnação pauliana.
III - Remetendo o n.º 1 do art.º 2067.º para os artigos 606.º e seguintes do CC, isso significa que o credor do repudiante, para aceitar a herança no nome dele, tem que intentar uma acção sub-rogatória, em que forçosamente há-de figurar na posição passiva o devedor renunciante, sendo a citação deste que permite a eficácia em relação ao devedor da acção sub-rogatória.
IV - O caso julgado obtido em acção sub-rogatória é um dos casos de substituição processual, traduzindo-se numa das hipóteses de extensão de caso julgado a terceiros prevista especificamente na lei.
V - O que significa que, a aqui apelada, em face da sentença obtida na acção sub-rogatória que intentou contra a herdeira repudiante e as filhas da mesma, não tinha que intervir no inventário relativo à partilha da sua mãe, se o não desejasse, pois que mesmo não o fazendo o que aí viesse a ser decidido relativamente ao quinhão da renunciante constituiria para ela e para as sobrinhas, caso julgado, sendo a estas que cabe a, na situação em apreço, a substituição processual da apelante nos autos de inventário.
VI - Querendo fazê-lo, haveria que lançar mão do incidente de habilitação, como fez, devendo entender-se que a sub-rogação do credor ao devedor renunciante obtida em acção sub-rogatória nos termos do art.º 2067.º CC se equivale a uma cessão da quota hereditária.
VII - A contestação no incidente de habilitação está limitada à validade formal ou material do acto de cessão ou de transmissão ou à circunstância de ele apenas visar dificultação da posição do contestante na causa principal.

Texto Integral

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

            I - No Cartório Notarial ..., de  AA,  pende inventário, em que é inventariada BB, falecida no dia .../.../2016, deixando como únicas herdeiras, CC, DD, EE e FF, estas duas últimas filhas de GG, divorciada, e que, por escritura de 11/4/2016, repudiou a herança aberta por óbito da sua mãe, a já referida BB.

            A cabeça de casal nesse inventário -  e aqui apelante - CC, informou no acto das respectivas Declarações, que tiveram lugar em 10/1/2017, que intentara, em 14/12/2016, acção subrogatória, nos termos dos arts  606º e ss e 2067º do CC e art 1041º do CPC , na qual pretende ser declarada aceitante por “sub-rogação” da parte da repudiante na herança da inventariada, requerendo que, por estar em causa questão  prejudicial em relação à partilha, se ordenasse, nos termos do nº 1 e 3 do art 16º do RJPI, a suspensão dos autos de inventário até que se verificasse  decisão definitiva daquela acção.

            Efectivamente, a referida CC, intentara, nos termos do art 11º/7 do RJPI e do art 356º CPC,  acção, que veio a pender com o nº 281/16.... no Juízo de Competência Genérica ..., contra GG, EE e FF, pedindo que as mesmas fossem condenadas a pagar-lhe a quantia de € 17.818,19, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, desde a entrada da acção até integral pagamento, acção esta que veio a ser  julgada procedente por sentença proferida em 20/7/2017, transitada em julgado. Foi declarada nessa sentença a nela A., aceitante, por sub-rogação, da parte da R. GG na herança deixada por óbito de BB, até ao limite do seu crédito, condenando-se as RR. a pagarem à referida A. a quantia de € 17.818,19, acrescida de juros à taxa civil legal, sobre o capital de € 16.800,00, desde a entrada da ação, 15/12/2016, até efectivo e integral pagamento.

             Provou-se nessa acção que a nela A. efectuara  à aí R., GG, várias entregas de dinheiro, na importância total de € 16.800,00, que esta prometeu devolver-lhe, tendo vindo a assinar  uma declaração de dívida em que se comprometeu a pagar a referida importância em prestações,  tendo declarado ainda que, caso à data do óbito da mãe faltasse liquidar parte da divida, em partilhas pagaria o restante com o seu quinhão hereditário.  À data da morte da mãe  - 5/3/2017 -  a referida GG nada pagara.  Pelo que CC interpôs contra ela acção executiva, em cuja pendência veio a ter conhecimento que, em 11/4/2016, a referida GG havia celebrado escritura de repúdio da herança de sua mãe, após o que a mesma, em representação da R. EE, menor, aceitou expressamente a herança em nome desta, requerendo inventário no Cartório Notarial de AA. Provou-se ainda nessa acção  que a referida R. GG celebrou tal escritura de repúdio com o único fim de impossibilitar à A. nessa acção, sua irmã CC, e a outros credores, de  se cobrar do seu quinhão hereditário na herança aberta da mãe de ambas, bem como se provou  que a herança que a aí R. GG repudiou não é suficiente para pagar a totalidade da divida à aí A .

