ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
PRESSUPOSTOS
ESCRITURA PÚBLICA
DECISÃO
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE
UNIÃO DE FACTO
Sumário


I. Estando em causa, no caso sub judice, uma sentença homologatória de escritura pública declaratória, não tem aplicação o AUJ n.º 10/2022,  em que se uniformizou jurisprudência relativamente a escritura pública declaratória de união estável.
II. Analisada a sentença à luz dos pressupostos (essencialmente formais) do artigo 980.º do CPC e não se vislumbrando obstáculo à sua confirmação, deve a sentença ser confirmada.
III. Tal confirmação não confere, porém, à sentença quaisquer efeitos adicionais, mantendo ela, estritamente, o valor e o alcance que lhe é atribuído pelo ordenamento jurídico brasileiro.
IV. O facto de, além do mais, a sentença ser meramente homologatória reforça a conclusão de que esta confirmação não a converte em elemento suficiente para a aquisição da nacionalidade portuguesa por parte dos requerentes, não sendo o conceito de “união estável” do Direito brasileiro rigorosamente equivalente ao conceito de “união de facto” do Direito português, relevante, nomeadamente, para o efeito da aplicação do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3.10).

Texto Integral



ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO


1. AA, português, divorciado, ..., NIF nº ..., portador do Cartão Cidadão nº ..., válido até 14/07/2030, residente Rua ..., 2DTFT, ... e BB, brasileira, divorciada, portadora do passaporte nº ..., válido até 02/09/2028, e do Cartão de Residência nº ..., válido até 06/11/2025, NIF nº ..., com a mesma residência daquele, instauraram acção especial de revisão de sentenças estrangeiras.

Para tanto, alegaram, em síntese, que consta da sentença estrangeira que homologou a escritura pública de declaração de união estável que os requerentes requereram a declaração da sua convivência como se casados fossem desde 10 de dezembro de 2018, tendo em vista possuírem uma relação estável, continua e duradoura.

A decisão a rever é uma sentença proferida no processo n.º ...01 tramitado na ... Vara de Família da Comarca de ..., do Poder Judiciário do Estado do Amazonas, autoridade competente, e na melhor forma de direito que homologou a Escritura Pública Declaratória de União Estável lavrada pelo 6.º Tabelionato de Notas da Comarca ..., na qual consta a declaração dos aqui Requerentes de que convivem como se casados fossem desde 10 de dezembro de 2018, tendo uma relação estável, contínua e duradoura, com a regulação das sua relações patrimoniais pelo regime parcial de bens nos termos do artigo 1725º do Código de Processo Civil (brasileiro).

A sentença foi objecto de uma reclamação para correcção de erro material, tendo sido proferida decisão que o sanou, após o que transitou em julgado no dia 21 de junho de 2021.

Mais alegaram que os documentos que apresentaram são autênticos e que não há dúvidas sobre a inteligência da decisão, que não se pode invocar excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português e que a decisão não conduz a um resultado incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, nem ofende as disposições do direito privado português, sendo conforme à legislação pertinente.

Acrescentam ainda que nada impede a atribuição de eficácia a tal sentença quanto ao estado decorrente da união estável e fazem culminar o seu requerimento com o seguinte pedido:

Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis (…)requer que a presente acção seja julgada procedente por provada e por via dela revista e confirmada a Sentença Estrangeira que homologou a Escritura Pública Declaratória de União Estável, onde as partes declararam conviverem em união estável desde 10 de dezembro de 2018, devendo ser reconhecido o mesmo período de união estabelecido pela sentença brasileira, com todas as consequências legais, para que a mesma possa produzir em Portugal todos os seus efeitos legais”.

Juntaram vários documentos.


2. Foi ordenado o cumprimento do disposto no artigo 982.º, n.º 1, do CPC, na sequência do que o Ministério Público e os requerentes emitiram pareceres onde concluíram pela procedência da ação.


