I - Considerando que no despacho recorrido se reconhece a existência de conexão processual, se reconhece a competência do tribunal da Relação para julgar o crime cometido pelo arguido, por ser juiz de direito, que não requereu instrução, e, por outro lado declara-se o tribunal da Relação incompetente para proceder à instrução requerida pelos restantes arguidos, sem que se pronuncie sobre a forma de tramitar estas duas fases processuais em separado, impunha-se, pois, que esclarecesse se para tal haveria separação de processos. Uma vez que o despacho, limitou-se a esclarecer o despacho de 21-01-2022, nos termos do art. 380.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, do CPP, não se verifica qualquer modificação essencial do decidido.
II - A qualidade funcional de um dos arguidos, juiz de direito, determinou o foro próprio e a necessidade de intervenção do tribunal da Relação, nos termos dos arts. 19.º do EMJ e 12.º, n.º 3, al. a) e n.º 6, do CPP, bem como a competência deste, por conexão, quanto aos demais arguidos, por força do disposto no art. 27.º do CPP.
III - Porém, uma vez deduzida a acusação e remetidos os autos à distribuição, o Exm.º Juiz Desembargador do tribunal da Relação, no despacho sob recurso, muito embora não ponha em causa a verificação dos pressupostos processuais de conexão, aceitando a competência atribuída por via das regras legais invocadas e ainda, ao abrigo das regras contidas nos arts. 24.º e ss., do CPP, no entanto, sem declarar aberta a instrução e sem se pronunciar sobre os requerimentos de instrução que lhe foram dirigidos pelos arguidos, declarou a incompetência hierárquica do tribunal da Relação para proceder à instrução requerida nos autos, determinando a sua remessa para o competente juízo de instrução criminal. Admitiu, porém, que a competência para a apreciação e julgamento da conduta do senhor juiz em questão cabe, nos termos previstos nos arts. 19.º, n.º 2, do EMJ e arts. 5.º e 12.º, n.º 3, al. a), do CPP, à secção criminal do tribunal da Relação, tribunal de hierarquia imediatamente superior àquele em que o arguido exerceu funções.
IV - O Exm.º Juiz Desembargador fundamentou a cessação da conexão e a consequente separação do processo, na al. c) do n.º 1 do art. 30.º do CPP, porquanto no seu entender a conexão puder retardar excessivamente o julgamento do arguido E, único arguido que não requereu a abertura de instrução.
V - A competência para determinar a separação de processos cabe, na fase de instrução, ao juiz de instrução, e, na fase de julgamento, ao juiz de julgamento. O Exm.º Juiz Desembargador, por um lado, não tinha competência para fazer cessar a conexão e ordenar a separação de processos, na exata medida, que o processo ainda não se encontrava na fase de instrução, porquanto a mesma não foi declarada aberta, e por outro também não se encontra na fase de julgamento. Com efeito, a fase de instrução começa com o despacho que declara a abertura de instrução e não com o requerimento de abertura de instrução (art. 287.º, n.º 4, do CPP). No que se refere à fase de julgamento, inicia-se com o despacho a que alude os arts. 311.º e 311.º - A, do CPP.
VI - O Exm.º Juiz Desembargador não interveio em nenhuma dessas fases, pois não recebeu os requerimentos de instrução, declarando aberta a instrução, nem é o juiz de julgamento, pelo que nunca poderia o mesmo determinar a separação de processos.
VII - Por outro lado, no caso dos autos não se verifica o fundamento para a cessação da conexão e a consequente separação do processo, nos termos da al. c) do n. º 1 do art. 30.º do CPP. Para além da instrução ter um prazo relativamente curto, no caso dos autos, uma vez que não há arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação, o prazo de duração máxima para tal fase facultativa é de 4 meses, de harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 1, do CPP.
VIII - O art. 307.º do CPP, sob a epígrafe: «Decisão Instrutória» consagra no n.º 4, o seguinte: «A circunstância de ter sido requerida apenas por um dos arguidos não prejudica o dever de o juiz retirar da instrução as consequências legalmente impostas a todos os arguidos». Não há dúvida que com a separação de processos, este benefício resulta, inexoravelmente, comprometido. Pelo que, cerceando esse crivo, o despacho recorrido introduziu um tratamento diferenciado, discriminatório e prejudicial ao arguido E. A condição de magistrado e a prerrogativa legal de gozar de foro próprio não pode redundar numa diminuição das garantias processuais penais em relação aos demais. Há uma evidente e injustificada violação das garantias constitucionais do processo penal e do princípio da igualdade. Desconsidera-se a igualdade dos cidadãos perante a lei (art. 13.º, n.º 1, da CRP) e suprime-se uma garantia de defesa (art. 32.º, n.º 1, da CRP).
IX - O despacho recorrido enferma da nulidade insanável prevista no art. 119.º, al. a), do CPP, por violação do disposto nos arts. 27.º e 31.º, al. b), do CPP, no sentido de que, nos casos de processos conexos da competência do tribunal da Relação por força da regra estabelecida no art. 27.º do CPP, a separação de processos nos termos do art. 30.º do CPP implica que tal competência do tribunal da Relação não se mantém relativamente aos arguidos do processo separado que não gozem do foro especial previsto no art. 12.º, n.º 3, al. a), do CPP, tornando-se o tribunal da Relação incompetente para conhecer do processo em relação a esses arguidos sem foro especial e passando a ser competente o tribunal de hierarquia inferior. De igual modo a interpretação dada no despacho recorrido aos arts. 27.º e 31.º, al. b), do CPP, no sentido de que, nos casos de processos conexos da competência do tribunal da Relação por força da regra estabelecida no art. 27.º do CPP, a separação de processos nos termos do art. 30.º do CPP implica que tal competência do tribunal da Relação não se mantém relativamente aos arguidos do processo separado, que não gozem do foro especial previsto no art. 12.º, n.º 3, al. a), do CPP, tornando-se o tribunal da Relação incompetente para conhecer do processo em relação a esses arguidos sem foro especial e passando a ser competente o tribunal de hierarquia inferior, é também inconstitucional, por violação do princípio do juiz natural previsto no art. 32.º, n.º 9, da CRP, no sentido interpretativo com que foram aplicadas.
I. RELATÓRIO
1.1. O Ministério Público deduziu acusação contra:
- AA, casado, empresário, filho de BB e de CC, natural de ..., ..., em .../.../1951, residente na Avenida ..., ..., ...;
- DD, casado, juiz de direito, filho de EE e de FF, natural de ..., em .../.../1966, residente na Rua ..., ...;
- GG, casado, professor, filho de HH e de II, natural de ..., em .../.../1963, e residente na Rua ..., ..., ...;
- “M..., S.A.”, NIPC ..., com sede no Largo ..., ...;
- “V... Gold, SA”, NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., ..., ...;
- “V..., S.A.”, NIPC ..., com sede no Largo ..., ...;
- “T..., S.A.”, NIPC ..., com sede na ..., ...;
- “P..., S.A.”, NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., ..., ...;
- “C..., S.A.”, NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., ..., ...;
- “F..., SA”, NIPC, ..., com sede na Rua ..., ...;
- “H..., S.A.”, NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., ..., ...;
imputando aos arguidos os seguintes crimes:
Ao arguido AA, em concurso real e efetivo:
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de corrupção ativa para ato ilícito, previsto e punido pelos artºs 374º, n.º 1, agravado nos termos do art.º 374º- A n.ºs 1, 2 e 3;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c) da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 6º n.ºs 1 e 4, al. a) parte final e b) da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro.
Ao arguido DD, em concurso real e efetivo:
- A autoria material, sob a forma consumada, de um crime de corrupção passiva para ato ilícito, previsto e punido pelos art.ºs 386º, n.º 3, al. a) e 373º, n.º 1, agravado nos termos do art.º 374º –A, n.ºs 1, 2 e 3 do Código Penal;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c), da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 6º n.ºs 1 e 4, al. a) parte final e b) da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c) da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 6º n.ºs 1 e 4, al. a), parte final e b) da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelos art.ºs 386º, n.º 3, al. a) e 382º do Código Penal.
Ao arguido GG, em concurso real e efetivo:
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c), da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 6º, n.ºs 1 e 4, al. a), parte final e b), da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelos art.ºs 386º, n.º 3, al. a), 26.º e 28.º, n.º 1 e 382º todos do Código Penal.
Às arguidas “M..., S.A.”, “V... Gold, SA”, “V..., S.A.”, “T..., S.A.”, “P..., S.A.”, “C..., S.A.”, “F..., SA”, “Hotel ... – Atividades H..., S.A.”, em concurso real e efetivo:
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de corrupção ativa para ato ilícito, previsto e punido pelos art. ºs 11.º, n.ºs 1, 2, alínea a), 4.º, 9.º e 10.º, 374º, n.º 1 agravado nos termos do art.º 374-A n.ºs 1, 2 e 3;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c) da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 9º, 6º n.ºs 1 e 4, al. a) parte final e b) da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro, tudo por força dos factos descritos na acusação.
1.2. Em 24 de novembro de 2021, mediante requerimento dirigido ao Exmº Senhor Juiz Desembargador de Instrução Criminal, os arguidos AA, “M..., S.A.”, “V... Gold, SA”, “V..., S.A.”, T..., S.A.”, “P..., S.A.”, “C..., S.A.”, “F..., SA”, e “H..., S.A.”, vieram requerer a abertura de instrução.
Em 6 de dezembro de 2021, também o arguido GG requereu a abertura de instrução.
Por despacho de 18 de janeiro de 2022, o Exmº Procurador-Geral Adjunto determinou a remessa dos autos para instrução tendo os autos sido remetidos ao Tribunal da Relação de Coimbra.
1.3. Remetidos os autos à distribuição como instrução, o Exmº Juiz Desembargador de Instrução a quem os mesmos foram distribuídos, por despacho de 3 de fevereiro de 2022 declarou a incompetência hierárquica do Tribunal da Relação de Coimbra para proceder à instrução requerida nos autos, determinando a sua remessa para o competente juízo de Instrução Criminal ..., por ser o competente, nos termos do art. 28º, al. a), do CPP, com os seguintes fundamentos (transcrição:
«Vejamos:
Decorre do disposto no art. 19º, nºs 1 e 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (lei nº 21/85, de 30 de julho, sucessivamente alterada) que os magistrados judiciais gozam de foro próprio, sendo competente para a instrução de processo em que seja arguido juiz de direito o tribunal de categoria imediatamente superior àquela em que se encontra colocado o magistrado. Por seu turno, o art. 73º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, adiante referida apenas por LOSJ), atribui às secções da Relação, segundo a sua especialização, a competência para julgar processos por crimes cometidos por magistrados (al. c) e para praticar, nos termos da lei de processo, os actos jurisdicionais relativos ao inquérito, dirigir a instrução criminal, presidir ao debate instrutório e proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia naqueles processos (al. g).
Em coerência com os citados normativos, o art.12º, nº 3, al. a), do Código de Processo Penal, estabelecendo a competência das secções criminais das relações em matéria penal, atribui-lhes a competência para o julgamento de processos por crimes cometidos por juízes de direito, procuradores da República e procuradores-adjuntos, competindo individualmente aos juízes das secções criminais praticar os actos jurisdicionais relativos ao inquérito, dirigir a instrução, presidir ao debate instrutório e proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia nos processos a que se refere o último normativo citado.
Esta atribuição de foro especial não se destina ao reforço das garantias do arguido – solução inadmissível e que enfermaria de inconstitucionalidade – visando exclusivamente a defesa do prestígio do exercício da função quando esteja em causa um crime cometido por magistrado, garantindo que a instrução ou o julgamento são assegurados por magistrados com categoria superior à do magistrado arguido.
Como corolário lógico da razão de ser da norma, o foro especial não opera relativamente a arguidos que não sejam magistrados, ainda que comparticipantes no crime ou, pelo menos, coarguidos.
No caso vertente, o único arguido que não requereu a abertura de instrução foi precisamente aquele que determinaria o foro especial, por se tratar de juiz de direito, a saber, o arguido DD.
