I - Os indícios referidos no artigo 308.º do Código de Processo Penal podem definir-se como meios de prova que consubstanciam sinais da prática do crime, sendo certo que, para a decisão de pronúncia, a lei exige apenas a existência desses mesmos sinais, entendendo-se que existirá indiciação suficiente se o conjunto de elementos probatórios permitir formar convicção de que o arguido virá a ser condenado pela prática do crime que lhe é imputado.
II - Na criminalização da tentativa deverá excluir-se a punição da mera intenção, pelo que se revela essencial avaliar a conduta externa e objetiva desenvolvida pelo agente, com vista a determinar se a mesma se traduz na realização de atos de execução do crime que se lhe imputa e que decidiu praticar. Daqui se retira que as palavras – proferidas, aliás, em manifesto estado de exaltação – desacompanhadas da prática de atos voluntários idóneos a causar a morte, não constituem, por si só, indício suficiente do crime de tentativa de homicídio
Nos presentes autos de instrução que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de …-J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º660/20.6GASSB, foi proferido despacho de não pronúncia do arguido AA, identificado nos autos, pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p e p pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22º e 23º do CP.
Inconformado com tal decisão, veio o assistente, BB, interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
“A) O Tribunal Recorrido decidiu não pronunciar o Arguido AA pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.os 1 e 2, al. c) e h), 22.º e 23.º, todos do Código Penal.
B) Entendeu o Tribunal a quo que a prova produzida não indicia de forma suficiente a prática deste concreto crime, ainda que, a mesma prova, seja suficiente para indiciar a prática, pelo mesmo arguido, de um crime de ofensa à integridade física, ameaça e injúria.
C) Entendendo o Tribunal Recorrido que se mantém como mais provável a versão do acidente com a viatura automóvel do que a utilização deste como arma contra o corpo e vida do Assistente.
D) Com o devido respeito, tal resulta de uma leitura enviesada da prova produzida, alicerçada numa atuação descuidada por parte dos militares da GNR que acorreram ao local que, ao invés de tentarem recolher a prova da prática de um crime (ou mais, como assumidamente, tiveram conhecimento) optaram por tratar do sucedido como acidente.
E) Que nunca foi. O Arguido agiu com intenção de matar.
F) É isso que resulta dos elementos probatórios juntos aos autos, a saber, o auto de notícia (fls. 4 a 7), participação de acidente (fls. 8 a 13), croqui (fls. 10), queixa apresentada pelo aqui Recorrente (fls. 14 a 17), documentação clínica referente ao episódio de urgência no Hospital de … em … (fls. 18 a 20), inquirição do queixoso e aqui Recorrente (fls. 93 a 95), inquirição de CC (fls. 105 a 107), inquirição de DD (fls. 109 e 110), inquirição de EE (fls. 111 e 112), inquirição de FF (fls. 113 a 115), inquirição de GG (fls. 118 e 119), inquirição de HH (fls. 112), exame médico-legal (fls. 148 a 150), inquirição de II (fls. 200 e 201) e inquirição de JJ (fls. 202 e 203), bem como a reportagem fotográfica e a certidão do IPMA juntos aos autos com o requerimento de abertura de instrução e as declarações do Assistente já em sede de instrução.
G) Diga-se que a testemunha DD, cujo depoimento constante de fls. 109 e 110, esclarece perfeitamente o que aconteceu.
H) Citando a própria decisão recorrida que se socorre deste elemento probatório: “O denunciado disse-lhe para sair da frente, que iria desgraçar a sua vida, mas que ia matar o ofendido. Acabou por ter de sair do caminho para não ser atropelado, gritando para o ofendido para que saísse da estrada, porque iria ser atropelado. Este teve que se proteger atrás de um poste, onde, momentos depois, o denunciado embateu violentamente com a viatura.”
I) O Tribunal a quo adianta também como argumento para a tese de acidente o facto de “a viatura ter ficado imobilizada a pouca distância do local do embate, o que só pode ter ocorrido porque circulava devagar”.
J) Acrescentando ainda, sem qualquer razão de ciência que o justifique, que “se a viatura circulasse a uma velocidade elevada, os danos na mesma teriam sido superiores, não se limitando a uma raspagem na lateral e a um rebentamento do pneu (que pode ser causado por inúmeros fatores)”.
K) Ao invés de se lançar em juízos conclusivos o Assistente pretende aqui apresentar uma verificação efetiva dos dados objetivos constantes do processo, nomeadamente, do croqui de fls. 10.
L) Como se referiu no próprio requerimento de abertura de instrução, a traseira da viatura saltou 1,10m do local de embate.
M) A viatura partiu parte de um poste de betão!
N) Também não havia obstáculos na via que impedissem a visibilidade, nem havia nada que impedisse que o Arguido parasse a sua viatura em segurança.
O) O Assistente estava do lado contrário ao da circulação da viatura.
P) A única justificação para que haja um embate no lado esquerdo é o Arguido ter voluntariamente e propositadamente virado o carro nessa direção.
Q) Nessa direção, a única pessoa que ali se encontrava era o Assistente.
R) Não havia ninguém, nem qualquer entrada, cruzamento, buraco na estrada, que justificasse essa mudança de direção.
S) “Ele guinou na minha direção já frações de segundo antes de ele me bater.” Tomada de declarações ao Assistente em 29.06.2022, de minutos 11:03 a 11:05
T) Ou seja, a mudança de direção é propositada, consciente e com a clara intenção de atingir o Assistente.
U) Desta forma, entende o aqui Recorrente que os factos imputados e os elementos probatórios recolhidos, são suficientes para dar por indiciada a factualidade aduzida no ponto III do requerimento de abertura de instrução e, em consequência, imputar ao Arguido a prática do já mencionado”.
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que pronuncie o arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, nºs 1 e 2, alíneas c) e h), 22.º e 23.º, todos do CP.
*
O recurso foi admitido.