            O inventário acima referido, ao que parece e ao contrário do que a cabeça de casal havia requerido, prosseguiu, tendo tido lugar conferência de interessados, à qual se fez seguir negociação particular, com a adjudicação dos bens licitados e comprados aos respectivos interessados, por despacho de 11/5/2020.

            Veio, então, a cabeça de casal deduzir incidente de habilitação de cessionário.

            A interessada EE, notificada desse requerimento, impugnou a validade do acto, entendendo-o extemporâneo e mostrar-se sem titulo, ao que cabeça de casal respondeu, entendendo improcedente a contestação da habilitação.

            Foi, então, proferido pela Exma Notária o seguinte despacho, que aqui se reproduz no que respeita à respectiva parte decisória:

            «(…)

            Implicando o incidente de habilitação de cessionário, modificação nos sujeitos da lide, entendemos que a cabeça de casal deveria há muito ter efectuado o pedido, evitando dessa forma a realização de diligências com sujeitos passivos de processualmente puderem ser substituídos .

            Não conseguimos vislumbrar prazo para requerer a habilitação como cessionário.

             È entendimento da doutrina e da jurisprudência, que a habilitação pode ter lugar até qualquer altura, ou seja, enquanto não houver trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha.

            Por força da aludida sentença, assiste aqui à cabeça de casal, naquela acção autora, o direito de se sub-rogar no crédito das aqui interessadas FF e EE.

            Obtida sentença favorável, como obteve, os credores podem executa-la contra a herança – art 1041º/2 CPC.

            Assim, em virtude do referido direito de se sub-rogar no crédito daquelas pode, e no nosso entendimento deve, como determina o art 589º e ss do CC, a cabeça de casal, manifestar expressamente, até ao momento do cumprimento da obrigação (o pagamento de tornas) a vontade de sub-rogar, e desta forma efectivar o direito que lhe assiste.

            Pelo exposto, defere-se o requerido e declara-se habilitada a cessionária.

            Em consequência do decidido, determina-se a repetição da Negociação Particular, não se aproveitando a anteriormente realizada, por prejudicar a forma à partilha e influir na posterior tramitação do inventário, mantendo-se, no entanto, as anteriores adjudicações – art 195º/1 e 2 do CPC.

            Custas do incidente a cargo da cabeça de casal, fixando-se os honorários em 2,5 UC»..

            II – É deste despacho que a interessada EE interpôs o presente recurso, tendo concluído as respectivas alegações nos seguintes termos:

            1. O requerimento de habilitação de cessionário foi apresentado pela Apelada de forma extemporânea.

            2. A Apelada e Cabeça de Casal prestou declarações no exercício do cabecelato nos presentes autos, declarando que a Apelante EE, era interessada no Inventário, prosseguido este os seus termos até à Conferência de Interessados e adjudicação da  totalidade dos bens que compõem o acervo hereditário, com a participação desta como parte principal.

            3. A Apelada poderia e deveria ter vindo requerer, nos termos que entendesse, a regularização da instância e a sua habilitação, após a suspensão dos autos que requereu, para obtenção e junção da Sentença que invoca no requerimento de Habilitação – o que não fez.

            4. Nos termos do artigo 9º nº 1, 24º nº 5 e 30º e segs. do RJPI e do princípio da estabilidade da instância – artigo 260º do CPC – formou-se caso julgado formal quanto às intervenções principais nos presentes autos de Inventário - artigo 17º nº1 RJPI. Sem conceder,

            5. A Apelada requereu a sua habilitação como cessionária, nos termos dos  artigos 11º nº 7 do RJPI e 356º do CPC, sem apresentar o título de aquisição ou cessão da coisa ou direito, in casu, da quota ou quinhão hereditário – cfr. artigo 11º nº 7 RJPI.

            6. A decisão plasmada na sentença e invocada pela Apelada, apenas a declara como aceitante, por sub-rogação, da parte da interessada repudiante GG (mãe da EE/Apelante), na herança aberta por óbito de BB  (Inventariada).

