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ASSISTENTE
ORDEM DOS ADVOGADOS
CRIME DE PROCURADORIA ILÍCITA
ISENÇÃO DE CUSTAS
Sumário
I - A Ordem dos Advogados quando apresenta queixa pelo crime de procuradoria ilícita (crime de natureza semi-pública) e pretende intervir nos autos como assistente, assumindo a posição de colaborador do Ministério Público no exercício da ação penal, não atua em defesa – direta e exclusiva - de direitos fundamentais dos cidadãos, na aceção constitucional, ou de qualquer interesse difuso (ou seja, interesses de grupos indefinidos ou de extensão indeterminada), limitando-se a defender - direta e imediatamente - os direitos e interesses dos seus membros (uma determinada classe profissional), ainda que isso seja do interesse público e que se possa afirmar que está de forma indireta a defender a boa administração da justiça, tendo em conta as atribuições que lhe são conferidas pelo artigo 3.º, al. a), do seu Estatuto. II – Assim, ao requerer a sua constituição como assistente no crime de procuradoria ilícita (para o que tem legitimidade), não pode considerar-se que esteja direta e exclusivamente a defender os direitos fundamentais dos cidadãos ou interesses difusos, pelo que não beneficia da isenção de custas que decorre do artigo 4.º, n.º 1, al. g) do Regulamento das Custas Processuais.
Texto Integral
Processo 3742/20.0T9VNG-A.P1
Comarca do Porto
Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 3
Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
I- RELATÓRIO
I.1. A Ordem dos Advogados veio interpor recurso do despacho proferido em 29.04.2022 que ordenou a notificação da recorrente para proceder ao pagamento da taxa de justiça devida pela constituição como assistente por entender não estar isenta do seu pagamento.
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I.2. Recurso da decisão (conclusões que se transcrevem integralmente)
“I) O despacho recorrido ao fundamentar que a Ordem dos Advogados (adiante O.A.) "não actua com vista à defesa directa dos direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos, limitando-se a exercer as suas atribuições estatutárias" violou a interpretação conjugada dos arts. 1n.ºs 1 e 2 e 3º do EOA; dos arts. 2º a 5º da Lei n.° 2/2013, de 10/01, art. 358º, al. b) do CP e 7.º e 11.º da Lei n.° 49/2004, de 24 de Agosto. Porquanto, o despacho recorrido desconsiderou que as Ordens, enquanto associações públicas, são uma forma de administração indirecta, sendo incumbidas pelo Estado da prossecução exclusiva de atribuições coincidentes com interesses públicos concretizadores de direitos fundamentais dos cidadãos; e, no caso em apreço, a O.A. defende diretamente o direito fundamental dos cidadãos de Acesso ao Direito previsto no art. 20º da CRP. Efetivamente, os factos descritos na queixa-crime subsumem-se à prática ilícita de consulta jurídica e patrocínio judiciário, serviços que integram aquele direito fundamental e estão legalmente reservados aos Advogados pelo especial interesse público subjacente e em prol dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, bem como integram o tipo objetivo de ilícitos em causa nos autos.
II) Acresce que a fundamentação de que "tal associação [referindo-se à Ordem dos Advogados], no caso em apreço, defende essencialmente os direitos e interesses dos seus membros" não é consentânea com a letra e o espírito dos normativos aplicáveis, nomeadamente porque: a primeira atribuição da Ordem dos Advogados, prevista na al. a) do art. 3º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 145/2015, de 09 de setembro (EOA), é "Defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar na administração da justiça; " e, in casu, os tipos de ilícito criminal aqui em concurso aparente - o crime de usurpação de funções e o crime de procuradoria ilícita - protegem o bem jurídico da integridade do sistema oficial de exercício da advocacia em prol da defesa dos direitos do cidadão, o qual é exclusivamente defendido pela O.A. com a sua constituição como assistente nos autos. Nem a atuação da O.A., nem a incriminação dos tipos legais de crime em causa decorrem de um qualquer intento corporativista, como parece decorrer do despacho a quo, mas sim da necessidade e efetiva de defesa do direito fundamental dos cidadãos de acesso ao Direito (art. 20º CRP).
III) O despacho recorrido ao afastar a aplicabilidade da isenção de custas violou, para além do artigo 4º, n.º 1, al. g) do RCP, o disposto nos artigos 2º a 5º da Lei n.° 2/2013, de 10 de Janeiro (especialmente a al. a) do n.º 1 do art. 5º), nos artigos 1º, n.ºs 1 e 2; 3º, alíneas a) e l); 9.º, n.ºs. 1 e 3, al. b) e 54.º, n.º 1, al. u), todos do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de Setembro; bem como os arts. 1º, 7º e 11º da Lei n.° 49/2004, de 24 de Agosto.
IV) Com efeito, a Ordem dos Advogados é uma pessoa colectiva de direito público, mais propriamente uma associação pública (cf. art. 1º EOA) - pessoa colectiva de tipo corporacional constituída para a prossecução de interesses públicos e dotada, dos necessários poderes jurídico- administrativos - submetida a um regime específico de direito administrativo, e que corresponde a uma longa manus do Estado ou a uma forma de administração e prossecução de interesses públicos, que o próprio Estado lhe transferiu mediante devolução de poderes (cf. art. 267.º CRP, que também saiu violado pela presente decisão recorrida).
