PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
EXCEÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
CONTRATO DE EMPREITADA
Sumário

I - Não há fundamento legal para limitar o procedimento de injunção aos casos que se entendam ser simples ou excluí-lo perante litígios que se tenham por complexos.
II - A maior ou menor complexidade das questões suscitadas do seguimento da oposição à injunção não é de molde a poder entender-se que se verifica erro na forma de processo ou uma exceção dilatória inominada, que fundamentem a absolvição do requerido/réu da instância.

Texto Integral

Processo n.º 22114/22.6YIPRT.P1

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.

Recorrente - V..., Lda.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório
Através de Requerimento de Injunção, veio a sociedade V..., Lda. requerer a notificação da sociedade P..., SA, no sentido de lhe ser paga as quantias de 27.001,59€ (capital), 1.419,34€ (juros de mora), 40,00€ (outras quantias) e 153,00€ (taxa de justiça paga), invocando um contrato de “fornecimento de bens ou serviços”, datado de “14.04.2021”, para tanto expondo, ora em síntese, a seguinte factualidade: “(...) exerce a atividade de fabricação de Componentes para Calçado e arrendamento de bens imobiliários. No exercício de tal atividade, a Requerente e Requerida estabeleceram uma relação comercial, através da qual Requerente forneceu artigos do seu fabrico à Requerida. Especificamente, os constantes das seguintes faturas, que remeteu à Requerida (...) que perfazem a quantia de 27.001,09€. Decorridas as datas de vencimento, a Requerida não procedeu a qualquer pagamento. Como até esta data não pagou qualquer quantia, pretende obter o pagamento da quantia de 27.001,09€, à qual acresce juros de mora comerciais, vencidos e vincendos, que nesta data se computam em 1.419,34 €. Peticiona ainda a Requerente a quantia de 40,00€ a título de indemnização pelos custos suportados com a cobrança da dívida ao abrigo do art. 7.º, do Decreto-Lei n.º 62/2013 de 10 de Maio. Cálculo de Juros: (...) Capital Inicial: 27.001,59€. Total de Juro: 1.419,34€. Capital Acumulado: 28.420,93€”.

A requerida deduziu oposição, sustentando, além do mais, o incumprimento definitivo (pela requerente) e concluindo que “deve a presente ação ser julgada totalmente improcedente por não provada e em consequência absolver-se a requerida do pedido”.

Analisando os autos, o tribunal entendeu que “Compulsado o teor do requerimento de injunção e da oposição, resulta que a indemnização peticionada poderá não corresponder a mera dívida pecuniária emergente de obrigação contratual, já que se discute as características dos bens fornecidos, bem como a existência de defeitos, com a análise de toda a relação jurídica subjacente entre ambas as partes. Assim, notifique Autora e Ré para em dez dias, querendo, se pronunciarem sobre a exceção dilatória de erro na forma do processo”.

A requerente pronunciou-se no sentido de não existir erro na forma do processo, argumentando em sentido semelhante ao que apresenta em sede de recurso e salientando, como o faz agora, que, uma vez deduzida oposição pela requerida e convolado o procedimento de injunção, irrelevam as limitações formais anteriores e não ocorre, por maioria de razão, o erro na forma do processo. Igualmente, e em sentido semelhante, pronunciou-se a requerida, citando jurisprudência, salientando que deduziu oposição, e concluindo que não existe erro na forma do processo.