            7. Tal decisão não reconhece à Apelada direitos sobre qualquer parte da herança, não podendo ser-lhe oponível ou invocada como título válido no presente processo de Inventário.

            8. A Apelada nunca fez valer a legitimidade ativa que a invocada Sentença lhe concedeu para instaurar a respetiva execução contra a herança – cfr. art.1041º nº 2 do C.P.C.

            9. Carece assim de título que fundamente a sua habilitação como cessionária.

            10. Com a prolação do Despacho recorrido, foram violadas as normas contidas nos artigos 9º nº1, 11º nº7, 17º nº1, 24º nº 5 do RJPI e 260º, 356º, 1041º nº 2 do CPC e 589º do C.C.

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            III – Os factos necessários para a apreciação do recurso emergem do acima relatado.

            IV – Do confronto entre as conclusões da apelação e a decisão recorrida, resultam para apreciar no presente recurso, correspondendo ao seu objecto, as seguintes questões:

            - se a habilitação da apelante nos presentes autos de inventário se mostra extemporânea por já ter ocorrido caso julgado formal quanto às partes no inventário;

            - e se a referida habilitação se mostra sem titulo, na medida em que a sentença que invoca não reconhece à apelante direitos sobre qualquer parte da herança.

            A primeira questão implica que se pondere o disposto no art 263º CPC e o mecanismo da substituição processual, e a segunda que se compreenda em que se traduz a sub-rogação que está em causa na situação dos autos.

            È por esta questão que se começa.

            Fala-se de sub-rogação – que, em qualquer caso, se traduz no fenómeno que consiste em uma pessoa ou coisa ir ocupar, numa relação jurídica, o lugar de outra pessoa ou coisa - no que respeita à sub-rogação pessoal, em duas acepções distintas.

            Por um lado, como forma de transmissão singular de créditos, que se verifica quando um terceiro que cumpre uma divida alheia ou que para tal empresta dinheiro ou outra coisa fungível, adquire os direitos do credor originário em relação ao respectivo devedor, sendo duas as espécies desta sub-rogação, a convencional e a legal, referindo-se a este tipo de sub-rogação o art 589º e ss do CC, sendo usual designa-la por sub-rogação translativa ou transmissiva.

            Por outro, enquanto meio conservatório da garantia patrimonial, falando-se em acção subrogatória, ou sub-rogação pessoal substitutiva, que é a que nos autos nos importa, e que consiste em o credor se substituir ao seu devedor, mecanismo a que se reportam as normas do art 606º a 609º do CC. 

            «Neste caso não existe substituição na titularidade de um direito, mas apenas num procedimento ou actuação jurídica», como refere  Almeida e Costa [1].

            Se é certo que esta é a sub-rogação que releva para a situação dos autos, e não aquela outra, a verdade é que, o que neles está em causa, não é uma sub-rogação comum do credor ao devedor, mas antes a situação específica a que se reporta o art 2067º CC, em sede, justamente, de repúdio de herança.

            Aí diz-se:

            « 1. Os credores do repudiante podem aceitar a herança em nome dele, nos termos dos arts 606º e seguintes.

             2 .A aceitação deve efectuar-se no prazo de seis meses, a contar do conhecimento do repúdio.

            3 . Pagos os credores do repudiante, o remanescente da herança não aproveita a este, mas aos herdeiros imediatos».

             A melhor compreensão desta figura postula que se perceba em que consiste a normal sub-rogação do credor ao devedor.

            Esta é vista como uma sub-rogação indirecta ou obliqua, «em que o credor age na qualidade de representante ou substituto legal do devedor, tudo se passando como se os actos fossem praticados por este», e que se distingue da directa, «mediante a qual o credor exerce em nome próprio um direito do seu devedor, fazendo-se pagar por um devedor deste».[2]

            Não é indiferente que se fale de sub-rogação directa ou indirecta,  entre o mais, porque, na directa, «o benefício da acção reverte apenas em beneficio do credor que dela usa, equivalendo, por isso, a um privilégio» [3], enquanto na indirecta, os credores têm a possibilidade de exercerem contra terceiro os direitos de conteúdo patrimonial que competem ao devedor, mas não atribui qualquer preferência no pagamento aos credores que a ela recorram, uma vez que é exercida em beneficio de todos os credores – art 609º.

