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ALIMENTOS ENTRE EX-CÔNJUGES
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
DESPESAS COM ÁGUA E LUZ
Sumário
I - Os ex-cônjuges podem ter direito a alimentos, independentemente do tipo de divórcio – art. 2016.º CC. II - A noção de alimentos acha-se no art. 2003.º CC, aí se incluindo o que for indispensável ao sustento, habitação e vestuário. III - O acordo firmado pelos ex-cônjuges, com o divórcio ou depois deste, por via do qual um deles assume a obrigação de suportar as despesas regulares e periódicas do outro, nomeadamente com água e luz, não pode deixar de ser configurado como a atribuição de uma prestação alimentar por um cônjuge ao outro. IV - Apesar de, para efeitos de alcançarem um divórcio por mútuo consentimento, as partes terem aí feito constar um tabelar e não rigoroso “prescindem de alimentos”, se, nas relações entre si, estabelecerem depois, autonomamente, um vínculo próprio da obrigação alimentar, mesmo não o configurando como tal, deve entender-se terem-se vinculado nos termos previstos nos arts. 2016.º e ss. e 2003.º CC.
Texto Integral
Processo n.º 761/20.0T8PVZ.P1
Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam as Juízas abaixo-assinadas da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO AUTOR: AA, divorciado, residente na Rua ..., ... Póvoa de Varzim. RÉ: BB, divorciada, residente na Rua ..., ... Póvoa de Varzim.
Por via da presente ação declarativa, pretende o A. obter a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 4.964,16, acrescida de juros de mora, vencidos desde 26.2.2020.
Para tanto alegou ter sido casado com a Ré, de quem se encontra divorciado, habitando esta a casa de morada de família - bem comum - desde o divórcio. As partes celebraram promessa de partilha do bem imóvel em questão, que ficaria para o A., com promessa do seu comodato por este à Ré, comodato que se manteria até à maioridade do filho mais novo, e obrigação do primeiro suportar as despesas com água, eletricidade, condomínio e seguros relativos à utilização do imóvel pela demandada.
Contudo, tal promessa não foi concretizada posto que, tendo o A. procurado obter execução específica da partilha, em ação por si instaurada, foi a mesma julgada improcedente por ter sido considerada nula a promessa da partilha, razão pela qual o A. deixou de proceder ao pagamento das despesas com água e eletricidade, exigindo agora o que a tal título despendeu, entre 8.11.2010 e 21.6.2019, e juros desde que, por carta, interpelou a Ré à devolução.
Contestou a demandada afirmando que a obrigação de pagamento a cargo do A., resultante do contrato de promessa, constitui um segmento autónomo da promessa de partilha, não sendo afetada pela nulidade daquele negócio, aludindo ainda à circunstância de tal ter sido convencionado tendo em conta a existência de dois filhos menores, à época, e à necessidade de prover ao seu sustento.
Por essa razão, formulou pedido reconvencional, pretendendo ver o A. condenado a pagar-lhe os consumos de água e luz que o A. deixou de saldar desde julho de 2019, num total de € 912,28, já vencidos, e ainda no que se vencer a este respeito, e juros desde a notificação.
O A. apresentou réplica, argumentando, de novo, que sendo nula a promessa, queda-se sem fundamento o restante acordado, deixando o replicante de se encontrar obrigado aos pagamentos em causa.
Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 4.5.2022, a qual julgou a ação procedente, condenando a Ré a pagar ao A. a quantia € 4.964,16 €, acrescida de juros de mora vencidos desde 26.02.2020 até 18.06.2020, no montante de 61,47 €, e juros vencidos e vincendos desde 19.06.2020 e até integral pagamento.
A reconvenção foi julgada improcedente.