Na sequência, a 21.06.2022, veio a ser proferido o seguinte despacho (ora recorrido):
“Questão prévia – do erro na forma do processo. Após os articulados iniciais, foram as partes convidadas a pronunciar-se acerca da exceção dilatória de erro na forma do processo. Notificadas as partes para se pronunciarem sobre a invocada exceção, as mesmas pugnaram pela sua não verificação. De qualquer modo, tendo sido dado cumprimento ao art. 3.º, n.º 3, do CPC, mostra-se desde já possível a apreciação da aludida exceção. Vejamos.
O art. 1.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1/09 prevê a aprovação do “regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15 000, publicado em anexo, que faz parte integrante do presente diploma”. Por sua vez, o artigo 7.º define o conceito de injunção, no sentido de ser “a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro”. A providência injuntiva é, deste modo, aplicável: a) A requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 15.000,00€; b) A obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17.02 (entretanto revogado pelo DL. 62/2013, de 10.05).
No caso, a Autora recorreu ao requerimento de injunção, posteriormente transmutado em ação declarativa especial, com vista ao pagamento da quantia global de 28.613,93€. Tendo sido este o mecanismo ou meio processual escolhido, cumpre então aferir e ajuizar se o procedimento injuntivo constitui procedimento processual adequado a peticionar a restituição de determinado valor, despendido a título de prestação de bens, em virtude da existência de defeitos na execução de tal contrato. Conforme resulta do já exposto, a injunção constitui um “mecanismo marcado pela simplicidade e celeridade, vocacionado para a cobrança simples de dívidas, de molde a aliviar os Tribunais da massificação decorrente de um exponencial aumento de ações de pequena cobrança de dívida.” No caso concreto, todavia, a questão em litígio não constitui um simples e mero (in)cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente do contrato de entrega de bens. De facto, a aparente simplicidade do articulado inicial oculta uma discussão complexa relativa à apreciação dos trabalhos realizados e existência de defeitos e outros danos em consequência da má execução do trabalho pela Autora, bem como toda a relação comercial prévia subjacente entre ambas as partes. Em situação similar, decidiu acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30 de maio de 2019, proc. n.º 72782/18.6YIPRT.L1, disponível in dgsi, cujo entendimento perfilhamos “A controvérsia em equação nos presentes autos [discussão relacionada com contrato de empreitada, designadamente no que se refere ao seu não cumprimento ou conclusão por parte da empreiteira, e na não eliminação de desconformidades] está longe do processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial de injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo, em ações que normalmente se revestem de grande simplicidade”.
Pelo exposto, conclui-se que, pelas questões a decidir – eventual cumprimento defeituoso do contrato – a forma de processo escolhida não é a adequada, o que configura exceção inominada, impeditiva do conhecimento do mérito da causa e determinante de decisão de absolvição da instância, nos termos dos arts. 577 e 578, ambos do Cód. Proc. Civil. Deste modo, o Tribunal decide julgar procedente a aludida exceção e, em consequência, absolver a Ré P..., SA da instância. Valor da ação: 28.613,93€”.