            Um dos pressupostos da sub-rogação do credor ao devedor indirecta a que se vem fazendo referência, é, como resulta do art 606º, a omissão pelo devedor do exercício dos seus direitos (apenas os de conteúdo patrimonial) contra terceiros.  Com efeito, «o devedor pode não ter interesse em praticar actos destinados a evitar a diminuição do seu património ou a acrescenta-lo, por saber que com isso  apenas lucrarão os seus credores; ou pode ser só negligente, com prejuízo para estes», como o acentuam Pires de lima /Antunes Varela[4].

            Esta subrogação pode ser exercida extrajudicialmente, como se deduz do art 608º, mas também judicialmente, sendo que, «quando exercida judicialmente, é necessária a citação do devedor, verificando-se uma situação de litisconsórcio necessário passivo – art 28º CPC – cuja preterição acarreta a ilegitimidade do réu» [5]. Como referem Pires de Lima/Antunes Varela, em anotação ao art 608º,«é um caso de litisconsórcio necessário, visto não poder prescindir-se da citação da pessoa ou pessoas (terceiros)  contra quem o direito é exercido em beneficio do devedor».

            É, afinal, esta citação que permite a eficácia em relação ao devedor da acção sub- rogatória.

            Já se viu que a lei qualifica como sub-rogação do credor ao devedor a situação prevista no art 2067º CC, referente ao caso em que o devedor, em prejuízo dos seus credores, procede ao repúdio de uma herança que lhe tenha sido atribuída,  permitindo aos credores do repudiante a possibilidade de aceitarem a herança em nome deste, nos termos previstos no art 606º e ss.

            Sucede, como o faz notar Menezes Leitão[6], que, «apesar desta remissão,  verificam-se substanciais diferenças entre esta figura e o regime geral da sub-rogação. A primeira é a de que não se está perante uma substituição pelo credor de um acto cuja prática o devedor omitiu, mas antes na destruição dos efeitos de um acto (o repúdio) que o devedor praticou. A segunda é a de que, a sub-rogação neste caso não produz a reversão dos bens ao património do devedor, já que a lei determina que, pagos os credores do repudiante, o remanescente da herança não aproveita a ele, mas aos herdeiros imediatos – art 2067º/3».

            Tem razão, pois, Almeida e Costa [7], quando afirma que o disposto no art 2067º CC «representa um caso de procedimento subrogatório com características especiais: trata-se de afastar o repúdio e de aceitar a herança em nome do devedor manifestando traços de sub-rogação e de impugnação pauliana».

                       

            Remetendo o nº 1 do art 2067º para os arts 606º e seguintes do CC, isso significa que o credor do repudiante para aceitar a herança no nome dele tem que intentar uma acção subrogatória, em que, como acima já se referiu, se mostra forçoso -  desde logo para que a sentença produza o seu efeito útil normal - que demande o devedor : «o devedor é parte no processo».

            Obtida sentença favorável, destruído que fica o acto do repúdio, o credor fica sub-rogado na posição sucessória do devedor repudiante.

            O  que significa, na situação dos autos, que a aqui apelante, por via da sentença proferida no processo que intentou contra a sua irmã, GG, repudiante da herança da mãe, e contra as suas sobrinhas, filhas desta,  e que  a declarou aceitante  por sub-rogação da parte da herança que cabia à irmã  por óbito da  mãe,  até ao limite do seu crédito (o capital de 16.800,00, acrescido de juros desde 15/12/2016 até efectivo pagamento), ficou  sub-rogada na posição jurídica desta na herança da mãe.

            Ora, o caso julgado obtido em acção subrogatória é precisamente um dos casos académicos de substituição processual, que, segundo Manuel de Andrade «se traduz numa das hipóteses de extensão de caso julgado a terceiros prevista especificamente na lei».[8]

            Como o mesmo autor refere, dá-se «a substituição processual quando a lei admite que seja parte no processo quem não é sujeito da relação material. Trata-se de um caso de legitimação excepcional, anómala. O substituto litiga no processo em seu nome (de outro modo seria um simples representante) sobre um direito alheio. Para os efeitos processuais a parte é ele e não o substituído. Assim responde pelas custas, não pode ser testemunha etc ».