A formulação de pedido de abertura de instrução por todos os demais arguidos, com exceção do arguido GG, dirigida ao tribunal da relação, fere as regras da competência hierárquica. Com efeito, segundo o art. 37º, nº 1, da LOSJ, na ordem jurídica interna a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território. Sobre a competência em razão da hierarquia dispõe o art. 42º do mesmo diploma que os tribunais judiciais se encontram hierarquizados para efeito de recurso das suas decisões (nº 1), relegando a competência em matéria criminal para a respetiva lei de processo (nº 3).
O Código de Processo Penal regula a declaração de incompetência sem distinção de regime, salvo no que tange à incompetência territorial, sendo esta sanável nos termos do nº 2, alíneas a) e b), do art. 32º. Todas as demais formas de incompetência são insanáveis, dando origem à remessa do processo para o tribunal competente (art. 33º, nº 1).
No caso vertente, a determinação do tribunal competente não se oferece como linear, dada a complexidade dos autos, o número de atos ilícitos indiciados e a pluralidade de agentes.
Estamos perante situação de conexão que permitiu a elaboração de um só processo, relativa a crimes praticados na área de jurisdição de diversos tribunais, devendo em princípio funcionar como critério a competência para conhecer do crime a que couber pena mais grave – art. 28º, al. a), do CPP. Responde a esse critério o crime de corrupção passiva p. p. pelos art.ºs 386º, n.º 3, al. a) e 373º, n.º 1, agravado nos termos do art.º 374º –A, n.ºs 1, 2 e 3 do Código Penal, crime material ou de resultado, cuja consumação se basta com a solicitação ou aceitação do suborno. Os autos apontam para a sua consumação em ..., indiciando-se que o arguido DD se deslocaria aos escritórios do grupo empresarial administrado pelo arguido AA, sitos nessa cidade, pelo menos duas vezes por mês.
Nessa medida, e visto o disposto nas disposições legais citadas, declara-se a incompetência hierárquica do Tribunal da Relação de Coimbra para proceder à instrução requerida nos autos, determinando-se a sua remessa para o competente juízo de instrução criminal.
1.4. Em 21 de fevereiro de 2022, na sequência do pedido de aclaração do despacho supra referido pelo Ministério Público, o Exmº Juiz Desembargador proferiu o seguinte despacho:
«Na sequência do despacho de 3 de Fevereiro de 2022 (referência Citius ...17), em que se declarou a incompetência hierárquica do Tribunal da Relação de Coimbra para proceder à instrução requerida pelos coarguidos GG, AA, “M..., S.A.”, “V... Gold, SA”, “V..., S.A.”, T..., S.A.”, “P..., S.A.”, “C..., S.A.”, “F..., SA”, e “H..., S.A.”, e se determinou a remessa dos autos para o competente tribunal de 1ª instância, requereu o Exmº Procurador-Geral Adjunto a aclaração do decidido por entender que não resulta suficientemente evidenciada a determinação da separação do processo relativo ao arguido DD, decorrência lógica daquele despacho.
A aclaração solicitada é pertinente, posto que no despacho em questão se explicitou o iter que conduziu à declaração de incompetência do Tribunal da Relação e à determinação de remessa do processo para o tribunal julgado competente, para que aí se aprecie e, sendo caso disso, se proceda à instrução requerida pelos coarguidos, sem que no entanto se tenha incluído na fundamentação ali vertida a essência da cessação da competência do Tribunal da Relação e o destino dos autos na parte referente ao arguido DD que, estando abrangido por foro especial, não pode ver a sua conduta objeto de pronúncia por tribunal de 1ª instância.
Não oferece dúvida que a competência para a apreciação e julgamento da conduta do senhor juiz em questão cabe, nos termos previstos nos artigos 19º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais[1] e 12º, n.º 3, al. a), do CPP, à secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, tribunal de hierarquia imediatamente superior àquele em que o arguido exerceu funções.
Sabido que na ausência de requerimento de abertura de instrução o desenvolvimento da tramitação processual implica a imediata remessa dos autos para julgamento, a circunstância de o arguido DD não ter requerido a abertura dessa fase processual facultativa legitima e impõe a conclusão de que pretende defender-se da acusação contra si formulada em audiência de julgamento e que o pretende, certamente, sem delongas de maior.
O Código de Processo Penal acolhe o princípio constitucionalmente consagrado do direito a um julgamento no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa), sendo manifestação desse princípio a norma do art. 30º, nº 1, al. c), que prevê a possibilidade de o tribunal, oficiosamente ou a requerimento, fazer cessar a conexão de processos referente a vários agentes quando esta puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer deles.
Tendo os demais arguidos requerido a abertura de instrução, o julgamento do único arguido que a não requereu, a manter-se a conexão, deveria aguardar pelo fim da instrução, com tudo o que isso poderia implicar em termos de protelamento do julgamento, por força da complexidade dos autos, dos tipos de crime imputados, da extensão dos factos e do modo de atuação descrito, a que acresce necessariamente a hipótese de interposição de recurso da decisão instrutória, pese embora os apertados limites em que este é admissível (cfr. art. 310º do CPP).
Neste enquadramento, o conhecimento resultante da prática judiciária aponta para uma acentuada probabilidade de a instrução se vir a traduzir num significativo retardamento do julgamento.
É precisamente a cessação da conexão que implica a cessação da competência do Tribunal da Relação para a instrução do processo relativamente aos arguidos requerentes da instrução, mantendo-a, no entanto, para os ulteriores termos processuais relativamente ao arguido DD, nomeadamente, para o respetivo julgamento.
Separado o processo relativamente a este arguido, nada obsta à sua imediata remessa para julgamento, que correrá independentemente das vicissitudes que afetem a marcha do processo referente aos demais coarguidos. O processo a eles respeitante, após o termo da instrução, prosseguirá, se for o caso, para julgamento no competente tribunal de 1ª instância, sem que a isso obste o disposto no art. 31º, al. b), do CPP, na medida em que uma vez operada a separação para que se proceda autonomamente à instrução, esta norma, interpretada de acordo com a economia da letra da lei e na harmonia do sistema, será inaplicável porquanto a conexão só opera relativamente aos processos que se encontrarem simultaneamente na fase de inquérito, de instrução ou de julgamento (nº 2 do art. 24º do CPP).
Nestes termos se procede à eliminação da ambiguidade apontada pelo M.P., por não importar modificação essencial e ser admissível à luz do disposto nos artigos 380º, nº 1, al. b), e nº 3, do CPP.
Oportunamente, extraia certidão integral do processado, dê vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto para indicação da prova da acusação com relevo para o julgamento do arguido DD, autue o processado daí decorrente como processo autónomo e remeta à distribuição para julgamento, por este Tribunal da Relação, do arguido DD».
1.5. Inconformados com estes despachos dele interpuseram recurso o MINISTÉRIO PÚBLICO e os arguidos AA (doravante “AA”), M..., S.A. (de ora em diante “M...”), V... Gold, S.A. (adiante “V...”), V..., S.A. (doravante “V...”), T..., S.A. (de ora em diante “T...”), P..., S.A. (adiante “P...”), C..., S.A. (doravante “C...”), F..., SA (de ora em diante “F...”) e Hotel ... – Atividades H..., S.A. (adiante “Hotel ...”) (doravante conjuntamente designadas por “sociedades arguidas”), que motivaram, concluindo nos seguintes termos:
I - O MINISTÉRIO PÚBLICO:
1.º - Nestes autos foi deduzida acusação contra 11 arguidos, dos quais um, DD, com o estatuto de Juiz de Direito, sendo que todos, com exceção do arguido DD, requererem a abertura de instrução.
2.º - O arguido DD foi acusado, em concurso real e efetivo:
- autor material, sob a forma consumada, de um crime de corrupção passiva para ato ilícito, previsto e punido pelos art.ºs 386º, n.º 3, al. a) e 373º, n.º 1 agravado nos termos do art.º 374º –A, n.ºs 1, 2 e 3 do Código Penal;
- coautor material, sob a forma consumada, de um crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto;
- coautor material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c) da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 6º n.ºs 1 e 4, al. a) parte final e b) da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro (factos constantes da Parte IV);
- coautor material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c) da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 6º n.ºs 1 e 4, al. a) parte final e b) da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro (factos constantes da Parte V);
- coautor material, sob a forma consumada, de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelos art.ºs 386º, n.º 3, al. a) e 382º do Código Penal.
3.º - Remetidos os autos à distribuição como instrução, o Senhor Juiz Desembargador de Instrução a quem os mesmos foram distribuídos, por despacho de 3 de fevereiro de 2021 e sua aclaração de 21 de fevereiro de 2021, de que ora se recorre, e sem que antes declarasse aberta a Instrução e apreciasse da admissibilidade dos requerimentos de abertura de Instrução que determinaram a distribuição dos autos à ... secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra para serem tramitados como Instrução, determinou a cessação da conexão processual ordenando a separação do processo, no que se reporta ao arguido DD, e declarou a incompetência do Tribunal da Relação de Coimbra para conhecer do processo em relação aos demais arguidos requerentes da abertura de instrução.
4.º - Ora, o princípio do Juiz natural previsto no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa (“nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”) impõe que a fixação do Juiz competente resulte da lei.
5.º - E a competência material de cada tribunal em questões penais está regulada no CPP, e subsidiariamente nas leis de organização judiciária, determinando-se em razão da natureza das causas e, em certas circunstâncias muito contadas, também da qualidade das pessoas, e, ao mesmo tempo, de acordo com a repartição própria da predefinição das regras sobre competência territorial.
6.º - Assim, enquanto o art.º 10.º do Código de Processo Penal prevê que “A competência material e funcional dos tribunais em matéria penal é regulada pelas disposições deste Código e, subsidiariamente, pelas leis de organização judiciária”, o art.º 12.º do mesmo diploma define a esfera de jurisdição do Tribunal da Relação de Coimbra e a Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei nº 62/2013 de 26.08, com as alterações subsequentes - contém normas expressas sobre a fixação de competência segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território e o princípio de proibição de desaforamento, regras contidas nos seus artigos 37º a 39º, regendo sobre a competência em razão da matéria e da hierarquia as previsões contidas nos artigos 40º e 42º da LOSJ, sendo que, quanto à competência criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, o n.º 3 deste último preceito remete para a respetiva Lei de processo.
7.º - Nestes autos, a qualidade funcional de um dos arguidos, Juiz de Direito, determinou o foro próprio e a necessidade de intervenção do Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos dos artigos 19.º do EMJ e 12.º, n.º 3, al. a) do CPP, bem como a competência deste, por conexão, quanto aos demais arguidos, por força do disposto no art.º 27.º do CPP.
8.º – Remetidos os autos à distribuição como Instrução, não foi pelo Senhor Juiz Desembargador de Instrução declarada aberta esta fase processual e não foram admitidos os requerimentos apresentados, tal como não foi valorada a pertinência da prova requerida e a produzir nesta fase.
9.º – O despacho recorrido não questiona a verificação dos pressupostos processuais de conexão, aceitando a competência atribuída por via das regras legais invocadas e, ainda, ao abrigo das regras contidas nos artigos 24º e seguintes do Código de Processo Penal.
10.º - Tais regras são verdadeiras regras de fixação de competência, excecionais, correspondentes ao propósito do legislador de evitar a pendência simultânea de vários processos criminais contra as mesmas pessoas, com a consequência de uma infindável apreciação da sua situação processual.
11.º - A previsão do artigo 27.º do Código de Processo Penal, constituindo um desvio às regras normais de fixação de competência, é também uma regra geral de competência, fixada por lei, permitindo determinar ex ante qual o Tribunal competente.
12.º - Aí, a competência determinada por conexão, seja funcional seja material, quando os processos conexos devessem ser da competência de tribunais de diferente hierarquia ou espécie, é atribuída ao tribunal de hierarquia ou espécie mais elevada.
13.º - Esta norma claramente densifica a pretensão do legislador de um julgamento conjunto.