Notificados o Ministério Público e o arguido da interposição do recurso, apenas o Ministério Público apresentou resposta, tendo pugnado pela sua improcedência e pela consequente manutenção da decisão recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
“1.Interpôs o assistente BB recurso da douta decisão instrutória proferida a fls. 348-353 v.º dos autos supra epigrafados, que, no que aqui ora relevará, determinou, ao abrigo do disposto no art.º 308.º, n.º 1, segunda parte, do Código de Processo Penal, a não pronúncia do arguido AA pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos art.ºs 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, als. e) e h), 22.º e 23.º do Código Penal, que lhe havia sido imputado pelo primeiro no requerimento de abertura de instrução de fls. 267-276 v.º (283-292 v.º) dos mesmos autos, sendo que pugna tal recorrente, a final, no sentido de dever aquela decisão ser revogada e, consequentemente, substituída por outra que pronuncie o mencionado arguido pelo cometimento de semelhante ilícito criminal;
2. Ora em causa no presente recurso estará aquilatar da existência nos autos de indícios suficientes da prática, por parte do arguido AA, dos factos consubstanciadores do mencionado crime de homicídio qualificado, na forma tentada, pelo qual devesse o mesmo sujeito processual ter sido pronunciado, sendo que desde já se refere entendermos ser de sufragar in totum o entendimento perfilhado pela Meritíssima Juiz de Instrução Criminal;
3. Alegando o recorrente que «a testemunha DD, cujo depoimento constante de fls. 109 e 110, esclarece perfeitamente o que aconteceu», são, porém, diferentes as declarações prestadas pelo primeiro e pela dita testemunha relativamente ao sucedido, designadamente, no que tange à condução efectuada pelo arguido AA ao longo dos cerca de 50 metros percorridos em recta antes do embate no poste atrás do qual o mesmo recorrente se escondeu em fracções de segundo com vista a evitar ser colhido, sendo, desde logo, certo que o mencionado recorrente refere nas declarações prestadas em sede de instrução que o veículo conduzido por aquele arguido veio a acelerar desde o início de tal recta até ao local do embate, dizendo, nesse sentido, a título meramente exemplificativo, que «isto é a recta toda que faz desde lá de baixo até cá acima, são 50 metros a acelerar na minha direcção» (23m06s a 23m13s);
4. Sucede que nas declarações prestadas na fase de inquérito relatou a mencionada testemunha DD ter existido uma breve troca de palavras entre si e o arguido AA sensivelmente a meio daquele troço de 50 metros (o que é incompaginável com a versão do recorrente), dizendo, nesse sentido, designadamente, a fls. 110, que: «constatou o retorno do AA. Entrou na estrada, que dá acesso á obra, tendo o depoente se dirigido para o caminho e se colocado no meio do acesso, no sentido de tentar impedir a sua passagem. Parado no meio desse acesso, solicitou a AA que tivesse calma, que as situações não se resolveriam daquela forma e que iria desgraçar a sua vida. AA, completamente alterado, gritou para sair da frente, que iria desgraçar a sua vida, mas eu mato esse gajo, e que tinha de resolver a situação com o BB. Ao verificar que iniciou a marcha e que acelerou na sua direção, teve de saltar contra a vedação da obra, de forma a evitar ser atropelado. Ao mesmo tempo que saltou, gritou para BB fugir do local, uma vez que o AA o iria atropelar. O BB que se encontrava a cerca de 20 metros, só teve tempo de se proteger, entre um poste e um muro ali existente. Em segundos AA embateu violentamente contra o poste, onde se encontrava resguardado o BB»;
5. Mas absolutamente crucial para questionar a versão do recorrente será o declarado por este com o intuito de justificar o facto de, pretendendo então o arguido AA, segundo aquele, atropelá-lo mortalmente, tanto que acelerou (sempre) na sua direcção, ter o veículo conduzido pelo mesmo arguido ficado danificado não na parte da frente mas antes, e ao invés, na parte lateral esquerda, designadamente, junto ao pneu traseiro, o qual também rebentou;
6. Relembre-se que o recorrente afirmou que o veículo conduzido em aceleração pelo arguido AA invadiu, na faixa de rodagem em causa, o sentido oposto àquele em que deveria circular, na direcção do primeiro, com vista a colhe-lo, ou seja, o lado esquerdo da dita faixa, atento o seu sentido de marcha, dado encontrar-se do referido lado, perto de um muro aí existente, o mesmo recorrente, sendo que este, quando estava à distância de dois passos do mencionado muro, e apercebendo-se da eminência do seu atropelamento, deu então, em fracções de segundo, tais passos, ficando encostado ao muro e escondido atrás de um poste, sucedendo que o referido arguido, vendo essa movimentação repentina, veio a dar uma súbita guinada no veículo que conduzia – necessariamente, para a esquerda – na direcção do referenciado recorrente e do novo local para onde ele se havia deslocado nos últimos instantes;
7.Tal é o sentido inequívoco das declarações prestadas pelo recorrente em sede de instrução, designadamente, ao referir, a título meramente exemplificativo, que «e assim que eu me desvio o carro guina na minha direcção, conforme guina na minha direcção ele bate lateralmente» (10m41s a 10m46s), «porque eu me desviei e ele guinou, e ele guinou na mesma na minha direcção já fracções de segundo antes de me bater, bom, ou seja, eu estou aqui, ele vem com o carro na minha direcção, ele prestes a estar a chegar eu desvio-me e encosto-me ao muro, assim que eu me encosto-me ao muro ele dá mais uma guinada» (11m00s a 11m13s) e «quando ele vem aqui a chegar ao pé de mim eu encosto-me para ali, é quando ele dá uma pequena guinada e vem a raspar dentro do poste» (23m16s a 23m21s);
8. Ora, temos semelhante explicação como não verosímil, sendo certo que, tendo o arguido AA, segundo a versão do recorrente, conduzido sempre o veículo que tripulava na direcção do referido recorrente, inclusive corrigindo a sua trajectória quando aquele se escondeu atrás do dito poste, dificilmente se concebe que não tenha tal veículo na sequência do ocorrido embate ficado danificado na parte da frente, sendo que mesmo sopesando a aludida guinada para a esquerda junto a tal poste não se vê como fosse possível, considerando, designadamente, os escassos centímetros que separam este último do dito muro, o constante das fotografias juntas a fls. 294-298 e a suposta alta velocidade então imprimida, em aceleração contínua, a esse veículo, que não tivesse a mencionada viatura ficado serissimamente danificada/destruída na zona da esquina da frente esquerda e na parte lateral esquerda, ao invés de apresentar os danos, não muito significativos, documentados nas referenciadas fotografias;
9. Anote-se ainda que o recorrente declarou na queixa apresentada a fls. 14-17, relatando então o sucessivo desenrolar dos acontecimentos, que «[o] Sr. AA, mesmo após ter embatido no poste e ter danificado a sua viatura, continuava a gritar no interior da sua viatura que me iria matar hoje ali. Tentou abrir a porta do carro e sair», sendo que, de modo diverso, pois que, afinal, segundo é possível inferir, nada terá ouvido o arguido dizer em momento anterior àquele em que o mesmo AA tentou abrir tal porta, referiu o primeiro nas declarações prestadas em sede de instrução, na imediata sequência à colocação da questão por parte da Meritíssima Juiz de Instrução Criminal se «o senhor ouviu alguma coisa dita por ele de dentro do carro»: «assim que ele abre a porta é logo a primeira coisa que ele diz “eu vou-te matar seu filho de puta, eu vou acabar com a tua vida aqui” (…), estamos aqui, é assim, ele abre a porta e são as primeiras palavras» (17m29s a 17m34s e 17m39s a 17m44s);