            Isto significa que, a aqui apelante, em face da sentença obtida na acção sub-rogatória que intentou contra a herdeira repudiante e as filhas da mesma, não tinha que intervir no inventário relativo à partilha da sua mãe se o não desejasse, pois que mesmo não o fazendo, o que aí viesse a ser decidido relativamente ao quinhão da renunciante constituiria para ela e para as sobrinhas caso julgado.

            Mas, evidentemente, querendo fazê-lo, haveria que lançar mão do incidente de habilitação, como fez.

            Trata-se da habilitação incidente, a que se reportam os arts 351º a 357º CPC, que se destina, na situação dos autos, a operar uma modificação da instância quanto às pessoas, nos termos da al a) do art 262º CPC, «em consequência da substituição de alguma das partes, por acto entre vivos, na relação substantiva em litigio». 

            Habilitação esta, que, ao contrário da que resulta do falecimento ou extinção da pessoa, se mostra facultativa.

            Como o refere Salvador da Costa [9], «é facultativa porque a transmissão do direito em litígio não implica a suspensão da instância, certo que o transmitente continua a ter legitimidade ad causam até à habilitação do adquirente». Mais referindo: «Enquanto a morte ou a extinção de uma das partes implica necessariamente a modificação subjectiva da instância na sequência da sua suspensão, a transmissão por acto entre vivos da coisa ou do direito objecto do litígio só a implica se o adquirente ou o transmitente, o cessionário ou o cedente, o requererem através de incidente de habilitação». Explicitando que «a intervenção do cessionário na causa implica que ele tem que a aceitar no estado em que ela se encontrar, certo que o transmitente continuou a ter legitimidade para continuar na causa principal até o transmissário, por habilitação, ser admitido a substitui-lo – art 271º/1» (a que corresponde o art 263º/1 NCPC).

            Alberto dos Reis, por sua vez, refere:  [10]

            «Quando algum dos litigantes transmite a outrém, por acto inter vivos, a coisa ou o direito nela em litígio, nada de semelhante se passa; a instância não se suspende, ainda que o facto da transmissão esteja certificado no processo por forma inequívoca. Quer dizer, a circunstância de ter efectuado a transmissão não tira ao transmitente legitimidade para a causa; posto que tenha demitido de si o direito que estava fazendo valer no processo, posto que o tenha transferido para outrém, nem por isso deixou de ser parte legítima; conserva a legitimidade que tinha até ao momento da transmissão.  A sua legitimidade mantém-se até que o adquirente seja admitido, por meio de habilitação, a substitui-lo. E como a habilitação tem de ser requerida pelo adquirente ou pelo transmitente, segue-se que se a não promoverem, o processo segue até ao fim com a intervenção do transmitente». Finalizando as observações a este respeito, acentuando: «Em tal caso a sentença produzirá efeitos em relação ao adquirente, quer dizer, constitui quanto a ele caso julgado – art 271º/2» (que corresponde hoje ao art 263º).

            Lebre Freitas /Isabel Alexandre [11], acentuam: «Transmitida por acto entre vivos, a coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, em substituição processual do adquirente, enquanto este não for, por habilitação, admitido a substitui-lo. Assim, contrariamente ao caso da transmissão mortis causa, a transmissão inter vivos não determina a suspensão da causa, sendo facultativa a habilitação do adquirente, contra o qual, de qualquer modo, se produzirá o caso julgado – art 263º/3».

            E explicam na anotação ao art 263º:

            «Utilizando, tal como no art 261º/1, o conceito de legitimidade em sentido diverso do que está hoje consagrado no art 30º/3, o nº 1 mantém a legitimidade do transmitente até que o adquirente seja julgado habilitado. Trata-se de uma consequência do carácter facultativo da habilitação por transmissão inter vivos – art 276º-2 – inverso ao carácter obrigatório da habilitação em virtude de sucessão por morte ou extinção – arts 276º/1 a), 277 e 284º/1al a).

            A partir da transmissão, o transmitente, que já não é titular da situação jurídica transmitida, substitui processualmente o adquirente, seu actual titular, litigando em nome próprio, mas em prossecução de um interesse que só indirectamente é seu. (…)».