14.º - Verificado e reconhecido o fundamento determinante da conexão processual e fixada a competência, no caso concreto, ao abrigo do artigo 27.º do Código de Processo Penal, a separação de processos apenas poderá ser ordenada com fundamento na previsão do artigo 30.º do Código de Processo Penal.
15.º - No despacho recorrido, sustenta o Senhor Juiz Desembargador de Instrução que:
- o arguido DD não requereu a abertura da instrução e tal significa que pretende concentrar a sua defesa e refutar a acusação que sobre si impende em sede de audiência de julgamento;
- No entanto, há outros arguidos que requereram a abertura de instrução, o que implica que o seu julgamento (de DD) teria que aguardar o findar da instrução;
- Essa circunstância pode retardar excessivamente o julgamento daquele arguido, razão pela qual é de separar o processo relativamente ao mencionado arguido.
16.º - A fase legal de Instrução nunca poderá ser vista como um agravamento para os direitos processuais dos arguidos, sendo antes, e ainda, uma fase complementar de salvaguarda desses direitos e do princípio constitucional previsto no artigo 32º, nº2, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito do arguido a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
17.º - A instrução tem um prazo de duração máximo relativamente curto, sendo que, no caso concreto, e dado que não há arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação, o prazo de duração máxima para tal fase facultativa é, de acordo com o previsto no artigo 306º, nº1, do Código de Processo Penal, de quatro meses.
18.º - Tal prazo máximo não permite sustentar que a fase instrutória possa retardar excessivamente um processo de forma a justificar uma separação de processos num processo a que nunca foi, sequer, atribuída natureza urgente.
19.º – E o requerimento de abertura de Instrução não constitui fundamento automático para determinar a separação de processos.
20.º - No caso dos autos, os requerimentos não foram ainda admitidos e, consequentemente, não foram admitidas quaisquer diligências probatórias (sendo certo que apenas foi requerida a inquirição de um quatro testemunhas), pelo que qualquer ponderação sobre aquilo que ainda não se sabe se vai ser aceite, e em que termos, sempre seria, temerariamente, precoce.
26.º - Ao não conhecer, como não conheceu, daqueles requerimentos de instrução, não podia o Meritíssimo Juiz Desembargador de Instrução considerar que uma Instrução ainda não admitida e cujos atos a realizar ainda não foram definidos iria retardar um qualquer julgamento e, muito menos, afiançar que o ia retardar excessivamente, pelo que violou, por erro de interpretação, o disposto no art.º 30.º, n.º 1, al. c), do CPP.
27.º - Por outro lado, a competência para determinar a separação de processos cabe, na fase de Instrução, ao Juiz de Instrução, e, na fase de Julgamento, ao Juiz de Julgamento (Juiz Presidente).
28.º - Dado que, in casu, o Senhor Juiz Desembargador de Instrução não interveio em nenhuma dessas qualidades, pois que não recebeu os requerimentos de instrução, declarando aberta a instrução, nem é o juiz de julgamento, nunca poderia o mesmo determinar a separação de processos.
29.º – O despacho recorrido pelo qual é determinada a separação de processos é, verdadeiramente, o primeiro despacho proferido após o trânsito dos autos para a fase de Instrução e foi proferido sem que esta fosse sequer declarada aberta.
30.º – Ou seja, em momento extemporâneo para aquilatar da existência de qualquer um dos fundamentos enumerados no artigo 30.º do CPP.
31.º – Deflui do art.º 307º, n.º 4 do CPP, que a decisão instrutória deve abranger todos os arguidos, mesmo os não requerentes da instrução naquilo que se define como extensão das consequências da instrução aos arguidos não requerentes. No entanto, com a separação de processos, este benefício resulta, inexoravelmente, comprometido.
32.º - Pelo que, cerceando esse crivo, o despacho recorrido introduziu um tratamento diferenciado, discriminatório e prejudicial ao arguido DD.
33.º - A condição de Magistrado e a prerrogativa legal de gozar de foro próprio não pode redundar numa diminuição das garantias processuais penais em relação aos demais.
34.º - Há uma evidente e injustificada violação das garantias constitucionais do processo penal e do princípio da igualdade. Desconsidera-se a igualdade dos cidadãos perante a lei (art.º 13º, n.º 1 da CRP) e suprime-se uma garantia de defesa (art.º 32º, n.º 1 da CRP).
35.º – Acresce que o artigo 31º, alínea b), do CPP consagra expressamente a manutenção da competência do tribunal pré-determinado legalmente para conhecer de processos conexos quando se alteraram os pressupostos que determinaram a agregação.
36.º - Trata-se de uma verdadeira extensão de competência, sendo inequívoca a letra da lei quando determina que, separada a parte de um processo referente à conduta de um dos coarguidos, o tribunal que ordenou a separação processual continua a ser o competente se a separação processual tiver sido determinada por um dos fundamentos invocados no nº 1 do artigo 30.º.
37.º - Ou seja, a separação de processos não determina a remessa do processo separado para distribuição, permanecendo ele na mesma secção do mesmo tribunal, conforme a previsão do artigo 31º, al. b), do Código de Processo Penal.
38.º - E a violação das regras de competência do tribunal integra o elenco taxativo de nulidades insanáveis previsto no artigo 119.º do Código de Processo Penal (alínea e)).
39.º - Assim, o douto despacho recorrido é insanavelmente nulo por violar, como supra fundamentado, as regras de competência por conexão fixadas nos artigos 24.º, 27.º e 29.º a 31.º do Código de Processo Penal, mostrando-se de igual modo ferido de inconstitucionalidade, por contrariar a previsão dos artigos 13º, n.º 1 e 32.º, n.ºs 1 e 9, da Constituição da República Portuguesa, que expressamente se invoca para efeitos de desaplicação de tais normas, no sentido interpretativo com que foram aplicadas.
40.º - De facto, a violação destas normas e a subsequente remessa dos autos ao Tribunal de Instrução Criminal ... constitui um verdadeiro desaforamento (artigo 39º da LOSJ), em colisão com a regra de prorrogação de competência do Tribunal da Relação de Coimbra para a apreciação do caso ainda que fosse determinada a separação processual (artigo 31º, alínea b), do CPP)
41.º - Assim, a interpretação normativa dada aos artigos 27.º e 31.º, al. b) do CPP, no sentido de que, nos casos de processos conexos da competência do Tribunal da Relação de Coimbra por força da regra estabelecida no art.º 27.º do CPP, a separação de processos nos termos do art.º 30.º do CPP implica que tal competência do Tribunal da Relação de Coimbra não se mantém relativamente aos arguidos do processo separado que não gozem do foro especial previsto no art.º 12.º, n.º 3, al. a) do CPP, tornando-se o Tribunal da Relação de Coimbra incompetente para conhecer do processo em relação a esses arguidos sem foro especial e passando a ser competente o tribunal de hierarquia inferior, é também inconstitucional, por violação do princípio do juiz natural previsto no artigo 32.º, n.º 9, da CRP, inconstitucionalidade que expressamente se invoca para efeitos de desaplicação de tais normas, no sentido interpretativo com que foram aplicadas (em situação com semelhanças manifestas ao caso em apreço, o Supremo Tribunal de Justiça em recente Acórdão de 24 de fevereiro de 2022, Relator: Cid Geraldo, Processo 19/16.OYGLSB sufragou inteiramente a posição sustentada pelo Ministério Público).
42.º –Em face do exposto, a decisão judicial proferida a 3 de fevereiro de 2021 e sua aclaração de 21 de fevereiro de 2021, que determinou a cessação da conexão processual ordenando a separação do processo, no que se reporta ao arguido DD, e declarou a incompetência do Tribunal da Relação de Coimbra para conhecer do processo em relação aos demais arguidos requerentes da abertura de instrução, deve ser revogada/declarada nula e substituída por outra que declare aberta a fase de instrução e se pronuncie sobre os requerimentos de instrução que vêm submetidos à apreciação do tribunal.
Vossas Excelências, contudo, e como sempre, espera-se, farão JUSTIÇA!»
II - Os ARGUIDOS AA (doravante “AA”), M..., S.A. (de ora em diante “M...”), V... Gold, S.A. (adiante “V...”), V..., S.A. (doravante “V...”), T..., S.A. (de ora em diante “T...”), P..., S.A. (adiante “P...”), C..., S.A. (doravante “C...”), F..., SA (de ora em diante “F...”) e Hotel ... – Atividades H..., S.A. (adiante “Hotel ...”) (doravante conjuntamente designadas por “sociedades arguidas”),
§1. O despacho recorrido configura um despacho de aclaração ilegal por importar uma modificação essencial do anteriormente decidido, uma vez que o Tribunal da Relação de Coimbra nunca se tinha anteriormente referido à possibilidade de uma separação de processos, tendo-se (apenas) declarado incompetente relativamente a todo o processo.
§2. O despacho recorrido surge em resposta a um pedido de aclaração do despacho de 03.02.2022 apresentado pelo Ministério Público.
§3. Este requerimento do Ministério Público foi apresentado ao abrigo do artigo 380.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do CPP, e o Tribunal a quo acabou, salvo o devido respeito, por aproveitar a deixa desse requerimento de aclaração para esclarecer o despacho que proferira anteriormente e decidir uma inédita separação de processos.
§4. O despacho de 03.02.2022 nada diz, nada sugere e nada decide quanto a uma qualquer separação de processos, já que o que o Tribunal a quo decidiu através do despacho de 03.02.2022 foi, pura e simplesmente, a sua incompetência hierárquica e a – segundo o seu juízo, consequente – remessa dos autos para o Tribunal de Instrução Criminal ....
§5. No entanto, essa sua decisão de incompetência recaiu sobre os autos como um todo e não sobre uma sua qualquer parcela, designadamente a parte do processo relativa ao Arguido DD, que é juiz de Direito, sendo que, de acordo com este despacho – independentemente da sua (i)legalidade no que toca à sua declaração de incompetência e à determinação da competência do Tribunal ... –, o Tribunal da Relação de Coimbra seria incompetente para proceder à instrução de todo o processo e todo o processo seguiria para o Tribunal de Instrução Criminal ....
§6. A aclaração ou correção de um despacho só é possível, à luz do artigo 380.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do CPP, se não importar modificação essencial do decidido.
§7. Porém, o que o Tribunal a quo decidira no pretérito despacho de 03.02.2022 nada dizia sobre uma separação de processos, relativamente ao Arguido DD ou a qualquer outro.
§8. Sendo que o Tribunal a quo chega mesmo a apontar que a razão de ser da competência do Tribunal de Instrução Criminal ... assentava na circunstância de ter sido nessa cidade que estariam os escritórios do grupo empresarial aos quais o Arguido DD se deslocaria.
§9. Ao contrário do que refere o Tribunal a quo, a separação de processos não é mera “decorrência lógica” do despacho de declaração de incompetência. No máximo – e sem conceder –, ela seria um pressuposto normativo necessário da eventual decisão de incompetência.
§10. Não tendo o despacho de 03.02.2022 sido objeto de impugnação – em tanto quanto é do conhecimento dos Arguidos aqui Recorrentes –, impõe-se concluir que sobre ele se formou caso julgado em sentido formal e, por isso, se exauriu o poder jurisdicional do Tribunal sobre a sua competência (bem ou mal, decidida em sentido negativo).
§11. Tanto basta, portanto, para concluir que o despacho de 21.02.2022, aqui recorrido, viola o disposto nos artigos 613.º, n.os 1 e 3, e 620.º, do Código de Processo Civil (adiante “CPC”), aplicáveis por remissão ao processo criminal, ex vi artigo 4.º do CPP.
§12. Assim, o despacho recorrido é ilegal por não configurar uma aclaração, mas antes uma nova decisão sobre uma matéria que não tinha sido sequer abordada no despacho supostamente aclarado, devendo, por isso, ser revogado.
Uma Separação de Processos Ilegal
§13. Em segundo lugar, ainda que o despacho de 21.02.2022 surja na sequência de uma aclaração ilegal nos termos supra alegados, o despacho recorrido procede a uma separação de processos ilegal, por ausência de fundamento material para a separação, e com grave prejuízo para a concretização das finalidades do processo penal.