V) A AO intervém exclusivamente na defesa dos interesses públicos directamente previstos nos arts. 2º a 5º (esp. n.º 1, al. a) deste) da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, nos arts. 1.º, nºs 1 e 2; 3º, 9.º, n.ºs 1 e 3, al. b); 54.º, n.º 1, al. u), todos do Estatuto da Ordem dos Advogados; e nos arts, 7.º e 11º da Lei n° 49/2004, de 24 de Agosto. A intervenção da OA como assistente nos autos acautela diretamente a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (art. 3.º, al. a) EOA).
VI) Por outro lado, nos autos, a intervenção da OA acautela os interesses públicos que estiveram na génese da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, concretamente identificados no respectivo procedimento legislativo como sendo os damelhor salvaguarda dos interesses e direitos dos cidadãos; salvaguardando e garantindo maior eficácia na administração da justiça; no combate à procuradoria ilícita, actividade ilegal que tem sido objecto de denúncia por todos os operadores de justiça; visando primordialmente a protecção dos direitos dos cidadãos e dos consumidores em geral; o interesse público e a realização da justiça; efectiva tutela dos direitos dos cidadãos; assegurando os princípios fundamentais do Estado de direito democrático; a administração da justiça- em lado algum o legislador se referiu à defesa dos interesses dos associados da Ordem dos Advogados, nem sequer a título indirecto ou reflexo.
VII) Tal intervenção da Ordem dos Advogados na defesa directa e imediata de interesses primacialmente e essencialmente de natureza pública, geral, prende-se ainda com a protecção do direito fundamental de Acesso ao Direito e à sua tutela jurisdicional efectiva, com assento constitucional no art. 20.º da CRP.
VIII) A legitimidade da Recorrente para actuação nas presentes matérias encontra-se expressamente prevista na lei (de que são exemplos o art. 5º EOA e o art. 7º, n.°s 3 e 4 da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto). A Lei atribui especialmente à Ordem dos Advogados legitimidade processual na matéria de procuradoria ilícita, nomeadamente nos artigos 7º, n° 3 e 11º, n.º 2 da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto, sendo que a respetiva competência está regulada no Estatuto da ordem dos Advogados no art. 54°, n° 1, al. u), nos autos em concurso aparente com o crime de usurpação de funções, existindo uma relação de especialidade entre as normas incriminadoras. Preenchendo-se também este elemento objectivo necessário ao reconhecimento da isenção de custas em discussão (cf. art. 4º, n.º 1, g) RCP).
IX) Nos autos, a Ordem dos Advogados atua exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições expressas no art. 3.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015 de 9 de setembro e alterado pela Lei n.° 23/2020, de 6 de julho, e da Lei n.° 79/2021, de 24 de novembro, para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos, mais concretamente o direito fundamental de Acesso ao Direito do Ofendido (art. 20º da CRP).
X) A Recorrente atua exclusivamente em prol da defesa do bem jurídico protegido pelo art. 358º, al. b) do C.P.: a integridade do sistema oficial instituído para o acesso e exercício da profissão de Advogado e, assim, do direito fundamental de Acesso ao Direito dos cidadãos e na defesa de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto, o que se integra no art. 4º, nº 1, al. g) do Regulamento das Custas Processuais, mais concretamente em defesa dos consumidores que recorrem a serviços jurídicos e, em concreto, dos Advogados.” Pugna pela revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que reconheça à recorrente o benefício da isenção de custas.
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I.3. Resposta do Ministério Público
O Ministério Público na resposta ao recurso pronunciou-se pela improcedência do recurso, concluindo que: “1. Dispõe o art. 50°, n°1, do Cód. de Proc. Penal, a propósito da legitimidade em procedimento dependente de acusação particular, que "Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular".
2. Por tal motivo, nos crimes de natureza procedimental pública ou semi-pública, não condição do procedimento a constituição do ofendido ou de outras pessoas como assistente.
3. Em processo penal, a constituição como assistente, obrigatória ou facultativa, e a abertura de instrução, consoante a natureza procedimental do crime depende, entre outras condições ou requisitos, do pagamento de taxa de justiça que, nos termos do art. 8º nºs 1 e 2, do Regulamento das Custas Processuais "é auto liquidada no montante de 1UC, podendo -ser corrigida, a final, pelo juiz, para um valor entre 1UC e10 UC, tendo em consideração o desfecho do processo e a concreta atividade processual do assistente". 4. Sendo que o não pagamento da taxa de justiça devida pela constituição como assistente e da abertura de instrução, determina que o requerimento para essa finalidade processual seja considerado sem efeito - n.º 5 do art. 8º do Regulamento das Custas Processuais.