10. Certo é que, conforme fls. 11, desde logo declarou o arguido AA à GNR de … que na referida ocasião «ao ter me apercebido que o Sr. BB circulava na via publica e atendendo a dificuldade de falar com este Senhor para que ele pague as dividas para comigo, dirigime a ele para falarmos sobre uma forma de ele pagar o que me deve. Ao conduzir o meu carro em direcção ao Sr. BB fiz uma travagem brusca… e porque o pavimento estava molhado… ao tentar imobilizar o meu veiculo perdi o control do mesmo e fui embater no poste EDP», importando ab initio salientar que o referido órgão de polícia criminal fez constar da participação de acidente de viação que veio a elaborar, constante de fls. 8-9, no que concerne às condições de aderência ao pavimento, que este último se encontrava então, efectivamente, «[m]olhado»;
11. Abstraindo-nos agora daquela que tenha sido a intenção do arguido AA, encontra semelhante versão factual acolhimento no que tange a determinados aspectos objectivos em depoimentos prestados por diversas testemunhas, a saber: CC declarou que «ouviu um barulho de uma travagem brusca de uma viatura seguida de um embate» (fls. 105-107), FF declarou que «ouviu uma travagem e de seguida uma batida em algo» (fls. 113-115) e JJ, militar da GNR, declarou que «o piso estava bastante enlameado», acrescentando ainda que, «na sua opinião, a viatura não se deslocava a grande velocidade, até porque, a distância entre o local de embate e o local monde se encontrava é muito curta. Ou seja, a viatura deslocava-se muito devagar. Olhando para a forma como o acidente ocorreu, bem como, a intensidade do embate, é de opinião de que não existiu qualquer dolo no embate, pelo que, a versão apresentada pelo condutor lhe parece coerente» (fls. 202-203);
12. Afigura-se-nos pretender o recorrente exponenciar aquela que será a responsabilidade criminal do arguido AA com reporte aos factos que são objecto dos autos, sendo que a credibilidade do primeiro resulta manifestamente, no mínimo, beliscada quando, por exemplo, refere a testemunha II, militar da GNR, que «apercebeu-se de que, o suposto suspeito da prática dos factos, se aproximava, com uma postura de conflito. Antevendo que pudesse ocorrer qualquer problema, avisou-o para não se aproximar, o que o mesmo acatou. Nessa altura, o ofendido, que se encontrava a falar ao telemóvel, disse que estava a ser agredido, o que não corresponde à verdade» (fls. 200-201), sendo que também o colega daquela JJ, já acima referenciado, declarou que «enquanto se encontrava no local da ocorrência, apesar dos ânimos estarem bastante exaltados, não ocorreu qualquer agressão por parte do suspeito ao ofendido na sua presença» (fls. 202-203);
13. Nada constituindo o mínimo suporte da versão do recorrente senão as declarações do seu amigo e colega de trabalho DD, sempre se diga que a certidão do IPMA de fls. 293 refere apenas ser de parecer que na zona de …, tendo chovido na véspera, «não tenha ocorrido precipitação» no dia 27.11.2020 (data dos factos aqui controvertidos), tal não obstando a que pudesse estar o local do acidente húmido/molhado, senão, mesmo, minimamente enlameado, tendo em conta a humidade na dita zona em período já nocturno e a proximidade de obras, não se estranhando que a velocidade pouco significativa tenha o veículo “escorregado” sem deixar evidentes rastos de travagem (aos quais inexiste referência pela positiva ou pela negativa, questão essa não sanada pelas fotografias juntas, sendo que daquela constante de fls. 294 resulta aparentarem os pneus estar sujos);
14. Chega, inclusive, o recorrente ao ponto de dizer que nada afirmou o arguido AA quanto a ter travado, descurando, porém, totalmente a declaração de fls. 11 anexa à participação de acidente de viação, que aquele manuscreveu e assinou, bem assim que as testemunhas CC e FF não ouviram a travagem que as mesmas referiram, de modo não questionável, ter ouvido (sendo irrelevante o facto de não ter a testemunha EE logrado ouvir tal, dado o «ruido produzido pela máquina com que laborava», cfr. fls. 111-112, retirar ao próprio, e apenas a ele, audição para tanto);
15. Retira-se igualmente da motivação do recurso que o recorrente entende constituir cabal respaldo para a sua versão a localização do veículo conduzido pelo arguido AA após o embate, resultando da primeira que o mesmo recorrente se encontra deveras impressionado pelo seguinte facto: «a traseira da viatura saltou 1,10m do local de embate». Vejamos, porém, outro número ainda mais desconforme com a credibilidade de tal versão. Distância do eixo dianteiro esquerdo do veículo ao local provável do embate (poste de iluminação): 60 centímetros! Ora, tendo o recorrente sustentado desde sempre que «[o] Sr. AA acelerou o carro em alta velocidade na minha direção» (vide fls. 14) e não efectuou qualquer travagem, bem assim nas declarações prestadas em sede de instrução, explicando o acidente, que, «conforme bate na roda, o carro é projectado para trás de (?). Física! Vem em velocidade, embate, reacção!» (11m33s a 11m42s), não se vê como possam quaisquer leis da física explicar semelhante ínfimo distanciamento de cerca de meio metro (ao invés de uma ou mais dezenas de metros, como seria, em termos de normalidade, expectável) relativamente a um veículo conduzido a tão elevada velocidade e que nem trava!...
16. Também os danos no poste de iluminação e no veículo, nomeadamente, o rebentamento do pneu, não impressionam sobremaneira, sendo certo que, respectivamente, vendo-se nas citadas fotografias alguns fragmentos do poste caídos no chão, desconhece-se, porém, se tal se deve sequer ao embate ora em questão, sucedendo, mesmo, não serem perceptíveis naquele quaisquer marcas de destruição causadas pelo maior impacto da viatura na parte lateral esquerda, na zona acima da cava da roda traseira, não é significativa a danificação sofrida pelo veículo na referida parte lateral (uma amolgadela) e o rebentar de um pneu pode ocorrer em situações de muito menor impacto como o passar por cima de um buraco na estrada;
17. Apreciando semelhante questão da prática por parte do arguido AA do crime contra a vida aqui em apreço (que logo num momento inicial foi imputado pelo recorrente), designadamente, da suficiente indiciação nos autos desse ilícito criminal, havíamos tomado já posição no sentido ora sufragado aquando da prolação do despacho de encerramento do inquérito e, posteriormente, na fase de instrução, em sede de debate instrutório, sendo que afigura-se-nos ser, neste momento, de manter, in totum, o entendimento então expendido, em absoluta concordância, aliás, com toda a fundamentação explanada pela Meritíssima Juiz de Instrução Criminal na douta decisão instrutória de fls. 348-353 v.º entretanto objecto de recurso;
18. Ora, sempre se deverá entender ser, por demais, exígua a prova do cometimento por parte do arguido AA dos factos consubstanciadores do dito crime de homicídio qualificado, na forma tentada, sucedendo, assim, que, mostrando-se este, de modo manifesto, insuficientemente indiciado nos autos, é de sufragar semelhante juízo indiciário subjacente à decisão de, nessa conformidade, não pronunciar, na referida parte, tal sujeito processual – efectivamente, como refere o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.10.2015, Proc.º n.º 202/13.0GAVLC.P1,Relator: Neto de Moura (vide o site http://www.pgdlisboa.pt/, em anotação ao art.º 308.º do Código de Processo Penal), «[o]s indícios suficientes para submissão do arguido a julgamento devem ser particularmente qualificados, permitindo concluir que existe uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento».”