§14. Veja-se que, nos termos do despacho recorrido, o Tribunal a quo decidiu a separação de processos ao abrigo do artigo 30.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
§15. No fundo, para o Tribunal a quo, como o Arguido DD não requereu a abertura de instrução e o seu julgamento teria de aguardar pelo final da instrução requerida pelos restantes Arguidos, os processos deveriam separar-se para não retardar excessivamente o julgamento do Arguido DD.
§16. Porém, a decisão de separação de processos não deve, em primeiro lugar, limitar-se a uma avaliação seca da verificação de qualquer uma das alíneas do artigo 30.º, n.º 1, do CPP.
§17. De onde resulta que não basta que se preveja – como faz o Tribunal a quo – que a existência de uma fase de instrução, em processo no qual algum dos arguidos não a requereu, irá retardar o julgamento, para que se possa legitimamente decidir uma separação de processos.
§18. Em segundo lugar, note-se que o artigo 30.º, n.º 1, alínea c), do CPP se referia, na redação em vigor à data do despacho recorrido, não ao mero retardamento do julgamento de algum dos arguidos, mas sim ao retardamento excessivo do julgamento.
§19. O retardamento do julgamento é uma consequência normal da própria existência da possibilidade legal de poder haver instrução mesmo que nem todos os arguidos a requeiram. E tal retardamento só será excessivo se determinado por circunstâncias anormais no iter processual como, por exemplo, a situação de um novo julgamento, prevista no artigo 426.º do CPP – o que não se verifica in casu.
§20. Além disso, a instrução criminal só implicaria um retardamento inadmissível do julgamento se o próprio Tribunal a quo conduzisse aquela fase de modo a que tal retardamento excessivo se verificasse – o que se considera que não irá acontecer junto do douto Tribunal da Relação de Coimbra.
§21. Em terceiro lugar, se a simples existência de um arguido que não requereu a abertura de instrução fosse motivo atendível e bastante para a separação de processos, não faria sentido que o legislador tivesse previsto uma norma como a do artigo 307.º, n.º 4, do CPP.
§22. A própria lei reconhece que haverá casos em que a instrução foi requerida por apenas um ou alguns dos arguidos e isso significa que as consequências jurídicas dela resultantes possam e devam ser extraídas para todos os restantes arguidos.
§23. Na verdade, o que sucede em todos os processos em que há abertura de instrução não requerida por algum dos arguidos é que os que não a requereram aguardam paciente e pacificamente pela decisão instrutória. E tal não contraria, nem destrói, nem subverte o processo penal.
§24. Em quarto lugar, afigura-se que a separação de processos, especialmente num caso como o dos presentes autos em que se trata da alegada existência de factos suscetíveis de integrar os crimes de corrupção ativa e passiva, é suscetível de prejudicar a produção de prova caso haja julgamento em separado do alegado corruptor ativo e do suposto corruptor passivo.
§25. Ainda que se saiba que pode, em abstrato, haver hipóteses de crime de corrupção ativa sem que haja necessariamente crime de corrupção passiva, a verdade é que, naturalmente, a produção de prova será tão mais completa, eficaz e eficiente se for produzida no mesmo processo relativamente a ambos os lados da alegada relação entre corruptor ativo e passivo.
§26. Em quinto e último lugar, mas na sequência do que vem de se dizer, com a conexão de processos neutraliza-se o risco de contradição de julgados ou de decisões, ao passo que a separação exponencia a probabilidade de concretização desse risco.
§27. Estando os processos separados e dizendo respeito, pelo menos numa grande parcela, aos mesmos factos, não fica arredada a hipótese de sobre os mesmos factos poder recair uma decisão, de facto ou de direito, diferente em cada um dos processos separados. Mais a mais quando o próprio Tribunal a quo reconhece estar em causa um processo e tipos de crime complexos e com factos e descrições de modos de atuação extensos.
§28. A separação de processos determinada pelo despacho ora recorrido não serve nenhuma das finalidades do processo criminal, seja a da descoberta da verdade, seja a da proteção de direitos fundamentais, seja a do restabelecimento da paz jurídica.
§29. Na verdade, tal separação de processos nem sequer apresenta qualquer vantagem que possa ser contrabalançada com as várias desvantagens que acarreta, já que o rápido e privativo julgamento do Arguido DD pode implicar, como se deixou exposto, que não beneficie, por exemplo, de qualquer consequência jurídica positiva para a sua posição processual decorrente da instrução criminal que terá lugar relativamente aos restantes arguidos noutro processo.
§30. Numa palavra: o despacho de separação de processos não assentou num juízo que contrapusesse as desvantagens que são inerentes à separação com as vantagens que advêm da manutenção da conexão.
§31. Nestes termos, o despacho recorrido é ilegal, por violação das regras relativas à separação de processos, maxime a previsto no artigo 30.º, n.o 1, alínea c), do CPP, devendo, por isso, ser revogado.
Subsidiariamente: Uma Determinação de Competência Ilegal
§32. Mesmo que a separação de processos fosse lícita e regular – no que não se concede e apenas se admite por cautela de patrocínio –, a competência determinada pelo Tribunal a quo para proceder à instrução criminal ... separado em que seriam visados os Arguidos aqui Recorrentes foi encontrada à revelia das normas de prorrogação da competência do CPP.
§33. O Tribunal a quo, tendo decidido a separação de processos, não aplica a prorrogação da competência imposta pelo artigo 31.º, alínea b), do CPP.
§34. Ainda que houvesse lugar à separação de processos nos termos da lei – no que não se concede –, sempre deveria o Tribunal da Relação manter a competência que já decorria da conexão dos processos.
§35. O que o Tribunal a quo faz através do despacho ora recorrido relativamente à determinação da competência é justificar a sua decisão de incompetência através de, por um lado, uma interpretação contra legem do artigo 24.º, n.º 2, do CPP e, por outro lado, de uma inversão lógica e metodológica.
§36. O artigo 24.º, n.º 2, do CPP apenas se aplica à conexão, impossibilitando-a caso os processos a apensar estejam em fases diferentes – que é uma questão de conexão ou separação de processos.
§37. O artigo 24.º, n.º 2, do CPP nada tem a ver, pois, com a prorrogação da competência por conexão – que é uma questão de competência.
§38. Por outro lado, de acordo com o despacho ora recorrido, não haveria prorrogação da competência porque a separação de processos determinaria que os processos separados ficariam em fases diferentes,
§39. Mas a verdade é que os processos separados só estariam em fases diferentes porque se determinou uma separação com o específico fim de proceder se autonomamente à instrução noutro Tribunal.
§40. Ou seja: a circunstância de os processos ficarem em fases diferentes foi um prius na decisão do Tribunal a quo, uma causa para a decisão de separação, quando devia ser um posterius, uma consequência da decisão de separação.
§41. Em face do exposto, o despacho ora recorrido é ilegal por violação das regras de competência do tribunal, já que descura a regra de prorrogação de competência do artigo 31.º, alínea b), do CPP promovendo uma situação de incompetência do Tribunal de Instrução Criminal ... em razão da hierarquia.
§42. Assim, mesmo que não se entenda haver uma aclaração ilegal e/ou que tenha havido uma separação de processos também ela ilegal – o que apenas se admite por cautela de patrocínio – o despacho ora recorrido sempre seria nulo ao abrigo do artigo 119.º, alínea e), do CPP, nulidade que se deixa alegada para os devidos efeitos legais.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deverão V. Exas. julgar o presente recurso procedente e, em consequência, revogar o despacho recorrido.
1.6. No Tribunal da Relação de Coimbra o Ministério Público respondeu ao recurso dos arguidos AA, “M..., S.A.”, “V... Gold, SA”, “V..., S.A.”, “T..., S.A.”, “P..., S.A.”, “C..., S.A.”, “F..., SA”, e “H..., S.A.”, nos seguintes termos:
«No que respeita à parte do recurso concernente ao despacho de 21.02.2022 consideramos que o mesmo está manifestamente prejudicado em face do despacho do Sr. Desembargador de Instrução de 12.05.2022 de onde, aliás, decorre esse entendimento quando refere “os arguidos requerentes interpuseram recurso do despacho de 21/02/2022 antes ainda de decidida a arguição de irregularidade que agora se aprecia.
Um rigor extremado que desatendesse o sentido útil dos atos processuais para se ater à linearidade da marcha processual levaria a que se considerasse prematura esta interposição de recurso, que verdadeiramente não indiciará senão a conformação dos requerentes com a sanação da irregularidade nos termos em que esta operou, através da realização das notificações em falta”.
No que respeita à determinada separação de processos o recurso interposto pelos arguidos coincide, em vários aspetos, com o recurso interposto pelo MP pelo que preferimos remeter para a nossa própria posição que subirá simultaneamente para a devida apreciação.
Em face do exposto, VOSSAS EXCELÊNCIAS FARÃO JUSTIÇA!»
1.7. O Exmo Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu Parecer nos seguintes termos:
Quanto ao recurso do Ministérios Público – Apenso A
1. Por douto despacho proferido no Tribunal da Relação de Coimbra, no processo supra identificado, foi decidido manter a competência para o prosseguimento da marcha dos autos relativamente ao arguido DD – por este ter a qualidade de magistrado judicial –, separando o processo relativamente aos demais arguidos que haviam requerido a abertura de instrução.
Argumentou-se, essencialmente, que a fase de instrução retardaria o processo, de forma significativa, e a realização do julgamento do único arguido que a não requerera.
2. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, questionando a cessação da conexão processual determinada por aquele despacho.
3. Crendo-se que nada obstará ao conhecimento do recurso por parte do Supremo Tribunal de Justiça, dir-se-á, desde já, que se acompanham, na íntegra, os argumentos aduzidos pelos Exmos. Colegas e que, pela sua precisão e assertividade, nos parecem merecer total provimento.
4. Na verdade, é perfeitamente concebível que a cessação da conexão possa – pelo menos, em tese – vir a ser significativamente prejudicial para o arguido DD; desde logo, pela diminuição de garantias que representa, sendo certo que é impossível à Instância recorrida saber que consequências, em termos de pronúncia (ou não pronúncia), advirão para os diversos arguidos.
E não é despiciendo ponderar o resultado da duplicação de inquirições e de eventuais julgamentos, com sérios efeitos na celeridade e economia processuais; e, bem assim, para a pretensão punitiva do Estado, tanto mais que o risco de decisões díspares é evidente e, a verificar-se, não seria razoável nem compreendido pela comunidade.
De resto, a jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça e citada pelos Exmos. Colegas aponta, justamente, no sentido propugnado pelo seu recurso.
5. Assim, concluindo e pelas razões expostas, somos de parecer que o recurso deverá merecer provimento.
Quanto ao recurso dos Arguidos, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer nos seguintes termos:
«A motivação do recurso em análise, em geral, reporta-se às mesmas questões colocadas pelo Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra, no recurso que interpôs em 2/03/2022, da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 3/02/2022 e da sua aclaração no despacho proferido em 21/02/2022, também aqui em recurso.
DA ACLARAÇÃO DO DESPACHO
A aclaração de um despacho destina-se a esclarecer e não a alterar o sentido da decisão.
O disposto no artº 380º nº1 alínea b) do Código de Processo Penal prevê a correção de sentença ou despacho quando o mesmo enferme de lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
É considerada obscuridade, a imperfeição que se traduza em ininteligibilidade. Ambiguidade verifica-se quando à decisão, na questão a considerar, pode razoavelmente atribuir-se-lhe dois ou mais sentidos.
Atentemos então no despacho proferido em 03/02/2022, objeto de pedido de aclaração pelo Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra, a saber:
(…)
“não obstante, estando em causa a abertura de instrução, o Tribunal da Relação apenas seria competente para o efeito se esta fase processual tivesse sido requerida por arguido abrangido por foro especial”
(…)
“Em coerência com os citados normativos, o artº 12º, nº3, al.a) do CPP, estabelecendo a competência das Secções Criminais das relações em matéria penal, atribui-lhes a Competência para o julgamento de processos por crimes cometidos por juízes de direito, procuradores da República e procuradores-adjuntos, competindo individualmente aos juízes das Secções Criminais praticar os actos jurisdicionais relativos ao inquérito, dirigir a instrução, presidir ao debate instrutório e proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia nos processos a que se refere o último normativo citado”.
