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DECISÃO NÃO RECORRÍVEL
PODER DISCRICIONÁRIO
ARBITRARIEDADE
Sumário
- Deve o prudente arbítrio do julgador ser entendido “como pressupondo uma apreciação jurisdicional necessariamente «não arbitrária», efectuada segundo critérios de ponderação e razoabilidade, que oriente os critérios de conveniência e oportunidade que estão na sua base sempre em função da realização dos fins do processo”.
Texto Integral
Decisão:
I – 1 – JSB e OUTROS (num total de 47), Autores nos autos de acção declarativa nº. 6699/09.5TVLSB, vieram, nos termos do artº. 643º do Cód. de Processo Civil, apresentar RECLAMAÇÃO contra o indeferimento do recurso interposto quanto à decisão interlocutória proferida em 28/02/2014, enunciando os seguintes fundamentos:
“1. Na sua Petição Inicial Aperfeiçoada de 27.01.2012 (ref.ª Citius 4888712) os Autores sugeriram ao Tribunal a quo as questões a ser objeto de reenvio prejudicial reenvio prejudicial (cfr. artigos 357.º a 359.º)
2. Nessa senda, o Tribunal a quo, por despacho de 31.12.2013 (ref.ª Citius 18971578), determinou o reenvio prejudicial de algumas questões para o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), a saber:
“1ª- A Directiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de Março de 2001, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de parte de empresas ou de estabelecimentos, em especial o seu artº 1º nº 1, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de “transferência de estabelecimento” abrange uma situação em que uma empresa ativa no mercado de voos charter é dissolvida por decisão da sua acionista maioritária, ela própria uma empresa ativa no sector da aviação e, no contexto da liquidação, a empresa mãe: i)- assume a posição da sociedade dissolvida em contratos de locação de aviões e nos contratos de voos charter em curso com os operadores turísticos; ii)- desenvolve atividade antes prosseguida pela sociedade dissolvida; iii)- readmite alguns trabalhadores até então destacados na sociedade dissolvida e os coloca a exercer funções idênticas; iv)- recebe pequenos equipamentos da sociedade dissolvida? 2ª- O artigo 267º (ex-artigo 234º) do TFUE deve ser interpretado no sentido de que o Supremo Tribunal de Justiça, perante a factualidade descrita na questão anterior e o facto de os tribunais nacionais inferiores que apreciaram o caso terem adotado decisões contraditórias, estava obrigado a proceder ao reenvio, para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, de questão prejudicial sobre a correta interpretação do conceito de “transferência de estabelecimento” na aceção do artigo 1º nº 1 da Directiva 2001/23/CE? 3ª- O Direito Comunitário e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no acórdão Köbler sobre a responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação de Direito Comunitário cometida por um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância, obsta à aplicação de uma norma nacional que exige como fundamento do pedido de indemnização contra o Estado a prévia revogação da decisão danosa?”
3. Na sequência da sua notificação quanto a este Despacho, em 20.01.2014 (ref.ª Citius 5175818) os aqui Autores vieram requerer a inclusão, no objeto do sobredito pedido de reenvio prejudicial, da seguinte questão:
“Em caso de resposta positiva à questão 1 e/ou à questão 2, deve considerar-se, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de fevereiro de 2009, ao ter decidido como decidiu, consubstancia o preenchimento dos pressupostos de existência de responsabilidade extracontratual do Estado Português, por violação do direito da União Europeia?” (sublinhado nosso).
4. Os Autores fundamentaram o seu pedido na circunstância de ser
“da maior importância que os referidos pressupostos [a observar para que haja lugar à responsabilidade extracontratual de um Estado-Membro por violação de direito da União Europeia] para o efeito definidos pelo Tribunal de Justiça da União Europeia sejam considerados, pelo conjunto dos Tribunais Nacionais dos Estados-Membros da União Europeia, da forma mais uniforme possível, importa expressamente indagar o Tribunal de Justiça da União Europeia sobre a existência, ou não, no caso concreto dos autos, de responsabilidade extracontratual do Estado Português por violação do direito da União Europeia”.
5. O Tribunal a quo recusou, através de decisão (interlocutória) datada 28.02.2014 (ref.ª Citius 19141650), aquela pretensão dos Autores, concluindo que:
“A questão que os autores sugerem (se o TJ lhe respondesse) decidiria o litígio dos autos, visto que com ela os autores pretendem que o TJ, no caso concreto, diga se existe ou não responsabilidade extracontratual do Estado Português por violação do Direito Comunitário. Assim, indefere-se o sugerido aditamento.” (destaque nosso)
(doravante a “Decisão Recorrida”).
6. Ora, estando em causa uma decisão interlocutória, a mesma não era passível de apelação autónoma (cfr. artigo 644.º, n.os 1 e 2, do CPC), pelo que foi apenas objeto de impugnação com o recurso de apelação apresentado quanto à sentença1, nos termos e para os efeitos do artigo 644.º, n.º 3, do CPC, enquanto recurso subsidiário
7. Porém, pronunciando-se quanto à admissibilidade do recurso o interposto quanto àquela decisão interlocutória datada de 28.02.2014 (ref.ª Citius 19141650), concluiu o Tribunal a quo, por via do Despacho sub judice de 30.09.2020 (ref.ª Citius 399066683), que
“(…) [a] circunstância de o Tribunal de reenvio não ter atendido à formulação sugerida por alguma das partes (por isso é, apenas, sugerida) deve considerar-se abrangida pelo poder discricionário do juiz que, assim, proferiu despacho não susceptível de recurso. Pelo exposto, não admito o recurso subsidiariamente interposto pelos Autores.” (destaque nosso)
(doravante o “Despacho Reclamado”)
8. Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 643.º, n.º 1, do CPC, vêm os Autores apresentar reclamação quanto ao Despacho Reclamado, que não admitiu o recurso interposto da Decisão Recorrida; fazem-nos pois, conforme melhor se detalhará de seguida, entendem que não é a Decisão Recorrida subsumível ao conceito de decisão proferida no uso legal de poder discricionário (cfr. artigo 152.º, n.º 4, do CPC), pelo que sempre seria – e é! – a mesma recorrível.
II. DO MÉRITO DA PRESENTE RECLAMAÇÃO
9. Conforme adiantado, o Despacho Reclamado configura a Decisão Recorrida como irrecorrível, porquanto proferida no uso legal de poder discricionário.
10. Fá-lo, designadamente, com fundamento no disposto nos artigos 152.º, n.º 4, e 630.º, n.º 1, do CPC, nos quais se dispõe, respetivamente, o seguinte:
“4 - Os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes; consideram-se proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador.” (destaque nosso).
“1 - Não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário.” (destaque nosso).
11. Sucede que mal andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, pois acaso tivesse concretizado o conceito (indeterminado) de “despacho proferido no uso legal de um poder discricionário”, facilmente teria concluído que a Decisão Recorrida não é subsumível à norma do artigo 152.º, n.º 4, e, consequentemente, ao disposto no artigo 630.º, n.º 1, do CPC.
De facto,
12. E em 1.º lugar, importa concretizar o que se deve entender por “poder discricionário /matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador”, para efeitos do disposto nos artigos 152.º, n.º 4, e 630, n.º 1, do CPC.
13. A este respeito, pronunciou-se já CASTRO MENDES, esclarecendo existir poder discricionário “(…) na medida em que a lei confere ao juiz uma ou mais alternativas de opção, entre as quais o juiz deve escolher em seu prudente arbítrio e em atenção [aos] fins do processo civil (…)” (destaque nosso).
14. Trata-se, portanto, de um poder conferido de forma vinculada para a satisfação de determinado fim, ao ponto de que, segundo o mesmo Autor, as decisões (putativamente) discricionárias serão passíveis de recurso.
15. Sendo certo que, conforme clarifica ABRANTES GERALDES “[n]ão basta que o juiz considere que o seu despacho se inscreve no âmbito dos poderes discricionários. Mais importante é que essa discricionariedade seja realmente comprovada, designadamente por não se questionar a legalidade da atuação.” (destaque nosso)
16. Também nesse sentido ALBERTO DOS REIS defende que não serão despachos proferidos no uso de poder legal discricionários aqueles ofendam os direitos processuais das partes:
“Os despachos mencionados no artigo 679.º [atual artigo 630.º] não admitem recurso porque, pela sua própria natureza, não são suscetíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros”. (destaque nosso).
17. Assim, em suma e com relevo para o tema sub judice, estamos perante um despacho proferido no uso legal de poder discricionário quando, cumulativamente, i. o julgador disponha de concretas alternativas no âmbito das quais poderá decidir de forma discricionária, ii. com vista à satisfação de determinado fim e iii. sem com isso ofender direitos processuais das partes ou de terceiros. Concretizado que está o conceito,
18. Perguntar-se-á, então, em 2.º lugar: será a Decisão Recorrida subsumível ao conceito de despacho proferido no uso de poder legal discricionário?
19. Para o efeito, recorde-se a decisão que é tomada na Decisão Recorrida:
“A questão que os autores sugerem (se o TJ lhe respondesse) decidiria o litígio dos autos, visto que com ela os autores pretendem que o TJ, no caso concreto, diga se existe ou não responsabilidade extracontratual do Estado Português por violação do Direito Comunitário. Assim, indefere-se o sugerido aditamento.” (destaque nosso).
20. Ora, no caso, é mister concluir que a Decisão Recorrida, tomada nos termos em que foi (no sentido do indeferimento do requerimento dos Autores), ofende os direitos processuais das partes ou de terceiros,
21. E isto na medida em que, i. não só cerceia os direitos de prova dos Autores quanto à demonstração fáctico-jurídica do seu pedido (e, nomeadamente, o direito de suscitar questões ao TJUE em sede de reenvio prejudicial),
22. Como também ii. cerceia a possibilidade – que ademais corresponde a um poder-dever jurisdicional – do (efetivo, pleno, e com conteúdo útil relevante) recurso ao TJUE com vista à necessária aplicação efetiva e uniforme do direito da União Europeia.
23. Precisamente no sentido exposto, exemplificando os casos em que o uso legal de poder discricionário não se verifica ou, a contrario, os casos em que exista um poder vinculado, avança ABRANTES GERALDES que “[a] decisão de negar ou de assumir o reenvio prejudicial não se inscreve nos poderes discricionários do juiz”,
24. Pelo que, também por um argumento a fortiori, terá natureza vinculada (e não discricionária) a decisão sobre o aditamento da questão formulado pelos Autores no seu requerimento 20.01.2014 (ref.ª Citius 5175818) ao objeto do pedido de reenvio prejudicial.
25. Termos em que, por não ter sido proferida no uso legal de poder discricionário, deverá ser proferida decisão que admita o recurso interposto quanto à Decisão Recorrida, nos termos e para os efeitos dos artigos 630.º, n.º 1, e 643.º, n.º 4, do CPC.
