PRESTAÇÃO DE CONTAS
LEGITIMIDADE
HERANÇA
ADMINISTRAÇÃO DE FACTO
Sumário


1 – A ação de prestação de contas só pode ser intentada por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las.
2 – É admitida a prestação de contas por quem administrou ou está a administrar bens total ou parcialmente alheios, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para administrar os bens.
3 – A prestação de contas pode ser exigida de quem detém e administra a herança ou parte dos bens que compõem o património hereditário, ou que pratica actos urgentes de administração no condicionalismo previsto no artigo 1047º do Código Civil, não obstante não ter a qualidade de cabeça de casal.
4 – Fora da óbvia situação em que a administração dos bens emerge de disposição legal ou de convenção, é necessário que esteja alegada uma situação de administração de facto e que a obtenção da receita e a realização da despesa resulte do exercício dessa administração.
5 – Não tem obrigação de prestar contas o herdeiro que na petição inicial da ação de prestação de contas por si intentada se limita a alegar que efetuou o pagamento de despesas e encargos da herança a pedido do cabeça de casal e que transferiu da sua conta para a conta do cabeça de casal, também a pedido deste, diversas quantias, com a finalidade de o cabeça de casal pagar despesas da administração da herança.
6 – Por isso, atenta configuração da relação controvertida constante da petição inicial, a inexistência da obrigação de prestação de contas é fundamento de ilegitimidade.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães[i]:

I – Relatório

1.1. AA intentou ação especial de prestação de contas contra BB, CC e DD, pedindo a condenação dos «RR. a pagar à A. a parte das despesas correspondentes ao seu quinhão na herança, sendo a 1º Ré de 9/12 (75%); e os 2º e 3º Réus, cada um, de 1/12 (8.333%) do saldo julgado provado, do montante de € 95.399,05 (noventa e cinco mil trezentos e noventa e nove euros e cinco cêntimos), sendo da 1ª Ré a responsabilidade de € 71.549,28 (setenta e um mil quinhentos e quarenta e nove euros e vinte e oito cêntimos) e dos 2º e 3º RR. a quantia de € 7.949,60 (sete mil novecentos e quarenta e nove euros e sessenta cêntimos), a favor da A., bem como condenados nos de juros à taxa de legal de 4% ao ano até efetivo pagamento».
Para o efeito, alega que efetuou pagamentos de despesas da herança aberta por óbito de EE no valor total de € 68.043,75, a pedido da cabeça de casal, ora 1ª Ré, e que realizou várias transferências no valor total de € 27.355,30, também a pedido da cabeça de casal, para esta pagar despesas de administração da aludida herança.

*
Com relevo para o objeto do presente recurso, contestaram a 1ª Ré e o 2º Réu, alegando, além da ilegitimidade passiva e da litispendência, a ilegitimidade ativa, sustentando que a Autora não administrou bens ou interesses alheios, pelo que não está obrigada a prestar contas nem há lugar à prestação de contas.
*
A Autora respondeu à matéria da exceção de ilegitimidade ativa, alegando que a sua atuação, traduzida no pagamento com dinheiro seu de despesas da herança a pedido da cabeça de casal, corresponde a uma administração de facto.
*
1.2. Foi proferido despacho saneador, onde se julgou procedente a exceção de ilegitimidade ativa e se absolveram os Réus da instância.
*
1.3. Inconformada, a Autora, interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:

«I – O art. 941º do CPC estabelece o princípio da legitimidade ativa para a ação de prestação de contas daquele que tem o direito de as exigir;
II – E tem o direito de exigir a prestação de contas quem despender dinheiro seu a pagar despesas alheias ou não totalmente próprias;
III – Faz atos de administração de herança quem pagou despesas de herança, quer seja com o acordo de todos os herdeiros ou a pedido destes, quer seja por acordo de cabeça de casal legal, ou a pedido deste;
IV – A atuação como “cabeça de casal de facto” traduz-se nos factos, ainda que esporádicos, de um herdeiro pagar despesas de herança, com dinheiro seu, ou de receber receitas da herança;
V – E o direito legal e processual de exigir ou de prestar contas aos restantes herdeiros só cessa depois do acerto extra-processual de tais contas com todos os herdeiros ou com o cabeça de casal;
VI – A prestação de contas pelo cabeça de casal, na dependência de inventário, nos termos do art.947º do CPC, nada tem a ver com a prestação de contas de quem faz atos de administração de herança, nos termos do art.941º de CPC;
VII – A sentença recorrida violou o art. 941º do CPC.»
*
Os Réus BB e CC apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
*

1.4. Questão a decidir
Tendo presente que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a única questão a decidir consiste em saber se a Autora é parte legítima nesta ação.

***

II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentação de facto

Os factos relevantes para a apreciação da apontada questão são os descritos no relatório e ainda o concreto teor da petição inicial, onde se mostra alegado, na parte relevante, o seguinte:

«
A A. e os RR. são os herdeiros da herança deixada por EE, falecido em .../.../2009, conforme habilitação feita pelas declarações de cabeça de casal prestadas no Inventário nº ...6, da Notária FF, da ..., cfr. teor do documento que se junta sob o nº 1; (…)

A prestação de contas espontânea, requerida pela A., que não é cabeça de casal, não pode decorrer por dependência do processo de Inventário Notarial, tendo de decorrer nesse Juízo, que é o competente, por ser a residência habitual do “de cujus”, cfr. teor do documento que se junta sob o nº 3;

Sucede que a A., desde a data do óbito do seu pai, e a pedido da cabeça de casal, efectuou o pagamento das seguintes despesas da herança, com dinheiro próprio, conforme documentos que junta sob os nºs 4 a 25:
Em 24/03/2010 pagou € 4.443.48;
Em 15/07/2010 pagou € 2.410,12;
Em 17/08/2010 pagou € 124,35;
Em 20/08/2010 pagou € 288,37;
Em 20/10/2010 pagou € 2.381,00;
Em 27/10/2010 pagou € 332,86;
Em 01/06/2011 pagou € 400,00;
Em 24/11/2011 pagou € 6.044,00;
Em 02/12/2011 pagou € 2.000,00;
Em 05/12/2011 pagou € 426,15;
Em 05/12/2011 pagou € 1.733,95;
Em 27/03/2012 pagou € 196,80;
Em 31/12/2012 pagou € 1.353,00;
Em 20/05/2013 pagou € 530,00;
Em 08/08/2013 pagou € 424,80;
Em 17/12/2014 pagou € 8.062,65;
Em 24/03/2015 pagou € 25.750,00;
Em 04/08/2015 pagou € 450,18;
Em 17/08/2015 pagou € 5.200,00;
Em 07/05/2016 pagou € 123,98;
Em 31/07/2017 pagou € 616,66; e
Em 26/12/2017 pagou € 245,00
TOTAL DAS DESPESAS € 63.537,35 (seiscentos e três mil quinhentos e trinta e sete euros e trinta e cinco cêntimos)

Despesas essas que são da responsabilidade de todos os herdeiros, na proporção dos seus quinhões.