3. Em 18.11.2021 foi proferido Acórdão no Tribunal de Relação do Porto do qual consta o seguinte dispositivo (rectificado em 24.01.2022):

Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar a revisão da escritura pública de união estável celebrada pelos Requerentes no Brasil, subsistindo o seu valor em Portugal como indício ou meio de prova”.

4. O Ministério Público, notificado deste Acórdão, não se conformando com o decidido, dele vem interpor recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça, “nos termos dos art.ºs 985.º e 674.º, n.º1, al. a), do CPC - com isenção de custas, nos termos do art.º 4.º, n.º1, al. a) do Regulamento das custas Processuais”.

A terminar, formula as seguintes conclusões:

1.º Contrariamente ao requerido pelos requerentes AA e BB, o douto Acórdão recorrido decidiu “negar a revisão da escritura pública de união estável celebrada pelos requerentes no Brasil, subsistindo o seu valor em Portugal como indício ou meio de prova” .

2.º Conforme já requerido no requerimento de interposição do recurso, nos termos do art.º 614.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, deverá retificar-se este segmento da decisão, por padecer de erro de escrita, dele ficando a constar a referência a “revisão da decisão judicial meramente homologatória da escritura pública de

3.º Mas em qualquer dos casos, entende o recorrente que o douto acórdão recorrido, ao negar a requerida revisão da decisão brasileira, fez errada interpretação quer do disposto nos art.ºs 978.º, n.º1, e 980.º do CPC; quer do conteúdo e valor probatório da referida sentença homologatória da escritura de união estável dos requerentes, proferida em 11 de junho de 2021 na ... Vara de Família da Comarca de ... do Poder Judiciário do Estado do Amazonas, no Brasil, e da sua retificação, por erro material, pela decisão proferida pelo mesmo Tribunal em 15 de junho de 2021, transitada em julgado.

4.º Perante a facticidade provada deveria o tribunal “ a quo” ter concedido a requerida revisão, nos termos dos art.ºs 978.º, n.º1, e 980.º do CPC.

5.º Contrariamente à tese do Acórdão recorrido, a Escritura Pública de Declaração de União Estável Brasileira, celebrada perante Tabelião brasileiro – e por maioria de razão, a sentença homologatória dessa Declaração de União Estável - pode e deve ser revista e confirmada por Tribunal português.

6.º Embora a nossa jurisprudência, tanto dos Tribunais da Relação como do Supremo Tribunal de Justiça, continue dividida quanto a tal questão - cf.r, a título de exemplo, os arestos do STJ de 12/11/2020, proferido no Processo n.º 95/20.0YRPRT.S1 , da 7.ª Secção – Relatora Cons. Maria do Rosário Morgado; e de 13/10/2020, proferido no processo n.º47/20.0YRGMR.S1, da 1.ª Secção – Relatora Cons. Maria Clara Sottomayor – ambos publicados em Acórdãos STJ-www.dgsi.pt. - continuamos a entender mais correta e adequada à realidade da vida atual e ao espírito do art.º978.º, n.º1, do C.P.C. a bem fundamentada tese deste segundo aresto – favorável à revisão da decisão de “união estável” brasileira.

7.º Contrariamente à tese do Acórdão recorrido, o reconhecimento da “união estável” brasileira em Portugal não é incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (art.º 980.º, al. f) do CPC).

8.º De facto, a Lei n.º 7/2021, de 11/5 (com as alterações introduzidas pela Lei 23/2010, de 30/8), também regula em Portugal as chamadas “uniões de facto” – união jurídica entre duas pessoas que vivem em união de facto há mais de dois anos (art.º1.º), com pressupostos muito semelhantes aos da chamada “união estável” brasileira.

9.º E se é verdade que a Lei portuguesa não sujeita a formalização escrita nem a registo a situação de união da facto, também é certo que os “unidos de facto” podem requerer ao tribunal e obter sentença que lhes reconheça essa situação – através da chamada ação para reconhecimento da união de facto -assim obtendo uma sentença de conteúdo semelhante à sentença de homologação da união estável brasileira – como é a sentença proferida por tribunal brasileiro cuja revisão foi requerida nos presentes autos.