CONCLUSÕES
a. O Tribunal a quo, por via do Despacho sub judice de 30.09.2020 (ref.ª Citius 399066683), conclui que a decisão (interlocutória) datada 28.02.2014 (ref.ª Citius 19141650) foi proferida no âmbito de um poder discricionário, não sendo, por isso, suscetível de recurso.
b. Estamos perante um despacho proferido no uso legal de poder discricionário quando, cumulativamente, i. o julgador disponha de concretas alternativas no âmbito das quais poderá decidir de forma discricionária, ii. com vista à satisfação de determinado fim e iii. sem com isso ofender direitos processuais das partes ou de terceiros.
c. A decisão (interlocutória) datada 28.02.2014 (ref.ª Citius 19141650), objeto do recurso que o despacho sub judice não considerou admissível, tomada nos termos em que foi (no sentido do indeferimento do requerimento dos Autores de 20.01.2014, ref.ª Citius 5175818, nos termos do qual foi requerida a inclusão de uma questão adicional no objeto do pedido de reenvio prejudicial), ofende os direitos processuais das partes ou de terceiros.
d. É assim na medida em que, i. não só cerceia os direitos de prova dos Autores quanto à demonstração fáctico-jurídica do seu pedido (e, nomeadamente, o direito de suscitar questões ao TJUE em sede de reenvio prejudicial),
e. E também na medida em que ii. cerceia a possibilidade – que ademais corresponde a um poder-dever jurisdicional – do (efetivo, pleno, e com conteúdo útil relevante) recurso ao TJUE com vista à necessária aplicação efetiva e uniforme do direito da união europeia.
f. Destarte, a decisão (interlocutória) datada 28.02.2014 (ref.ª Citius 19141650) não é subsumível à norma do artigo 152.º, n.º 4, e, consequentemente, ao disposto no artigo 630.º, n.º 1, do CPC.
g. Por não ter sido proferida no uso legal de poder discricionário, deverá ser proferida decisão que admita o recurso interposto quanto à mesma, nos termos e para os efeitos dos artigos 630.º, n.º 1, e 643.º, n.º 4, do CPC.” (ignoraram-se as notas de rodapé).
Concluem, no sentido de “ser admitida a presente reclamação e, em consequência, nos termos e para os efeitos dos artigos 630.º, n.º 1, e 643.º, n.º 4, do CPC, proferida decisão que admita o recurso de apelação interposto pelos aqui Autores / Recorrentes quanto à decisão interlocutória proferida em 28.02.2014 (ref.ª Citius 19141650) e substitua, nessa parte, o despacho sub júdice proferido pelo Tribunal a quo no dia 30.09.2020 (ref.ª Citius 399066683)”.
2 – Respondendo à reclamação apresentada, nos termos do nº. 2, do artº. 643º, do Cód. de Processo Civil, veio o Recorrido Estado Português, aduzir o seguinte:
“Inconformados, os Autores – Apelantes reclamam do douto despacho que não admitiu o seu recurso “subsidiário”, sustentando que «errou» na consideração da irrecorribilidade do igualmente douto despacho visado nesse recurso, pois este, a seu ver, não foi proferido em exercício de um poder discricionário do Tribunal e corresponderia antes a uma «decisão interlocutória» tomada em função de um «poder vinculado» quanto ao reenvio prejudicial suscitado, cuja inobservância se traduziria na ofensa dos seus direitos processuais.
Porém, salvo o devido respeito e melhor opinião de V. Excelências, razão alguma assiste aos Reclamantes, que, aliás, contradizem agora os precisos (e correctos) termos em que «sugeriram» o reenvio das questões prejudiciais para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
Senão, vejamos:
O douto despacho reclamado entendeu, e bem, pela irrecorribilidade do despacho de 28-02-2014 (Ref.ª 19141650), visado no recurso “subsidiário” dos Autores, considerando que foi proferido no uso legal de um poder discricionário, na medida em que cabia exclusivamente ao Tribunal decidir, segundo o seu prudente arbítrio, a formulação das concretas questões a submeter ao TJUE em sede de reenvio prejudicial.
A decisão mostra-se devida e curialmente fundamentada, pelo que pouco ou nada poderemos acrescentar em sua sustentação.
Todavia, focando a reclamação apresentada e os argumentos dos Reclamantes, não poderemos deixar de notar que, mais uma vez, mudam de posição.
Com efeito, em sede da petição inicial aperfeiçoada, apresentada no dia 29-01-2012 (Ref.ª 4888712), os Autores, ora Reclamantes, sugeriram o reenvio prejudicial ao TJUE das questões tidas por convenientes sobre a interpretação do direito comunitário por si invocado. O que fizeram, salienta-se, segundo as indicações da “Nota informativa relativa à apresentação de pedidos de decisão prejudicial pelos órgãos jurisdicionais nacionais”, publicada no JO C297, de 05.12.2009, expressamente citada no art.º 358.º da petição e na correspondente nota de rodapé 67.
Em plena conformidade com essas orientações, os Autores vieram «sugerir um conjunto de questões a ser objecto de reenvio prejudicial por este Tribunal (…)» - sic, art.º 357.º da citada PI, com negrito nosso. E, para o efeito, não só reconheceram que «(o) reenvio prejudicial é da competência deste Tribunal, o qual deverá, se assim o entender, proceder ao reenvio (…) – art.º 358.º da PI, como igualmente admitiram: «Nestes termos, as questões infra propostas e que se afiguram condição necessária ou manifestamente relevante à boa decisão da presente causa, configuram uma mera sugestão e têm um carácter necessariamente sucinto.» - sic, art.º 359.º da PI, com negrito nosso.
Esta “sugestão” – e disso se tratava efectivamente, por respeitar a um reenvio facultativo, que só ao Tribunal caberia decidir – veio a ser acolhida no douto despacho de 31-12-2013 (Ref.ª 18971578), que determinou o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça das questões nele formuladas, diga-se, também, em sintonia com as anteriormente sugeridas pelos Autores.
Sucedeu que, depois, por requerimento de 20-01-2014 (Ref.ª 5175818), os Autores vieram pedir o aditamento de uma nova e diversa questão a incluir no reenvio prejudicial.
Ora, foi o adicionamento dessa nova questão que veio a ser recusado pelo douto despacho de 28-02-2014 (Ref.ª 19141650), do qual os Autores – Apelantes intentam recorrer.
Porém:
Não se divisa como possam agora os Reclamantes sustentar razoavelmente que não cabia ao Tribunal a livre apreciação do citado aditamento da nova questão, visto que, como antes tinham reconhecido e invocado, só ao Tribunal Nacional competia formular as questões que tivesse por convenientes. E pior se compreende como possam agora invocar que, ao invés dessa livre apreciação, o Tribunal tivesse antes um «poder-vinculado» de decisão sobre o correspondente «requerimento» (e não já da sua mera sugestão, como antes disseram no processo).
É claro que, deste modo, para além da apontada contradição da sua posição, os Reclamantes esquecem agora que a necessária observância da supracitada «Nota informativa», antes invocada pelos próprios, conduz precisamente à ideia de o Tribunal Nacional, enquanto órgão de reenvio, deter um poder de livre apreciação e decisão quanto à formulação das questões a suscitar ao Tribunal de Justiça.
Os Reclamantes esquecem, também, que este é o entendimento unívoco da Jurisprudência estabelecida sobre o assunto, segundo a qual o reenvio prejudicial para o TJUE é, em princípio, facultativo, dependendo exclusivamente da decisão discricionária do Tribunal Nacional quanto à sua necessidade e oportunidade (neste sentido, cf., entre outros, os Acórdãos do STJ de 17-03-2016, Processo n.º 588/13.6TVPRT.P1.S1, e desse V. Tribunal da Relação de Lisboa de 17-01-2013, Processo n.º 2848/10.9TVLSB.L1-2).
E esquecem, sobretudo, a clarificadora Jurisprudência constante do próprio Tribunal de Justiça sobre o tema, segundo a qual «compete exclusivamente ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça» – V., neste sentido: Acórdão de 10 de Julho de 2018, Jehovan Todistajat, C‑25/17, EU:C:2018:551, n.º 31; Acórdão de 27 de Junho de 2017, Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania, C‑74/16, EU:C:2017:496, n.º 24; Acórdão de 21 de Dezembro de 2016, Vervloet, C‑76/15, EU:C:2016:975, n.º 56; Acórdão de 15 de Janeiro de 2013, Križan e o., C‑416/10, EU:C:2013:8, n.º 53; Acórdão de 5 de Março de 2015, Banco Privado Português e Massa Insolvente do Banco Privado Português, C‑667/13, EU:C:2015:151, n.º 34; Acórdão de 10 de Março de 2009, Hartlauer, C‑169/07, Colectânea, p. I‑1721, n.º 24; Acórdão de 19 de Julho de 2012, Garkalns, C‑470/11, n.º 17.
Deste modo, considerando a necessária observância da apontada «Nota informativa», o ensinamento jurisprudencial sobre a sua aplicação, bem como o efeito vinculativo da citada Jurisprudência do TJUE quanto à devida interpretação e aplicação do artigo 267.º TFUE, poderemos concluir, com segurança e sem sombra de dúvida, que o Tribunal «a quo» não estava vinculado ao pedido de reenvio prejudicial (facultativo) dos Autores, nem muito menos às questões que sugerissem para o efeito, podendo, como tal, aceitá-las, ou não, segundo o seu prudente arbítrio.
Tentando negar a evidência, os Reclamantes enveredam por uma argumentação desfasada da realidade, designadamente quando invocam cerceados os “seus” direitos processuais.
Assim, cumpre ainda esclarecer:
O artigo 267.º TFUE não faculta às partes processuais o direito de suscitarem o reenvio prejudicial facultativo para o TJUE, pois essa é uma competência exclusiva do órgão jurisdicional nacional; consequentemente, o douto despacho de 28-02-2014 (Ref.ª 19141650) não teria de decidir sobre quaisquer direitos processuais dos Autores, ora Reclamantes, porquanto inexistentes neste âmbito.
Em todo o caso, o reenvio prejudicial já tinha sido determinado nos autos.
Por isso, e sem conceder, mesmo admitindo que os Autores tivessem diverso “interesse” no reenvio, certo seria que a posterior decisão sobre a admissão ou recusa da questão adicional sugerida não teria nunca a virtualidade de reconhecer ou negar aquele interesse, já assegurado pelo anterior e douto despacho de 31-12-2013 (Ref.ª 18971578).
Nem em contrário se diga que estivesse em causa o necessário complemento desse já determinado reenvio prejudicial, porquanto:
a) ainda que esta fosse a perspectiva dos Autores, levaria a reconhecer a vinculação do douto Tribunal «a quo» ao entendimento daqueles sobre a (in)suficiência das questões já formuladas, o que seria totalmente absurdo e gritantemente contrário ao válido reconhecimento da sua inteira liberdade de decisão sobre a oportunidade, conveniência e formulação das questões a submeter ao JTUE;
b) e, por outro lado, se aquela fosse a consideração a atender, tão pouco poderia relevar à pretensão dos Reclamantes, na medida em que a pretensa “necessidade” da questão adicional – visando, em síntese, saber se o douto Acórdão do STJ de 25/02/2009, em causa nos presentes autos, consubstancia o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade extracontratual do Estado à luz do direito comunitário – sempre seria infirmada pela sua clara e evidente inadmissibilidade, seja por não se prender com qualquer dúvida de interpretação do direito comunitário, mas sim com a concreta valoração jurídica da factualidade dos autos, seja também pelo desaforamento a que conduziria, visto que transferiria para o TJUE a pronúncia relativa à questão essencial do processo para o TJUE e, na prática, deixaria a seu cargo a decisão do mérito da acção.
Finalmente, tão pouco se compreende como possam os Reclamantes afirmar que o douto despacho visado no seu recurso (o despacho de 28-02-2014, Ref.ª 19141650) cerceou a possibilidade de fazerem prova dos fundamentos fáctico-jurídicos da acção, porquanto é evidente que o mecanismo de reenvio prejudicial visa, tão só, o esclarecimento das dúvidas eventualmente existentes em matéria de interpretação e aplicação do direito comunitário, sendo que, precisamente por isso, não poderá ser entendido como um «meio probatório». Na verdade, como se acreditava sabido, não assiste às partes processuais o ónus de prova quanto ao direito invocado, que, aliás, nem sequer vincula o Tribunal (art.º 5.º n.º 3 do CPC).
Pelo exposto, cabe concluir:
1. Como os próprios Autores/Reclamantes inicialmente reconheceram, e como bem entendeu o douto despacho reclamado, só ao Tribunal «a quo» (enquanto órgão jurisdicional de reenvio) competia decidir livremente do reenvio prejudicial facultativo e, bem assim, formular as questões que entendesse submeter ao Tribunal de Justiça para melhor habilitar a decisão final do processo.