*
O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do recurso.
*
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II – Fundamentação.
II.I Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir:
- Saber se, face à matéria de facto suficientemente indiciada nos autos, se encontram verificados os pressupostos de que depende a imputação ao arguido de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p e p pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22º e 23º do CP e se, consequentemente, o mesmo deverá ser pronunciado pela prática do referido crime.
II.II - A decisão recorrida.
Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que releva para a apreciação do recurso:
(…) III – Da fundamentação de facto
Factos suficientemente indiciados constantes da acusação do Ministério Público:
- Todos os vertidos na acusação do Ministério Público, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
Factos suficientemente indiciados do RAI
-Nenhuns com relevância para a presente decisão que não constam já do despacho de acusação.
Motivação da matéria de facto
Apreciemos agora os factos em análise e a prova recolhida e produzida no inquérito e na instrução.
O presente inquérito teve origem no Auto de Notícia (cf. fls. 4 a 7), elaborado pela GNR de … onde é descrita uma ocorrência no dia 27/11/20, dando conta que BB declarou que sofreu uma agressão por parte de AA, na zona abdominal, bem como, danos no seu automóvel, sem motivo aparente. Refere-se ainda no auto de notícia que o denunciado AA afirmou que o denunciante tinha um compromisso para com ele, referente a pagamentos de um trabalho que havia feito e que esperava que este lhe pagasse há cerca de três meses e que, apesar das inúmeras tentativas de contactá-lo, o denunciante não falou consigo e não efetuou tal pagamento. Quando o viu no local dos factos, conduziu a sua viatura na sua direção com o objetivo de falar com o denunciante. Inadvertidamente e sem que que algo o previsse, perdeu o controlo da viatura, como se esta perdesse a aderência ao solo e acabou por colidir com um poste de eletricidade em cimento. O denunciado apresentava-se visivelmente transtornado, com dificuldade em exprimir-se e com um discurso entrecortado por lágrimas. Afirmou que não tinha intenção de agredir alguém ou provocar danos. Tratou-se de um reflexo toldado pelos nervos, por se encontrar numa situação de carência difícil, devido à falta de pagamento aliada à situação atípica de pandemia e à crise financeira existentes, com consequências no bem estar da esposa e filhas.
Consta ainda do auto de notícia que do referido acidente resultaram danos na lateral esquerda da viatura, bem como, num pneumático.
Apesar da situação estar tensa, os Militares conseguiram manter uma postura de respeito entre todos, não ocorrendo qualquer agressão enquanto ali se encontravam.
É ainda mencionado que o denunciante não apresentava quaisquer ferimentos visíveis e que apresentava um discurso coerente, sem indícios de mau estar generalizado, o que foi confirmado pelos bombeiros que se deslocaram ao local.
Foi elaborada uma Participação de Acidente (cfr. fls. 8 a 13) onde consta a descrição do acidente transmitida pelo condutor, AA. Este declarou que ao aperceber-se que o ofendido circulava na via pública e devido à dificuldade em falar com o mesmo para que lhe pagasse o que lhe devia, dirigiu-se a este para falarem sobre a forma de o mesmo pagar o que deve. Ao conduzir o carro na direção do ofendido fez uma travagem brusca e porque o pavimento estava molhado, ao tentar imobilizar o veículo, perdeu o controlo e foi embater no poste da EDP.
Foi elaborado pelo OPC croqui do acidente onde constam as medições efetuadas no local do embate (fls. 10).
BB apresentou uma Queixa (cf. fls. 14 a 17), onde relatou que no dia dos factos ( 27/11/20), estava no local com o objetivo de reunir com o diretor de uma obra que ali decorria, DD. Viu a chegada do denunciado que saiu da sua viatura e atirou um” pedregulho” contra o vidro do condutor da viatura que o denunciante utilizava, quebrando-o. Logo de seguida, abandonou o local. Pouco depois regressou e entrou na estrada na sua direção, tendo DD permanecido no meio da estrada com o intuito de impedir que aquele continuasse na sua direção para o atropelar. O arguido acelerou e DD teve de saltar para junto de uma vedação ali existente. Entretanto o denunciado acelerou a viatura na sua direção, em alta velocidade, dizendo que o ia matar hoje ali. Com a aproximação do carro escondeu-se atrás de um poste de eletricidade para não ser morto com o embate da viatura. O denunciado bateu com a viatura no poste com tamanha violência que um pneu rebentou. A viatura foi projetada para fora. Após o embate o Sr. AA continuava a gritar, de dentro da viatura, que o matava ali. Enquanto o denunciado se debatia para sair da viatura, dizia “Vais morrer aqui hoje, já tinha pensado que hoje eu acabava com a tua vida. Hoje eu vou matar-te”. Continuou atrás de si e só parou quando DD o agarrou. Mesmo depois de agarrado, também por outras pessoas que ali apareceram, o denunciado dizia “Larguem-me que esse senhor vai ser morto hoje por mim. Vais morrer aqui seu filho da puta. Eu vou matar-te”.
O denunciante pediu apoio à GNR através do telefone, tendo-se apercebido que o denunciado se dirigia a ele, com um tubo na mão, dizendo “É agora que te vou matar”. O mesmo espetou-lhe o tubo na zona abdominal/baço, o que lhe provocou uma dor aguda. De seguida, o denunciante caiu em cima dele e, com ambos no chão, agarrou-o e desferiu-lhe vários socos, tendo sido agarrado por outras pessoas que, entretanto, o vieram acudir. O mesmo dizia “Deixem-me matar este filho da puta. Eu estrago a minha vida, mas mato esse filho da puta hoje.”
Entretanto, chegou a GNR que tomou conta da ocorrência. Como estava a sentir dores, telefonou para o 112, para pedir uma ambulância. Apercebeu-se que o denunciado vinha na sua direção, acompanhado por um Militar da GNR. Quando o mesmo passou por si, agrediu-o com um golpe na cabeça. Enquanto esperava pela ambulância, apercebeu-se que se juntavam pessoas amigas do denunciado e que se insurgiam contra si.
Juntou documentação clínica respeitante ao episódio de urgência no Hospital de … em …, no dia 27/11/2020, pelas 19h34m ( fls. 18 a 20) da qual resulta a inexistência de lesões ao nível cerebral e abdominal, tendo sido diagnosticada dor aguda devida a trauma, com prescrição de paracetamol.
BB foi inquirido (cf. fls. 93 a 95), tendo reiterado o teor da queixa por si apresentada.