II – Do Recurso
Inconformada, a autora veio recorrer, concluindo:
1 - O tribunal concluiu que pelas questões a decidir – eventual cumprimento defeituoso do contrato – a forma de processo não é a adequada.
2 - A recorrente não se conforma, uma vez que o tribunal incorreu em erro de julgamento e violou os arts. 1.º, 3.º e 17.º 3 do DL n.º 269/98, de 1 de setembro, o n.º 2 do art. 10.º do DL. n.º 62/2013 e os arts. 193, 196, 278, 546 n.º 2, e 577 todos do CPC.
3 - O DL n.º 269/98, que aprovou e regula os procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações emergentes de contratos tem por objeto o (in)cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, que não podem exceder metade do valor da alçada da relação (15.000,00€).
4 - Em 10.05.2013 foi alargada a possibilidade de as partes se socorrerem do procedimento de injunção para exigir o pagamento de obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, independentemente do valor, através da publicação do DL n.º 62/2013 que prevê no seu artigo 10.º n.º 1 que “O atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida e portanto,
5 - O fim e o objeto do procedimento de injunção está consagrado no artigo 7.º do DL 269/98 que “Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro.”
6 - Por sua vez, no DL n.º 62/2013 é nos arts. 2.º e 3.º que se encontra definido o âmbito subjetivo e objetivo de aplicação do recurso ao procedimento de injunção: O art. 2.º estabelece que “O presente diploma aplica-se a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais” (n.º 1), mas excluindo logo “Os contratos celebrados com consumidores” [n.º 2, al. a)]. Por sua vez, o art. 3.º estabelece as definições para efeitos desse diploma, entendendo-se por “«Transação comercial», uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração” [al. b)] e por “«Empresa», uma entidade que, não sendo uma entidade pública, desenvolva uma atividade económica ou profissional autónoma, incluindo pessoas singulares” [al. d)].
7 - Da conjugação dos referidos artigos decorre que, para que a providência de injunção possa ser decretada, é necessário o preenchimento dos seguintes pressupostos: 1. ser reclamado o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 15.000€ ou, 2. independentemente desse valor, créditos de natureza contratual emergentes de transações comerciais que deram origem ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços; 3. essas transações devem ter-se processado entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, mas já não com consumidores, considerando-se empresas aquelas organizações que desenvolvem uma atividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular.
8 - Por sua vez, decorre dos autos que a recorrente pretendia exigir através do procedimento de injunção movido contra a recorrida: - Pagamento de crédito, acrescido dos respetivos juros de mora; - Crédito esse emergente de uma transação comercial; - Transação comercial proveniente de contrato realizado entres empresas, no âmbito das suas atividades comerciais; - Pagamento de 40,00€ a título de indeminização pelos custos suportados com a cobrança da dívida, indemnização estipulada e prevista no art. 7.º Decreto-Lei n.º 62/2013 de 10 de maio.
9 - Encontram-se assim preenchidos pressupostos (objetivos e subjetivos) definidos nos art. 2.º e 3.º do DL. n.º 269/98 e no Decreto-Lei n.º 62/2013 de 10 de maio, pelo que mal andou o tribunal ao determinar a “(...) forma de processo escolhida pela Autora não é a adequada, o que configura exceção inominada, impeditiva do conhecimento do mérito da causa e determinante de decisão de absolvição da instância, nos termos dos arts. 577 e 578, ambos do Cód. Proc. Civil.”
10 - A verdade é que não existe qualquer norma, na lei geral ou especial, que determine que o procedimento de injunção, para além de estar destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos ou de obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, está dependente da maior ou menor complexidade das questões controvertidas subjacentes e que venham a ser alegadas em sede de oposição à injunção.
11 - Como refere Paulo Duarte Teixeira: “o critério de aferição da propriedade ou impropriedade da forma de processo consiste em determinar se o pedido formulado se harmoniza com o fim para o qual foi estabelecida a forma processual empregue pelo autor. Nesta perspetiva, a determinação sobre se a forma de processo adequada à obrigação pecuniária escolhida pelo autor ou requerente se adequa, ou não, à sua pretensão diz respeito apenas com a análise da petição inicial no seu todo, e já não com a controvérsia que se venha a suscitar ao longo da tramitação do procedimento, quer com os factos trazidos pela defesa quer com outros que venham a ser adquiridos ao longo do processo por força da atividade das partes”.
12 - Neste sentido veja-se ainda o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 21/02/2022, disponível in dgsi: “De acordo com o regime jurídico presentemente em vigor, o procedimento de injunção pode ter por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de valor não superior a €15.000,00 (a que se refere o artigo 1.º do Decreto-Lei no 269/98, de 1.09) ou, independentemente do valor da dívida, de obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10.05. II - A determinação do âmbito de aplicação do procedimento de injunção e da conexa ação declarativa - em que o mesmo se transmuta em resultado de oposição deduzida - faz-se em função da aferição de pressupostos objetivos e subjetivos definidos nos mencionados diplomas. III - A maior ou menor complexidade das questões controvertidas não configura um pressuposto autónomo da aplicabilidade das referidas formas processuais”.
13 - Face ao todo vindo de expor, apenas se pode concluir que verificados os pressupostos subjetivos e objetivos estabelecidos nos art. 2.º e 3.º do DL. n.º 269/98 e no DL n.º 62/2013 de 10 de maio, não tem relevância para o uso do procedimento de injunção e para ação em que este se convola, em momento posterior, a maior ou menor complexidade das questões controvertidas, que se lhe seguem, pelo que, não se verifica qualquer exceção dilatória de erro na forma do processo
14 - A sentença violou os arts. 1.º, 3.º e 17.º 3 do DL n.º 269/98, de 1 de setembro, o n.º 2 do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 62/2013 e os arts. 193, 196, 278, 546 n.º 2, e 577 todos do CPC e incorreu em erro de julgamento, pelo que deve a mesma ser revogada e em consequência deve ser proferido acórdão que determine o prosseguimento dos autos.
SEM PRESCINDIR
15 - No caso dos autos, a recorrente pretende obter o pagamento de obrigação pecuniária emergente de transação comercial, no valor de 27.001,59€.
16 - Prevê o n.º 2 do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 62/2013 que para as injunções destinadas à cobrança de obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais de valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determina a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum.
17 - O procedimento de injunção nos termos do n.º 2 do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 62/2013 tem assim de se transmutar numa ação declarativa sob a forma comum e seguir a sua tramitação e obedecer à sua finalidade.
18 - Ora, nos casos em que o procedimento de injunção se convola numa ação declarativa sob a forma comum, todo o seu processado anterior, desaparece, torna-se inexistente e inaplicável, pois esta deixa de revestir a forma especial. Para se aferir da adequada forma de processo, deve-se atender à finalidade do processo comum, que consiste em exigir “a prestação de uma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito” (ex vi al. b) do n.º 3, do art. 10.º do CPC)
19 - Tornam-se assim irrelevantes as limitações anteriores uma vez que, nessa fase, está-se perante um distinto contexto técnico e com diversas finalidades, pelo que não se pode falar em erro na forma do processo
20- Nesse sentido veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 14-02-2012 publicado em dgsi: “(...) remetidos os autos para o tribunal competente e aplicando-se o processo comum ordinário face à dedução de oposição ao pedido de injunção de valor superior à alçada da Relação (cf. o disposto no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro) a questão que consiste em saber se a transação comercial que esteve na origem do crédito reclamado é ou não daquelas que permitem a injunção, não exerce qualquer influência no mérito da causa, saber se o pedido de pagamento deve ou não deve proceder, nem exerce qualquer influência na tramitação da causa visto que estamos em processo comum e não em processo especial”.
21 - Contrariamente ao entendimento defendido, nos casos em que o procedimento de injunção se transmuta numa ação declarativa sob a forma comum, a maior ou menor complexidade dos factos da relação controvertida, não exerce qualquer influência na tramitação da causa, desde que a sua finalidade, definida no n.º 3 do art. 10.º do CPC seja respeitado, o que sucede no caso, pelo que nada obsta ao prosseguimento dos autos.
22 - A sentença violou os art. 1.º, 3.º e 17.º 3 do DL n.º 269/98, de 1 de setembro, o n.º 2 do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 62/2013 e os art. 10.º, 193, 196, 278, 546 n.º 2, e 577 todos do CPC e incorreu em erro de julgamento pelo que deve ser revogada e em consequência deve ser proferido acórdão que determine o prosseguimento dos autos.