2. Tal implica necessariamente o poder de livre apreciação das questões que, para o efeito, lhe tivessem sido «sugeridas» pelas partes processuais, em ordem à sua aceitação, reformulação ou recusa.
3. E assim, por maioria de razão, quando já determinado o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça, caberia igualmente ao Tribunal «a quo» apreciar, segundo o seu prudente arbítrio, o «sugerido» aditamento de uma nova questão.
4. Daí que o douto despacho de 28-02-2014 (Ref.ª 19141650), comportando a apreciação e recusa do aditamento de uma nova questão ao reenvio prejudicial já antes determinado, tenha sido proferido no uso do poder discricionário (inerente à livre apreciação) de que dispunha o Tribunal quanto à formulação das questões a submeter ao Tribunal de Justiça, sendo, portanto, irrecorrível, como bem entendeu o douto despacho ora reclamado” (ignoraram-se as notas de rodapé).
Conclui, no sentido de indeferimento da reclamação e confirmação do despacho reclamado.
II – São os seguintes os factos a considerar, tendo por base a consulta dos requerimentos e decisões proferidas nos autos principais declarativos:
a) Em 27/01/2012, foi apresentada nos autos principais declarativos petição inicial aperfeiçoada, da qual constava, sob os artigos 357º a 359º, o seguinte:
“357.º Em face dos temas abordados nesta Petição Inicial a propósito da inaplicabilidade do n.º 2 do artigo 13.º do Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas e das violações de direito comunitário cometidas pelo Supremo Tribunal de Justiça, os Autores permitem-se sugerir um conjunto de questões a ser objecto de reenvio prejudicial por este Tribunal, nos termos do 2.º parágrafo do artigo 267.º [ex-artigo 234.º] do TFUE com vista a boa decisão da causa.
358.º O reenvio prejudicial é da competência deste Tribunal, o qual deverá, se assim o entender, proceder ao reenvio nos termos previstos na “Nota informativa relativa à apresentação de pedidos de decisão prejudicial pelos órgãos jurisdicionais nacionais”, expondo adequadamente o quadro factual e jurídico do caso em análise.
359.º Nestes termos, as questões infra propostas e que se afiguram condição necessária ou manifestamente relevante à boa decisão da presente causa, configuram uma mera sugestão e têm um carácter necessariamente sucinto:
“1. A Directiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de Março de 2001, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de partes de empresas ou de estabelecimentos, em especial o seu artigo 1.º, n.º 1, deve ser interpretada no sentido de que o conceito de “transferência de estabelecimento” abrange uma situação em que uma empresa activa no mercado de voos charter é dissolvida por decisão da sua acionista maioritária, ela própria uma empresa activa no sector da aviação, e, no contexto da liquidação, a empresa-mãe: (i) assume a posição da sociedade dissolvida em contratos de locação de aviões e nos contratos de voos charter em curso com os operadores turísticos, (ii) desenvolve a actividade antes prosseguida pela sociedade dissolvida; (iii) readmite algumas trabalhadores até então destacadas na sociedade dissolvida, e as coloca a exercer funções idênticas; (iv) recebe pequenos equipamentos da sociedade dissolvida? 2. O artigo 267.º [ex-artigo 234.º] do TFUE deve ser interpretado no sentido de que o Supremo Tribunal de Justiça, perante a factualidade descrita na questão anterior e o facto de os tribunais nacionais inferiores que apreciaram o caso terem adoptado decisões contraditórias, estava obrigado a proceder ao reenvio, para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, de questão prejudicial sobre a correcta interpretação do conceito de “transferência de estabelecimento” na acepção do artigo 1.º, n.º 1 da Directiva 2001/23/CE? 3. O direito comunitário e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no acórdão Köbler sobre a responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação de direito comunitário cometida por um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância obsta à aplicação de uma norma nacional que exige como fundamento do pedido de indemnização contra o Estado a prévia revogação da decisão danosa?”” ;
b) Em 31/12/2013, no âmbito dos mesmos autos, foi proferido o seguinte despacho:
“Decisão de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
I- Relatório Sobre o Objecto do Litígio.
1- JSB e outros noventa e seis cidadãos, instauraram acção declarativa, com forma ordinária, contra o Estado Português, ao abrigo do artº 13º da Lei 67/2007, de 31/12, com as alterações introduzidas pela Lei 31/2008, de 17/07 (de que se anexam cópias como documento 1), relativa ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (doravante RRCEE), pedindo, em síntese, a condenação do réu Estado Português:
a) - No pagamento dos danos patrimoniais causados aos autores, correspondentes a:
i)-Todas as remunerações deixadas de auferir, desde a data do despedimento colectivo (30/04/1993) até á datam da prolação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (25/02/2009) de acordo com a sua categoria e antiguidade, devidamente actualizadas;
ii)-As remunerações de que foram privados, desde 25/02/2009, até à data previsível das respectivas reformas aos 65 anos de idade;
iii)- Os danos patrimoniais correspondentes à diminuição patrimonial no montante das respectivas reformas que no futuro seria recebida por cada um dos autores em consequência da não consideração das remunerações intercalares de que foram privados desde 30/04/1993, a apurar em liquidação posterior.
b)-Para os autores que entretanto celebraram novos contratos com a TAP ou outras entidades, o ressarcimento dos danos correspondentes às remunerações que deixaram de auferir até às respectivas readmissões, e as diferenças nos respectivos atrasos nas progressões das carreiras e nas respectivas reformas;
c)- …
d)- Indemnização por danos não patrimoniais no valor não inferior a 10 000€ para cada um dos autores.
Alegam, em síntese, que eram trabalhadores da Air Atlantis, SA (AIA) e foram alvo de despedimento colectivo com fundamento no encerramento da empresa; impugnaram judicialmente, junto do Tribunal do Trabalho de Lisboa, esse despedimento colectivo pedindo, em síntese, as respectivas reintegrações na TAP e o pagamentos das retribuições intercalares, invocando que embora haja sido alegado como fundamento do despedimento colectivo o encerramento definitivo da empresa (AIA) nos termos do artº 16º do DL 64º-A/89, de 27/02 (de que se anexa cópia como documento nº 2), a intenção da TAP foi a de retomar a actividade até então desenvolvida pela AIA no mercado de voos charter, devendo aquela cessação da actividade pela AIA ser tida como uma transmissão de estabelecimento e não como encerramento definitivo de empresa, visto que foram transmitidos para a TAP, equipamentos de escritório, equipamentos de bordo, a posição de locatário em contratos de leasing relativos a quatro aviões e que a TAP efectuou os voos charters que haviam sido contratados pela AIA.
Por decisão do Tribunal do Trabalho de Lisboa (1ª instância) de 06/02/2007, foi a acção de impugnação do despedimento colectivo julgada parcialmente procedente e decidida a reintegração dos autores nas categorias correspondentes, sem prejuízo das suas antiguidades e, no pagamento de indemnizações. Para fundamentar esta decisão, o Tribunal do Trabalho de Lisboa, considerou: “O conceito de empresa e estabelecimento tem sido largamente desenvolvido sobretudo pela jurisprudência do TJCE ao abrigo desta primeira Directiva [Directiva 77/187/CEE, de 14.02.77], que vem sempre afirmando um conceito amplo de transmissão de estabelecimento ao englobar o seu todo, ou apenas uma só parte, entendendo-se por estabelecimento/empresa qualquer unidade mínima de produção capaz de operar com alguma autonomia. A jurisprudência do TJ, neste entendimento amplo de transmissão, sempre considerou como critério decisivo para saber se existiu uma transferência determinar se há conservação da identidade do estabelecimento e prossecução da sua actividade após a passagem de um possuidor para outro.”; considerando ainda: “Por tudo se conclui que ocorreu transmissão de estabelecimento, pelo menos em parte, porque se mantém a sua identidade e prossecução da mesma actividade, passando a ré TAP a ocupar a posição jurídica de empregador nos contratos de trabalho, motivo pelo qual a recusa em admitir os autores é ilícita, com as legais consequências.”. Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que pelo Acórdão de 16/01/2008 alterou aquela decisão na parte em que havia condenado na reintegração dos trabalhadores e no pagamento de indemnizações, entendendo ser procedente a caducidade do direito de impugnação do despedimento colectivo. Os trabalhadores recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que por decisão de 25/02/2009 decidiu que o despedimento colectivo não enfermava de qualquer ilicitude, rejeitando a interpretação de transmissão do estabelecimento e, recusando o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça das Comunidades, que lhe foi suscitado por alguns dos trabalhadores nas alegações de recurso.
Defendem que o acórdão proferido pelo STJ que decidiu pela licitude dos seus despedimentos da AIA é manifestamente ilegal, por fazer numa errada interpretação do conceito de “transferência de estabelecimento” na acepção da Directiva 2001/23/CE do Conselho de 12 de Março de 2001 e, porque violou o dever de submeter ao TJCE o reenvio de questões de Direito Comunitário pertinentes.
2 - O Estado Português contestou invocando, além do mais, a norma do nº 2 do artº 13º do RRCEE, que estabelece “O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.”, defendendo que não tendo sido revogada a decisão do STJ, que fundamenta a acção, não há lugar ao pagamento de qualquer indemnização.
3 - Em audiência preliminar, condensou-se o processo seleccionando-se a matéria de facto assente e a matéria de facto ainda controvertida.
II - Factualidade relevante e já provada.
Estão provados, com relevância para as questões que se colocam, os seguintes factos:
1º-No dia 19.02.93 foi deliberado em Assembleia-geral Extraordinária dissolver a Ré AIA.
2º- A AIA, criada em 1985, dedicava-se à indústria de transporte aéreo não regular e serviços complementares com ela relacionados.
3º- Os ora autores eram trabalhadores da AIA.
4º- A partir de 93.05.01 a TAP passou a realizar pelo menos parte das operações dos voos de fretamento (charter) já contratados pela AIA para o período de 93.05.01 a 93.10.31, Verão IATA de 93, contratos firmados antes da sua dissolução, decisão que, pelo menos em parte, visou evitar prejuízos decorrentes do não cumprimento dos contratos já celebrados entre a AIA e os operadores turísticos, que implicavam o pagamento de elevadas indemnizações.
5º- Utilizando, para tal, pelo menos parte do equipamento que a AIA até ali utilizava nas suas operações.
6º- Designadamente 3 aviões B …/… com as matrículas …-…, …-… e …-…, e 1 avião B …/…, com a matrícula …-…, assumindo o pagamento das respectivas rendas nos leasing contratados, tomando a posição de locatário nos respectivos contratos.
7° - Igualmente passou a ser utilizado pela TAP equipamento de escritório (mobiliário e computadores) que a AIA possuía e utilizava nas suas instalações em Lisboa e em Faro, e outro equipamento tal como as " loiças " utilizadas nos aviões.
8º - A AIA, por intermédio da comissão liquidatária, entregou à TAP equipamento de escritório e outro, entrega que posteriormente foi tida em conta no âmbito da liquidação da AIA, considerando a posição de principal accionista e credora por parte da TAP.
9º- A partir de 1 de Maio de 1993, a TAP, que se dedicava quase em exclusivo a actividade de transportes aéreos regulares, além de realizar parte dos voos já contratados pela AIA no período referidos em 4, passou a assegurar também operações no mercado "charter" que até ali não assegurava por constituírem rotas tradicionais da AIA.
10º- A TAP veio a contratar alguns trabalhadores da extinta AIA, que exerceram funções, entre outras nos voos “charter” que haviam sido contratados pela AIA.