Foi inquirido CC (cf. fls. 105 a 107), o qual declarou que se encontrava a arrumar as suas ferramentas e que ouviu um barulho de travagem brusca de uma viatura seguida do embate num poste. Aproximou-se do local e viu o denunciado a dirigir injúrias e ameaças ao ofendido, não conseguindo concretizá-las. Pouco depois, apercebeu-se de que os mesmos se encontravam agarrados, tendo sido necessário separá-los. Nada mais viu.
Foi inquirido DD (cf. fls. 109 e 110), o qual, em suma, disse que, no dia dos factos, por saber do conflito entre o ofendido e o denunciado, pediu a este, telefonicamente, que não se dirigisse ao local. Todavia, a determinada altura, apercebeu-se que o mesmo se aproximou do veículo do ofendido e arremessou um “pedregulho” contra o vidro da frente, voltando a entrar na sua viatura e abandonado o local. A determinada altura, apercebeu-se que o denunciado regressou e que entrou numa estrada de acesso à obra, conduzindo a sua viatura. DD colocou-se no meio da estrada a fim de o impedir de avançar. O denunciado disse-lhe para sair da frente, que iria desgraçar a sua vida, mas que ia matar o ofendido. Acabou por ter de sair do caminho para não ser atropelado, gritando para o ofendido para que saísse da estrada, porque iria ser atropelado. Este teve que se proteger atrás de um poste, onde, momentos depois, o denunciado embateu violentamente com a viatura. Tal situação não provocou qualquer ferimento. Após esta situação gerou-se uma confusão, tendo o denunciado saído do local. Todavia, logo depois, pegou num tubo de PVC e dirigiu-se ao ofendido, desferindo-lhe um golpe na zona abdominal. Disse que ainda se apercebeu de que o denunciado desferiu um murro ou um encontrão na cabeça do ofendido, quando o mesmo se encontrava a aguardar a chegada da ambulância.
Procedeu-se à inquirição de EE (cf. fls. 11 e 112), o qual declarou que nada viu, com exceção da viatura danificada junto à roda traseira do lado esquerdo.
FF foi inquirido (cf. fls. 113 a 115), tendo declarado que quando se encontrava a trabalhar, ouviu uma travagem e uma batida em algo. Dirigiu-se ao local onde o seu patrão DD pediu ajuda para imobilizar o condutor do veículo e evitar que se dirigisse ao ofendido com intenção de o agredir. O denunciado estava bastante exaltado e dizia que aquele lhe devia dinheiro e que o matava. Disse que a situação acalmou um pouco e que, a determinado momento, viu o denunciado a pegar num tubo e a dirigir-se na direção do ofendido. Todavia, não viu qualquer agressão.
GG, esposa do ofendido, prestou as suas declarações (cf. fls. 118 e 119). Não assistiu aos factos. Quando já se encontrava no local onde ocorreram os factos, apareceu o pai do denunciado, o qual começou a dizer que o ofendido era “um filho da puta” e “era um canalha” e que o seu filho o devia ter matado.
HH, filho do ofendido, também prestou declarações (cf. fls. 122), tendo, no essencial, corroborado as declarações de sua mãe GG.
AA foi constituído arguido e interrogado nessa condição (cf. fls. 130 a 132), tendo exercido o seu direito ao silêncio.
KK e LL foram constituídos arguidos e interrogados nessa condição (cf. fls. 180-181 e 186-187, respetivamente), os quais exerceram o seu direito ao silêncio.
BB foi sujeito a exame médico-legal (cf. fls. 148 a 150) onde se refere a inexistência de lesões ou sequelas.
Foi inquirida II (cf. fls. 200 e 201), Militar da GNR que se deslocou ao local no dia dos factos, tendo declarado que foram chamados para o local devido a uma situação de agressões. No local, falou com o ofendido que disse que estava com dores e ligou para o 112. Nesse momento, apercebeu-se que o arguido se aproximava, com postura de conflito, tendo-lhe dito para se manter afastado, o que o mesmo acatou. Nessa altura, o ofendido, que se encontrava a falar ao telefone, disse que estava a ser agredido, o que não correspondia à verdade.
Foi inquirido JJ (cf. fls. 202 e 203), Militar da GNR que também foi ao local no dia dos factos, tendo declarado que, ali chegado, apercebeu-se que se encontrava uma viatura acidentada, sendo que a mesma apresentava danos na parte lateral esquerda, julgando que o embate ocorreu na zona do pneumático frontal do lado esquerdo, continuando a raspar até ao final da porta. O piso estava bastante enlameado e, na sua opinião, a viatura não se deslocava a grande velocidade, até porque, a distância entre o local de embate e o local onde a viatura se encontrava era muito curta. Ou seja, a viatura deslocava-se devagar. Olhando para a forma como o acidente ocorreu, na sua opinião, não existiu qualquer dolo de embate. Nega que tenha ocorrido qualquer agressão ao ofendido enquanto se encontrava no local.
Do exposto, tendo presente a dinâmica do acidente vertida no auto de notícia e na respetiva participação, bem como o teor das declarações dos militares da GNR que observaram o local e a viatura após o embate, teremos que concluir que há indícios suficientes de que o arguido conduzia devagar e terá perdido o controlo da viatura quando travou ou tentou travar, devido ao piso húmido e escorregadio. Não obstante o ofendido afirmar que o piso estava seco, consta do auto de participação do acidente que estava molhado, o que é confirmado pelo militar da GNR que foi ao local e pelo próprio arguido. Acresce que, pode observar-se nas fotos juntas pelo próprio ofendido e, segundo o mesmo tiradas no local e logo após o embate, de fls. 294, 295 e 298, que o piso estava, pelo menos, húmido ( senão molhado) o que poderá resultar de precipitação ( o que não é excluído pela informação do IPMA de fls. 293 que apenas refere “ somos de parecer (…) que não tenha ocorrido precipitação) ou da humidade da noite, já que, tendo os factos ocorrido no fim do mês de novembro, como é do conhecimento público, nesta altura do ano, as noites são habitualmente frias e húmidas na zona de …. Comparando o mesmo piso fotografado de dia, de fls. 296 e 297, é possível ver a diferença, mostrando estas fotos um chão seco ao contrário das anteriormente referidas. Apesar de não existirem rastos de travagem no chão, o que pode suceder se a viatura circulava devagar, o arguido afirma que travou, travagem esta que foi confirmada por duas testemunhas presenciais, FF e CC. Ao travar, perdeu o controlo do veículo e embateu com a lateral do mesmo no poste de eletricidade. Resulta ainda do croqui, da descrição do acidente que consta do auto de notícia e do depoimento do militar da GNR, JJ, que a viatura ficou imobilizada a pouca distância do local do embate, o que só poderá ter ocorrido porque circulava devagar, ao contrário do afirmado pelo ofendido e pela testemunha DD. Por outro lado, se a viatura circulasse a uma velocidade elevada, os danos na mesma teriam sido superiores, não se limitando a uma raspagem na lateral e um rebentamento do pneu ( que pode ser causado por inúmeros fatores). E se objetivo do arguido fosse atropelar o assistente como este afirma, o embate da viatura contra o poste atrás do qual o ofendido estava, teria sido de frente e não na lateral do veículo.