10.º A revidenda sentença proferida na ... Vara de Família da Comarca de ... do Poder Judiciário do Estado do Amazonas, no Brasil, transitada em julgado, respeita todos os requisitos exigidos pelo art.º 980.º do CPC – incluindo o da al. f) - pois a decisão de reconhecimento da união estável brasileira não briga com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

11.º Ao decidir negar a revisão, o Acórdão recorrido violou o disposto nos art.ºs 978.º, n.º1, e 980.º do CPC”.

5. Em 24.01.2022 foi proferido no Tribunal da Relação do Porto o seguinte despacho:

Nos termos do art.º 614º, nº 1, do Código de Processo Civil, a pedido do Ministério Público, corrijo o lapso manifesto contido no dispositivo do acórdão recorrido, como se segue.

Onde consta:

«Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar a revisão da escritura pública de união estável celebrada pelos Requerentes no Brasil, subsistindo o seu valor em Portugal como indício ou meio de prova.»

Deve passar a constar:

«Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar a revisão da decisão judicial homologatória da escritura pública de união estável celebrada pelos Requerentes no Brasil, subsistindo o seu valor em Portugal como indício ou meio de prova.»

Notifique.


*


Por ser legalmente admissível, estar em tempo e ter o recorrente legitimidade, admito o recurso interposto do acórdão final pelo Ministério Público, que é de revista, a subir imediatamente para o Supremo Tribunal de Justiça, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Oportunamente, subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça”.

6. Tendo subido a este Supremo Tribunal de Justiça, foi o presente recurso suspenso por despacho de 23.04.2022, em virtude de se encontrar pendente uniformização de jurisprudência relevante para a questão a decidir.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a única questão a decidir, in casu, é a de saber se a sentença celebrada pelos requerentes no Brasil deve ser confirmada.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que o Tribunal recorrido considerou ser de atender:

1- AA, português, e BB, brasileira, ambos divorciados, outorgaram uma escritura pública de União estável, sob o regime de comunhão parcial de bens, a 8 de julho de 20020, no 6º Tabelião de Notas da Comarca ..., na República Federativa do Brasil;

2. Nessa escritura pública, os aqui Requerentes declararam, além do mais, o seguinte[1]:

3. A 11 de Junho de 2021, a ... Vara de Família Poder Judiciário do Amazonas, a pedido dos Requerentes, proferiu sentença homologatória da referida escritura pública, de onde se colhem as seguintes passagens[2]:

4. Na sequência de reclamação com fundamento em omissão e erro material, a sentença foi objecto de rectificação material por decisão de 15 de Junho de 2021, com as seguintes passagens:

5. A sentença transitou em julgado.

O DIREITO

Como foi indicado atrás, o presente recurso foi suspenso em virtude de se encontrar suspensa uniformização de jurisprudência a proferir no Proc. 151/21.8YRPRT.S1-A com relevância para a questão a decidir.

Uma vez que o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência referido foi proferido em 19.10.2022 (AUJ n.º 10/2022) e transitou em julgado, é chegada a altura de decidir.

Da fundamentação deste Acórdão de Uniformização merecem particular destaque as seguintes passagens:

A qualificação da união estável como simples acto jurídico, ou como conjunto de simples actos jurídicos, tem como corolário que deva esclarecer-se duas coisas:

Em primeiro lugar, deve esclarecer-se que a escritura pública não é necessária para que se constitua a situação jurídica familiar designada da união estável (…).

Em segundo lugar, deve esclarecer-se que a escritura pública não é suficiente para que se constitua a situação jurídica familiar designada da união estável (…).