11º- Por decisão do Tribunal do Trabalho de Lisboa (1ª instância) de 06/02/2007, foi a acção de impugnação do despedimento colectivo julgada parcialmente procedente e decidida a reintegração dos autores nas categorias correspondentes, sem prejuízo das suas antiguidades e no pagamento de indemnizações; para fundamentar esta decisão, o Tribunal do Trabalho de Lisboa, considerou: “O conceito de empresa e estabelecimento tem sido largamente desenvolvido sobretudo pela jurisprudência do TJCE ao abrigo desta primeira Directiva [Directiva 77/187/CEE, de 14.02.77], que vem sempre afirmando um conceito amplo de transmissão de estabelecimento ao englobar o seu todo, ou apenas uma só parte, entendendo-se por estabelecimento/empresa qualquer unidade mínima de produção capaz de operar com alguma autonomia. A jurisprudência do TJ, neste entendimento amplo de transmissão, sempre considerou como critério decisivo para saber se existiu uma transferência determinar se há conservação da identidade do estabelecimento e prossecução da sua actividade após a passagem de um possuidor para outro.”; considerando ainda: “Por tudo se conclui que ocorreu transmissão de estabelecimento, pelo menos em parte, porque se mantém a sua identidade e prossecução da mesma actividade, passando a ré TAP a ocupar a posição jurídica de empregador nos contratos de trabalho, motivo pelo qual a recusa em admitir os autores é ilícita, com as legais consequências.” (Junta-se copia da sentença do Tribunal do Trabalho de Lisboa, como documento nº 3).
12º - Desta sentença, foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que pelo Acórdão de 16/01/2008 alterou a decisão na parte em que havia condenado na reintegração dos trabalhadores e no pagamento de indemnizações, entendendo ser procedente a caducidade do direito de impugnação do despedimento colectivo. (Junta-se cópia do Acórdão da Relação de Lisboa, como documento nº 4).
13º - Os trabalhadores recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que por Acórdão de 25/02/2009 decidiu que o despedimento colectivo não enfermava de qualquer ilicitude, rejeitando a interpretação de transmissão do estabelecimento e recusando o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça das Comunidades, que lhe foi suscitado por alguns dos trabalhadores nos respectivos recursos. (Junta-se cópia do Acórdão do STJ, como documento nº 5).
14º - Nesse acórdão, o STJ considerou, além do mais, que:
“Mas vejamos se, ao nível dos factos, os concretos bens que foram transmitidos para a TAP podem configurar uma transferência de estabelecimento ou de parte dele. … … à luz da Directiva 77/187/CE, conforme já foi dito, para que haja transmissão de estabelecimento não basta a simples prossecução da actividade, sendo ainda necessário que se verifique a conservação da identidade do estabelecimento, que resulta de elementos, como o pessoal que o compõe, o seu enquadramento, a organização do seu trabalho, os seus métodos de exploração, entre outros. Ora, no caso vertente, a TAP na realização dos voos relativos ao Verão IATA 1993, não fez uso de uma "entidade" com a mesma identidade da "entidade" que antes pertencera à AIA, antes fez uso do seu próprio instrumento de intervenção no mercado em causa, que era a sua própria empresa, pelo que falecendo a identidade das duas "entidades", não se concebe a possibilidade de ocorrer uma transmissão de estabelecimento. No que se refere à realização de voos charter no ano de 1994, estes já contratados pela TAP, verifica--se que essa actuação resultou de uma ocupação pela TAP da quota de mercado deixada livre pelo encerramento da AIA, o que não constitui indício relevante de transmissão de estabelecimento. No que se refere à clientela, também entendemos que não se verificou passagem de clientela da AIA para a TAP, pois tal não decorre do facto dos "operadores turísticos continuarem a ser os mesmos". Acresce, ainda, que o estabelecimento de que a AIA era titular era um estabelecimento vinculado a certo bem que era uma licença, a qual nem sequer era transmissível nos termos do art.. 11.º do DL 19/82 de 28.01, o que impossibilitava o trespasse do estabelecimento, podendo apenas ser objecto do negócio os bens singulares e não o próprio estabelecimento. Podemos, assim, concluir que a transferência dos citados bens do património da AIA para a TAP, nas circunstâncias concretas em que ocorreu, não é susceptível de configurar uma transmissão (total ou parcial) de um hipotético estabelecimento comercial de que a AIA ainda fosse titular na sua fase de liquidação. Deve notar-se que o TJCE, confrontado com situações em que, por diversos motivos, uma empresa prosseguia a actividade até então levada a cabo por outra, considerou que essa “mera circunstância” não permite concluir pela transferência de uma entidade económica entre a primeira e a segunda empresa, uma vez que “uma entidade não pode ser reduzida à actividade de que está encarregada. A sua identidade resulta também de outros elementos, como o pessoal que a compõe, o seu enquadramento, a organização do seu trabalho, os seus métodos de exploração ou ainda, sendo caso disso, os meios de exploração à sua disposição”. (Ac. Do TJCE de 11 de Março de 1997 (Ayse Süzen), CJ, 1997, p. 1259 e ss). Não se verificou, pois, a transmissão de qualquer estabelecimento ou parte dele da AIA para a TAP.». Considerou ainda o STJ que: “3.7. O reenvio prejudicial Alguns dos recorrentes … requerem a este Supremo Tribunal que, considerando a matéria de facto provada, submeta ao Tribunal de Justiça, em reenvio prejudicial, a decisão sobre a questão de saber se a interpretação das referidas Directivas, efectuada por aquele Tribunal de Justiça, se mostra consentânea com a interpretação e aplicação do artigo 37° da LCT, a que procedeu o Tribunal da Relação de Lisboa, no caso em apreço. … A obrigação de reenvio prejudicial, que impende sobre os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, só se afirma quando esses mesmos órgãos jurisdicionais considerem que o recurso ao direito comunitário é necessário para a solução do litígio que perante eles corre e, além disso, que se tenha suscitado uma questão de interpretação desse direito … Naturalmente só se justifica que os órgãos jurisdicionais de algum Estado-Membro implementem o referido reenvio quando, como se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Outubro de 2007, ocorra dúvida sobre a interpretação das normas comunitárias. O próprio Tribunal de Justiça, expressamente reconheceu que "a correcta aplicação do direito comunitário pode impor-se com tal evidência que não dê lugar a qualquer dúvida razoável quanto à solução a dar à questão suscitada", afastando, por conseguinte, também nesta hipótese, a obrigação de reenvio prejudicial. Ora, face ao conteúdo das normas das Directivas Comunitárias referenciadas pelos recorrentes, face à interpretação que das mesmas vem sendo feita pelo TJCE e face aos contornos do caso "sub iudice" que foram ponderados no decurso deste aresto, inexiste dúvida relevante na operação interpretativa que implique a necessidade do reenvio prejudicial… Como resulta deste próprio texto e da doutrina e jurisprudência que nele se foi citando, o TJ tem uma vasta e já sedimentada jurisprudência sobre a problemática da interpretação das normas comunitárias que se reportam à "transmissão de estabelecimento”, sendo que a última Directiva emitida a propósito traduz já a consolidação dos conceitos nela enunciados por força daquela jurisprudência e estes apresentam-se agora com uma clareza em termos de interpretação jurisprudencial (comunitária e, mesmo, nacional) que dispensa, no caso vertente, a consulta prévia ao Tribunal de Justiça. … Não se procederá, assim, ao pretendido reenvio prejudicial.”.
“III- Fundamento das dúvidas deste tribunal sobre a conformidade com o Direito Comunitário das normas jurídicas portuguesas aplicáveis ao caso dos autos.
Os autores deduzem a sua pretensão indemnizatória ao abrigo do artº 13º do RRCEE, argumentando que o acórdão do STJ de 25/02/2009 (de que se junta cópia como documento nº 5) é manifestamente ilegal, por ter violado duplamente o direito comunitário, por fazer uma incorrecta interpretação do conceito de “transferência de estabelecimento” na acepção da Directiva 2001/23/CE do Conselho de 12 de Março de 2001 e, porque violou o dever de submeter ao TJCE o reenvio de questões de Direito Comunitário que lhe havia sido solicitado por diversos trabalhadores recorrentes.
Ora, o artº 13º do RRCEE estabelece, na parte que interessa, “1-…o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto”. Deste preceito resulta que um dos pressupostos do direito a obter indemnização é a manifesta ilegalidade da decisão jurisdicional. No caso concreto, deste nosso processo, importa saber se a decisão do STJ de 25/02/2009, é manifestamente ilegal, se fez uma interpretação incorrecta do conceito de transferência de estabelecimento, à luz da Directiva 2001/23/CE do Conselho de 12/03/2001, face aos elementos de facto de que dispunha.
Além disso, importa ainda saber se o STJ estava obrigado a observar o dever de reenvio prejudicial que lhe havia sido suscitado por alguns dos recorrentes, desde logo face às decisões contraditórias das instâncias sobre a mesma questão.
Por outro lado ainda, o artº 13º nº 2 do RRCEE estabelece: “O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.”. Ou seja, a lei portuguesa vai no sentido de o direito à indemnização depender da prévia revogação da decisão jurisdicional danosa. No entanto, a jurisprudência do TJCE parece apontar em sentido diferente: o acórdão Köbler (acórdão de 30 de Setembro de 2003, Processo nº C-224/01, in CJ, pág. I-10 239) considerou que há responsabilidade estadual quando o incumprimento resulte de uma decisão de um órgão jurisdicional decidindo em última instância, desde que o juiz tenha violado de modo manifesto o direito aplicável (considerandos 31 a 33 e 51 a 56), o que parece conduzir à inaplicabilidade do requisito do artº 13º nº 2 do RRCEE.
Daqui resulta que só após o esclarecimento prévio daquelas questões que se nos colocam será possível uma decisão conscienciosa do caso que nos compete julgar. Daí, a necessidade de submeter ao TJCE o pedido de esclarecimento dessas questões.
*
IV- As Questões que se formulam ao TJCE, nos termos do artº 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE):
1ª - A Directiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de Março de 2001, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de parte de empresas ou de estabelecimentos, em especial o seu artº 1º nº 1, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de “transferência de estabelecimento” abrange uma situação em que uma empresa activa no mercado de voos charter é dissolvida por decisão da sua accionista maioritária, ela própria uma empresa activa no sector da aviação e, no contexto da liquidação, a empresa mãe:
i)- assume a posição da sociedade dissolvida em contratos de locação de aviões e nos contratos de voos charter em curso com os operadores turísticos;
ii)- desenvolve actividade antes prosseguida pela sociedade dissolvida;
iii)- readmite alguns trabalhadores até então destacados na sociedade dissolvida e os coloca a exercer funções idênticas;
iv)- recebe pequenos equipamentos da sociedade dissolvida?
2ª - O artigo 267º (ex-artigo 234º) do TFUE deve ser interpretado no sentido de que o Supremo Tribunal de Justiça, perante a factualidade descrita na questão anterior e o facto de os tribunais nacionais inferiores que apreciaram o caso terem adoptado decisões contraditórias, estava obrigado a proceder ao reenvio, para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, de questão prejudicial sobre a correcta interpretação do conceito de “transferência de estabelecimento” na acepção do artigo 1º nº 1 da Directiva 2001/23/CE?
3ª - O Direito Comunitário e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no acórdão Köbler sobre a responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação de Direito Comunitário cometida por um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância, obsta à aplicação de uma norma nacional que exige como fundamento do pedido de indemnização contra o Estado a prévia revogação da decisão danosa?” ;
c) Notificados de tal decisão, os Autores, em 20/01/2014, apresentaram o seguinte requerimento:
“1. Após uma análise das questões objecto da douta decisão de reenvio prejudicial, entendem os Autores que a resposta à seguinte questão adicional (a colocar-se depois das duas primeiras questões e antes da terceira das questões já formuladas) se revela essencial à boa aplicação do direito da União Europeia neste caso concreto:
“3. Em caso de resposta positiva à questão 1 e/ou à questão 2, deve considerar-se, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Fevereiro de 2009, ao ter decidido como decidiu, consubstancia o preenchimento dos pressupostos de existência de responsabilidade extracontratual do Estado Português, por violação do direito da União Europeia?”