5. Os crimes em causa nos autos, não têm natureza procedimental particular, pelo que a constituição da OA, como assistente, não é obrigatória, dado que, como resulta da Conclusão 1, a ser deduzida acusação, tal compete ao Ministério Público - artigos 48º e 49º, nº1, ambos do Cód. de Proc. Penal - no caso, por se tratarem dois crimes de natureza pública e um de natureza semi-pública.
6. Como entende José Barreiros, do ponto de vista cronológico as pessoas que normalmente integram o estatuto processual de assistente pertencem à categoria das vítimas, sendo ofendidos, grosso modo, no domínio processual penal. O estatuto de assistente é essencialmente o de mero colaborador, de auxiliar subordinado do Ministério Público enquanto titular do direito de procedimento penal.
7.O art. 4º, nº1, g), do Regulamento das Custas Processuais concede a isenção de pagamento de custas processuais, que abarcam a taxa de justiça, as entidades públicas quando atuem exclusivamente no âmbito das suas atribuições para defesa dos direitos fundamentais do cidadão ou de interesses difusos que lhes estão especialmente conferidos pelos estatutos.
8. É duvidoso que a OA, ao requerer a sua constituição como assistente e pedido de abertura de instrução em crimes de natureza procedimental pública e semi pública, esteja a atuar exclusivamente no campo das suas atribuições de defesa de algum direito fundamental do cidadão, mormente algum dos direitos os consagrados nos artºs. 12º a 79º, da CRP.
9. Aplicando, mutatis mutandis a jurisprudência dos Acs. da RP de 26.09.2012 (proc. nº 1764/10.9TAVNG); de 03.10.2012 (proc. n° 686/10.6TAVNG); de 20.06.2012 (proc. nº 1038/10.5TASTS) e de 28.09.2011 (proc. n° 1008/09.6TAPRD), e da RE de 28.12.2012 (proc. n° 3892/11.9TBPTM), que decidiram que a entidade pública Instituto da Segurança Social e as Instituições de Solidariedade Social, respetivamente, não estão isentas do pagamento de custas judiciais (nas quais se inclui a taxa de justiça - art. 3º, nº 1, do Regulamento das Custas Processuais).
10. Não parece que a recorrente, que visa obter a concessão do estatuto de sujeito processual - assistente - interessado em ver exercida a profissão de advogado por quem reúne habilitações e não está impedido por algum motivo de o fazer, sendo ele o ofendido protegido com a incriminação, esteja a atuar, no processo penal, na exclusiva defesa dos direitos fundamentais do cidadão, já que aqui surge, isso sim, na defesa de interesses dos seus membros, Por isso, a pretensão da recorrente não difere em nada da do particular ofendido como a comissão de crime de furto, de burla, ou outro, em relação ao qual a lei lhe confere legitimidade para se constituir assistente, mas não prevê a isenção de pagamento da respetiva taxa de justiça, ou a vem a recusar, pela via do indeferimento da concessão do apoio judiciário (artº.16º, nº 1, al. a), da Lei nº 34/2004, de 29/07).
11. Por conseguinte, afigura-se-nos que o despacho sob censura andou bem, ao não conceder a imunidade da recorrente no pagamento de taxa de justiça devida pela abertura de instrução, e impor o seu pagamento, sendo a interpretação que melhor se harmoniza com a norma da al. g,) do nº 1, do art. 4º, do Regulamento das Custas Processuais.
12. «Nos crimes de usurpação de funções e de procuradoria ilícita, de natureza procedimental pública e o último semi-pública, a pretensão da OA em intervir no processo na qualidade de assistente, não difere da do particular ofendido por crime relativamente ao qual a lei lhe confere essa faculdade, isto é, não se propõe defender um direito fundamental do cidadão ou de interesse difuso, pelo que não é entidade elencada na alínea g) do nº 1 do art. 4º, do Regulamento das Custas Processuais, não gozando da imunidade de pagamento de taxa de justiça». 13. Nesta senda, propendemos pela manutenção total do despacho em crise, que não violou a norma do art. 4º, nº 1, al. g) do Regulamento das Custas Processuais, devendo ser negado provimento ao recurso, e, consequentemente, manter-se a decisão recorrida.”
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I.4. Parecer do Ministério Público
Nesta Relação o Ministério Público acompanhou a argumentação constante na motivação do recurso interposto pelo Ministério junto do tribunal recorrido, pugnando pela improcedência do recurso.
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I.5. Resposta ao parecer
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.
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I.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Objecto do recurso
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
Assim, da análise das conclusões da recorrente a única questão que importa apreciar e decidir é saber se a recorrente está ou não isenta do pagamento de custas (e particularmente de taxa de justiça devida pela constituição de assistente) ao abrigo do disposto no artigo 4, nº 1, al. g) do Regulamento das Custas Processuais (doravante RCP).