São os seguintes os factos dados como provados em primeira instância: 1. Correu termos na Conservatória do Registo Civil da Póvoa de Varzim, sob o nº 6868/2010, os autos de processo de divórcio por mútuo consentimento no âmbito dos quais foi proferida decisão, datada de 8.11.2010, transitada em julgado na mesma data, que decretou o divórcio de AA e BB, casados em 18 de Dezembro de 1999, sem convenção antenupcial, com a consequente dissolução do casamento. 2. Pela mesma decisão foi homologado o acordo sobre o destino da casa de família no qual os cônjuges acordaram atribuir o direito de habitar a casa de morada de família a que corresponde a fracção autónoma identificada com a letra “C”, segundo andar, a qual faz parte do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº .../Póvoa de Varzim e inscrito na matriz sob o artigo ..., à cônjuge mulher. 3. Do mesmo modo foi homologado o acordo quanto ao exercício das responsabilidades parentais dos menores, CC e DD, filhos do casal, fixando-se a sua residência na morada da progenitora, sita na Rua ..., Póvoa de Varzim, comprometendo-se o progenitor a pagar, a título de alimentos para cada menor, a quantia de 250,00 € mensais, até ao dia 8 de cada mês. 4. Por documento particular epigrafado “Contrato Promessa de Partilha”, datado de 8.11.2010, celebrado entre AA, na qualidade de primeiro outorgante, e BB, na qualidade de segundo outorgante, estes declararam: “(…) SEGUNDO: do património comum do casal constam os seguintes bens: ACTIVO Fracção autónoma identificada com a letra “C”, correspondente ao segundo andar, para habitação, por cima da fracção “B”, aparcamento na cave com o nº ... e um espaço para arrumos situados entre os lugares de aparcamento números dois e três, a qual faz parte do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº .../Póvoa de Varzim e inscrito na matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial de 27.732,03 €. PASSIVO Devem ambos os cônjuges ao Banco 1..., sociedade aberta com sede na Praça ..., Porto, a quantia actual de 136.701,08 €, relativa a empréstimo hipotecário contraído por ambos para aquisição do imóvel identificado no activo. TERCEIRO: acordam em proceder à partilha da seguinte forma: a) O bem imóvel identificado sob a verba única do activo será adjudicado ao primeiro outorgante; b) A divida identificada sob a verba única do passivo será única e exclusivamente suportada pelo 1º outorgante. QUARTO: Atendendo a que o montante líquido a partilhar preenche por igual valor as meações do 1º e 2º outorgantes não são devidas quaisquer tornas nada mais podendo cada uma das partes reclamar da outra por via da partilha de bens. QUINTO: A escritura pública de partilha – objecto do presente contrato – será realizada dentro do prazo de 60 dias após a presente data, sendo que o processo de recolha de documentação e a marcação da escritura serão efectuados pelo 1º outorgante, o qual se compromete a avisar a 2º outorgante da data, hora e local da celebração da escritura com um mínimo de 8 dias de antecedência. SEXTO: Ambos os outorgantes se comprometem a, em simultâneo com a celebração da escritura pública de partilha, celebrar um contrato de comodato, na qual o 1º outorgante autoriza a 2º outorgante e os filhos de ambos a viverem gratuitamente no imóvel identificado sob a verba única do activo, em regime de exclusividade, ate à maioridade do filho mais novo do extinto casal. SETIMO: Acordam ambos os outorgantes que durante o período em que a 2º Outorgante permanecer a habitar o imóvel a que corresponde a verba única do activo todas as despesas com a água, electricidade, seguros e condomínio relativas à utilização por parte da 2º outorgante do citado imóvel, serão da única e exclusiva responsabilidade do 1º outorgante. OITAVO: Acordam ainda os outorgantes em prescindir do reconhecimento presencial de assinaturas e em conferir a este contrato o beneficio da execução específica”. 5. O Autor diligenciou pela marcação da escritura pública de partilha e interpelou a Ré para o efeito que se recusou a celebrar o contrato definitivo. 6. Correu termos por este juízo local cível sob o nº 1624/18.5T8PVZ, os autos de acção declarativa comum, em que AA peticionou, contra BB, a execução específica do contrato promessa de partilha celebrado entre ambos, no âmbito dos quais foi proferida sentença datada de 21.06.2019, transitada em julgado em 12.09.2019, que julgou a acção improcedente e declarou “nulo o contrato promessa de partilha outorgado pelas partes em 8 de Novembro de 2010, absolvendo a Ré do pedido”. 7. Desde a celebração do contrato promessa até Julho de 2019 o Autor pagou as despesas com os consumos de água e electricidade referentes à utilização da supra descrita fracção autónoma, bem como a prestação mensal do crédito hipotecário relativa ao empréstimo para compra da mesma, condomínio, seguro multirriscos, seguros de vida inerentes ao empréstimo e IMI. 8. Por carta datada de 14.02.2020, recepcionada pela Ré a 17.02.2020, o Autor interpelou a mesma para, no prazo de 8 dias, proceder ao pagamento da quantia de 4.964,16 €. 9. Entre Novembro de 2010 e Julho de 2019, o Autor pagou, a titulo de fornecimento de electricidade à referida fracção, a quantia de 3.186,55 €. 10. No mesmo período o Autor pagou, a título de água e saneamento, a quantia de 1.777,61 €. 11. Entre Julho de 2019 e Setembro de 2020, a Ré pagou, a título de fornecimento de electricidade a quantia de 276,91 €. 12. No mesmo período a Ré pagou, a título de água e saneamento, a quantia de 253,85 €. 13. As obrigações estipuladas nas cláusulas sexta e sétima do contrato de promessa de partilha, só foram assumidas pelo Autor como forma de compensar a Ré pelo não recebimento de tornas relativas à sua meação no imóvel a partilhar e a ser adjudicado ao Autor.