2. Embora o Tribunal de Justiça da União Europeia tenha já definido os pressupostos a observar para que haja lugar à responsabilidade extracontratual de um Estado-Membro por violação de direito da União Europeia, certo é que estes critérios são, de algum modo, “genéricos” e têm sido objecto de interpretação pelo Tribunal de Justiça em diversos processos, não podendo, de modo nenhum, considerar-se que esse acervo de jurisprudência seja hoje totalmente claro.
3. Consequentemente, sendo da maior importância que os referidos pressupostos para o efeito definidos pelo Tribunal de Justiça da União Europeia sejam considerados, pelo conjunto dos Tribunais Nacionais dos Estados-Membros da União Europeia, da forma mais uniforme possível, importa expressamente indagar o Tribunal de Justiça da União Europeia sobre a existência, ou não, no caso concreto dos autos, de responsabilidade extracontratual do Estado Português por violação do direito da União Europeia.
4. Nestes termos, requer-se muito respeitosamente a V. Exa. se digne aditar a questão acima enunciada à lista de questões que constituem o objecto do reenvio prejudicial, de forma a assegurar a correcta aplicação do direito da União Europeia no presente processo.” (ignorou-se a nota de rodapé) ;
d) Conhecendo acerca de tal pretensão, em 28/02/2014, foi proferido o seguinte DESPACHO:
“Os autores, notificados da decisão de reenvio prejudicial ao TJ, vêm sugerir a formulação de uma outra questão que, em síntese, consiste em saber se o Acórdão do STJ de 25/02/2009, em causa nos autos, consubstancia o preenchimento dos pressupostos da existência de responsabilidade extracontratual do Estado Português por violação do Direito da União Europeia.
O MP opõe-se ao aditamento dizendo que com a nova questão sugerida, o que se pretende é que o TJ se pronunciasse sobre a questão principal dos autos cujo julgamento compete a este tribunal nacional. Apreciando e decidindo.
Entendemos que o MP tem razão.
Na verdade, o sistema de reenvio prejudicial é um mecanismo fundamental do direito da União Europeia que tem por finalidade fornecer aos órgãos jurisdicionais nacionais o meio de assegurar uma interpretação e uma aplicação uniformes deste direito em todos os Estados membros. Não se pretende que o TJ forneça a solução do litígio pendente no Estado membro, isso compete ao julgador de cada Estado.
A questão que os autores sugerem (se o TJ lhe respondesse) decidiria o litígio dos autos., visto que com ela os autores pretendem que o TJ, no caso concreto, diga se existe ou não responsabilidade extracontratual do Estado Português por violação do Direito Comunitário.
Assim, indefere-se o sugerido aditamento.
Notifique” ;
e) Inconformados com o teor de tal decisão, os Autores, juntamente com o recurso interposto da sentença final, em 09/03/2020, apresentaram recurso daquela, no qual alegaram e formularam as seguintes conclusões:
“DO RECURSO QUANTO À DECISÃO INTERLOCUTÓRIA PROFERIDA EM
PROFERIDA EM 28.02.2014 (REF.ª CITIUS 19141650) Cumulativamente com o referido no capítulo 4.1.3. supra, e subsidiariamente face à apelação da decisão final (capítulo A supra - na medida em que a impugnação desta decisão interlocutória só deverá relevar, também nos termos do artigo 660.º do CPC, se o Venerando Tribunal ad quem considerar que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não incorre numa violação suficientemente caracterizada do direito da União Europeia / num erro manifesto),
Vêm também os Autores / Recorrentes interpor RECURSO do Despacho proferido em 28.02.2014 (ref.ª Citius 19141650), recurso que é de APELAÇÃO, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo, nos termos do disposto nos artigos 615.º, 631.º, n.º 1, 637.º, n.os 1 e 2, 638.º, n.os 1 e 7, 639.º, 644.º, n.º 3, 645.º, n.º 1, alínea a), 647.º, n.º 1, 640.º, 660.º e 662.º do CPC, o que fazem nos termos e com os fundamentos seguintes:
O Despacho proferido nos autos em 28.02.2014 (ref.ª Citius 19141650) (o “Despacho recorrido”), pronunciou-se sobre o requerimento datado de 20.01.2014 (ref.ª Citius 5175818) apresentado pelos Autores (ora Recorrentes) quanto ao objeto do pedido de reenvio prejudicial determinado nos autos.
Para o efeito os Autores requereram a inclusão, no objeto do referido pedido de reenvio prejudicial, da seguinte questão:
“Em caso de resposta positiva à questão 1 e/ou à questão 2, deve considerar-se, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de fevereiro de 2009, ao ter decidido como decidiu, consubstancia o preenchimento dos pressupostos de existência de responsabilidade extracontratual do Estado Português, por violação do direito da União Europeia?” (sublinhado nosso)
O Tribunal, via Despacho recorrido, conclui da seguinte forma:
“A questão que os autores sugerem (se o TJ lhe respondesse) decidiria o litígio dos autos, visto que com ela os autores pretendem que o TJ, no caso concreto, diga se existe ou não responsabilidade extracontratual do Estado Português por violação do Direito Comunitário. Assim, indefere-se o sugerido aditamento.” (destaque nosso).
Sucede que não corresponde à verdade que a questão que os Autores procuraram aditar pudesse, per se, decidir o litígio, donde mal andou o Tribunal a quo na decisão do Despacho recorrido.
Assim, recorde-se as questões que foram formuladas ao TJUE no âmbito do pedido de reenvio prejudicial:
“1ª- A Directiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de Março de 2001, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de parte de empresas ou de estabelecimentos, em especial o seu artº 1º nº 1, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de “transferência de estabelecimento” abrange uma situação em que uma empresa ativa no mercado de voos charter é dissolvida por decisão da sua acionista maioritária, ela própria uma empresa ativa no sector da aviação e, no contexto da liquidação, a empresa mãe: i)- assume a posição da sociedade dissolvida em contratos de locação de aviões e nos contratos de voos charter em curso com os operadores turísticos; ii)- desenvolve atividade antes prosseguida pela sociedade dissolvida; iii)- readmite alguns trabalhadores até então destacados na sociedade dissolvida e os coloca a exercer funções idênticas; iv)- recebe pequenos equipamentos da sociedade dissolvida? 2ª- O artigo 267º (ex-artigo 234º) do TFUE deve ser interpretado no sentido de que o Supremo Tribunal de Justiça, perante a factualidade descrita na questão anterior e o facto de os tribunais nacionais inferiores que apreciaram o caso terem adotado decisões contraditórias, estava obrigado a proceder ao reenvio, para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, de questão prejudicial sobre a correta interpretação do conceito de “transferência de estabelecimento” na aceção do artigo 1º nº 1 da Directiva 2001/23/CE? 3ª- O Direito Comunitário e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no acórdão Köbler sobre a responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação de Direito Comunitário cometida por um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância, obsta à aplicação de uma norma nacional que exige como fundamento do pedido de indemnização contra o Estado a prévia revogação da decisão danosa?”
Donde, perscrutando a formulação destas questões com aquela que foi a formulação pelos Autores da questão a aditar, importa concluir que esta questão apenas seria apta a decidir quanto a um dos pressupostos de que depende a responsabilidade extracontratual do Estado – a ilicitude -, pelo que, e ainda que a resposta do TJUE fosse favorável à pretensão dos Autores, a decisão do litígio sempre estaria dependente da análise que o Tribunal a quo fizesse dos demais pressupostos de que depende a responsabilidade civil extracontratual do Estado, designadamente os pressupostos de responsabilização nexo causal e dano.
Termos em que será forçoso concluir que mal andou o Tribunal a quo,
Devendo, portanto, ser determinado o reenvio prejudicial da seguinte questão para o TJUE:
“Deve considerar-se, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de fevereiro de 2009, ao ter decidido como decidiu, consubstancia o preenchimento dos pressupostos de existência de responsabilidade extracontratual do Estado Português, por violação do direito da União Europeia?”
No mais, também por razões de economia processual, remetemos para tudo quanto se deixou alegado no capítulo 4.1.3. supra quanto à admissibilidade, pertinência e obrigatoriedade da realização de um segundo reenvio prejudicial para o TJUE, também com vista a nele incluir a questão – mal – rejeitada pelo Tribunal a quo via Despacho recorrido.
(….) [Parte B – Recurso de Apelação da Decisão Interlocutória]
201. Cumulativamente com o referido no capítulo 4.1.3, e subsidiariamente (660.º CPC) face à apelação da decisão final, o presente recurso tem por objeto o Despacho recorrido de 28.02.2014 (ref.ª Citius 19141650), que indeferiu o requerimento datado de 20.01.2014 (ref.ª Citius 5175818), apresentado pelos Autores (ora Recorrentes) quanto ao objeto do pedido de reenvio prejudicial determinado nos autos.
202. Não corresponde à verdade que a questão que os Autores procuraram aditar ao objeto do referido reenvio prejudicial pudesse, per se, decidir o litígio, donde mal andou o Tribunal a quo na decisão do Despacho recorrido.
203. Devendo, portanto, ser determinado o reenvio prejudicial da seguinte questão para o TJUE: “Deve considerar-se, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de fevereiro de 2009, ao ter decidido como decidiu, consubstancia o preenchimento dos pressupostos de existência de responsabilidade extracontratual do Estado Português, por violação do direito da União Europeia?”
204. No mais, também por razões de economia processual, remetemos para tudo quanto se deixou alegado no capítulo 4.1.3. supra quanto à admissibilidade, pertinência e obrigatoriedade da realização de um segundo reenvio prejudicial para o TJUE, também com vista a nele incluir a questão – mal – rejeitada pelo Tribunal a quo via Despacho recorrido”;
f) No âmbito de tal recurso, pretendem os Recorrentes o seguinte:
“i. Deverá ser dado provimento ao presente Recurso de Apelação e, em consequência, ser revogada a Decisão Recorrida, que deve ser substituída por outra por via da qual o Réu / Recorrido seja condenado nos termos conjugados da Petição Inicial, do Incidente de Liquidação e da redução do valor do pedido requerida por alguns dos Recorrentes, nos termos sintetizados no capítulo 2. supra;
ii. Subsidiariamente, caso V. Exas. entendam que dúvidas persistem quanto ao pressuposto de responsabilização “ilicitude”, in casu quanto à violação suficientemente caracterizada cometida pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça sub judice, requer-se que o Tribunal ad quem proceda ao reenvio prejudicial da seguinte questão para o TJUE: “Num caso com a factualidade anteriormente descrita no processo C-160/14, deve considerar-se, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de fevereiro de 2009, ao ter decidido como decidiu, consubstancia uma violação suficientemente caracterizada do direito da EU?”;
iii. Subsidiariamente face ao ponto i. supra e cumulativamente face ao ponto ii. supra, deverá ser julgado procedente o recurso interposto quanto à decisão interlocutória proferida em 28.02.2014 (ref.ª Citius 19141650) e, assim, determinado o reenvio prejudicial para o TJUE para resposta à questão sugerida pelos Autores nos autos via requerimento datado de 20.01.2014 (ref.ª Citius 5175818): “Deve considerar-se, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de fevereiro de 2009, ao ter decidido como decidiu, consubstancia o preenchimento dos pressupostos de existência de responsabilidade extracontratual do Estado Português, por violação do direito da União Europeia?”” ;
g) Em 30/09/2020, relativamente ao recurso interposto, foi proferido o seguinte despacho:
“B. Do recurso interposto da decisão interlocutória de 28.02.2014 (ref. 19141650):
Vieram os Autores, também, interpor recurso subsidiário do despacho proferido nos autos em 28.02.2014 – a apreciar, caso o recurso principal venha a ser julgado improcedente – o qual se pronunciou quanto ao objecto do pedido de reenvio prejudicial que veio a ser determinado nos autos.