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II.2. Decisão recorrida (que se transcreve integralmente)
“Fls. 4 (pedido de constituição como assistente da Ordem dos Advogados ...): entende a requerente que se encontra dispensada do pagamento da taxa de justiça devida pela constituição de assistente (artigo 519.º, n.º 1, do CPP) ao abrigo da isenção prevista no artigo 4.º, n.° 1, alínea g), do RCP. Tal norma dispõe o seguinte: "Estão isentos de custas:... As entidades públicas quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto, e a quem a lei especialmente atribua legitimidade processual nestas matérias;... ". Diz o artigo 1.°, n.°s 1 e 2, do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.° 145/2015, de 9 de Setembro), que "Denomina-se Ordem dos Advogados a associação pública representativa dos profissionais que, em conformidade com os preceitos do presente Estatuto e demais disposições legais aplicáveis, exercem a advocacia" (n.° 1), e que"A Ordem dos Advogados é uma pessoa coletiva de direito público que, no exercício dos seus poderes públicos, desempenha as suas funções, incluindo a função regulamentar, de forma independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma na sua atividade ".
As associações públicas são pessoas colectivas de direito público, de natureza associativa, criadas como tal por acto do poder público, para a prossecução de interesses públicos determinados integradas no âmbito da administração autónoma. Salvador da Costa (in Código das Custas Judiciais Anotado e Comentado, 9.ª edição, 2007, pág. 72), referindo-se então à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, afirma peremptoriamente que as ordens profissionais (onde se inclui a Ordem dos Advogados), sendo uma associação pública, deixou de gozar da isenção subjectiva que conste do seu estatuto, tendo em conta o disposto no artigo 4.°, n.° 7, do referido diploma legal. Com a entrada em vigor do RCP não se alterou o panorama em questão no que tange com custas e, especificamente no que ao caso interessa, com o pagamento de taxa de justiça pela constituição como assistente do órgão que para o efeito tem legitimidade para tal. Por outro lado, não existe qualquer norma especial, mormente estatutária, que isente a Ordem dos Advogados do pagamento de custas ou de taxa de justiça pela constituição como assistente. Como se pronunciou o Ac. do TRP de 10.02.2016 (processo 6578/12.9TDPRT-A.P1, acessível em www.dgsi.pt") - a propósito do pedido de constituição de assistente da Câmara dos Solicitadores em processo-crime, mas cujas conclusões são aplicáveis ao caso concreto atendendo ao paralelismo dos casos -, "Não obstante se tratar, efetivamente, de uma associação pública - considerada entidade pública no âmbito do Regulamento das Custas Processuais[4], entende-se, à luz dos elementos literal e teleológico de interpretação[5] que a norma citada (artigo 4° n° 1, al g), do Regulamento das Custas Processuais) apenas abrange as ações que tenham por objeto imediato a defesa de direitos fundamentais dos cidadãos, ou de interesses difusos [6] sob pena dos casos de isenção se alargarem a outros processos, compreendidos no exercício das atribuições estatutárias de entidades públicas, mas que o legislador não pretendia isentar" - no mesmo sentido, veja-se ainda o Ac. do TRP de 16.12.2015, processo 1269/13.3T3AVR-A.P1, disponível no mesmo sítio da Internet supra identificado e AC.do TRG de 29.10.2019 processo 3598/18.79VCT.
Em consequência, ao pretender intervir nos autos como assistente, a Ordem dos Advogados não actua com vista à defesa direta de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos, limitando-se a exercer as suas atribuições estatutárias.
Concedendo-se que a intervenção da Ordem dos Advogados nos autos na qualidade de assistente possa ter reflexos na defesa de direitos fundamentais dos cidadãos, não deixa de ser verdade que tal associação, no caso em apreço, defende essencialmente os direitos e interesses dos seus membros.
Em face do exposto, notifique a requerente para, no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento da taxa de justiça devida pela constituição como assistente.”
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II.3. Apreciação do Recurso §1 Com interesse para a apreciação da questão enunciada importa ter presente os seguintes factos processuais que constam dos autos:
a) O inquérito iniciou-se com base numa queixa apresentada pela recorrente (Ordem dos Advogados), cujo teor é susceptível de indiciar a prática de um crime de procuradoria ilícita, previsto na Lei 49/2004, de 24.08 em concurso aparente com o crime de usurpação de funções, p. e p. pelo artigo 358º, al. b) do C.P.;
b) Nessa denúncia a Ordem dos Advogados requereu a constituição de assistente, com isenção de taxa de justiça, nos termos do disposto no artigo 68º do C.P.C. e nos artigos 1º, n.º 1, 5º e 54º, n.º 1, al. u) do Estatuto da Ordem dos Advogados e artigo 4º, n.º 1, al. g) do Regulamento das Custas Processuais;
c) O despacho recorrido não reconheceu a requerida isenção do pagamento de taxa de justiça.
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§2. A recorrente sustenta que está isenta de custas por ser uma pessoa colectiva de direito público, propriamente uma associação pública e por actuar, no caso dos autos, exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidas pelo respectivo estatuto expressas no seu artigo 3º e a quem a lei especialmente atribui legitimidade processual nestas matérias.
Invoca como normas violadas os artigos 4º, n.º 1, al. g) do RCJ, 1º, n.ºs 1 e 2, 3º, als. a) e l), 5º, 9º, n.ºs 1 e 3 e 54º, n.º 1, al. u) do EOA e artigos 1º, 7º, e 11º da Lei 49/2004, de 24.08.