Como bem refere o Ministério Público, as declarações da testemunha DD, que reproduzem a versão do ofendido dos factos, não são suficientes para infirmar a demais prova mencionada, pois a sua perceção relativa à intenção do arguido de matar o assistente é apenas isso mesmo, uma perceção. Acresce que resulta dos autos que o mesmo estava emocionado e enervado com toda a situação, sendo possível que tenha tido uma perceção dos factos diferente da que teria se estivesse mais calmo e sereno. É de sublinhar, no sentido de o depoimento desta testemunha não se mostrar isento, que, tal como o ofendido, afirmou que o arguido agrediu BB na presença da GNR, o que é negado pelos militares presentes e que o embate foi violento, facto que é infirmado pela demais prova como acima se explanou.
Prova produzida na instrução
Nesta instrução, foram juntos pelo assistente documentos ( fls, 293 a 304), entre os quais as fotos do local do acidente, tiradas de noite, após o facto e, posteriormente, durante do dia, que permitem visualizar o local do acidente.
Foram tomadas declarações ao assistente que, no essencial, manteve a sua versão dos factos já anteriormente apresentada e que também consta do seu RAI, nada tendo acrescentado à prova já produzida. O assistente prestou as suas declarações de forma muito emocionada, pouco objetiva e eivada de considerações e apreciações subjetivas. Não conseguiu explicar, de forma convincente, a dinâmica do acidente, nomeadamente, a razão de o embate da viatura ter ocorrido na lateral desta e não na parte frontal se, como afirma, o objetivo do arguido era atropelá-lo, tendo, para o efeito, conduzido a sua viatura, a alta velocidade, na sua direção.
Importa mencionar que o arguido estava transtornado, com lágrimas nos olhos, quando a polícia chegou ao local, tendo justificado o seu estado com o facto de estar com dificuldades financeiras, que punham em causa o bem estar da família( mulher e filhas) no período da pandemia em que muitas pessoas perderam, de forma repentina, os seus rendimentos e que, segundo o próprio, o ofendido devia-lhe dinheiro que tanta falta lhe fazia. Este desespero é muitas vezes a causa de atos irrefletidos e impulsivos, que poderá explicar a ação do arguido, deslocando-se uma vez ao local, abandonando-o e voltando momentos depois gritando e agindo da forma indiciada e que consta da acusação pública e da acusação particular.
Assim e quanto o crime de homicídio na forma tentada imputado pelo assistente ao arguido, compulsadas todas as diligências realizadas na investigação e na instrução não foi recolhida prova bastante da existência, desde logo, do elemento subjetivo do tipo. Temos, pois, que reconhecer que os elementos factuais que se colheram são manifestamente insuficientes para sustentar a dedução de uma acusação contra o arguido por crime de homicídio na forma tentada com a mínima probabilidade de condenação.
Entendemos assim, sopesando toda a prova testemunhal e documental carreada para os autos nas fases do inquérito e da instrução, ser de manter in totum o juízo indiciário subjacente à prolação do controvertido despacho de arquivamento/acusação.
(…)
Voltando ao caso concreto verificamos que, quanto o crime de homicídio na forma tentada imputado pelo assistente ao arguido, compulsadas todas as diligências realizadas na investigação e na instrução não foi recolhida prova bastante da existência, quer quanto ao elemento objetivo, quer quanto ao elemento subjetivo do tipo.
Cremos, pois, que não há qualquer censura a fazer à acusação/arquivamento do Ministério Público.
DECISÃO
Pelo exposto, ao abrigo do artigo 308, n.º 1, segunda parte, do CPP, mantendo-se o despacho de acusação pública e a acusação particular que não foram objeto do RAI, decido não pronunciar o arguido AA pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p e p arts. 131º, 132, 1 e 2, e) e h), 22º e 23º C. Penal.”.
***
II.III - Apreciação do mérito do recurso.
A finalidade da fase da instrução, conforme resulta do artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, é a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, o arguido a julgamento.
Atendendo ao preceituado no artigo 308.º do Código de Processo Penal, será proferida decisão de pronúncia quando a prova produzida permitir concluir pela presença de indícios suficientes da prática de um crime, sendo certo que o juízo acerca da suficiência dos indícios decorre da apreciação da prova realizada quer em fase de inquérito, quer em fase de instrução.
Importa precisar o conceito de indícios suficientes.
Conforme evidencia Carlos Adérito Teixeira (1), a lei parece ter acolhido o entendimento jurisprudencial e doutrinal do Código de Processo Penal de 1929, mas conferiu-lhe também uma “natureza eminentemente jurídica”, cuja “densificação” e “carácter operativo” não se mostram de fácil recorte.
Nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, os indícios deverão considerar-se suficientes quando justificam a realização de um julgamento, sendo que, atendendo à gravidade das consequências e das repercussões da submissão de uma pessoa a julgamento, dever-se-á analisar com especial cuidado a verificação da suficiência dos indícios. Esta a razão pela qual, “no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de proteção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional” (2) (artigo 3.º daquela Declaração e 27.º da Constituição da República Portuguesa).
Relativamente ao conceito de “possibilidade razoável” de o arguido vir a ser condenado, tem existido alguma divergência na doutrina e na jurisprudência, sendo que a posição que tem merecido maior acolhimento é a da probabilidade predominante. Com vista à concretização deste conceito, relevam os contributos de Germano Marques da Silva, que considera que uma possibilidade razoável é uma probabilidade mais positiva do que negativa (3) e de Figueiredo Dias, segundo o qual, “os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”(4).
Os indícios referidos no artigo 308.º do Código de Processo Penal podem, assim, definir-se como meios de prova que consubstanciam sinais da prática do crime, sendo certo que para a decisão de pronúncia a lei exige apenas a existência desses mesmos sinais, tendo vindo a ser entendido que a possibilidade razoável de uma futura condenação deve afigurar-se como uma possibilidade mais positiva do que negativa.
Os indícios serão, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de o arguido vir a ser condenado ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição. Dito de outro modo, existirá indiciação suficiente se o conjunto de elementos probatórios permitir formar convicção de que o arguido virá a ser condenado pela prática do crime que lhe é imputado.
*
Nos presentes autos vem o arguido acusado e pronunciado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p e p pelo artigo 143º, nº 1 do CP e de um crime de ameaça agravada, p e p pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a) do CP e não pronunciado pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p e p pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22º e 23º do CP.
É tão somente a decisão de não pronúncia que constitui o objeto da nossa análise. O crime que o assistente pretende ver imputado ao arguido é o crime de homicídio qualificado na forma tentada, pelo que importa convocar nesta sede as normas penais que, respetivamente, contêm a previsão do tipo legal em causa (artigo 131º, 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e h) do CP), das formas de dolo (artigo 14º do CP) e a regulamentação da tentativa (artigo 22º do CP). Preceituam tais disposições legais da seguinte forma:
“Artigo 131.º Homicídio Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.”