“Esta atribuição de foro especial não se destina ao reforço das garantias ao arguido – solução inadmissível e que enfermaria inconstitucionalidade- visando exclusivamente a defesa do prestígio do exercício da função quando esteja em causa um crime cometido por magistrado, garantindo que a instrução ou o julgamento são assegurados por magistrados com categoria superior ao magistrado arguido”
(…)
“No caso vertente, o único arguido que não requereu a Instrução foi precisamente aquele que determinaria o foro especial, por se tratar de juiz de direito, a saber o arguido DD”
(…)
“Estamos perante situação de conexão que permitiu a elaboração de um só processo…”
(…)
“Nessa medida e visto o disposto nas disposições legais citadas, declara-se incompetência hierárquica do Tribunal da Relação de Coimbra para proceder à Instrução requerida nos autos, determinando-se a sua remessa para o competente juízo de Instrução Criminal”
Ora, atendendo a que no citado despacho se reconhece a existência de conexão processual, reconhece a competência do Tribunal da Relação de Coimbra para julgar o crime cometido pelo arguido DD, por ser juiz de direito, que não requereu instrução, mas por outro lado se declara incompetente para proceder à instrução requerida pelos restantes arguidos, sem que se pronuncie sobre a forma de tramitar estas duas fases processuais em separado, impunha-se que esclarecesse se para tal haveria separação de processos.
Para nós, sem dúvida, o despacho é obscuro e em simultâneo ambíguo.
Efetivamente, pode razoavelmente atribuir-se-lhe pelo menos, dois sentidos; o Senhor Desembargador, até poderia não pretender separar os processos e querer remeter todo o processo para a primeira instância para a realização da instrução requerida. E, realizada a instrução, aceitar julgar todo o processo no Tribunal da Relação de Coimbra. Mas também, poderia querer terminar a conexão e separar os processos (viu-se ser essa a sua pretensão ao aclarar o despacho).
O certo é que a essência do despacho não foi alterada com a aclaração. Não foi proferida outra decisão, mas esclarecida a que fora dada.
Bem andou o Ministério Público ao requerer nos autos a necessária aclaração nos termos previstos na lei, no estatuído no artº 380ºnº1 al. b) e nº3 do Código de processo Penal (CPP).
O requerimento do Ministério Público apenas pediu um esclarecimento, que foi deferido pelo Meritíssimo Juiz Desembargador autor do despacho, elucidando o sentido do mesmo. No referido requerimento, o Ministério Público não tomou qualquer posição sobre o despacho que pretendia esclarecido (o de 03/02/2022) e em ocasião alguma requereu a separação dos processos.
Face ao exposto, somos de parecer que não existe qualquer irregularidade e deve por isso, ser considerada válida a aclaração efetuada.
DO FIM DA CONEXÃO PROCESSUAL E SEPARAÇÃO DOS PROCESSOS
Sufragamos a motivação do recurso do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra no que ao fim da conexão processual e separação de processos diz respeito e que, em síntese, tece os seguintes considerandos, que reproduzimos:
Nestes autos foi deduzida acusação pública contra 11 arguidos, dos quais, DD, tem o estatuto de Juiz de Direito.
Todos os arguidos, com exceção do arguido DD, requererem a abertura de instrução.
O arguido DD foi acusado, em concurso real e efetivo:
- autor material, sob a forma consumada, de um crime de corrupção passiva para ato ilícito, previsto e punido pelos art.ºs 386º, n.º 3, al. a) e 373º, n.º 1 agravado nos termos do art.º 374º –A, n.ºs 1, 2 e 3 do Código Penal;
- co-autor material, sob a forma consumada, de um crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto;
- co-autor material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c) da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 6º n.ºs 1 e 4, al. a) parte final e b) da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro (factos constantes da Parte IV);
- coautor material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c) da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 6º n.ºs 1 e 4, al. a) parte final e b) da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro (factos constantes da Parte V);
- coautor material, sob a forma consumada, de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelos art.ºs 386º, n.º 3, al. a) e 382º do Código Penal.
Remetidos os autos à distribuição como instrução, o Senhor Juiz Desembargador de Instrução a quem os mesmos foram distribuídos, por despacho de 3 de Fevereiro de 2022 e sua aclaração de 21 de fevereiro de 2022, e sem que antes declarasse aberta a Instrução e apreciasse da admissibilidade dos requerimentos de abertura de Instrução que determinaram a distribuição dos autos à ... secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra para serem tramitados como Instrução, determinou a cessação da conexão processual ordenando a separação do processo, no que se reporta ao arguido DD, e declarou a incompetência do Tribunal da Relação de Coimbra para conhecer do processo em relação aos demais arguidos requerentes da abertura de instrução.
Mas, o princípio do Juiz natural previsto no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa (“nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”) impõe que a fixação do Juiz competente resulte da lei.
E a competência material de cada tribunal em questões penais está regulada no CPP, e subsidiariamente nas leis de organização judiciária, determinando-se em razão da natureza das causas e, em certas circunstâncias muito contadas, também da qualidade das pessoas, e, ao mesmo tempo, de acordo com a repartição própria da predefinição das regras sobre competência territorial.
Assim, enquanto o art.º 10.º do Código de Processo Penal prevê que “A competência material e funcional dos tribunais em matéria penal é regulada pelas disposições deste Código e, subsidiariamente, pelas leis de organização judiciária”, o art.º 12.º do mesmo diploma define a esfera de jurisdição do Tribunal da Relação de Coimbra e a Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei nº 62/2013 de 26.08, com as alterações subsequentes - contém normas expressas sobre a fixação de competência segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território e o princípio de proibição de desaforamento, regras contidas nos seus artigos 37º a 39º, regendo sobre a competência em razão da matéria e da hierarquia as previsões contidas nos artigos 40º e 42º da LOSJ, sendo que, quanto à competência criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, o n.º 3 deste último preceito remete para a respetiva Lei de processo.
Nestes autos, a qualidade funcional de um dos arguidos, Juiz de Direito, determinou o foro próprio e a necessidade de intervenção do Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos dos artigos 19.º do EMJ e 12.º, n.º 3, al. a) do CPP, bem como a competência deste, por conexão, quanto aos demais arguidos, por força do disposto no art.º 27.º do CPP.
Remetidos os autos à distribuição como Instrução, não foi pelo Senhor Juiz Desembargador de Instrução declarada aberta esta fase processual e não foram admitidos os requerimentos apresentados, tal como não foi valorada a pertinência da prova requerida e a produzir nesta fase.
O despacho recorrido não questiona a verificação dos pressupostos processuais de conexão, aceitando a competência atribuída por via das regras legais invocadas e, ainda, ao abrigo das regras contidas nos artigos 24º e seguintes do Código de Processo Penal.
Tais regras são verdadeiras regras de fixação de competência, excecionais, correspondentes ao propósito do legislador de evitar a pendência simultânea de vários processos criminais contra as mesmas pessoas, com a consequência de uma infindável apreciação da sua situação processual.
A previsão do artigo 27.º do Código de Processo Penal, constituindo um desvio às regras normais de fixação de competência, é também uma regra geral de competência, fixada por lei, permitindo determinar ex ante qual o Tribunal competente.
Aí, a competência determinada por conexão, seja funcional seja material, quando os processos conexos devessem ser da competência de tribunais de diferente hierarquia ou espécie, é atribuída ao tribunal de hierarquia ou espécie mais elevada.
Esta norma claramente densifica a pretensão do legislador de um julgamento conjunto.
Verificado e reconhecido o fundamento determinante da conexão processual e fixada a competência, no caso concreto, ao abrigo do artigo 27.º do Código de Processo Penal, a separação de processos apenas poderá ser ordenada com fundamento na previsão do artigo 30.º do Código de Processo Penal.
No despacho recorrido, sustenta o Senhor Juiz Desembargador de Instrução que: - o arguido DD não requereu a abertura da instrução e tal significa que pretende concentrar a sua defesa e refutar a acusação que sobre si impende em sede de audiência de julgamento;
- No entanto, há outros arguidos que requereram a abertura de instrução, o que implica que o seu julgamento (de DD) teria que aguardar o findar da instrução;
- Essa circunstância pode retardar excessivamente o julgamento daquele arguido, razão pela qual é de separar o processo relativamente ao mencionado arguido.
A fase legal de Instrução nunca poderá ser vista como um agravamento para os direitos processuais dos arguidos, sendo antes, e ainda, uma fase complementar de salvaguarda desses direitos e do princípio constitucional previsto no artigo 32º, nº2, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito do arguido a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
A instrução tem um prazo de duração máximo relativamente curto, sendo que, no caso concreto, e dado que não há arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação, o prazo de duração máxima para tal fase facultativa é, de acordo com o previsto no artigo 306º, nº1, do Código de Processo Penal, de quatro meses.
Tal prazo máximo não permite sustentar que a fase instrutória possa retardar excessivamente um processo de forma a justificar uma separação de processos num processo a que nunca foi, sequer, atribuída natureza urgente.
E o requerimento de abertura de Instrução não constitui fundamento automático para determinar a separação de processos.
No caso dos autos, os requerimentos não foram ainda admitidos e, consequentemente, não foram admitidas quaisquer diligências probatórias (sendo certo que apenas foi requerida a inquirição de quatro testemunhas), pelo que qualquer ponderação sobre aquilo que ainda não se sabe se vai ser aceite, e em que termos, sempre seria, temerariamente, precoce.
Ao não conhecer, como não conheceu, daqueles requerimentos de instrução, não podia o Meritíssimo Juiz Desembargador de Instrução considerar que uma Instrução ainda não admitida e cujos atos a realizar ainda não foram definidos iria retardar um qualquer julgamento e, muito menos, afiançar que o ia retardar excessivamente, pelo que violou, por erro de interpretação, o disposto no art.º 30.º, n.º 1, al. c), do CPP.
Por outro lado, a competência para determinar a separação de processos cabe, na fase de Instrução, ao Juiz de Instrução, e, na fase de Julgamento, ao Juiz de Julgamento (Juiz Presidente).
Dado que, in casu, o Senhor Juiz Desembargador de Instrução não interveio em nenhuma dessas qualidades, pois que não recebeu os requerimentos de instrução, declarando aberta a instrução, nem é o juiz de julgamento, nunca poderia o mesmo determinar a separação de processos.
O despacho recorrido pelo qual é determinada a separação de processos é, verdadeiramente, o primeiro despacho proferido após o trânsito dos autos para a fase de Instrução e foi proferido sem que esta fosse sequer declarada aberta.
Ou seja, em momento extemporâneo para aquilatar da existência de qualquer um dos fundamentos enumerados no artigo 30.º do CPP.
Deflui do art.º 307º, n.º 4 do CPP, que a decisão instrutória deve abranger todos os arguidos, mesmo os não requerentes da instrução naquilo que se define como extensão das consequências da instrução aos arguidos não requerentes.
No entanto, com a separação de processos, este benefício resulta, inexoravelmente, comprometido.
Pelo que, cerceando esse crivo, o despacho recorrido introduziu um tratamento diferenciado, discriminatório e prejudicial ao arguido DD.
A condição de Magistrado e a prerrogativa legal de gozar de foro próprio não pode redundar numa diminuição das garantias processuais penais em relação aos demais.
Há uma evidente e injustificada violação das garantias constitucionais do processo penal e do princípio da igualdade. Desconsidera-se a igualdade dos cidadãos perante a lei (art.º 13º, n.º 1 da CRP) e suprime-se uma garantia de defesa (art.º 32º, n.º 1 da CRP).
Acresce que o artigo 31º, alínea b), do CPP consagra expressamente a manutenção da competência do tribunal pré-determinado legalmente para conhecer de processos conexos quando se alteraram os pressupostos que determinaram a agregação.