Vejamos.
Começamos por transcrever as normas legais à luz das quais será decidida a questão suscitada no presente recurso contidas nos seguintes diplomas:
- Regulamento das custas Judiciais (RCJ)
O artigo 1º com a epígrafe “Regras gerais”: “1. Todos os processos estão sujeitos a custas, nos termos fixados pelo presente Regulamento”.
O artigo 4º com a epígrafe “Isenções”: “1 - Estão isentos de custas: (…) g) As entidades públicas quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto, e a quem a lei especialmente atribua legitimidade processual nestas matérias;”.
- Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA)
O artigo 1º com epígrafe “Denominação, natureza e sede: “1. Denominação Ordem dos Advogados a associação pública representativa dos profissionais que, em conformidade com os preceitos do presente Estatuto e demais disposições legais aplicáveis, exercem a advocacia. 2. A Ordem dos Advogados é uma pessoa colectiva de direito público que, no exercício dos seus poderes públicos, desempenha as suas funções, incluindo a função regulamentar, de forma independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma na sua actividade.”
O artigo 3º com a epígrafe “Atribuições da Ordem dos Advogados”: Constituem atribuições da Ordem dos Advogados: a) Defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar na administração da justiça; (…) d) Zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de advogado, promovendo a formação inicial e permanente dos advogados e o respeito pelos valores e princípios deontológicos; e) Representar a profissão de advogado e defender os interesses, direitos, prerrogativas e imunidades dos seus membros, denunciando perante as instâncias nacionais e internacionais os atos que atentem contra aqueles; (…) l) Exercer as demais atribuições que resultem das disposições do presente Estatuto ou de outros diplomas legais, designadamente do artigo 5º da Lei 2/2013, de 10.01.”.
O artigo 5º com a epígrafe “Representação da Ordem dos Advogados”: “(…) 2. Para defesa de todos os seus membros em todos os assuntos relativos ao exercício da profissão ou ao desempenho de cargos nos órgãos da Ordem dos Advogados, que se trate de responsabilidades que lhes sejam exigidas, quer de ofensas contra eles praticados, pode a Ordem exercer os direitos de assistente ou conceder patrocínio em processos de qualquer natureza.”
O artigo 9º com a epígrafe “enumeração”:
“1- A Ordem dos Advogados prossegue as atribuições que lhe são conferidas no presente Estatuto e demais legislação através dos seus órgãos próprios.”
O artigo 54º com a epígrafe “Competência”: “1- Compete ao conselho regional, no âmbito da sua competência territorial: (…) u) Exercer as competências que lhe são conferidas por lei relativas aos processos de procuradoria ilícita na área da sua região,”.
- Lei n.º 94/2004, de 24.08 (Define o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores e tipifica o crime de procuradoria ilícita)
O artigo 1º com a epígrafe “Actos próprios dos advogados e dos solicitadores”: “1- Apenas os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e os solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores podem praticar os actos próprios dos advogados e dos solicitadores.”
O artigo 7º com a epígrafe “Crime de procuradoria ilícita”: “1- Quem em violação do disposto no artigo 1º: a) Praticar actos próprios dos advogados e dos solicitadores; b) Auxiliar ou colaborar na prática de actos próprios dos advogados e dos solicitadores; é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2- O procedimento criminal depende de queixa. 3- Além do lesado, são titulares do direito de queixa a Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores. 4- A Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores têm legitimidade para se constituírem assistentes no procedimento criminal.”
O artigo 11º com a epígrafe “Responsabilidade civil”: “2. A Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores têm legitimidade para intentar acção de responsabilidade civil, tendo em vista o ressarcimento de danos decorrentes da lesão dos interesses públicos que lhes cumpre, nos termos dos respectivos estatutos, assegurar e defender.”
- Código de Processo Penal (CPP)
O artigo 68º com a epígrafe “Assistente”: 1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos; b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento; c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime; d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de protecção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime; e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.”
Sobre a questão suscitada no presente recurso a jurisprudência (mais propriamente os Tribunais da Relação) tem adoptado duas posições antagónicas:
a) A primeira sufraga a orientação de que a OA beneficia da isenção de custas prevista no artigo 4º, n.º 1, al. g) do RCJ com os seguintes argumentos:
- a OA é uma associação pública que prossegue interesses públicos, estando isenta de custas para estes efeitos – neste sentido, cfr. Ac. do TRP de 19.04.2017, proferido no processo 1046/14.7TASTS.P1, rel. pela Sra. Desembargadora Paula Guerreira (num caso de um despacho de não pronúncia de um crime de procuradoria ilícita), não publicado;
- a OA é uma pessoa colectiva de direito público e no âmbito do crime de procuradoria ilícita actua exclusivamente na prossecução do interesse público da boa administração da justiça e da integridade do sistema oficial de provimento e exercício da advocacia – neste sentido, cfr. Ac. do TRP de 29.11.2017, proferido no processo 31/17.1T9PRT-A.P1, Rel. pela Sra. Desembargadora Maria Luísa Arantes, não publicado e Ac. do TRP de 28.04.2021, proferido no processo 474/19.6T9ETR-A.P1, rel. pelo Sr. Desembargador Luís Coimbra, não publicado);
- a OA enquanto associação pública, no caso do crime de procuradoria ilícita, actua exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de interesses gerais relativos ao exercício da advocacia, que são públicos e que incluem os dos próprios destinatários dos serviços de advocacia (ou seja, interesses difusos) – neste sentido, declaração de voto proferida pelo Sr. Desembargador Pedro Vaz Pato no Ac. de 25.11.2020, acessível em www.dgsi.