Não houve resposta ao recurso, e este foi recebido nos termos legais. Foram dispensados os Vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito da apelação, cujo objeto, atentas as conclusões apresentadas pelo apelante, se traduz em saber se se verifica a exceção do erro na forma do processo (ou “exceção inominada, impeditiva do conhecimento do mérito da causa”) ou, porque se não verifica, a decisão deve ser revogada e os autos devem prosseguir os seus termos.

III – Fundamentação
III.I – Fundamentação de facto
Os factos resultantes do relatório antecedente mostram-se bastantes ao conhecimento do mérito do recurso.

III.II – Fundamentação de Direito
O Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, consagrou, ou melhor, consolidou, o procedimento de injunção[1], bem como a ação especial destinada a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias (AECOP). Posteriormente, o procedimento de injunção foi alargado, através do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro, a todas as transações comerciais entre empresas, independentemente do valor, em resultado da transposição da Diretiva 2000/35/CE. Este Decreto-Lei foi revogado pelo Decreto-lei n.º 62/2013[2], devendo as remissões legais feitas para aquele considerarem-se efetuadas para este. Assim, atendendo ao disposto nos artigos 2º, nºs 1 e 2, al. a), e 3º, al. b) deste último diploma, estarão em causa os créditos emergentes de transações comerciais, em que não seja parte um consumidor, concretamente os créditos emergentes de transações comerciais entre empresas. Mais recentemente a Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, determinou a obrigatoriedade de se especificar no requerimento de injunção a referência à transação comercial, sendo o caso.

Acrescente-se que, de acordo com a citada alínea b) do artigo 3.º, a “transação comercial” é a transação entre empresas, ou entre empresas e entidades públicas, destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração e, por outro lado – agora de acordo com o n.º 2 do artigo 10.º do mesmo diploma – estando em causa superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição ou a frustração da notificação (no procedimento de injunção) determinam a remessa dos autos para o tribunal, “aplicando-se a forma de processo comum”.