Trata-se de uma verdadeira extensão de competência, sendo inequívoca a letra da lei quando determina que, separada a parte de um processo referente à conduta de um dos coarguidos, o tribunal que ordenou a separação processual continua a ser o competente se a separação processual tiver sido determinada por um dos fundamentos invocados no nº 1 do artigo 30.º.
Ou seja, a separação de processos não determina a remessa do processo separado para distribuição, permanecendo ele na mesma secção do mesmo tribunal, conforme a previsão do artigo 31º, al. b), do Código de Processo Penal.
E a violação das regras de competência do tribunal integra o elenco taxativo de nulidades insanáveis previsto no artigo 119.º do Código de Processo Penal (alínea e)).
Assim, o douto despacho recorrido é insanavelmente nulo por violar, como supra fundamentado, as regras de competência por conexão fixadas nos artigos 24.º, 27.º e 29.º a 31.º do Código de Processo Penal, mostrando-se de igual modo ferido de inconstitucionalidade, por contrariar a previsão dos artigos 13º, n.º 1 e 32.º, n.ºs 1 e 9, da Constituição da República Portuguesa, que expressamente se invoca para efeitos de desaplicação de tais normas, no sentido interpretativo com que foram aplicadas.
De facto, a violação destas normas e a subsequente remessa dos autos ao Tribunal de Instrução Criminal ... constitui um verdadeiro desaforamento (artigo 39º da LOSJ), em colisão com a regra de prorrogação de competência do Tribunal da Relação de Coimbra para a apreciação do caso ainda que fosse determinada a separação processual (artigo 31º, alínea b), do CPP).
Assim, a interpretação normativa dada aos artigos 27.º e 31.º, al. b) do CPP, no sentido de que, nos casos de processos conexos da competência do Tribunal da Relação de Coimbra por força da regra estabelecida no art.º 27.º do CPP, a separação de processos nos termos do art.º 30.º do CPP implica que tal competência do Tribunal da Relação de Coimbra não se mantém relativamente aos arguidos do processo separado que não gozem do foro especial previsto no art.º 12.º, n.º 3, al. a) do CPP, tornando-se o Tribunal da Relação de Coimbra incompetente para conhecer do processo em relação a esses arguidos sem foro especial e passando a ser competente o tribunal de hierarquia inferior, é também inconstitucional, por violação do princípio do juiz natural previsto no artigo 32.º, n.º 9, da CRP. Inconstitucionalidade que expressamente se invoca para efeitos de desaplicação de tais normas, no sentido interpretativo com que foram aplicadas.
Em situação com semelhanças manifestas ao caso em apreço, o Supremo Tribunal de Justiça em recente Acórdão de 24 de fevereiro de 2022, Relator: Cid Geraldo, Processo 19/16.OYGLSB sufragou inteiramente a posição sustentada pelo Ministério Público.
Em face do exposto, somos de parecer,
- Que a decisão judicial proferida a 3 de fevereiro de 2021 e sua aclaração de 21 de fevereiro de 2021, que determinou a cessação da conexão processual ordenando a separação do processo, no que se reporta ao arguido DD, e declarou a incompetência do Tribunal da Relação de Coimbra para conhecer do processo em relação aos demais arguidos requerentes da abertura de instrução, deve ser revogada/declarada nula e substituída por outra que declare aberta a fase de instrução e se pronuncie sobre os requerimentos de instrução que vêm submetidos à apreciação do tribunal, dando parcial provimento ao recurso dos arguidos.
1.8. Foi cumprido o art. 417º, do CPP.
1.9. Por despacho de 27OUT2022 foi determinada a remessa, para apensação, dos autos de recurso 100/18.0TRCBR-B. S1, termos dos arts. 29.º, n.º 2 e 28.º, al. c), do CPP, aos presentes autos 100/18.0TRCBR-A. S1.
1.10. Com dispensa de vistos foram os autos à Conferência.
1. Resultam dos autos as seguintes ocorrências processuais.
1.1. No âmbito do processo de inquérito nº 100/18.0TRCBR o Ministério Público deduziu acusação contra:
- AA, casado, empresário, filho de BB e de CC, natural de ..., ..., em .../.../1951, residente na Avenida ..., ..., ...;
- DD, casado, juiz de direito, filho de EE e de FF, natural de ..., em .../.../1966, residente na Rua ..., ...;
- GG, casado, professor, filho de HH e de II, natural de ..., em .../.../1963, e residente na Rua ..., ..., ...;
- “M..., S.A.”, NIPC ..., com sede no Largo ..., ...;
- “V... Gold, SA”, NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., ..., ...;
- “V..., S.A.”, NIPC ..., com sede no Largo ..., ...;
- “T..., S.A.”, NIPC ..., com sede na ..., ...;
- “P..., S.A.”, NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., ..., ...;
- “C..., S.A.”, NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., ..., ...;
- “F..., SA”, NIPC, ..., com sede na Rua ..., ...;
- “H..., S.A.”, NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., ..., ...;
imputando aos arguidos os seguintes crimes:
Ao arguido AA, em concurso real e efetivo:
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de corrupção ativa para ato ilícito, previsto e punido pelos artºs 374º, n.º 1, agravado nos termos do art.º 374º- A n.ºs 1, 2 e 3;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c) da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 6º n.ºs 1 e 4, al. a) parte final e b) da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro.
Ao arguido DD, em concurso real e efetivo:
- A autoria material, sob a forma consumada, de um crime de corrupção passiva para ato ilícito, previsto e punido pelos art.ºs 386º, n.º 3, al. a) e 373º, n.º 1, agravado nos termos do art.º 374º –A, n.ºs 1, 2 e 3 do Código Penal;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c), da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 6º n.ºs 1 e 4, al. a) parte final e b) da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c) da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 6º n.ºs 1 e 4, al. a), parte final e b) da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelos art.ºs 386º, n.º 3, al. a) e 382º do Código Penal.
Ao arguido GG, em concurso real e efetivo:
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c), da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 6º, n.ºs 1 e 4, al. a), parte final e b), da Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelos art.ºs 386º, n.º 3, al. a), 26.º e 28.º, n.º 1 e 382º todos do Código Penal.
Às arguidas “M..., S.A.”, “V... Gold, SA”, “V..., S.A.”, “T..., S.A.”, “P..., S.A.”, “C..., S.A.”, “F..., SA”, “Hotel ... – Atividades H..., S.A.”, em concurso real e efetivo:
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de corrupção ativa para ato ilícito, previsto e punido pelos art. ºs 11.º, n.ºs 1, 2, alínea a), 4.º, 9.º e 10.º, 374º, n.º 1 agravado nos termos do art.º 374-A n.ºs 1, 2 e 3;
- A coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de acesso ilegítimo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 3º, al. b), 4º, al. d), 43º, 50º n.ºs 1 e 2, al. c) da Lei n.º 34/2009 de 14 de julho, e 9º, 6º n.ºs 1 e 4, al. a) parte final e b) da Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro, tudo por força dos factos descritos na acusação, para cujo teor se remete, por comodidade de exposição.
1.2. Em 24 de novembro de 2021, mediante requerimento dirigido ao Exmº Senhor Juiz Desembargador de Instrução Criminal, os arguidos AA, “M..., S.A.”, “V... Gold, SA”, “V..., S.A.”, T..., S.A.”, “P..., S.A.”, “C..., S.A.”, “F..., SA”, e “H..., S.A.”, vieram requerer a abertura de instrução.
Em 6 de dezembro de 2021, também o arguido GG requereu a abertura de instrução.
1.3. Por despacho de 18 de janeiro de 2022, o Exmº Procurador-Geral Adjunto determinou a remessa dos autos para instrução tendo os autos sido remetidos ao Tribunal da Relação de Coimbra.
1.4. Remetidos os autos à distribuição por despacho de 3 de fevereiro de 2022 o Mmº Juiz Desembargador declarou a incompetência hierárquica do Tribunal da Relação de Coimbra para proceder à instrução requerida nos autos, determinando-se a sua remessa para o competente juízo de Instrução Criminal ..., por ser o competente,
1.5. O Ministério Público requereu, ao abrigo do disposto no art. 380º, nº1 al. b) e nº 3 do Código de Processo Penal a aclaração do despacho de 3 de fevereiro de 2022, alegando que não resulta suficientemente evidenciada a determinação da separação do processo relativo ao arguido DD, decorrência lógica daquele despacho.
1.6. O Mmº Juiz Desembargador veio a proferir o despacho de aclaração em 21 de fevereiro de 2022.
2.1. No caso são dois recursos a conhecer:
O recurso de Ministério Público; e
O recurso dos arguidos, com exceção do arguido DD.
O objeto de ambos recursos é o mesmo relativamente ao despacho que determinou a cessação da conexão processual, ordenando a separação do processo, no que se reporta ao arguido DD, e declarou a incompetência do Tribunal da Relação de Coimbra.
Os arguidos recorrem ainda do despacho de 21 de fevereiro de 2022, porquanto no seu entender, «a aclaração ou correção de um despacho só é possível, à luz do artigo 380.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do CPP, se não importar modificação essencial do decidido. Porém, o que o Tribunal a quo decidira no pretérito despacho de 03.02.2022 nada dizia sobre uma separação de processos, relativamente ao Arguido DD ou a qualquer outro. Sendo que o Tribunal a quo chega mesmo a apontar que a razão de ser da competência do Tribunal de Instrução Criminal ... assentava na circunstância de ter sido nessa cidade que estariam os escritórios do grupo empresarial aos quais o Arguido DD se deslocaria. Ao contrário do que refere o Tribunal a quo, a separação de processos não é mera “decorrência lógica” do despacho de declaração de incompetência. No máximo – e sem conceder –, ela seria um pressuposto normativo necessário da eventual decisão de incompetência. Não tendo o despacho de 03.02.2022 sido objeto de impugnação – em tanto quanto é do conhecimento dos Arguidos aqui Recorrentes –, impõe-se concluir que sobre ele se formou caso julgado em sentido formal e, por isso, se exauriu o poder jurisdicional do Tribunal sobre a sua competência (bem ou mal, decidida em sentido negativo).
2.1.1. Analisando em primeiro lugar o recurso dos arguidos do despacho de 21 de fevereiro de 2022, ou seja, do despacho que procedeu à aclaração do despacho de 03 de fevereiro de 2022.
De harmonia com o disposto no art. 380º, nº1, al b), do CPP, «O Tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença, quando, a sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial”.
Conforme refere Maia Gonçalves, [2] «prevê-se neste artigo um processo de correção da sentença (...) e ainda quando a sentença contiver lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial. (...) São válidos nestes aspetos, os ensinamentos do processo civil, apesar da constatação de que este Código vai mais longe que o CPC e que o CPP de 1929 na sanação de nulidades e na possibilidade de correção da sentença».
A este propósito escreve Miguel Teixeira de Sousa, [3] (...) A incorreção da decisão pode decorrer de erro materiais (arts. 667º, nº1) ou da sua obscuridade ou ambiguidade [art. 669º, nº1 al a)].
(...) A obscuridade e ambiguidade da decisão permitem que qualquer das partes requeira o seu esclarecimento ao tribunal que a proferiu [art. 669º, nº1, al a)]. A obscuridade traduz-se numa dificuldade de perceção do sentido da expressão ou da frase: a ambiguidade na possibilidade de atribuir vários sentidos a uma expressão ou a uma frase (cfr. RC - 7/6/1994 BMJ 438, 569). (…)".
Por seu turno, diz-nos Alberto dos Reis, [4] “ (…) A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível: é ambígua quando nalguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz”
No despacho de 03 de fevereiro de 2022 objeto de pedido de aclaração pelo Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra, o Exmº Juiz Desembargador escreveu o seguinte, na parte que aqui releva:
“não obstante, estando em causa a abertura de instrução, o Tribunal da Relação apenas seria competente para o efeito se esta fase processual tivesse sido requerida por arguido abrangido por foro especial”
(…)
“Em coerência com os citados normativos, o artº 12º, nº3, al. a) do CPP, estabelecendo a competência das Secções Criminais das relações em matéria penal, atribui-lhes a Competência para o julgamento de processos por crimes cometidos por juízes de direito, procuradores da República e procuradores-adjuntos, competindo individualmente aos juízes das Secções Criminais praticar os atos jurisdicionais relativos ao inquérito, dirigir a instrução, presidir ao debate instrutório e proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia nos processos a que se refere o último normativo citado”.