b) A segunda segue a orientação que a OA não beneficia da isenção prevista no artigo 4º, n.º 1, al. g) do RCJ com os seguintes argumentos:
- a OA quando apresenta queixa pelo crime de procuradoria ilícita não está a defender direitos fundamentais dos cidadãos, nem a defender qualquer interesse difuso, mas sim os interesses dos seus associados, ainda que isso seja ou possa ser do interesse público tendo em conta as atribuições que lhe são conferidas no Estatuto - neste sentido, Ac. do TRG de 28.10.2019, rel. pelo Sr. Desembargador Armando Azevedo, acessível em www.dgsi.pt;
- a OA ao requerer a sua constituição como assistente num caso de procuradoria ilícita actua directamente na defesa de uma classe profissional (os advogados) e indirectamente defende a boa administração da justiça – neste sentido, Ac. do TRP de 25.11.2020, rel. pelo Sr. Desembargador Pedro Vaz Pato e Ac. do TRG de 12.09.2022, rel. por Cândida Martinho, ambos acessíveis em www.dgsi.pt;
- a OA num processo de crime de procuradoria ilícita em que interveio como demandante civil não actua em defesa de qualquer direito fundamental na acepção constitucional, nem age para defesa de interesses difusos – neste sentido, cfr. Ac. do TRP de 27.04.2022, rel. pela Sra. Desembargadora Eduarda Lobo, acessível em www.dgsi.pt.
Adiantamos, desde já, que sufragamos a segunda posição.
Com efeito, pese embora a recorrente constitua uma entidade pública para efeitos do citado artigo 4º, n.º 1, al. g) do RCJ, mais precisamente uma associação pública (cfr artigo 1º, n.ºs 1 e 2 do EOA), com o devido respeito por posição contrária, entendemos que não se mostram preenchidas as condições previstas no citado artigo 4º, n.º 1, al. g) para que, no caso dos autos, a OA beneficie de isenção de custas.
Explicitemos.
Em primeiro lugar, temos que ter presente a natureza do crime aqui em causa – o crime de procuradoria ilícita – que, por força do disposto no artigo 7º, n.º 2 da Lei 49/2004, de 24.08, tem a natureza de crime semi-público. Isto significa desde logo que não é obrigatória a constituição de assistente.
Como é sabido, é o CPP que indica quem pode constituir-se assistente (art.º 68º).
No caso do crime de procuradoria ilícita a OA tem legitimidade para se constituir assistente por lhe ter sido concedido esse direito no artigo 7º, n.º 4 da Lei 49/2004, de 24.08 (independentemente de ter sofrido qualquer prejuízo). Isto quer dizer que esta situação não se enquadra em nenhuma das situações previstas nas alíneas elencadas no n.º 1 do citado artigo 68º, designadamente a situação prevista na sua alíneaa):”Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;”.
E atenta a natureza do crime em causa – semi-pública – a OA ao intervir nos presentes autos, como assistente, tem a posição de colaborador do MºPº.
Em segundo lugar, importa atender à evolução legislativa respeitante à questão da isenção de custas.
Começando pelo D.L. 324/2003, de 27.12 verificamos que ocorreram alterações ao regime aprovado pelo D.L. 224-A/96, de 26.11 (que aprovou o último Código das Custas Judiciais), limitando o campo de aplicação das isenções subjectivas previstas no respectivo artigo 2º, do qual deixaram de fazer parte as instituições de segurança social, bem como o próprio estado.