Desta sentença recorre a Ré, visando a sua revogação integral, com a sua absolvição e a condenação do reconvindo no pedido reconvencional, argumento para tanto o que concluiu deste modo: A. Tendo em conta que do depoimento da única e mais qualificada testemunha ouvida sobre a matéria do ponto 13. dos factos provados, não resulta que o Autor lhe haja em momento algum manifestado a intenção de compensar a mulher, por lhe não pagar as tornas devidas, através do pagamento das despesas com água, luz, X..., seguros e condomínios, B. e considerando ainda que mal o Autor se separou de facto da mulher, já havia começado a suportar tais despesas, ainda antes de terem começado quaisquer negociações sobre o divórcio amigável, quando sequer se sabia quanto valia casa e era o valor da dívida, e C. tendo ainda presente, que se não compreende que, sendo conhecida tal intenção do Autor, os seus advogados não o hajam vertido na promessa de partilha, antes nela vertendo algo contrário, ou seja, que não eram devidas tornas, D. deverá ser eliminado o ponto 13. dos factos provados. E. Por outro lado, considerando, que o que se deu como provado em 13. dos factos provados, é contraditório com o que se deu como provado em 4. dos factos provados, deverá ser anulada a decisão que julgou a matéria de facto, e, por consequência, a sentença proferida, nos termos do disposto no artigo 662º nº 2 alínea c) do CPC. F. Na verdade se as partes acordaram em que não seriam devidas tornas, por a partilha acordada do imóvel, preencher de igual modo as suas meações, concluir que o Autor aceitou pagar as despesas supra identificadas, para compensar a Ré de não receber tornas, é emitir um juízo contraditório com os respectivos pressuspostos. G. A sentença recorrida, ao vir agora apreciar a redução do negócio jurídico, realizada na primeira sentença, ao não se estender aí a declaração da nulidade da partilha, aos demais acordos vertidos no contrato-promessa, designadamente ao relativo às despesas, viola o caso julgado material formado em tal decisão, H. O facto dado como provado no ponto 13. dos factos provados, não emergindo de qualquer resposta do Autor a excepções deduzidas pela Ré na contestação, além de não constituir em si mesmo, resposta a qualquer excepção deduzida pela Ré, resultou do alegado pelo Autor em resposta à contestação, contestação essa em que não havia sido deduzida qualquer excepção. I. Por essa razão, bem como porque o Autor não podia ampliar a causa de pedir, nem tal ampliação foi sequer admitida, a consideração de tal facto na sentença, violou a regra segundo a qual, a menos que se trate de questão de conhecimento oficioso, o que não é o caso, a sentença não podia conhecer de tal questão, sendo que, ao conhecê-la, incorreu numa nulidade. J. A sentença ainda seria nula, por apreciar uma invalidade do acordo relativo aso pagamento das despesas pelo Autor, porquanto tal declaração de invalidade não foi pedida, nem é de conhecimento oficioso. K. Ao decidir considerar que o acordo relativo ao pagamento pelo Autor das despesas da sua ex-mulher e dos filhos, a sentença recorrida, seria inválido por não dever operar a regra da redução do negócio jurídico, violou o caso julgado material formado na primitiva sentença, a qual, apesar de ter declarado a nulidade da promessa de partilha, cumpriu a regra de a não estender aos demais negócios celebrados. L. Mantendo-se como provado o que consta do ponto 13. dos factos provados, a situação assim criada, ao invés de dar azo a qualquer invalidade, poderia permitir apenas um pedido de resolução ou modificação do negócio, por superveniente alteração das circunstâncias, M. pedidos esses que, não tendo sido feitos, não podia ser apreciada e declarada qualquer invalidade. N. Porém, não disso tendo feito o Autor, não podia ser resolvido, nem anulado tal negócio, por falta de pedido e da prova dos respectivos pressupostos. O. Não tendo o Autor prestado à Ré o que quer que seja, não pode ela igualmente ser condenada a restituir o que não recebeu do Autor. P. Não se confirmando a declaração judicial de invalidade do acordo de pagamento pelo Autor despesas relativas aos consumos de água, luz, X..., seguros e condomínio, dos filhos de ambos e da Ré, além de dever improceder a acção, deverá proceder a reconvenção, na íntegra, condenando-se por consequência o Autor no pedido reconvencional.