Conforme se retira da leitura da decisão apelada, foi entendimento do tribunal recorrido – em sentido divergente do que haviam sustentado ambas as partes – que, mesmo tendo havido remessa dos autos para distribuição (e consequente aplicação do processo comum[3]), porque a requerente (autora/recorrente) pretendia mais do que o pagamento de uma quantia pecuniária ou, dito de outra forma, porque os autos suscitavam questões que extravasavam essa pretensão de pagamento e se revelavam complexas, não estaríamos perante uma situação enquadrável no procedimento simplificado decorrente do Regime Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98 de 1 de setembro, citando expressamente, em arrimo desta conclusão, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 30 de maio de 2019 no Processo n.º 72782/18.6YIPRT.L1. E, efetivamente, neste acórdão, seguindo-se o que já se dissera no acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 21 de abril de 2016, e relatado pela também pela Desembargadora Teresa Prazeres Pais refere-se que “não se pode olvidar que determinar a propriedade ou impropriedade da forma de processo implica determinar se o pedido formulado se harmoniza com o fim para o qual foi estabelecida a forma processual adotada pelo autor, sob pena de se defraudar os próprios objetivos do legislador”, e vem a concluir-se que o “regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo, em ações que normalmente se revestem de grande simplicidade, não é adequado a decidir litígios decorrentes de contratos que revestem alguma complexidade….” e que o litígio ali em causa, reportando-se “à discussão do invocado contrato de empreitada quer no se refere ao seu não cumprimento ou conclusão por parte da empreiteira, não eliminação de desconformidades” traduz uma controvérsia que “está longe do processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo, em ações que normalmente se revestem de grande simplicidade”. E vem a decidir-se no acórdão aludido – expressamente citado pela primeira instância, repetimos – que a situação “configura uma exceção dilatória inominada, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos dos arts. 576º, nº 2 e 577º do Cód. do Proc. Civil e não de erro na forma de processo, ainda que, nesta segunda perspetiva, possa conduzir a idêntico resultado processual”.

Note-se que também a decisão recorrida, ao seguir estreitamente o acórdão que chama em seu apoio, conclui pela existência de uma exceção inominada, muito embora o tribunal haja notificado as partes para se pronunciarem sobre a exceção dilatória do erro na forma do processo e haja iniciado o despacho com a identificação dessa mesma questão decidenda. Mas, salvo o devido respeito, à decisão do recurso pouco relevo trará a questão dogmática de se considerar que ocorre a exceção dilatória do erro na forma do processo ou uma exceção inominada, sendo relevante, isso sim, apurar se os autos deviam prosseguir os seus termos ou, ao invés, se se mostra correta a absolvição da requerida/ré da instância.

Não obstante o respeito que é devido a entendimento diverso, pensamos que a decisão recorrida colheu sustentação em decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que não corresponderá ao sentido jurisprudencialmente maioritário e que, salvo melhor saber, confundirá simplificação processual com simplicidade do mérito da causa.

Efetivamente, não está em causa, no caso presente, qualquer contrato celebrado com consumidores, nem se olvida que estamos perante uma transação comercial, para efeitos dos diplomas legais aplicáveis. A razão da absolvição da instância restringe-se à impossibilidade de ser usado o procedimento de injunção, atenta a complexidade material da causa, mormente – como decorre do próprio despacho – depois de ter sido deduzida oposição.

Ora, como se refere no acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa de 13.04.2021 [Relator, Desembargador Diogo Ravara, Processo n.º 95316/19.0YIPRT.L1, dgsi], “A maior ou menor complexidade das questões controvertidas não configura um pressuposto autónomo da aplicabilidade das referidas formas processuais”[4]. No acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.11.2021 [Relator, Desembargador António Figueiredo de Almeida, Processo n.º 101460/20.2YIPRT.G1, dgsi] conclui-se de modo semelhante: “1) A eventual maior complexidade das questões suscitadas do seguimento da oposição à injunção, não é de molde a que se possa entender verificar-se erro na forma de processo, ou uma exceção dilatória inominada, que fundamentem uma absolvição do réu da instância; 2) Carece de fundamento legal determinar a limitação da aplicação do regime das injunções às situações que mostrem ser simples ou, se se preferir, de excluir destas as situações que revelem complexidade do litígio” e no acórdão desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto de 21.02.2022 [Relator, Desembargador Miguel Baldaia de Morais, Processo n.º 2737/21.4YIPRT.P1, dgsi] também se escreve: “II - A determinação do âmbito de aplicação do procedimento de injunção e da conexa ação declarativa - em que o mesmo se transmuta em resultado de oposição deduzida - faz-se em função da aferição de pressupostos objetivos e subjetivos definidos nos mencionados diplomas. III - A maior ou menor complexidade das questões controvertidas não configura um pressuposto autónomo da aplicabilidade das referidas formas processuais”. Acrescente-se que, ainda desta Secção e Tribunal, embora não versando a questão da complexidade da causa, ficou dito, além do mais, em acórdão de 13.07.2022[5] [Relator, Desembargador Augusto de Carvalho, Processo n.º 517/20.0YIPRT.P1, dgsi]: “I - O Decreto-Lei 32/2003, de 17 de Fevereiro, ampliou a aplicação do procedimento de injunção a todos os débitos resultantes de transações comerciais. II - Quando o débito emerge de transação comercial, qualquer que seja o valor daquele, o procedimento de injunção pode ser utilizado (...)”.