A este propósito, no preâmbulo do citado DL 324/2003 podemos ler: “6 - Procede-se, igualmente, a uma profunda alteração do regime de isenção de custas, consagrando-se o princípio geral de que, salvo ponderosas excepções, todos os sujeitos processuais estão sujeitos ao pagamento de custas, independentemente da sua natureza ou qualificação jurídicas e desde que possuam capacidade económica e financeira para tal, sendo as excepções a esta regra equacionadas, sem qualquer prejuízo para os interessados, em sede de apoio judiciário. Neste particular, estende-se aos processos de natureza cível o princípio geral de sujeição do Estado e das demais entidades públicas ao pagamento de custas judiciais, consagrado, por unanimidade dos partidos com assento na Assembleia de República, no novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, alterada pela Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro. Com efeito, e por maioria de razão, não faria sentido que, sendo essa a regra na jurisdição administrativa, a mesma não fosse também aplicável na jurisdição comum. Tal medida reveste carácter essencial para a concretização plena do direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais, garantindo uma efectiva igualdade processual entre a Administração e os cidadãos. Introduz-se, pois, também neste domínio, um factor de responsabilização acrescida do Estado e das demais entidades públicas pelas consequências derivadas das suas actuações e do seu comportamento processual, contribuindo, com claros benefícios para a comunidade globalmente considerada, para a moralização e racionalização do recurso aos tribunais. Esta alteração não prejudica, obviamente, a actuação do Ministério Público, que, independentemente da sujeição ao pagamento de custas por parte dos seus representados, continua a gozar de isenção nas acções e procedimentos para os quais disponha de legitimidade própria, tendo naturalmente em conta os superiores interesses em causa neste âmbito.” (sublinhado da nossa autoria)
Com a aprovação do Regulamento das Custas Judiciais (DL 34/2008, de 26.02), aplicável ao caso vertente, o legislador pretendeu proceder “… a uma drástica redução das isenções, identificando-se os vários casos de normas dispersas que atribuem o benefício da isenção de custas para, mediante uma rigorosa avaliação da necessidade de manutenção do mesmo, passar a regular-se de modo unificado todos os casos de isenções.” (Cf. I- Exórdio do Decreto –Lei n.º 34/2008).
Esse propósito legislativo foi concretizado no n.º 1 do artigo 25º do citado diploma legal que dispõe: “São revogadas as isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento ou portaria e conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas, que não estejam previstas no presente decreto-lei.”
Por força deste artigo 25º foram revogadas, entre outras, as isenções de custas nas acções inibitórias para defesa dos consumidores previstas no artigo 11º, n.º 1 da Lei n.º 24/93, de 31.07 (Lei de Defesa do Consumidor) e no artigo 29º, n.º 1 do DL 446/85, de 25.10 (Cláusulas Contratuais Gerais).
Por outro lado, no artigo 1º, n.º 1 do RCJ estabeleceu-se a regra geral de que todos os processos estão sujeitos a custas e no artigo 4º do referido regulamento estão elencadas todas as isenções de custas a que o mesmo se aplica.
No sentido de reafirmar o princípio geral de que o pagamento de custas é a regra e a isenção do pagamento é a excepção, mesmo quando esteja em causa o Estado e demais entidade públicas, o artigo 189º, n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos estatui que o “Estado e as demais entidades públicas estão sujeitos ao pagamento de custas”.
Em terceiro lugar, temos que ter em conta os elementos literal e teleológico de interpretação do citado preceito legal.
Conforme consignado no referido A. do TRG de 28.10.2020 “a al. g) do preceito legal em referência não atribui às entidades públicas isenção de custas em sentido genérico, tendo em atenção apenas à sua qualidade de entidades públicas e por causa dela. O próprio Estado, não está isento do pagamento de custas. O sentido da referida norma legal insere-se na linha traçada pelo legislador de reduzir os casos de isenção de custas, isentando de custas as entidades públicas apenas quando exerçam, em concreto e especificamente, as suas atribuições de acordo com os respectivos estatutos de defesa, directa e imediata, de direitos fundamentais ou na defesa de interesses difusos.”
Com efeito, como se refere no AC. do TRP de 10.02.2016 (acessível em www.dgsi.pt), a al. g) do n.º 1 do artigo 4º do RCP “apenas abrange as acções que tenham por objecto imediato a defesa de direitos fundamentais dos cidadãos, ou de interesses difusos, sob pena dos casos de isenção se alargarem a outros processo, compreendidos no exercício das atribuições estatutárias de entidades públicas, mas que o legislador não pretendia isentar”.
Como se exarou no referido Ac. do TRP de 27.04.2022 “na atribuição do benefício de isenção subjectiva de custas, a lei não se basta com a natureza pública da entidade em causa. Exige ainda que essa entidade actue exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto.” (sublinhado da nossa autoria)
Ora, o exercício exclusivo na promoção dos direitos fundamentais ou dos interesses difusos, como sustenta o Ac. do TRC de 01.02.2012 (acessível em www.dgsi.pt) significa que “as entidades públicas devem ter como única causa da sua actuação processual a defesa de um desses vectores.”
No que concerne ao conceito dos direitos fundamentais aqui em causa deve-se entender que se tratam dos “direitos do ser humano positivados na constituição, os quais correspondem, no que para o caso releva em face do estatuto da Ordem dos Advogados, aos direitos, liberdades e garantias – cfr. Parte I, Título II da CRP” (vidé o citado Ac. do TRG de 28.10.2020).
Por sua vez, quanto ao conceito de interesses difusos, como se escreveu no Ac. do STJ de 08.09.2016 (acessível em www.dgsi.pt), que segue os ensinamentos de Miguel Teixeira de Sousa em “A Legitimidade Popular na defesa dos Interesses Difusos” – “Os interesses difusos encontram-se dispersos ou disseminados por vários titulares, mas são interesses sem sujeito ou sem titulares, cabem a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo, mas são insusceptíveis de apropriação individual por qualquer desses sujeitos, sendo, pois, a dupla dimensão individual e supra-individual uma característica essencial desses interesses”.