O A. apresentou contra-alegações, opondo-se à procedência do recurso.
Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, nºs 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil):
- da supressão do ponto 13 dos factos provados;
- da natureza da obrigação assumida pelo A.: tornas ou alimentos?
FUNDAMENTAÇÃO Fundamentos de Facto
Começa a apelante por afirmar não resultar da prova a demonstração do facto 13 - As obrigações estipuladas nas cláusulas sexta e sétima do contrato de promessa de partilha, só foram assumidas pelo Autor como forma de compensar a Ré pelo não recebimento de tornas relativas à sua meação no imóvel a partilhar e a ser adjudicado ao Autor – devendo tal facto ser eliminado.
Cotejando o que a este respeito consta da motivação da sentença, temos que esta se suporta no testemunho de EE, advogado que, em 2010, teve intervenção profissional envolvendo ambas as partes com vista ao respetivo divórcio.
Procedendo à audição do seu testemunho, o que este disse foi ter sido contactado pelo A., em fevereiro daquele ano, para o patrocinar no processo de divórcio, quando o casal já se achava separado. Nessa altura, o ainda marido, apesar de ter saído da casa de morada de família, pagava já – antes mesmo dos acordos subjacentes ao divórcio - as despesas com água, luz, X..., seguros, condomínios, prestação de mútuo da casa, e mais € 500,00, para os filhos de 4 e 9 anos.
No mês seguinte, também reuniu com a Ré, que o consultou a este respeito. Estavam já então s partes acordadas em que a propriedade da casa ficasse para o A., sendo apenas problema o da atribuição à Ré de um prazo para dali sair com os filhos. Além dos alimentos para os filhos, e como não poderia sustentar-se, a Ré pretendia ainda mais uma renda.
Em 28.4.2020, em nova reunião com a Ré e com terceira advogada que trabalhava em conjunto com a testemunha, a Ré manifestou pretender mais € 500, 00, mensais, para si e até à maioridade dos filhos, saindo de casa e procurando habitação, o que não foi aceite pelo A., razão pela qual a testemunha se reuniu de novo com a Ré que aceitou a proposta inicial do A., tendo os documentos do acordo sido redigidos pela sua colega.
Quanto à questão de haver vontade de igualar as partes quanto a partilhas, em tornas ou no que quer que seja, a testemunha não foi minimamente assertiva, nem andou lá perto, tendo sido a mandatária do A. quem, repetidamente, procurou colocá-la nesse registo (não altera esta conclusão o facto de a testemunha ter dito que a Ré mencionou que a casa valia 30 mil contos e o empréstimo ter sido de 27 mil, pois não resulta apurada qualquer diferença real e, menos ainda, que as despesas assumidas pelo A. correspondessem fosse a que valor fosse).
Porém, sempre disse este advogado ter sido sua pretensão a de efetuar um acordo global (incluindo aí o que consta dos acordos apresentados com o requerimento de divórcio) e não apenas um acordo referente à partilha, tendo o A. aceite pagar as despesas de água e luz, para os filhos não ficarem sem tecto, acordo que ficou a constar do documento relativo à promessa de partilha, como poderia ter ficado num outro documento à parte.
Sendo assim, assiste razão à apelante quando refere que, tendo este pagamento – das despesas pelo A. – começado a ocorrer antes do divórcio (o que foi confirmado por este advogado), não tem qualquer sentido entender-se, como pretende o demandante, que o convénio sobre a assunção das dívidas em causa pelo A. teve por suporte o contrato de promessa de partilha.