“Artigo 132.º
Homicídio qualificado
1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
2 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(…)
e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;
(…)
h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;(…).”
“Artigo 14.º Dolo
1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar.
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente atuar conformando-se com aquela realização.
“Artigo 22.º Tentativa
1 - Há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.
2 - São atos de execução: a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.”
*
A análise das normas transcritas permite-nos desde logo apreender que a subsunção ao tipo legal de tentativa de homicídio demanda a verificação de uma conduta voluntária do agente – exigindo-se o dolo em qualquer das suas formas – consubstanciada na prática de atos execução adequados a provocar a morte de um terceiro, sem que tal resultado chegue a verificar-se. Assim, temos que, nos termos previsto no artigo 22º, nº 1, do CP “Há tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”, sendo que, nos termos do nº 2 da mesma norma legal, os atos de execução são “os que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime” (al. a), “os que forem idóneos a produzir o resultado típico” (al. b), ou “os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, foram de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores” (al. c).(5) Deverá excluir-se a punição da mera intenção, pelo que se revela essencial avaliar a conduta externa e objetiva desenvolvida pelo arguido, com vista a determinar se a mesma se traduz na realização de atos de execução do crime que se lhe imputa e que decidiu praticar.
Analisando a situação dos autos à luz das identificadas normas, importa apurar se os indícios recolhidos através da análise da prova produzida nas fases de inquérito e de instrução deverão considerar-se suficientes para que o arguido seja pronunciado pela prática do aludido crime.
A decisão recorrida pronunciou-se pela insuficiência de tais indícios. Para rebater tal juízo indiciário e a consequente decisão de não pronúncia do arguido pelo crime de tentativa de homicídio qualificado, invocou o assistente a argumentação sustentada nos seguintes pontos:
1 - Desvalorização do conteúdo do depoimento da testemunha DD – testemunha que terá presenciado os factos e que, no entender do recorrente, corrobora a versão pelo mesmo apresentada no requerimento de abertura de instrução – e valorização indevida de declarações do arguido (que o recorrente afirma não terem sido prestadas) e dos depoimentos das testemunhas JJ, CC e FF e a consequente falta de suporte da conclusão constante da decisão recorrida no sentido de que o arguido travou e de que a sua viatura circulava devagar;
2 - Desvalorização da certidão do IPMA, constante dos autos a fls. 293, relativa às condições atmosféricas do dia dos factos e das imagens colhidas pelo próprio assistente no local em tal dia, para efeito de apuramento do estado do terreno, em contraponto com a valorização, a tal propósito, de declarações do arguido (que o recorrente afirma não terem sido prestadas) e do depoimento de um dos militares da GNR que compareceram no local;
3 - O assistente encontrava-se do lado contrário ao da circulação da viatura do arguido, pelo que a única justificação para que o embate se tenha dado no lado esquerdo consiste no facto de o arguido ter, voluntaria e propositadamente, virado o carro nessa direção;
4 - O embate da viatura do arguido no poste atrás do qual se refugiou o assistente não foi consequência de um acidente, mas sim de uma ação voluntária do arguido movido pelo intuito de o atropelar e de o matar, tanto mais que assim que saiu do carro a primeira coisa que fez foi tentar agredir o assistente, ao mesmo tempo que dizia que o matava;
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Analisada a prova produzida nos autos – concretamente lidas as súmulas das declarações do assistente (prestadas em 14.01.2021) e dos depoimentos das testemunhas CC (prestado em 12.02.2021), JJ (prestado em 20.12.2021), II (prestado em 29.12.2021), DD (prestado em 22.03.2021), EE (prestado em 14.04.2021), FF (prestado em 14.04.2021), GG (prestado em 15.04.2021) e HH (prestado em 15.04.2021) produzidos na fase inquérito, e ouvida a gravação das declarações do assistente (prestadas em 29.06.2022) produzidas na fase de instrução – analisemos mais de perto cada um e tais argumentos.
No que diz respeito à apreciação dos depoimentos das testemunhas DD, JJ, CC e FF realizada na decisão recorrida (6), não se nos afigura a mesma merecedora dos reparos feitos pelo recorrente. Efetivamente, não obstante a testemunha DD ter presenciado o sucedido, não retiramos do seu depoimento a corroboração integral da versão trazida aos autos pelo assistente, mormente no que tange à condução efetuada pelo arguido AA ao longo dos cerca de 50 metros percorridos em reta antes do embate. Conforme assinala o Ministério Público na sua resposta ao recurso, se, por um lado o recorrente afirma que o veículo conduzido pelo arguido veio a acelerar desde o início de tal reta até ao local do embate, por outro lado, a testemunha DD relatou no seu depoimento ter existido uma troca de palavras entre si e o arguido AA, tendo aquele tentado demover este dos seus intentos, o que, segundo tal testemunha, terá acontecido sensivelmente a meio da reta. Acrescentou ainda que, ao ver o arguido iniciar a marcha, gritou ao assistente para fugir – quando este se encontrava a cerca de 20 metros – para que não fosse atropelado.
Ora, como bem refere o tribunal a quo na sua decisão, “a sua [da testemunha DD) perceção relativa à intenção do arguido de matar o assistente é apenas isso mesmo, uma perceção” – que, aliás, se revela perfeitamente compreensível atendendo não só ao contexto em que os factos aconteceram mas também às palavras proferidas pelo arguido – não se revelando, porém, suficiente para abalar a credibilidade da restante prova produzida acerca dos factos objetivos dos quais podemos inferir a intenção do agente, designadamente a velocidade a que seguia o veículo e a existência de travagem antes do embate. Note-se, aliás, que em momento algum das suas declarações a testemunha DD faz referência à existência ou inexistência de travagem. Na verdade, tal testemunha receou que o arguido AA, atendendo ao estado de exaltação em que se encontrava, atropelasse o assistente e que pretendesse matá-lo. Porém, a análise da conduta objetiva que veio a verificar-se não nos permite confirmar tal intencionalidade, tendo-se manifestado decisivos no juízo formulado acerca da conduta do arguido os depoimentos de JJ – um dos militares da GNR que compareceram no local – que afirmou que as consequências do embate não se revelaram compatíveis com a condução do veículo a velocidade excessiva, e das testemunhas CC e FF, que atestaram terem ouvido uma travagem seguida de um embate, o que corroborou a versão do arguido nas declarações que prestou à GNR e que se encontram anexas ao auto de notícia.
Diremos ainda a este propósito, que os autos não revelam quaisquer razões para descredibilizarmos os referidos depoimentos (7), sendo ainda certo que se nos afigura perfeitamente coerente e sustentada a conclusão constante da decisão recorrida no sentido de que a viatura do arguido circulava devagar, quer porque ficou imobilizada a pouca distância do local do embate – concretamente a 1 metro e 10 centímetros – quer porque os danos verificados no veículo – uma raspagem na lateral e a um rebentamento do pneu – não se revelam compatíveis com um embate de um veículo que seguisse a velocidade elevada.