É certo que “a transmutação do procedimento de injunção em ação não legitima, só por si, a sua utilização indevida, por falta de um necessário pressuposto da sua utilização”[6], mas, salvo o devido respeito, não é pressuposto da sua utilização a complexidade material da causa e não se vê, no caso presente, que pressuposto esteja em falta, nem o tribunal recorrido – esquecendo a questão da complexidade – o aponta. Assim, “Transmutado o requerimento de injunção em ação declarativa de condenação com processo comum, inexiste obstáculo ao amplo conhecimento do mérito”[7].

Do que decorre, há que concluir que a requerente (recorrente) fez uso adequado e próprio do procedimento de injunção e que a invocada complexidade da causa, decorrente da oposição deduzida pela requerida não é fundamento para se considerar inapropriado o uso desse procedimento.

Daí que o recurso se revele procedente, havendo que revogar a decisão apelada e determinar o prosseguimento dos autos.

As custas do recurso, atento o proveito, são devidas pela apelante.

IV – Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, em conformidade, revoga-se o despacho recorrido e determina-se o prosseguimento dos autos, salvo se razão diversa, que não a invocada complexidade da causa, o impedir.

Custas pela recorrente.

Porto, 14.12.2022
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho
__________________
[1] Efetivamente, o procedimento de injunção fora inicialmente instituído pelo Decreto-Lei n.º 404/93 de 10 de dezembro, permitindo ao credor obter, de forma célere e simplificada, um título executivo, quando estivesse em causa o cumprimento de obrigações pecuniárias cujo valor não excedesse metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância.
[2] Com efeito, a Diretiva n.º 2000/35/CE fora revogada e substituída pela Diretiva n.º 2011/7/EU e o Decreto-Lei n.º 62/2013 “não criou um procedimento de injunção estruturalmente diverso do previsto no Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, limitando-se a estabelecer, em relação àquele, normais especiais, sobretudo quanto a contratos envolventes de transações comerciais de valor superior ao permitido pelo referido Decreto-lei, que só vai até €15.000” (Salvador da Costa, A Injunção e as Conexas Ação e Execução, 8.ª Edição, Almedina, 2021, pág. 164).
[3] Refere-se no despacho recorrido que o procedimento de injunção foi “posteriormente transmutado em ação declarativa especial” e, embora assim venham classificados os autos, não vemos como assim possa ser, atento o disposto no n.º 2 do artigo 10 do Decreto-Lei n.º 62/2013 e o valor reclamado pela requerente.
[4] No restante sumário vem dito: “I. A determinação do âmbito de aplicação do procedimento de injunção e da conexa ação declarativa previstos e regulados no regime aprovado pelo DL nº 269/98 e na Lei nº 62/2013 faz-se em função da aferição de pressupostos objetivos e subjetivos definidos nos mencionados diplomas (...) III. Uma sociedade comercial que pretende demandar outra sociedade comercial, pedindo uma quantia em dinheiro que segundo alega corresponde a parte do preço ajustado pela execução de uma empreitada que ambas ajustaram pode lançar mão do procedimento de injunção. IV. Nas circunstâncias referidas em III. não ocorre erro na forma de processo”.
[5] Em que intervieram como adjuntos os ora relator e 1.º Adjunto.
[6] Salvador da Costa, A Injunção e... cit., pág. 187.
[7] Salvador da Costa, A Injunção e... cit., pág. 188.