“Esta atribuição de foro especial não se destina ao reforço das garantias ao arguido – solução inadmissível e que enfermaria inconstitucionalidade- visando exclusivamente a defesa do prestígio do exercício da função quando esteja em causa um crime cometido por magistrado, garantindo que a instrução ou o julgamento são assegurados por magistrados com categoria superior ao magistrado arguido” (…)
“No caso vertente, o único arguido que não requereu a Instrução foi precisamente aquele que determinaria o foro especial, por se tratar de juiz de direito, a saber o arguido DD” (…)
“Estamos perante situação de conexão que permitiu a elaboração de um só processo…” (…)
“Nessa medida e visto o disposto nas disposições legais citadas, declara-se incompetência hierárquica do Tribunal da Relação de Coimbra para proceder à Instrução requerida nos autos, determinando-se a sua remessa para o competente juízo de Instrução Criminal”.
Considerando que no despacho em causa se reconhece a existência de conexão processual, se reconhece a competência do Tribunal da Relação de Coimbra para julgar o crime cometido pelo arguido DD, por ser juiz de direito, que não requereu instrução, por outro lado declara-se o Tribunal da Relação de Coimbra incompetente para proceder à instrução requerida pelos restantes arguidos, sem que se pronuncie sobre a forma de tramitar estas duas fases processuais em separado, impunha-se, pois, que esclarecesse se para tal haveria separação de processos.
Como bem salienta a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, no seu Parecer, «Efetivamente, pode razoavelmente atribuir-se-lhe pelo menos, dois sentidos;
o Senhor Desembargador, até poderia não pretender separar os processos e querer remeter todo o processo para a primeira instância para a realização da instrução requerida. E, realizada a instrução, aceitar julgar todo o processo no Tribunal da Relação de Coimbra. Mas também, poderia querer terminar a conexão e separar os processos (viu-se ser essa a sua pretensão ao aclarar o despacho).
O certo é que a essência do despacho não foi alterada com a aclaração. Não foi proferida outra decisão, mas esclarecida a que fora dada.
Assim sendo, impunha-se, pois, que tal despacho fosse aclarado, nos termos do art. 380º, nº1, al. b), do CPP, tal como foi requerido pelo Ministério Público».
Neste sentido, o despacho de 3 de fevereiro de 2022, limitou-se a esclarecer o despacho de 21 de janeiro de 2022, nos termos do artigo 380.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do CPP, não se verificando qualquer modificação essencial do decidido, pelo que improcede nesta parte o recurso dos arguidos.
2.2. Analisando o recurso do Ministério Público e o recurso dos arguidos, relativamente ao despacho que determinou a cessação da conexão processual ordenando a separação do processo, no que se reporta ao arguido DD, e declarou a incompetência do Tribunal da Relação de Coimbra para conhecer do processo em relação aos demais arguidos requerentes da abertura de instrução
Alegam que o despacho é nulo, por violação do disposto nos arts. 27.º e 31.º, al. b) do CPP, no sentido de que, nos casos de processos conexos da competência do Tribunal da Relação de Coimbra por força da regra estabelecida no art.º 27.º do CPP, a separação de processos nos termos do art.º 30.º do CPP implica que tal competência do Tribunal da Relação de Coimbra não se mantém relativamente aos arguidos do processo separado que não gozem do foro especial previsto no art.º 12.º, n.º 3, al. a) do CPP, tornando-se o Tribunal da Relação de Coimbra incompetente para conhecer do processo em relação a esses arguidos sem foro especial e passando a ser competente o tribunal de hierarquia inferior, é também inconstitucional, por violação do princípio do juiz natural previsto no artigo 32.º, n.º 9, da CRP, inconstitucionalidade que expressamente se invoca para efeitos de desaplicação de tais normas, no sentido interpretativo com que foram aplicadas.
Conforme se afirma no AC do STJ de 24 de fevereiro de 2022, processo nº 19/16.0YGLSB-L. S1, Relator Cid Geraldo, que seguimos de perto, em situação idêntica à dos presentes autos, e citado pelos recorrentes «as regras em matéria de competência, penal ou outra, têm como finalidade principal permitir saber antecipadamente, ou seja, ex ante qual o tribunal que há-de decidir ou julgar uma determinada causa. Só assim será possível respeitar o princípio do Juiz Natural (consagrado no art° 32° n° 9 da C.R.P.) e evitar os riscos da "escolha" ou manipulação da seleção do tribunal.
Com efeito, o disposto no n.º 9, do artigo 32.º, da Constituição, segundo o qual “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”, consagra o princípio do juiz legal ou do juiz natural, que visa garantir que nenhuma causa seja julgada por um tribunal criado ad hoc para esse efeito ou por um tribunal designado discricionariamente, devendo essa competência resultar da aplicação de normas orgânicas e processuais que contenham regras dirigidas à determinação do tribunal que há de intervir em cada caso, segundo critérios objetivos (vide, sobre o sentido e alcance do princípio do juiz natural, Figueiredo Dias, em “Sobre o sentido do princípio jurídico-constitucional do “juiz-natural”, na R.L.J., Ano 111.º, pág. 83-88, e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 614/2003, acessível em www.dgsi.tribunalconstitucional.pt.
Por sua vez, uma vez determinado o Tribunal de acordo com os critérios legais existentes, a causa não lhe poderá ser retirada, sob pena de desaforamento.
Atentar nas regras da competência do Tribunal é assim importante, ou antes, determinante, pois que a violação de tais regras constitui nulidade insanável, exceto no que respeita à competência territorial (que apenas pode ser arguida até ao início da audiência).
A função jurisdicional (a jurisdição), que pertence ao conjunto dos tribunais previstos na Constituição e na lei, está distribuída entre os vários tribunais de acordo com regras e critérios que definem para cada tribunal os limites ou o âmbito da sua jurisdição, isto é, a competência, que se reparte pelos tribunais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território - artigo 17º da LOFTJ.
A competência material dos tribunais, estabelecida em razão da natureza do caso e da matéria a decidir, pressupõe, porém, um pré-ordenamento de organização: a competência dos tribunais em razão da matéria é fixada por largo princípio de inclusão, competindo aos tribunais judiciais o conhecimento das causas que não sejam atribuídas a outra ordem de jurisdição (artigo 3º da LOFTJ), devolvendo-se aos sistemas de processo a definição e a atribuição de competência aos diversos tribunais em função da natureza das causas, ou em situações específicas, da qualidade das pessoas.
A competência em matéria penal, tal como definida e estabelecida nas leis de processo e de organização dos tribunais, delimita, pois, a medida da jurisdição, em matéria penal, dos diversos tribunais, rectius, de cada um dos tribunais. A delimitação é operada pela lei de processo em função de critérios objetivos e prefixados, tanto segundo normas de distribuição territorial - competência em razão de território, como, dentro desta, por conformação organizatória dos próprios tribunais nos casos de competência específica.
O estabelecimento das regras relativas à competência em matéria penal tem uma finalidade essencial que preside e tem de conformar a organização: permitir determinar ex ante o tribunal que há-de decidir um caso penal, evitando-se o risco de manipulação da competência, e especialmente, que a acusação possa escolher o tribunal que lhe parecer mais favorável, respeitando o princípio do juiz natural, com dimensão constitucional na formulação do artigo 32º, nº 9, da Constituição».
A competência material e funcional dos Tribunais em matéria penal, encontra-se regulada no Código do Processo Penal e nas leis de organização judiciária (art. 10º, do CPP).
Por seu turno o art. 12º, do mesmo compêndio normativo, sob a epígrafe: “Competência das relações”, no nº 3 consagra que «Compete às secções criminais das relações, em matéria penal:
a) Julgar processos por crimes cometidos por juízes de direito, procuradores da República e procuradores-adjuntos», e no nº 6 «Compete a cada juiz das secções criminais das relações, em matéria penal, praticar os atos jurisdicionais relativos ao inquérito, dirigir a instrução, presidir ao debate instrutório e proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia nos processos referidos na alínea a) do n.º 3».
Trata-se de uma «competência em matéria penal determinada pela qualidade de magistrado, designada frequentemente em linguagem marcada pela semântica da tradição como “foro especial”, constitui uma garantia, não pessoal, mas funcional, justificada por exigências próprias do prestígio e resguardo da função.
II - Motivada por exigências desta ordem, não constitui garantia ou privilégio que proteja ou adira a certa pessoa enquanto tal, mas apenas enquanto titular de dada categoria, na plenitude de exercício do complexo dos respetivos direitos e deveres. (Ac. STJ de 11/04/2007, Proc. 06P4820, rel. Cons. Santos Cabral).
A Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei nº 62/2013 de 26.08, com as alterações da Lei nº 40º-A/2016, de 22.12, da Lei n.º 94/2017, de 23.08, da Lei Orgânica n.º 4/2017, de 25.08, da Lei n.º 23/2018, de 05.06, do DL n.º 110/2018, de 10/12, da Lei n.º 19/2019, de 19.02, da Lei n.º 27/2019, de 28.03, da Lei n.º 55/2019, de 05.08 e da Lei n.º 107/2019, de 09.09, contém normas expressas sobre a fixação de competência segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território e o princípio de proibição de desaforamento, regras contidas nos seus artigos 37º a 39º.
Sobre a competência em razão da matéria e da hierarquia, regem as previsões contidas nos artigos 72º a 74º da LOSJ, sendo que, quanto à competência criminal, esta remete para a Lei de processo.
Nos presentes autos, a qualidade funcional de um dos arguidos, Juiz de Direito, determinou o foro próprio e a necessidade de intervenção do Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos dos artigos 19.º do EMJ e 12.º, n.º 3, al. a) e n.º 6 do Código de Processo Penal, bem como a competência deste, por conexão, quanto aos demais arguidos, por força do disposto no art.º 27.º do Código de Processo Penal, que consagra: «Se os processos conexos devessem ser da competência de tribunais de diferente hierarquia ou espécie, é competente para todos o tribunal de hierarquia ou espécie mais elevada».
Porém, uma vez deduzida a acusação e remetidos os autos à distribuição, o Exmº Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra, no despacho sob recurso, muito embora não ponha em causa a verificação dos pressupostos processuais de conexão, aceitando a competência atribuída por via das regras legais invocadas e ainda, ao abrigo das regras contidas nos artigos 24º e seguintes do Código de Processo Penal, no entanto, sem declarar aberta a instrução e sem se pronunciar sobre os requerimentos de instrução que lhe foram dirigidos pelos arguidos, declarou a incompetência hierárquica do Tribunal da Relação de Coimbra para proceder à instrução requerida nos autos, determinando a sua remessa para o competente juízo de instrução criminal.
Admitiu, porém, que a competência para a apreciação e julgamento da conduta do senhor juiz em questão cabe, nos termos previstos nos artigos 19º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais[5] e 12º, n.º 3, al. a), do CPP, à secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, tribunal de hierarquia imediatamente superior àquele em que o arguido exerceu funções.
Ou seja:
O Exmº Juiz Desembargador, determinou a cessação da conexão que implica a cessação da competência do Tribunal da Relação para a instrução do processo relativamente aos arguidos requerentes da instrução, mantendo-a, no entanto, para os ulteriores termos processuais relativamente ao arguido DD, nomeadamente, para o respetivo julgamento, fundamentando tal decisão, em suma, no seguinte:
«Sabido que na ausência de requerimento de abertura de instrução o desenvolvimento da tramitação processual implica a imediata remessa dos autos para julgamento, a circunstância de o arguido DD não ter requerido a abertura dessa fase processual facultativa legitima e impõe a conclusão de que pretende defender-se da acusação contra si formulada em audiência de julgamento e que o pretende, certamente, sem delongas de maior.