Além das despesas supra referidas, pagas pela A., a pedido da cabeça-de-casal na administração da herança;
10º
A A. pagou as despesas do funeral e sufrágio do seu pai, autor da herança. No valor de 4.506,40€ (quatro mil quinhentos e seis euros e sessenta cêntimos) – cf. doc. ...6 a ...8
11º
Além dos pagamentos diretos feitos pela A., supra referidos, e no total de 68.04,75€;
12º
A A. transferiu da sua conta para a conta da cabeça-de-casal e a pedido desta para pagar despesas da administração da herança: - cf. doc. ...9 a ...7
Em 29/01/2011 transferiu € 500,00
Em 25/02/2011 transferiu € 500,00
Em 29/03/2011 transferiu € 500,00
Em 27/04/2011 transferiu € 500,00
Em 29/06/2011 transferiu € 500,00
Em 31/08/2011 transferiu € 500,00
Em 28/09/2011 transferiu € 500,00
Em 29/10/2011 transferiu € 500,00
Em 30/11/2011 transferiu € 500,00
Em 29/12/2011 transferiu € 500,00
Em 30/01/2012 transferiu € 500,00
Em 13/06/2014 transferiu € 13.098,22
Em 19/09/2014 transferiu € 1.755,00
Em 13/04/2015 transferiu € 500,00
Em 03/01/2017 transferiu € 6.502,08
TOTAL DAS TRANSFERÊNCIAS € 27.355,30 (vinte e sete mil trezentos e cinquenta e cinco euros e trinta cêntimos)
13º
Pelo que os pagamentos e transferências feitas pela A para as despesas de administração da herança e pagamento do funeral e sufrágio do autor da herança somam a quantia de 95.399,05€ (noventa e cinco mil trezentos e noventa e nove euros e cinco cêntimos), que devem ser pagos pelos herdeiros, na proporção dos seus quinhões.»
**

2.2. Do objeto do recurso
Na decisão recorrida considerou-se que a Autora, nos pagamentos e nas transferências que realizou, agiu sempre a pedido da cabeça de casal, ou seja, da administradora da herança, e, sendo assim, não tem qualquer obrigação de prestar contas. Por isso, concluiu-se que, nos termos em que foi configurada a ação, a inexistência dessa obrigação é fundamento de ilegitimidade.
Vejamos, por isso, a questão da legitimidade processual.
O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar, interesse este que se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação – art. 30º, nºs 1 e 2, do CPC.
Em conformidade com o disposto no nº 3 do artigo 30º do CPC, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
No que concerne à ação de prestação de contas, existe preceito específico a estabelecer por quem pode ser proposta.
Nos termos do artigo 941º do CPC, «a ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se».
Por conseguinte, o autor de uma ação de prestação de contas só pode ser quem tenha o direito de exigi-las ou quem tenha o dever de prestá-las.
Inexistindo uma genérica norma legal que determine quando é que alguém tem de prestar contas e a quem, a resposta terá de ser encontrada nas normas de direito substantivo que imponham a obrigação de prestar contas, sendo certo que a mesma pode também derivar de negócio jurídico.
Não tendo sido invocado o dever de prestar contas emergente de negócio jurídico, importa apurar se existe disposição especial da lei a prever que numa situação como a descrita na petição inicial destes autos o demandante tem a obrigação de prestar contas.
Sucede que a Autora não invoca qualquer disposição legal que lhe imponha a obrigação de prestar contas e também facilmente se verifica que inexiste um preceito a estabelecer tal obrigação de direito material.
No âmbito de uma herança quem tem a obrigação de prestar contas é o cabeça de casal, conforme previsto no artigo 2093º, nº 1, do Código Civil (CCiv). O cargo de cabeça de casal, que se defere ex lege (art. 2080º, nº 1, do CCiv), é intransmissível, admitindo-se apenas que alguns actos de administração possam ser exercidos através de mandatário.
Como a Autora não é cabeça de casal na herança aberta por óbito do seu pai, mas sim a sua mãe, aqui 1ª Ré, como tal nomeada e que exerce tais funções no âmbito inventário instaurado, não tem, a esse título, a obrigação de prestar contas. Enquanto herdeira, pode exigir a prestação de contas à cabeça de casal, mas não as pode prestar espontaneamente nessa qualidade.
Por outro lado, segundo o artigo 2079º do CCiv, a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal, mas são igualmente conferidos poderes de administração aos sucessíveis em geral, todavia, apenas na fase de herança jacente[ii] - enquanto o sucessível não tiver aceitado ou repudiado a herança – e relativamente a providências urgentes de administração, ou seja, quando do retardamento das providências puder resultar prejuízo[iii], nos termos do artigo 2047º do CCiv (são igualmente atribuídos poderes de administração ao curador da herança jacente, situação que não está em causa nos autos – art. 2048º do CCiv)[iv].
Assim, sendo certo que é ao cabeça de casal que a lei impõe o dever de prestação de contas, se um herdeiro, no circunstancialismo previsto no artigo 2047º do CCiv, praticar providências de administração urgentes, pode ser-lhe exigida a prestação de contas sobre tais actos. É, por isso, linear que quem não administra, de facto ou de direito, a herança ou não tomou as apontadas providências urgentes de administração na fase de herança jacente não tem de prestar contas.