            Referindo-se nestes termos à substituição processual [12]: «A substituição processual dá-se quando a lei, excepcionalmente,  admite como parte no processo,  litigando em próprio nome  (diversamente do que acontece com o representante, que actua em nome do representado), uma pessoa  que, não sendo sujeito da relação material controvertida  (ou titular do interesse  em causa na acção)  é, porém,  titular de um interesse que está na dependência do substituído, por forma que,  ao provocar a tutela jurisdicional  do interesse deste, o substituto actua tendo em vista o efeito indirecto que esta tutela terá no seu interesse próprio. È o que acontece, nomeadamente, na acção sub-rogatória – art 606º CC – na sucessão singular do direito litigioso sem habilitação do adquirente – art 271º/1 – na execução do crédito do executado contra terceiro que não cumpre – art 860º/3 – ou na acção de responsabilidade movida pelo sócio de sociedade comercial contra gerente, administrador ou director para fazer valer o direito de indemnização da sociedade – art 77º CSC».

            Evidentemente que estas considerações têm que ser adaptadas à situação de sub-rogação em causa nos autos, equivalendo a sub-rogação obtida nos termos do nº 1 do art  2067º a uma cessão da quota hereditária, substituindo processualmente a sub-rogante  as herdeiras do devedor sub-rogado e não este, que não é parte no inventário.

            Destas considerações não podem resultar dúvidas relativamente à falta de razão da apelante.

            Desde logo, porque as razões em função das quais contestou o pedido de habilitação não são válidas ao abrigo da al a) do nº 1 do art 356º: a lei só lhe permite que na contestação impugne a validade do acto, ou alegue que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo, e nenhuma das razões invocadas pela apelante se reconduz a essas[13] .

            Como o refere Lopes Cardoso [14], «a contestação está, pois, limitada ao referido núcleo de factos relativo à validade formal ou material do acto de cessão ou de transmissão ou à circunstância de ele apenas visar dificultação da posição do contestante na causa principal».

            Mas, mesmo que assim não fosse, já se viu que a habilitação da apelante nos presentes autos de inventário não pode ser tida por extemporânea por, desde logo, ser facultativa, podendo, por isso, ter lugar até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha.

            Nem o contrário resulta do disposto no nº 7 do art 11º do RJPI, que se limita a remeter a habilitação do cessionário de quota hereditária que tenha lugar nos autos inventário, para «os termos gerais», devendo entender-se, naturalmente, que a sub-rogação do credor ao devedor renunciante obtida em acção sub-rogatória nos termos do art 2067º CC se equivale a uma cessão da quota hereditária.

            Acresce que nenhum sentido pode ter falar-se em caso julgado formal quanto às intervenções principais nos autos de inventário em função do nº 1 do art 17º RJPI, em face da substituição processual a que se fez referência.

            Por outro lado, e como é evidente, a habilitação em causa nos autos tem como titulo a sentença proferida na acção sub-rogatória que declarou a aqui apelante, aceitante, por sub-rogação, da parte da sua irmã, repudiante, na herança da inventariada, mãe de ambas.

            V – Pelo exposto, acorda o presente Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

            Custas pela apelante.

Coimbra, 13 de dezembro de 2022


(Maria Teresa Albuquerque)
(Falcão de Magalhães)
(Pires Robalo)

            (…)



1] - «Direito das Obrigações», 9ª ed, p 763.
[2] - Menezes Leitão, «Direito das Obrigações», II, p 306/307
[3] - Vaz Serra, «Responsabilidade Patrimonial», BMJ nº 75, pag 189 e ss
[4]Código Civil Anotado», anotação ao art 606º
[5] - Menezes Leitão, «Direito das Obrigações», II, p 306/307
[6] - Obra referida, p 304
[7] - Obra referida, nota a p 490
[8] - «Noções Elementares de Processo Civil», 1979, p 316
[9] - «Os Incidentes da Instância», 3ª ed, p 223
[10] - «Comentário…»,Vol 3º, p 76/77
[11] - Anotação ao art 356º em «Código de Processo Civil Anotado», Vol I, 3ª ed Set de 2014.
[12] - Lebre de Freitas em «Código de Processo Civil Anotado,» com Montalvão Machado e Rui Pinto, Vol II, 2ª ed,  p 724,  anotação ao art 674º
[13] -Repare-se que a «parte contrária» a que se reporta o dispositivo legal mencionado é «quem está na lide em posição contrária ao cedente ou transmitente ou ao adquirente ou cessionário»,  Salvador da Costa , «Os Incidentes da Instância», eª ed ,  p 256/2
[14] - Obra citada na nota anterior, p 257