Cumpre aquilatar da sua admissibilidade e, se for caso disso, da sua tempestividade, para, após, fixar efeito e regime de subida, tendo, para o efeito, também o Réu já exercido o seu contraditório.
O teor do despacho é aquele que consta, também, das alegações de recurso (fls. 9501), pretendendo os Autores/recorrentes insurgir-se quanto à circunstância de, aí, o Tribunal ter considerado que a questão formulada, e aí rejeitada, ser de molde a responder à própria questão decidenda na acção, que seria, saber se existe, ou não responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Determina o artigo 630º do C.P.C. que não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário. Conforme preceitua o artigo 152º, n.º 4 do mesmo Código, são proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador.
Cremos que é, precisamente, a situação vertente.
De facto – como bem salienta o Réu/recorrido – no processo de reenvio prejudicial, as partes podem sugerir as questões a formular junto do Tribunal de Justiça, mas cabe ao Tribunal nacional, enquanto órgão jurisdicional de reenvio, decidir quais as concretas questões a remeter; e isto, independentemente de o Tribunal nacional estar, ou não, vinculado à obrigação de reenvio (reenvio facultativo ou obrigatório, grosso modo: consoante a decisão admita, ou não, recurso ordinário). Porém, no caso como o dos autos, em que o reenvio era, manifestamente, de natureza facultativa, por maioria de razão se deve entender que a concreta fixação das questões a colocar ao Tribunal de Justiça da EU sempre estaria dentro do prudente critério do Tribunal de reenvio.
Dado que nunca esteve em causa o mérito da decisão de reenvio prejudicial – de outra forma, esta deveria ter sido posta em causa no próprio recurso da sentença – a circunstância de o Tribunal de reenvio não ter atendido à formulação sugerida por alguma das partes (por isso é, apenas, sugerida) deve considerar-se abrangida pelo poder discricionário do juiz que, assim, proferiu despacho não susceptível de recurso.
Pelo exposto, não admito o recurso subsidiariamente interposto pelos Autores”.
III – Decidindo:
Prescreve o nº. 1 do artº. 643º do Cód. de Processo Civil que “do despacho que não admita o recurso pode o recorrente reclamar para o tribunal que seria competente para dele conhecer no prazo de 10 dias contados da notificação da decisão”.
Nas palavras de Abrantes Geraldes [1], “é susceptível de reclamação (que já foi apelidado de «recurso de queixa») o despacho de não admissão do recurso, com fundamento designadamente na intempestividade do requerimento, na ilegitimidade do recorrente, na irrecorribilidade da decisão ou na falta de alegações ou de conclusões (art. 641º, nº. 2)”.
Ora, na presente reclamação, insurgem-se os Recorrentes Autores relativamente ao despacho que não admitiu o recurso subsidiário, referenciado em e), reportado a decisão interlocutória de 28/02/2014, por entender ter sido esta proferida no uso legal de um poder discricionário e, como tal, legalmente irrecorrível, nos termos do artº. 630º, nº. 1, do Cód. de Processo Civil.
Por sua vez, os Recorrentes/Reclamantes Autores entendem que:
Ø tal despacho não possui tal natureza – de despacho proferido no uso legal de um poder discricionário -, antes afectando os seus direitos processuais, nomeadamente os seus “direitos de prova” quanto “à demonstração fáctico-jurídica do seu pedido” ;
- cerceando, ainda, a possibilidade, correspondente a um poder-dever jurisdicional, do “(efectivo, pleno, e com conteúdo útil relevante) recurso ao TJUE com vista à necessária aplicação efectiva e uniforme do direito da União Europeia” ;
- possuindo antes natureza vinculada, que não discricionária, a decisão sobre o pretendido aditamento da questão formulada pelos Autores ao objecto do pedido de reenvio prejudicial.
Vejamos.
Prevendo acerca dos despachos que não admitem recurso, estatui o nº. 1, do artº. 630º, do Cód. de Processo Civil que “não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário” (sublinhado nosso).
Relativamente à qualificação/definição de despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário, aduz o nº. 4, do artº. 152º, do mesmo diploma, serem aqueles “que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador”.
Os despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário tratam-se daqueles que são “determinados livremente pelo juiz, sem quaisquer limitações subjectivas ou objectivas, ao abrigo de uma norma que lhe confira uma ou mais alternativas (opções) entre as quais o juiz deva escolher uma delas em seu prudente arbítrio e em atenção a um certo fim geral”.
Aduzindo inexistirem actos exclusivamente vinculados e actos exclusivamente discricionários, e procedendo à adaptação à actividade jurisdicional do conceito de discricionariedade administrativa, num recurso aos ensinamentos de Marcello Caetano [2], acrescenta-se que “uma vez «definido o fim a atingir - e não apenas o fim último e genérico da actividade jurisdicional -, a lei autoriza o órgão competente a deduzir nele, segundo o seu critério (em cada caso), as regras de ação e os modos de agir». Liberdade de apreciação esta «que pode respeitar a certos pressupostos, à oportunidade e conveniência de agir, ao objeto, às formalidades e à forma do ato»”.
Deste modo, não há que confundir poder discricionário com simples arbitrariedade, pois aquele “é sempre reconhecido em vista à satisfação de um determinado fim legal; esse fim, justificativo da concessão daquele poder, cerceia a liberdade inerente à discricionariedade, de tal sorte que a sua falta, no caso concreto, afeta a validade do respetivo ato. Conforme salienta J. RODRIGUES BASTOS, ''poder discricionário não é sinónimo de poder absolutamente livre, nem de um uso de normas em branco. Os fins legais a atingir limitam a legalidade dos respetivos actos-meio; se o juiz, ao praticar estes atos visa alcançar outros fins, age fora dos limites do poder discricionário, isto é, com desvio do poder, pelo que as decisões que em tal contexto tomar serão, porque defeso o seu uso, passíveis de censura recursal"”[3].
Desta forma, o poder discricionário do juiz é o que resulta “da concessão pelo legislador de uma certa margem de liberdade, traduzida num poder de escolha insindicável”, estando presente “quando é outorgado ao juiz o poder de decidir, dentro de uma série de soluções admitidas pela lei, aquela que o julgador entenda ser mais idónea à satisfação do interesse tutelado pela norma”.
Acresce que o teor das “decisões proferidas no uso legal de um poder discricionário podem compreender um momento de apreciação discricionária. No entanto, ao consagrá-las, o legislador vai mais longe e confia, ainda, ao juiz a decisão de agir, ou não, podendo mesmo confiar-lhe a conformação do conteúdo da pronúncia”, sendo certo que, “continuando o fim da pronúncia jurisdicional a estar presente, a relação entre o meio e o fim é resolvida pelo juiz”.
Evidente é, porém, o facto da norma legal que consagra o poder discricionário não ser “uma porta para uma actuação livre do Direito” [4].
Por sua vez, referenciam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [5] constituírem “despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário aqueles que o juiz livremente profere ao abrigo de uma norma que, perante determinado circunstancialismo, lhe confere «uma ou mais alternativas de opção, entre as quais o juiz deve escolher em seu prudente arbítrio e em atenção [aos] fins do processo civil»”.
Ressalva Lopes do Rego [6] que o exercitar do direito fundamental de acesso à justiça determina que a «discricionariedade judicial» “se deva sempre configurar como limitada, já que os critérios de conveniência e oportunidade que estão na sua base têm que se articular necessariamente com a realização do fim ou função essencial do processo: a justa composição do litígio com respeito pelos direitos e garantias processuais das partes”.
Invocando o entendimento jurisprudencial constitucional, acrescenta que a “existência de uma certa latitude de apreciação jurisdicional, que permita designadamente rejeitar certos requerimentos «patente» ou «manifestamente» infundados, não pode ser havida como sinónimo da atribuição de poderes discricionários ao juiz, que se sobreponham aos «critérios normativos» decorrentes do «princípio da legalidade processual»”.
Donde, deve o prudente arbítrio do julgador ser entendido “como pressupondo uma apreciação jurisdicional necessariamente «não arbitrária», efectuada segundo critérios de ponderação e razoabilidade, que oriente os critérios de conveniência e oportunidade que estão na sua base sempre em função da realização dos fins do processo”.
Alberto dos Reis [7] referencia que os ora denominados despachos proferidos no uso legal de poder discricionário, têm equivalência com os anteriormente denominados “despachos que se destinam a ordenar actos que dependem da livre determinação do juiz”, considerando existir poder discricionário “quando a lei, prevendo para a Administração certa competência por ocasião duma relação de direito com um particular, lhe deixa livre poder de apreciação para decidir, se deve abster-se ou agir, em que momento deve agir, como deve agir, qual o conteúdo que vai dar ao acto”.
E, tratando-se de despachos que “exprimem o exercício de livre poder jurisdicional”, não admitem recurso, pois, “pela sua própria natureza, não são susceptíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros”.
Decorre assim do exposto que a “decisão proferida no uso legal de um poder discricionário não é recorrível com o fundamento de que tal decisão não representa a melhor forma de prosseguir o fim que a lei pretende que seja atingido (art. 630.°, n.º 1). É recorrível, no entanto, com o fundamento de que o condicionalismo de que a lei faz decorrer o poder discricionário não estava presente ou com o fundamento de que o exercício que o juiz fez do seu poder é em si ilegal (o juiz saiu fora da gama de possibilidades de opção que a lei lhe concede) ou ainda - o que será raro em processo civil - com o fundamento de desvio de poder (uso do poder discricionário para fim diverso daquele para o qual a lei o prevê). Estes três casos excedem o domínio de irrecorribilidade do art. 630.°, n. 1, que é o uso legal de um poder discricionário”.
Pelo que, em regra, “a decisão tomada no uso de um poder discricionário não é recorrível, ou seja, essa decisão cabe exclusivamente ao tribunal que a tomou (o que se compreende, dado que é este o tribunal que tem maior proximidade com a causa e que está mais bem colocado para saber o que nela é mais conveniente e mais oportuno); essa decisão torna-se recorrível quando for ilegal, ou seja, quando o tribunal que tomou a decisão tiver usado indevidamente os poderes discricionários ou tiver exorbitado do âmbito da discricionariedade que lhe é permitida” [8][9].
Referencia, ainda, Abrantes Geraldes [10] que devendo resultar a discricionariedade de actuação do juiz “directa ou indirectamente da própria lei, torna-se, assim, mais fácil delimitar as situações passíveis de integrar este segmento normativo, envolvendo as situações em que "a lei confere ao juiz uma ou mais alternativas de opção, entre as quais o juiz deve escolher em seu prudente arbítrio e em atenção a um certo fim geral - no caso presente, o fim do processo civil, que é a justa composição do litígio" (Teixeira de Sousa)”.
Todavia, não basta que o juiz considere que o seu despacho se inscreve no âmbito dos poderes discricionários, pois, “mais importante é que essa discricionariedade seja realmente comprovada, designadamente por não se questionar a legalidade da actuação. Com efeito, a discricionariedade que está prevista, ainda que limitadamente, nas normas adjectivas, não se confunde com a arbitrariedade que não encontra nelas eco ou justificação”.
E, com particular acuidade para a situação sub júdice, acrescenta que “a decisão de negar ou de assumir o reenvio prejudicial não se inscreve nos poderes discricionários do juiz, correspondendo antes a um dever. Por isso, a decisão, independentemente do seu conteúdo, é passível de impugnação, cuja concretização ou eficácia é condicionada, no entanto, pelo regime de apelação, nos termos do art. 644.º”.
Recentrando-nos no caso concreto, já verificámos que o despacho recorrido teve por alvo decisão acerca do objecto do pedido de reenvio prejudicial determinado nos autos.