Esclarecido o que é a união estável e o que é a escritura pública declaratória de união estável, o problema está em concretizar o conceito de decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, do art. 978.º do Código de Processo Civil, para averiguar se o caso da escritura pública declaratória de união estável deve ou não coordenar-se-lhe.

(…) O conceito de decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, deve interpretar-se no sentido de designar “tão somente a decisão revestida de força de ‘caso julgado’ que recaia sobre ‘direitos privados’, isto é, sobre matéria civil e comercial”.

Face ao conceito de decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, do art. 978.º do Código de Processo Civil, deverá averiguar-se:

I. — se a escritura pública declaratória de união estável contém uma decisão;

II. —  se a escritura pública declaratória de união estável contém uma decisão revestida de força de caso julgado.

(…) a escritura pública declaratória de união estável não contém nenhuma definição da situação jurídica dos declarantes; ainda que contivesse uma definição da situação jurídica dos declarantes, nunca conteria uma definição imodificável, em termos comparáveis aos de uma sentença declaratória de união estável transitada em julgado (…).

Excluída a qualificação da escritura como “decisão revestida de força de ‘caso julgado’”, está em causa, tão-só, um meio de prova, sujeito a livre apreciação pelo tribunal[3].

E conclui-se, uniformizando-se a jurisprudência no sentido seguinte:

A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil”.

Sucede que o caso decidido no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência não é igual ao caso sub judice.

Enquanto no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência está em causa uma escritura pública declaratória, no caso sub judice está em causa uma sentença homologatória de escritura pública declaratória – quer dizer, para o que interessa: uma sentença em sentido próprio.

Podem, assim, ser apreciados os pressupostos do artigo 980.º do CPC, sendo, contudo, conveniente notar que esta apreciação se cinge a pressupostos de natureza essencialmente formal e de modo nenhum abrange os fundamentos de facto e de direito da sentença.

Analisada a sentença à luz dos pressupostos enunciados nas als. a), b), d) e e) do artigo 980.º do CPC não se vislumbra razão, do ponto de vista formal, que impeça a respectiva confirmação.

Relativamente ao pressuposto enunciado na al. f), entende-se que a sentença não aparenta incompatibilidade com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

Por fim, relativamente ao pressuposto enunciado na al. c), não se vêem sinais da situação fraudulenta descrita na lei e nem tão-pouco se verifica que a sentença verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.

Conclui-se, assim, pela verificação dos requisitos previstos no artigo 980.º do CPC, podendo a sentença estrangeira ser confirmada.

Deve advertir-se, porém, que esta confirmação não confere à sentença quaisquer efeitos adicionais, mantendo ela, estritamente, o valor e o alcance que lhe é atribuído pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Note-se, além do mais, que ela é uma sentença meramente homologatória[4].  Reforça-se, assim, a conclusão de que a presente confirmação não converte a sentença em elemento suficiente para a aquisição da nacionalidade portuguesa por parte dos requerentes, com base numa pretensa equivalência ou equiparação entre a “união estável” do Direito brasileiro e a “união de facto” do Direito português. Com efeito, o conceito de “união estável” nos termos do Direito brasileiro não é rigorosamente equivalente ao conceito de “união de facto” nos termos do Direito português, que é relevante, nomeadamente, para o efeito da aplicação do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3.10).

 


*

III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o Acórdão recorrido e decidindo-se confirmar a sentença, nos precisos termos acima descritos.


*

Sem custas.


*

Catarina Serra (Relatora)

Cura Mariano

Fernando Baptista

______

[1] Por transcrição parcial do documento.
[2] Mais uma vez, por transcrição.
[3] Sublinhados do Acórdão.
[4] Veja-se, com interesse, para o valor e alcance deste tipo de sentenças no Direito brasileiro, por exemplo, os Acórdãos do Superior Tribunal de Justiça Brasileiro Recurso Especial nº 1.294.290 – MS (https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/605829849/relatorio-e-voto-605829879) e Recurso Especial nº 1.270.008 – MS (https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/562313468).