A Recorrente argumenta que «tem o direito de exigir a prestação de contas quem despender dinheiro seu a pagar despesas alheias ou não totalmente próprias».
No seu entender, sempre que alguém paga uma despesa da herança está a exercer um acto de administração dessa herança, pelo que tem a obrigação de prestar contas. Alude, no âmbito do recurso, a «atuação como “cabeça de casal de facto”». Segundo defende, o facto de um herdeiro, ainda que esporadicamente, «pagar despesas de herança, com dinheiro seu, ou de receber receitas da herança», faz dele um cabeça de casal de facto.
A ser como defende a Recorrente, é bom de ver que a par do cabeça de casal a quem a lei atribui tal cargo, teríamos tantos outros cabeças de casal quantos os herdeiros que adiantaram dinheiro para suportar despesas e encargos da herança ou que cobraram dívidas ou recolheram receitas da herança. Em consequência, haveria uma multiplicidade de ações de prestação de contas e o inventário teria um âmbito restrito.
Nada disso é curial, não tem base legal e é patente que a Recorrente confunde a obrigação de prestação de contas com o direito de exigir o pagamento de despesas eventualmente por si suportadas ou de reaver as quantias que transferiu para a conta da cabeça de casal. São duas realidades distintas e que se colocam em planos diferentes.
Em primeiro lugar, na senda da lição de José Alberto dos Reis[v], tem sido geralmente admitida a prestação de contas por quem administrou ou está a administrar bens (total ou parcialmente) alheios, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para estar a administrar os bens. É nesse sentido que é interpretada a referência no artigo 941º do CPC às “receitas obtidas” e “despesas realizadas por quem administra bens alheios”. Porém, fora da óbvia situação em que a administração resulta de poderes legais ou convencionais, é necessário que esteja alegada uma situação de administração de facto e que a obtenção da receita e a realização da despesa resulte do exercício dessa administração.
Em segundo lugar, o facto de um herdeiro suportar uma despesa ou encargo da herança não faz dele cabeça de casal, seja de facto ou de direito, ou, genericamente, administrador da herança. Do mesmo modo, quem paga dívidas, despesas ou encargos da herança ou adianta dinheiro ao cabeça de casal para este pagar despesas com a administração da herança não é, só por isso, administrador de bens alheios.
Mais, dificilmente a prática de tais actos a pedido do cabeça de casal consubstancia o exercício do cargo de cabeça de casal de facto ou sequer a administração de bens alheios.
Em terceiro lugar, a prestação de contas pode ser exigida de quem detém e administra a herança ou parte dos bens que compõem o património hereditário, ou que pratica actos urgentes de administração no condicionalismo previsto no artigo 1047º do CCiv, não obstante não ter a qualidade de cabeça de casal. Todavia, é necessário que essa pessoa (que peticiona a prestação de contas ou que espontaneamente se apresenta a prestá-las) alegue tal situação ou condicionalismo na petição inicial da ação de prestação de contas.
In casu, a questão da «administração de facto» foi apenas suscitada na resposta à exceção de ilegitimidade ativa e não resulta da petição inicial. Também a questão da «atuação como “cabeça de casal de facto”» não foi suscitada na petição, mas apenas na apelação, pelo que nem sequer foi submetida à apreciação do Tribunal recorrido e, enquanto questão nova, é insuscetível de ser apreciada em via de recurso.
Na petição inicial a Autora limitou-se a alegar que a pedido da cabeça de casal efetuou o pagamento de despesas da herança (v. arts. 7º e 10º) e que transferiu da sua conta para a conta da cabeça de casal, também a pedido desta, diversas quantias, com a finalidade de a cabeça de casal pagar despesas da administração da herança (art. 12º).
Ora, o alegado na petição inicial não representa o exercício, pela Autora, da administração da herança ou de parte dela. Se nos cingirmos ao que consta da petição inicial, não estamos perante actos de administração da herança praticados pela Autora, mas sim, quando muito, de empréstimos – contratos de mútuo – feitos a pedido de quem legal e legitimamente administra a herança, que é a cabeça de casal. Isso não consubstancia uma administração da herança ou o exercício do cargo, no plano fático, de cabeça de casal, mas sim uma atuação a pedido da 1ª Ré, na qualidade de cabeça de casal, com todas as repercussões que tal situação implica.
Por conseguinte, não foram alegados factos demonstrativos de uma administração de facto ou de qualquer outro acto gerador da obrigação de prestar contas.
Mais, a obrigação de prestar contas insere-se na obrigação de informação que recai sobre o sujeito a tal vinculado. Dito de outro modo, a obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma decorrência da obrigação de informação: se alguém tem a obrigação de prestar informação sobre actos que praticou na administração de bens total ou parcialmente alheios, então tem o dever de prestar contas desses actos. Por conseguinte, o processo de prestação de contas relaciona-se com a obrigação a que alguém se encontra vinculado de prestar a outrem contas dos seus actos.
Sendo assim, não se vislumbra a que título a Autora estaria vinculada ao dever de prestar informação aos Réus, enquanto co-herdeiros e, no que respeita à 1ª Ré, cônjuge meeira, sobre actos que praticou a pedido da cabeça de casal, no exercício por esta do referido cargo e que efetivamente administra a herança.