Concretizando, foi proferida nos autos decisão que determinou o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia com determinado objecto, no qual eram formuladas três distintas questões.
Notificados de tal decisão, os Autores vieram sugerir a formulação, por aditamento, de uma outra questão.
O despacho recorrido, datado de 28/02/2014, entendeu que a questão sugerida, caso o TJUE lhe respondesse, decidiria o litígio suscitado nos autos, pois, através da mesma é pretensão dos Autores que aquele Tribunal afirme se existe ou não responsabilidade extracontratual do Estado Português por violação do Direito Comunitário. E, como tal, indeferiu tal aditamento.
Resta, então, apreciar se esta decisão pode ser entendida ou qualificada como tendo sido proferida no uso legal de um poder discricionário, por reportar-se a matéria confiada ao prudente arbítrio do julgador, justificando-se, assim, a inadmissibilidade do recurso interposto ; ou se, ao invés, é errónea tal qualificação e, consequentemente, não pode subsistir o juízo de não admissibilidade do recurso subsidiário interposto.
Todavia, atenta a matéria em equação, e para além de aferir acerca da definição conceptual de despacho proferido no uso legal de um poder discricionário – o que efectivámos supra -, urge ainda aferir acerca do mecanismo de reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça, nomeadamente no que concerne à natureza e vinculação de tal decisão, bem como no que se reporta à conformação do objecto de reenvio.
O que passamos a concretizar.
Estatui o artº. 267º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE, in Jornal Oficial da União Europeia de 07/06/2016), correspondente ao ex-artº. 234º do TCE, que: “O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: a) Sobre a interpretação dos Tratados; b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal. Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível”.
Tal normativo, nas palavras de Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandez [11] “atribui aos órgãos jurisdicionais nacionais a faculdade - e em certos casos, impõe-lhes a obrigação - de submeter ao Tribunal de Justiça as questões de interpretação ou de validade de disposições normativas europeias que considerem necessárias para a resolução do litígio neles pendente. O reenvio prejudicial representa, dentro do sistema jurisdicional da União Europeia, o mecanismo processual vocacionado ao diálogo entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, por meio do qual ambos são chamados a cooperar na elaboração de uma decisão destinada a assegurar a interpretação e aplicação uniformes do Direito da União no conjunto dos Estados-Membros - e assim garantir a igualdade jurídica dos cidadãos europeus.
Resulta da jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que na falta de normas processuais europeias, compete aos ordenamentos jurídicos nacionais designar os órgãos judiciais competentes e regular as vias de recurso destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos decorrentes da ordem jurídica europeia. Importa, portanto, questionar se seria admissível a interposição de recurso do despacho de reenvio, ou até que ponto essa possibilidade seria compatível com o Direito da União, ou ainda se o sistema de recursos nacional pode limitar a faculdade de os juízes de instância socorrerem-se do reenvio” (sublinhado nosso).
As mesmas Autoras, citando as Conclusões apresentadas no Processo Cartesio por parte do Advogado-Geral português, referencia que o actual artº. 267º do TFUE, “proíbe a aplicação de normas nacionais por força das quais os órgãos jurisdicionais nacionais possam ser obrigados a suspender ou a revogar um pedido de decisão prejudicial. A questão da necessidade de um pedido de decisão prejudicial é matéria que deve ser decidida entre o tribunal de reenvio e o Tribunal de Justiça. Com efeito, este é o motivo pelo qual, em última análise, a admissibilidade dos pedidos de decisão prejudicial é determinada pelo Tribunal de Justiça - e não por tribunais nacionais que, no contexto processual nacional, são hierarquicamente superiores ao tribunal de reenvio. Caso contrário, poderia acontecer que, por força de uma norma ou de uma prática nacionais, decisões de reenvio emanadas de tribunais inferiores fossem sistematicamente objecto de recurso, dando origem a uma situação em que - pelo menos de facto - a lei nacional permitisse que apenas os tribunais de última instância submetessem questões prejudicais” (sublinhado nosso).
Desta forma, questionando “se seria admissível a interposição de recurso do despacho de reenvio, ou até que ponto essa possibilidade seria compatível com o Direito da União, ou ainda se o sistema de recursos nacional pode limitar a faculdade de os juízes de instância socorrerem-se do reenvio”, acrescentam que a resposta, por mais que “custe aos quadrantes mentais irremediavelmente tributários das normas processuais nacionais, tem de serencontrada à luz da ordem jurídica europeia - e muito particularmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça. Recorrer ao art. 679.° do CPC, que não admite recurso dos despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário - onde se poderiam incluir os despachos que têm por objecto um reenvio prejudicial -, pode não ser suficiente para as situações de reenvio prejudicial de validade (lembre-se: obrigatório, e não discricionário, em qualquer instância, desde a prolação do acórdão Foto-Frost de 1987, jurisprudência confirmada pelo acórdão IATA de 2006)” (sublinhado nosso).
Aduz-se, ainda, que nem “o art. 267.0 TFUE, nem o art. 23.0 do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, referem-se ao problema dos recursos internos interpostos contra pedidos de decisão prejudicial formulados por órgãos jurisdicionais nacionais de instância (cujas decisões sejam susceptíveis de recurso ordinário previsto no direito interno)”.
Todavia, desde “o acórdão Francesco Reina de 1982, de forma constante, o Tribunal de Justiça insiste na ideia de que, tendo em conta a repartição de competências entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, "não lhe incumbe verificar se a decisão pela qual foi solicitado a intervir foi adoptada em conformidade com as regras de organização e de processo judiciais de direito nacional, antes devendo "ater-se à decisão de reenvio que emana de um órgão jurisdicional de um Estado-Membro, enquanto tal decisão não tiver sido revogada no quadro das vias processuais previstas eventualmente pelo direito nacional".
Desta forma, “depreende-se da jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, completada pelo acórdão Cartesio, que o órgão jurisdicional nacional de instância que pretende submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça pode fazê-lo independentemente da possibilidade de recurso da sua decisão de reenvio. Pode, inclusivamente, não admitir o recurso formulado pela parte. E mesmo que venha a ser interposto recurso contra a sua decisão de reenvio, nada obsta a que o juiz do reenvio dê seguimento ao seu pedido de decisão prejudicial, pois a utilidade do reenvio é suficiente para produzir efeitos na ordem jurídica (processual) europeia”.
De forma mais incisiva, referenciam derivar que “a possibilidade de os litigantes utilizarem o sistema de recursos nacional para contestar a bondade da decisão de reenvio, não pode limitar a faculdade de os juízes nacionais se socorrerem do reenvio. Assim, a jurisprudência do Tribunal de Justiça neste domínio - especialmente depois da prolação do acórdão Cartesio - pode ser interpretada no seguinte sentido: o Direito da União Europeia não impede que o direito nacional preveja a hipótese de recurso do despacho de reenvio, mas pode condicionar tal possibilidade em nome da efectividade do Direito da União. Assim, caso seja confrontado com a impugnação do despacho de reenvio, o tribunal de recurso deve limitar-se a verificar a existência de factos que acarretem a inutilidade do pedido de decisão prejudicial (como por exemplo a circunstância de as partes chegarem a acordo durante a pendência do recurso), mas não pode apreciar se o processo pendente no tribunal recorrido suscita questões que carecem de uma decisão do Tribunal de Justiça - pois isto é da exclusiva competência do tribunal nacional que reenvia”.
A título exemplificativo, referenciam que “a Cour de Cassation da Bélgica decidiu, a 30 de Março de 2010, que uma decisão de reenvio de uma instância inferior - in casu, o tribunal correctionnel d'Anvers - não era susceptível de recurso. O tribunal correctionnel d'Anvers havia colocado ao Tribunal de Justiça um conjunto de questões prejudiciais relativas à interpretação de algumas disposições do Código Aduaneiro Comunitário. O Estado belga interpôs recurso dessa decisão de reenvio junto da Cour d'appel d'Anvers, que considerou o recurso admissível, anulou a decisão da primeira instância e decidiu sobre o fundo. Contudo, em sede de recurso interposto pelos particulares que estavam a ser demandados pelo Estado belga junto do tribunal correctionnel d'Anvers por alegadas infracções à legislação aduaneira belga, a Cour de Cassation considerou que a decisão de reenvio era insusceptível de recurso, isto porque constituía, nos termos do art. 1046.° do Code judiciaire uma décision d'ordre, ou seja, uma decisão pela qual o juiz não resolve nenhuma questão de fundo nem de direito, de modo que adecisão não prejudica nenhuma das partes do litígio; tal decisão é, por força do art. 1046.0 do Code judiciaire, insusceptível de oposição e de recurso. Apesar do fundamento decisório repousar exclusivamente no direito nacional - o que não nos parece a melhor solução -, a Cour de Cassation considerou, e isto sim releva, que uma decisão de reenvio não prejudica, em si mesma, nenhuma das partes do processo principal, pois não se pode prever, à partida, o sentido decisório do Tribunal de Justiça. A Cour de Cassation precisou que o facto de a decisão prejudicial do Tribunal de Justiça influir directamente na decisão de fundo do processo principal e ter carácter vinculativo não modifica a natureza da decisão de reenvio - sendo, por isso, insusceptível de recurso” (sublinhado nosso).
Desta forma, através do pedido de decisão prejudicial, os tribunais nacionais tornam-se parte do discurso jurídico europeu, “sem depender de outros poderes nacionais ou instâncias judiciais”, pretendendo os tratados constitutivos “que esse diálogo não fosse filtrado por outros tribunais nacionais, independentemente da hierarquia judicial existente num Estado-Membro”.
Assim, o reenvio “converte o juiz nacional no interlocutor privilegiado do Tribunal de Justiça, que é o intérprete máximo dos tratados; o juiz de instância sabe que pode apoiar-se no Tribunal de Justiça, e por isso reenvia, quando tem de fazer valer os imperativos do Direito da União, mesmo contra os cânones tradicionais do direito nacional”, insistindo, assim, o Tribunal de Justiça em que “uma regra de direito nacional, nos termos da qual os órgãos jurisdicionais que não decidem em última instância estão vinculados por apreciações feitas pelo órgão jurisdicional superior, não deve retirar a esses órgãos jurisdicionais a faculdade de submeter ao Tribunal de Justiça questões de interpretação do direito da União a que essas apreciações de direito se referem” (sublinhado nosso).
Assim, conforme jurisprudência do Tribunal de Justiça, o juiz nacional de instância “exerce a sua competência para submeter questões prejudiciais (de resto, directamente fundada no Direito da União) de forma ilimitada, exclusiva e autónoma em relação às contingências do seu direito processual nacional e das relações de "subordinação hierárquica" eventualmente existentes em relação a jurisdições superiores” (sublinhado nosso).
Tal solução encontrada pelo Tribunal de Justiça traduz-se numa solução de consenso, procurando “um equilíbrio entre, por um lado, a autonomia institucional e processual dos Estados-Membros e, por outro lado, a efectividade do Direito da União Europeia. E precisamente por isso não deixa de colocar problemas - como o caso de estudo que deu mote ao presente texto o demonstra. Mais fácil seria, porventura, se o Tribunal de Justiça tivesse censurado os recursos internos interpostos contra pedidos de decisão prejudicial formulados por órgãos jurisdicionais nacionais de instância, considerando-os desconformes com o art. 267.° do TFUE (…)” [12].
As mesmas Autoras, em diferenciada obra [13], referenciam que o “mecanismo do reenvio prejudicial previsto no art. 267.º TFUE não foi talhado como uma via de recurso à disposição dos particulares num litígio pendente nos órgãos jurisdicionais nacionais. Nesta medida, o facto de uma parte considerar que o litígio suscita questões de interpretação do direito da União aplicável – e solicitar a sua submissão ao TJUE a título prejudicial, eventualmente sugerindo as questões a colocar – não vincula o órgão jurisdicional nacional competente, mesmo de última instância, a proceder ao reenvio, da mesma forma que a oposição das partes à intenção do juiz não o impede de reenviar” (sublinhado nosso).