O Código de Processo Penal acolhe o princípio constitucionalmente consagrado do direito a um julgamento no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa), sendo manifestação desse princípio a norma do art. 30º, nº 1, al. c), que prevê a possibilidade de o tribunal, oficiosamente ou a requerimento, fazer cessar a conexão de processos referente a vários agentes quando esta puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer deles.
Tendo os demais arguidos requerido a abertura de instrução, o julgamento do único arguido que a não requereu, a manter-se a conexão, deveria aguardar pelo fim da instrução, com tudo o que isso poderia implicar em termos de protelamento do julgamento, por força da complexidade dos autos, dos tipos de crime imputados, da extensão dos factos e do modo de atuação descrito, a que acresce necessariamente a hipótese de interposição de recurso da decisão instrutória, pese embora os apertados limites em que este é admissível (cfr. art. 310º do CPP).
Neste enquadramento, o conhecimento resultante da prática judiciária aponta para uma acentuada probabilidade de a instrução se vir a traduzir num significativo retardamento do julgamento.
É precisamente a cessação da conexão que implica a cessação da competência do Tribunal da Relação para a instrução do processo relativamente aos arguidos requerentes da instrução, mantendo-a, no entanto, para os ulteriores termos processuais relativamente ao arguido DD, nomeadamente, para o respetivo julgamento.
Separado o processo relativamente a este arguido, nada obsta à sua imediata remessa para julgamento, que correrá independentemente das vicissitudes que afetem a marcha do processo referente aos demais coarguidos. O processo a eles respeitante, após o termo da instrução, prosseguirá, se for o caso, para julgamento no competente tribunal de 1ª instância, sem que a isso obste o disposto no art. 31º, al. b), do CPP, na medida em que uma vez operada a separação para que se proceda autonomamente à instrução, esta norma, interpretada de acordo com a economia da letra da lei e na harmonia do sistema, será inaplicável porquanto a conexão só opera relativamente aos processos que se encontrarem simultaneamente na fase de inquérito, de instrução ou de julgamento (nº 2 do art. 24º do CPP)».
Por fim determinou a extração de certidão integral do processado, com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto para indicação da prova da acusação com relevo para o julgamento do arguido DD, e a autuação do processado daí decorrente como processo autónomo e remessa à distribuição para julgamento, por este Tribunal da Relação, do arguido DD.
A separação de processos só pode ser ordenada nos termos do art. 30º, do CPP:
«1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 264.º, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do lesado, o tribunal faz cessar a conexão e ordena a separação de algum, alguns ou de todos os processos sempre que:
a) A conexão afetar gravemente e de forma desproporcionada a posição de qualquer arguido ou houver na separação um interesse ponderoso e atendível de qualquer um deles, nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva;
b) A conexão puder representar um risco para a realização da justiça em tempo útil, para a pretensão punitiva do Estado ou para o interesse do ofendido, do assistente ou do lesado;
c) A manutenção da conexão possa pôr em risco o cumprimento dos prazos de duração máxima da instrução ou retardar excessivamente a audiência de julgamento;
d) A conexão puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos; ou
e) Houver declaração de contumácia, ou o julgamento decorrer na ausência de um ou alguns dos arguidos e o tribunal tiver como mais conveniente a separação de processos.
Por seu turno consagra a alínea b) do art. 31º, do CPP, sob a epígrafe Prorrogação da competência: «A competência determinada por conexão, nos termos dos artigos anteriores, mantém-se:
b) Para o conhecimento dos processos separados nos termos do n.º 1 do artigo 30».
Do exposto se concluiu que a separação de processos não determina a remessa do processo separado para distribuição, permanecendo ele na mesma secção do mesmo tribunal, conforme a previsão do citado artigo 31º, al. b), do CPP.
O Exmº Juiz Desembargador fundamentou a cessação da conexão e a consequente separação do processo, na alínea c), do nº1, do art. 30º, do CPP, porquanto no seu entender a conexão puder retardar excessivamente o julgamento do arguido DD, único arguido que não requereu a abertura de instrução.
A competência para determinar a separação de processos cabe, na fase de Instrução, ao Juiz de Instrução, e, na fase de Julgamento, ao Juiz de Julgamento.
O Exmº Juiz Desembargador, por um lado, não tinha competência para fazer cessar a conexão e ordenar a separação de processos, na exata medida, que o processo ainda não se encontrava na fase de instrução, porquanto a mesma não foi declarada aberta, e por outro também não se encontra na fase de julgamento.
Com efeito, a fase de instrução começa com o despacho que declara a abertura de instrução e não com o requerimento de abertura de instrução (art. 287º, nº4, do CPP). No que se refere à fase de julgamento, inicia-se com o despacho a que alude os arts. 311º e 311º, - A, do CPP.
O Exmº Juiz Desembargador não interveio em nenhuma dessas fases, pois que não recebeu os requerimentos de instrução, declarando aberta a instrução, nem é o juiz de julgamento, pelo que nunca poderia o mesmo determinar a separação de processos.
Por outro lado, no caso dos autos não se verifica o fundamento para a cessação da conexão e a consequente separação do processo, nos termos da alínea c), do nº1, do art. 30º, do CPP.
Ao invés, tal como bem salienta a Exmª PGA no seu parecer, «A fase legal de Instrução nunca poderá ser vista como um agravamento para os direitos processuais dos arguidos, sendo antes, e ainda, uma fase complementar de salvaguarda desses direitos e do princípio constitucional previsto no artigo 32º, nº2, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito do arguido a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa».
Para além da instrução ter um prazo relativamente curto, no caso dos autos, uma vez que não há arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação, o prazo de duração máxima para tal fase facultativa é de quatro meses, de harmonia com o disposto no artigo 306º, nº1, do CPP.
Ora, o prazo máximo de quatro meses não permite sustentar que a fase instrutória possa retardar excessivamente um processo de forma a justificar uma separação de processos, num processo a que nunca foi, sequer, atribuída natureza urgente.
Como acima se referiu os requerimentos de abertura de instrução não foram ainda apreciados e admitidos, e não foi declarada aberta a instrução, pelo que não foram admitidas quaisquer diligências probatórias, sendo que apenas foi requerida a inquirição de quatro testemunhas, pelo que qualquer ponderação sobre aquilo que ainda não se sabe se vai ser aceite, e em que termos, sempre seria, temerariamente, precoce, tal como bem salienta a Exmª Procuradora- Geral Adjunta.
O art. 307º, do CPP, sob a epígrafe: «Decisão Instrutória» consagra no nº 4, o seguinte: «A circunstância de ter sido requerida apenas por um dos arguidos não prejudica o dever de o juiz retirar da instrução as consequências legalmente impostas a todos os arguidos».
Não há dúvida que com a separação de processos, este benefício resulta, inexoravelmente, comprometido.
Pelo que, cerceando esse crivo, o despacho recorrido introduziu um tratamento diferenciado, discriminatório e prejudicial ao arguido DD.
A condição de Magistrado e a prerrogativa legal de gozar de foro próprio não pode redundar numa diminuição das garantias processuais penais em relação aos demais.
Há uma evidente e injustificada violação das garantias constitucionais do processo penal e do princípio da igualdade. Desconsidera-se a igualdade dos cidadãos perante a lei (art.º 13º, n.º 1 da CRP) e suprime-se uma garantia de defesa (art.º 32º, n.º 1 da CRP).
2.2.2. Conhecendo a nulidade invocada pelos recorrentes:
Alegam os recorrentes que o despacho recorrido é nulo, por violação das regras de competência do tribunal integra o elenco taxativo de nulidades insanáveis previsto no artigo 119.º do Código de Processo Penal (alínea e)), designadamente, as regras de competência por conexão fixadas nos artigos 24.º, 27.º e 29.º a 31.º do Código de Processo Penal, mostrando-se de igual modo ferido de inconstitucionalidade, por contrariar a previsão dos artigos 13º, n.º 1 e 32.º, n.ºs 1 e 9, da Constituição da República Portuguesa, que expressamente se invoca para efeitos de desaplicação de tais normas, no sentido interpretativo com que foram aplicadas, porquanto a violação destas normas e a subsequente remessa dos autos ao Tribunal de Instrução Criminal ... constitui um verdadeiro desaforamento (artigo 39º da LOSJ), em colisão com a regra de prorrogação de competência do Tribunal da Relação de Coimbra para a apreciação do caso ainda que fosse determinada a separação processual (artigo 31º, alínea b), do CPP).
De harmonia com o disposto no art. 118º, do CPP – “Princípio da legalidade” «1. A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei. 2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular».
Por seu turno, dispõe o art. 119º, do CPP, sob a epígrafe “Nulidades insanáveis”, que «Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: (...)
e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º;
Do exposto se conclui que o despacho recorrido enferma da nulidade insanável prevista no art. 119º, alínea a), do CPP, por violação do disposto nos arts. 27.º e 31.º, al. b) do CPP, no sentido de que, nos casos de processos conexos da competência do Tribunal da Relação de Coimbra por força da regra estabelecida no art.º 27.º do CPP, a separação de processos nos termos do art.º 30.º do CPP implica que tal competência do Tribunal da Relação de Coimbra não se mantém relativamente aos arguidos do processo separado que não gozem do foro especial previsto no art.º 12.º, n.º 3, al. a) do CPP, tornando-se o Tribunal da Relação de Coimbra incompetente para conhecer do processo em relação a esses arguidos sem foro especial e passando a ser competente o tribunal de hierarquia inferior.
De igual modo a interpretação dada no despacho recorrido aos artigos 27.º e 31.º, al. b) do CPP, no sentido de que, nos casos de processos conexos da competência do Tribunal da Relação de Coimbra por força da regra estabelecida no art.º 27.º do CPP, a separação de processos nos termos do art.º 30.º do CPP implica que tal competência do Tribunal da Relação de Coimbra não se mantém relativamente aos arguidos do processo separado que não gozem do foro especial previsto no art.º 12.º, n.º 3, al. a) do CPP, tornando-se o Tribunal da Relação de Coimbra incompetente para conhecer do processo em relação a esses arguidos sem foro especial e passando a ser competente o tribunal de hierarquia inferior, é também inconstitucional, por violação do princípio do juiz natural previsto no artigo 32.º, n.º 9, da CRP, no sentido interpretativo com que foram aplicadas (neste sentido, decidiu o AC do STJ de 24 de fevereiro de 2022, processo nº 19/16.0YGLSB-L.S1, Relator Cid Geraldo, supra citado, e que seguimos de perto, em situação idêntica à dos presentes autos).
Termos em que acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:
a) Julgar procedente o recurso do Ministério Público e parcialmente procedente o recurso dos arguidos AA, M..., S.A. , V... Gold, S.A., V..., S.A. , T..., S.A., P..., S.A., C..., S.A., F..., SA ,“F...” e Hotel ... – Atividades H..., S.A.;
b) Em consequência revoga-se o despacho recorrido de 21 de fevereiro de 2021 e a sua aclaração de 03 de fevereiro de 2022, que determinou a cessação da conexão processual ordenando a separação do processo, no que se reporta ao arguido DD, e declarou a incompetência do Tribunal da Relação de Coimbra para conhecer do processo em relação aos demais arguidos requerentes da abertura de instrução, que deve substituído por outro que declare aberta a fase de instrução e se pronuncie sobre os requerimentos de instrução que vêm submetidos à apreciação do tribunal.
Sem tributação.
Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).
Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)
Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro 1º Adjunto)
Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira 2ª Adjunta)
______
[1] Lei n.º 21/85, de 30 de julho, sucessivamente alterada
[2] Código de Processo Penal Anotado, 199, 10ª Ed., pág. 678, em anotação ao artigo 380º, do CPP.
[3] In Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 1997, 2ª ed., pág. 225
[4] Código de Processo Civil Anotado, Vol -V, Coimbra-1984, pág. 151 em anotação ao art. 670º do Código de 39:
[5] Lei n.º 21/85, de 30 de julho, sucessivamente alterada