Concluindo, do exposto resulta que nenhuma censura merece a decisão recorrida.
Termos em que improcede a apelação.
**
2.3. Sumário

1 – A ação de prestação de contas só pode ser intentada por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las.
2 – É admitida a prestação de contas por quem administrou ou está a administrar bens total ou parcialmente alheios, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para administrar os bens.
3 – A prestação de contas pode ser exigida de quem detém e administra a herança ou parte dos bens que compõem o património hereditário, ou que pratica actos urgentes de administração no condicionalismo previsto no artigo 1047º do Código Civil, não obstante não ter a qualidade de cabeça de casal.
4 – Fora da óbvia situação em que a administração dos bens emerge de disposição legal ou de convenção, é necessário que esteja alegada uma situação de administração de facto e que a obtenção da receita e a realização da despesa resulte do exercício dessa administração.
5 – Não tem obrigação de prestar contas o herdeiro que na petição inicial da ação de prestação de contas por si intentada se limita a alegar que efetuou o pagamento de despesas e encargos da herança a pedido do cabeça de casal e que transferiu da sua conta para a conta do cabeça de casal, também a pedido deste, diversas quantias, com a finalidade de o cabeça de casal pagar despesas da administração da herança.
6 – Por isso, atenta configuração da relação controvertida constante da petição inicial, a inexistência da obrigação de prestação de contas é fundamento de ilegitimidade.
***

III – DECISÃO
Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pela Recorrente.
*
*
Guimarães, 15.12.2022
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Paulo Reis
Maria Luísa Duarte Ramos



[i] Utilizar-se-á a grafia do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[ii] V. noção de herança jacente no artigo 2046º do CCiv.
[iii] Actos urgentes de administração, restringidos temporalmente e em função da sua específica finalidade.
[iv] As providências a que se refere o artigo 2047º do CCiv têm uma finalidade transitória e muito limitada – neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, pág. 72.
[v] Processos Especiais, vol. II, Coimbra Editora, pág. 303.