Acrescentam competir “exclusivamente ao juiz nacional que conhece do litígio e que assume a responsabilidade pela decisão a tomar apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de um pronunciamento do TJUE para a boa solução do litígio, como a pertinência das questões a submeter ao TJUE. Esta é uma das razões que está na base da responsabilização do Estado-juiz por violação do direito da União Europeia (maxime, por ausência de reenvio obrigatório), pois independentemente da invocação do direito da União pelas partes (ou de solicitação de reenvio prejudicial) o juiz nacional é o responsável pela sua correta aplicação” (sublinhado nosso).
E, tal entendimento – de que cabe ao juiz nacional, que assume a responsabilidade pela decisão jurisdicional a prolatar, o aferir, quer da necessidade de uma decisão prejudicial, que o habilite a proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que submete - vem sendo uniformemente sufragado pelo Tribunal de Justiça, indicando-se, exemplificativamente (e por ordem cronológica) os seguintes arestos:
- de 16/02/2012: 2ª Secção – Processo C-118/11 - Eon Aset Menidjmunt OOD contra Direktor na Direktsia «Obzhalvane i upravlenie na izpalnenieto» – Varna pri Tsentralno upravlenie na Natsionalnata agentsia za prihodite.
Consta do Considerando 76 que:
“a esse propósito, há que recordar que, no âmbito de um processo previsto no artigo 267.o TFUE, baseado numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, qualquer apreciação dos factos da causa é da competência do juiz nacional. Do mesmo modo, cabe unicamente ao juiz nacional, que é chamado a conhecer do litígio e deve assumir a responsabilidade da decisão jurisdicional a proferir, apreciar, tendo em conta as particularidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para estar em condições de proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Em consequência, desde que as questões submetidas incidam sobre a interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar-se (v., nomeadamente, acórdãos de 15 de dezembro de 1995, Bosman, C-415/93, Colet., p. I-4921, n.o 59, e de 14 de fevereiro de 2008, Varec, C-450/06, Colet., p. I-581, n.o 23 e jurisprudência referida)” ;
- de 19/07/2012: 4ª Secção – Processo C-470/11 - SIA Garkalns contra Rīgas dome.
Consta do Considerando 17 que:
“a este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, compete exclusivamente ao tribunal nacional, que é chamado a conhecer do litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a proferir, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial, para poder proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, quando as questões tenham por objeto a interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar-se (acórdão de 10 de março de 2009, Hartlauer, C-169/07, Colet., p. I-1721, n.o 24)” ;
- de 15/01/2013: Grande Secção – Processo C-416/10 - Jozef Križan e o. contra Slovenská inšpekcia životného prostredia.
Consta do Considerando 53 que:
“a este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, compete exclusivamente ao tribunal nacional, que é chamado a conhecer do litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a proferir, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, quando as questões tenham por objeto a interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar-se (acórdãos de 10 de março de 2009, Hartlauer, C-169/07, Colet., p. I-1721, n.o 24, e de 19 de julho de 2012, Garkalns, C-470/11, n.o 17)” ;
- de 05/03/2015: 2ª Secção – Processo C-667/13 - Estado português contra Banco Privado Português SA e Massa Insolvente do Banco Privado Português SA..
Consta do Considerando 34 que:
“a este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação entre este último e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, é da competência exclusiva do juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade da decisão jurisdicional a proferir, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões colocadas digam respeito à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (v., designadamente, acórdão Kamberaj, C‑571/10, EU:C:2012:233, n.o 40 e jurisprudência referida, e despacho Dél‑Zempléni Nektár Leader Nonprofit, C‑24/13, EU:C:2014:40, n.o 39)” ;
- de 21/12/2016: 2ª Secção – Processo C-76/15 - Paul Vervloet e o. contra Ministerraad.
Referencia o Considerando 56 que:
“a este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação entre este último e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, é da competência exclusiva do juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade da decisão jurisdicional a proferir, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões colocadas digam respeito à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (acórdãos de 15 de janeiro de 2013, Križan e o., C‑416/10, EU:C:2013:8, n.o 53, e de 5 de março de 2015, Banco Privado Português e Massa Insolvente do Banco Privado Português, C‑667/13, EU:C:2015:151, n.o 34 e jurisprudência referida)” ;
- de 27/06/2017: Grande Secção – Processo C-74/16 - Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania contra Ayuntamiento de Getafe.
Referencia o Considerando 24 que:
“a este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação entre este último e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade da decisão judicial a tomar tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal. Consequentemente, desde que as questões colocadas digam respeito à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (acórdão de 21 de dezembro de 2016, Vervloet e o., C‑76/15, EU:C:2016:975, n.o 56 e jurisprudência referida)” ;
- de 10/07/2018: Grande Secção – Processo C-25/17 - Tietosuojavaltuutettu sendo intervenientes: Jehovan todistajat — uskonnollinen yhdyskunta.
Consta do Considerando 31 que:
“a este respeito, há que recordar que é exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional chamado a conhecer do litígio, ao qual cabe assumir a responsabilidade da decisão judicial a proferir, que compete apreciar, tendo em conta a especificidade de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Por conseguinte, quando as questões submetidas disserem respeito à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido de decisão prejudicial formulado por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (v., neste sentido, Acórdão de 27 de junho de 2017, Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania, C‑74/16, EU:C:2017:496, n.os 24 e 25 e jurisprudência referida)”.
Exposto o presente enquadramento legislativo, doutrinário e jurisprudencial, é tempo de retirarmos conclusões e analisarmos o caso concreto.
Conforme enunciado, o despacho objecto de recurso ainda decidiu acerca do objecto do pedido de reenvio prejudicial determinado nos autos. Nomeadamente, ao não admitir o pretendido aditamento de uma questão supervenientemente sugerida pelos Autores, mantendo as três questões originariamente fixadas (e, curiosamente, correspondentes ipsis verbis, ao teor das questões sugeridas pelos mesmos Autores no seu requerimento de reenvio prejudicial que acompanhou a petição inicial aperfeiçoada).
Ora, atenta a amplitude e poder de conformação que se reconhece ao julgador nacional, chamado a conhecer do litígio, no mecanismo que subjaz ao pedido de reenvio, ainda se afigura como admissível poder qualificar-se como pertencendo ao poder discricionário do julgador da instância a definição e conformação do objecto de reenvio, através da definição das questões a submeter ao TJUE. O que determina considerar-se, nos termos do nº. 1, do artº. 630º, tal despacho como irrecorrível, nos termos conhecidos pelo despacho reclamado, em virtude da sua qualificação como proferido no uso legal de um poder discricionário. Que, deste modo, mereceria confirmação.
Realce-se que, in casu, não está em equação qualquer recurso incidente sobre o mérito da decisão que determinou o reenvio prejudicial, e o juízo de necessidade que a sustentou, mas antes, e apenas, o teor ou balizamento do objecto de reenvio, através da definição das questões a submeter ao TJUE.
E, ainda que tendo por base a própria decisão de reenvio (o que, insiste-se, não ocorre no caso sub júdice), foi este o entendimento que enformou a decisão da Cour de Cassation belga (supra aduzida), ao considerá-la como insusceptível de recurso, traduzindo a denominada décision d'ordre, isto é, uma decisão que não resolve qualquer questão de mérito ou de direito e é insusceptível de prejudicar quaisquer das partes litigantes.
Decisão, acrescentamos nós, com similitude de natureza ao aludido despacho discricionário, fundado no prudente arbítrio do julgador.
Por outro lado, ainda que não se concluísse pela rotulagem de tal despacho como proferido no uso legal de um poder discricionário, o entendimento subjacente ao mecanismo/incidente do reenvio adoptado pelo direito europeu e jurisprudência do Tribunal de Justiça sempre imporiam o reconhecimento da irrecorribilidade de tal decisão.
Efectivamente, para além de competir ao juiz nacional que conhece do litígio a necessidade de pronunciamento do TJUE para a sua adequada e consistente solução, compete-lhe igualmente aferir a adequação e pertinência das questões a submeter no âmbito do incidente que deduz. Ou seja, compete-lhe, enquanto juiz da instância, de forma exclusiva e autónoma, relativamente às contingências de subordinação hierárquica por referência às jurisdições superiores previstas no seu direito processual nacional, definir ou balizar o quadro das questões colocandas.
Acresce, ainda, que nesta sua função delimitadora ou definidora deve, logicamente, operar juízo crítico sobre as eventuais sugestões que as partes tenham apresentado concernentes àquele balizamento ou definição. O que, realce-se, foi concretizado plenamente in casu, pois, reitere-se, as questões submetidas correspondem integralmente ao teor das que os mesmos Autores haviam sugerido em sede de petição inicial.
Todavia, não sendo propriamente o mecanismo do reenvio prejudicial uma via de recurso disponibilizada aos particulares, no âmbito de litígio existente nos órgãos jurisdicionais nacionais, compete exclusivamente ao juiz da instância nacional aferir acerca da pertinência, adequação e suficiência das questões a submeter ao TJUE (ainda que se admita que este juízo não possa, por ora, ser extensível à própria decisão de recorrer ao mecanismo de reenvio prejudicial, o que, in casu, não é motivo de controvérsia).
O que, também por esta via, sempre sustentaria juízo de não admissibilidade do recurso interposto sobre o despacho datado de 28/02/2014, conducente, igualmente, á improcedência da presente reclamação.
IV – Por tudo quanto vem de ser exposto, nos termos do nº. 4 do artº. 643º, do Cód. de Processo Civil, decide-se:
a) julgar improcedente a presente Reclamação apresentada pelos Recorrentes Reclamantes JSB e OUTROS ;
b) consequentemente, mantém-se, na íntegra, o despacho reclamado.
Custas da presente reclamação a cargo dos Recorrentes/Reclamantes – cf., artº. 527º, nº.s 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que alguns (eventualmente) gozem.
Notifique.
*
Lisboa, 15/12/2022 O Desembargador Relator Arlindo José Colaço Crua
_______________________________________________________ [1]Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, Almedina, pág. 179. [2]Manual de Direito Administrativo, Tomo I, 10ª Edição, pág. 485. [3] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, pág. 420 e 421, citando J. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, Lisboa, 2001, págs. 218. [4] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Vol. II, 2014, Almedina, pág. 23 a 26. [5]Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª Edição, Almedina, pág. 325, citando Castro Mendes, Direito Processual Civil, Tomo III, pág. 46. [6]Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª Edição, 2004, Almedina, pág. 168 e 169. [7]Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 249, 252 e 253. [8] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL, 2022, pág. 178 e 179. [9] Aduzem José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre – Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, 3ª Edição, Almedina, pág. 42 -, não poderem tais despachos ser objecto de recurso “por não ter sentido apreciar em nova instância o prudente arbítrio do julgador que inspirou a regulamentação neles acolhida”. [10]Ob. cit., pág. 71 a 73. [11]O Porteiro e a Lei – A Propósito da Possibilidade de Interposição de Recurso do Despacho de Reenvio Prejudicial à Luz do Direito da União Europeia, Revista Julgar, nº. 14, 2011, pág. 113. [12]Idem, pág. 115, 116, 123, 126 a 130, 132 e 133. [13]Anotação aos acórdãos (TEDH) Ferreira Santos Pardal c. Portugal e (TJUE) Ferreira da Silva e Brito (ou do “grito do Ipiranga” dos lesados por violação do direito da União Europeia no exercício da função jurisdicional), Revista Julgar Online, Outubro/2015 (ignoraram-se as notas de rodapé).