Assim, como sintetiza o citado Ac. do TRG de 28.10.2020 “os interesses difusos caracterizam-se pelo seu objecto de protecção ou bem jurídico ser indivisível e os seus titulares serem indetermináveis. Constituem exemplos conhecidos de interesses difusos os relativos ao ambiente, ao património cultural, ao ordenamento do território, etc.”.
No caso em apreço, dúvidas não há que a OA é uma associação pública. Ora, as associações públicas são “pessoas colectivas públicas, de tipo associativo, criadas para assegurar a prossecução de interesses públicos determinados, pertencentes ao Estado ou a outra pessoa colectiva pública” – cfr. Freitas do Amaral, em Curso de Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra, 1986, pág. 370.
Daqui decorre que as associações públicas são pessoas colectivas de direito público, de natureza associativa, criadas como tal por acto do poder público, para prossecução de interesses públicos determinados integradas no âmbito da administração autónoma, encontrando-se, como tal, previstas no artigo 267º da CRP.
Faz parte das atribuições da OA a legitimidade processual para apresentar queixa, constituir-se assistente e formular pedido de indemnização civil em processos em que esteja em causa o crime de procuradoria ilícita – cfr. artigos 7º, n.ºs 2 e 4 e 11º da Lei 49/2004, de 24.08.
No caso concreto, a questão que importa esclarecer é a de saber se, quando a OA pretende constituir-se assistente no crime de procuradoria ilícita, está ou não a exercer directa e exclusivamente as suas atribuições para, pelo menos, uma das seguintes finalidades previstas na al. g) do n.º 1 do artigo 4º do RCP:
- Defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos; ou
- Defesa de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto.
O bem jurídico protegido no crime de procuradoria ilícita “consiste na tutela da integridade ou intangibilidade do sistema oficial instituído para a prática de actos próprios das profissões de advogado e solicitador, por se considerarem estas de especial interesse público. O referido bem jurídico é naturalmente indivisível e os titulares do interesse estão determinados ou são determináveis na medida em que pertencem a um grupo ou a uma classe, ou seja, in casu, os advogados representados pela Ordem dos Advogados” (cfr. citado Ac. do TRG de 28.10.2020).
No caso concreto, a Ordem dos Advogados quando apresenta queixa pelo crime de procuradoria ilícita (recorde-se de natureza semi-pública) e pretende intervir nos autos como assistente, assumindo a posição de colaborador do MºPº no exercício da acção penal, não actua em defesa – directa e exclusiva - de direitos fundamentais dos cidadãos na aludida acepção constitucional ou de qualquer interesse difuso (ou seja, interesses de grupos indefinidos ou de extensão indeterminada), limitando-se a defender - directa e imediatamente - os direitos e interesses dos seus membros (uma determinada classe profissional), ainda que isso seja do interesse público e que se possa afirmar que está de forma indirecta a defender a boa administração da justiça, tendo em conta as atribuições que lhe são conferidas pelo seu estatuto no artigo 3º, al. a) do EOA.
Note-se que o artigo 3º, al. a) do EOA refere-se “a uma defesa genérica do Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e, no artigo 5º, nº 2, do mesmo diploma se refere a interesses concretos e individualizados dos seus membros…”. Ou seja, na prossecução dos objectivos da Ordem dos Advogados há que distinguir entre interesses e direitos próprios e inerentes aos seus membros e interesses de índole geral, da administração da justiça e defesa do cidadão. E, nesta parte, o Estatuto, no referido artigo 3º, alínea a), é expresso ao dizer que à Ordem dos Advogados compete … colaborar na administração da justiça. Ora, sendo nesta matéria, o papel da Ordem dos Advogados, de mera colaboradora na administração da Justiça, não pode aquela pretender substituir-se nem sequer equiparar-se ao papel ou funções do Estado na defesa dessa mesma Administração da Justiça. A Administração da Justiça é uma prerrogativa exclusiva do Estado, que é executada através dos Tribunais, enquanto órgãos de soberania – artigo 202º, da CRP.” (cfr. Ac. do TRP de 20.10.2010, disponível em www.dgsi.pt).
Numa correlação de interesses e defesa da dita Administração da Justiça e do cidadão, com certeza que se aceita o contributo da Ordem dos Advogados, enquanto associação de natureza pública com prossecução do interesse público. Mas tal não significa que ao requerer a sua constituição como assistente no crime de procuradoria ilícita se tenha que considerar que a OA esteja directa e exclusivamente a defender os direitos fundamentais dos cidadãos ou interesses difusos conforme exigido no citado artigo 4º, n.º 1, al. g) do RCJ.
Por todo o exposto, não foram violadas quaisquer normas legais, designadamente as indicadas pela recorrente, pelo que, no caso vertente, a OA não beneficia da isenção de custas previstas no artigo 4º, n.º 1, al. g) do RCJ, não merecendo qualquer censura o despacho recorrido. Improcede o presente recurso.
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III- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pela Ordem dos Advogados, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS (artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III).
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Porto, 14.12.2022
Maria do Rosário Martins
Lígia Trovão
Pedro Menezes