Quanto à alegada desvalorização da certidão do IPMA, constante dos autos a fls. 293, junta aos autos com o requerimento de abertura de instrução, relativa às condições atmosféricas verificadas no dia dos factos e no dia anterior e das imagens alegadamente colhidas pelo próprio assistente no local em tal dia, para efeito de apuramento do estado do terreno, nenhuma razão assiste ao recorrente, pois que, para além de a certidão do IPMA não atestar, obviamente, que o piso se encontrava seco ou molhado, referindo apenas que tal Instituto emite parecer no sentido de que na zona de …, choveu na véspera e não choveu no dia dos factos (8), não temos igualmente por seguro que as fotografias alegadamente colhidas pelo próprio assistente no dia e local dos factos demonstrem que o piso estava seco. Acresce que o militar da GNR, JJ, no seu depoimento, afirmou que “o piso estava bastante enlameado”, não se descortinando qualquer razão para pôr em causa tal depoimento.
Refere o recorrente que a única justificação para que o embate se tenha dado no lado esquerdo consiste no facto de o arguido ter voluntaria e propositadamente virado o carro nessa direção. A este propósito, e na sequência do que deixámos já consignado no que diz respeito à velocidade do veículo e à travagem realizada, diremos apenas que, ao contrário do que propugna o recorrente, o facto de o embate se ter verificado no lado esquerdo do veículo poderá ter resultado da circunstância de o arguido ter perdido o controlo da viatura, conforme o próprio declarou.
Finalmente, consignamos que, em nosso entender, a conclusão apresentada pelo assistente no recurso no sentido de que o embate da viatura do arguido no poste atrás do qual aquele se refugiou não foi consequência de um acidente, mas sim de uma ação voluntária do arguido movido pelo intuito de o atropelar e de o matar, por todas as razões acima expostas, não encontra sustentação cabal na factualidade objetiva indiciada, sendo certo que o facto de o arguido ter saído do carro repetindo que matava o assistente não legitima a conclusão de que tentou, efetivamente, fazê-lo através de um atropelamento.
As palavras – proferidas, aliás, em manifesto estado de exaltação, conforme sobejamente indiciado nos autos – desacompanhadas da prática de atos voluntários idóneos a causar a morte, não constituem, por si só, indício suficiente da prática do crime de tentativa de homicídio que o recorrente pretende ver imputado ao arguido. Relembramos que na criminalização da tentativa deverá excluir-se a punição da mera intenção, revelando-se, pois, essencial avaliar a conduta externa e objetiva desenvolvida pelo arguido, com vista a determinar se a mesma se traduz na realização de atos de execução do crime que se lhe imputa e que decidiu praticar, o que in casu não sucedeu.
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São estas as razões pelas quais acompanhamos a posição adotada na decisão recorrida no sentido de que o conjunto da prova produzida nas fases de inquérito e da instrução não nos permite considerar suficientes os indícios da prática pelo arguido AA do crime de tentativa de homicídio qualificado na forma tentada na pessoa do assistente, uma vez que o referido acervo probatório não sustenta a convicção de que o arguido virá a ser condenado pela prática do crime que lhe é imputado. De facto, a par da inexistência de prova cabal de atos de execução do tipo legal – uma vez que não se encontra suficientemente indiciado que o arguido tenha conduzido o veículo, sem travar, na direção do assistente – não se apresenta como inequívoca a existência de dolo, precisamente porque tal elemento subjetivo do tipo, não tendo sido assumido pelo arguido, não encontra suporte objetivo do qual possa inferir-se.
Revela-se, assim, a nosso ver, inultrapassável a conclusão de que não se encontra suficientemente indiciado nos autos que o arguido AA terá, voluntariamente, dirigido o seu veículo na direção do assistente com intuito de o atropelar e de, assim, lhe causar a morte, não devendo tal arguido ser pronunciado e responder em julgamento pelos factos e referências normativas que lhe são imputados no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.
Nesta conformidade e pelas razões expostas, somos a concluir que os autos não fornecem os elementos probatórios suficientes para o preenchimento do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p e p pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22º e 23º do CP, pelo que o recurso improcederá, mantendo-se a decisão recorrida de não pronúncia do arguido por tal crime.
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III- Dispositivo
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em manter integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (art.º 515.º, n.º 1, alínea b) do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).
(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)
Évora, 15 de dezembro de 2022
Maria Clara Figueiredo
Fernanda Palma
Maria Margarida Bacelar
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1 Carlos Adérito Teixeira, “Indícios Suficientes. Parâmetro de Racionalidade e “Instância” de Legitimação Concreta do Poder-Dever de Acusar” in Revista do CEJ, n.º 1
2 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de junho de 2006, disponível em www.dgsi.pt, no qual se consignou também que “a sujeição de alguém a julgamento não é um ato neutro, nem moralmente nem juridicamente, sendo sempre um incómodo, se não mesmo um vexame”.
3 Germano Marques da Silva, “Do Processo Penal Preliminar”, Editora Minerva, Lisboa, 1990.
4 Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1.º vol., Coimbra Editora, 1974
5 A respeito da punibilidade da tentativa ver Figueiredo Dias in Direito Penal Português, Parte Geral, Tomo I, GESTLEGAL, 3ª edição, 219, páginas 802 a 849 e Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, Lisboa, 2018, páginas 116 e 117 505.
6 A este propósito consignou a decisão recorrida essencialmente que “as declarações da testemunha DD, que reproduzem a versão do ofendido dos factos, não são suficientes para infirmar a demais prova mencionada, pois a sua perceção relativa à intenção do arguido de matar o assistente é apenas isso mesmo, uma perceção. Acresce que resulta dos autos que o mesmo estava emocionado e enervado com toda a situação, sendo possível que tenha tido uma perceção dos factos diferente da que teria se estivesse mais calmo e sereno. É de sublinhar, no sentido de o depoimento desta testemunha não se mostrar isento, que, tal como o ofendido, afirmou que o arguido agrediu BB na presença da GNR, o que é negado pelos militares presentes e que o embate foi violento, facto que é infirmado pela demais prova como acima se explanou.”
7 Revelando-se absolutamente inócua a circunstância de a testemunha EE ter afirmado não ter ouvido a travagem devido ao barulho produzido pela máquina coma qual trabalhava; o facto de a travagem não se ter revelado audível pela pessoa que se encontrava a trabalhar com a referida máquina, não significa, obviamente, que outras pessoas não a pudessem ter ouvido, como terá acontecido com as testemunhas CC e FF.
8 O que não obsta a que o piso no local do acidente pudesse estar molhado e/ou enlameado, levando em conta o mês em que os factos ocorreram (novembro) e a humidade que se verifica na zona de …, sobretudo durante a noite.