Nas palavras do advogado que terá auxiliado as partes na concretização dos acordos de divórcio, promessa de partilha, promessa de comodato e assunção de dívidas, não lhe competiria a ele (?), mas ao tribunal, explicitar se esta assunção se destinou a integrar alimentos a filhos ou alimentos a cônjuge, não adiantando, nunca, que tal assunção se destinasse a igualar a partilha.
O que resulta deste périplo pelo testemunho acabado de observar e dos documentos em cuja redação interveio, é, na verdade, ter o A. assumido o pagamento das despesas com água, eletricidade, seguros e condomínio (enquanto a Ré permanecesse no imóvel), como constitutivo de uma prestação que provinha já desde antes de se decidir algo quanto à partilha do imóvel e mesmo antes do divórcio. Mais: esta prestação responde à pretensão da Ré quando, além da pensão de alimentos aos filhos, pretendia uma renda para si (renda em sentido lato, como resultou das palavras de EE) e, naturalmente, para os filhos que, então, também habitavam a casa (a filha mais velha, entretanto, terá passado a habitar com o pai, como resulta da ata de 2.5.2017 do processo de regulação das responsabilidades parentais - doc. 2 junto com a contestação).
Esta renda foi pedida pela Ré na perspetiva de ter de vir a sair da casa e de vir a necessitar de arrendar uma outra para si e para os filhos; porém a pertinência de tal renda não foi afastada – senão no quantitativo – pelo facto de, afinal, este agregado familiar ter ficado a residir na casa de morada de família. A noção de renda, na pretensão da Ré, não incluiria apenas o necessário para o pagamento dessa contrapartida pela nova habitação, mas ainda algo mais, para ajudar ao seu sustento – posto não angariar meios por si mesma – como resulta do facto de tais despesas terem vindo a ser suportadas pelo A. mesmo antes do divórcio e, ainda, da circunstância, de, afinal, o ora pedido pelo A. (€ 4.964, 16), relativo a 103 meses, corresponder a menos de € 50,00/mês, quando a Ré iniciou as negociações tendentes ao divórcio pretendendo uma renda para si de € 500,00 (valor este que, claro está, tinha em vista também cobrir uma renda habitacional que, afinal, não veio a ser necessária).
Vemos, por isso, não ter existido qualquer rigor – como devia – quando nos acordos que se juntaram ao requerimento de divórcio se fez constar terem as partes prescindido de alimentos para, depois, mais adiante, se consignar num outro acordo, a obrigação de uma das partes suportar a favor da outra uma verdadeira prestação de alimentos sob a forma de assunção de despesas daquela e dos filhos, obrigação que permaneceria até enquanto a Ré habitasse a casa.
A este respeito, refira-se não serem de considerar as declarações de parte que, naturalmente, manifestaram uma perspetiva interessada dos factos.
Por esta razão, é de toda a justiça, eliminar o ponto 13 dos factos provados.
Fica, por isso, sem interesse a segunda questão suscitada, relativa à contradição entre este ponto e um outro também provado (o 4, relativo ao que se consignou nos acordos firmados à margem do processo de divórcio), assim se ultrapassando a questão da nulidade da sentença (invocada ao abrigo do disposto no art. 662.º, n.º 2 al. c) CPC).
Não obstante, sempre diremos não ver de que modo se pode considerar existir contradição entre afirmar-se que não existem tornas e, depois, fixar um quantitativo que compense uma das partes relativamente à outra pelo que não recebe da partilha gizada. Não se consignou, igualmente, num documento não existirem alimentos recíprocos entre cônjuges e, noutro documento, coevo, se estipulou a obrigação de um deles suportar despesas do outro?
O problema aqui não está no que ficou consignado em sentença quanto a factos provados, mas sim na impropriedade e falta de rigor dos termos e acordos alcançados em 2010!
Os factos a considerar são, assim, os elencados em primeira instância, expurgados do que constava em 13.
Fundamentos de Direito
A questão crucial que aqui se coloca é a de saber qual a natureza da obrigação assumida pelo A. quando, concomitantemente ao processo de divórcio por mútuo consentimento, se obrigou a suportar as despesas com água, eletricidade, seguros e condomínio relativos à utilização da casa de morada de família pela Ré.
Nestes autos, o A. apenas pretende a devolução do que suportou a título de consumos de água e energia elétrica.
A base da pretensão do A. é simples. Na ótica da pi, foi celebrado uma promessa de partilha do património do extinto casal, centrada no imóvel que correspondia à casa de morada de família. Tendo este negócio sido declarado inválido (porque, afinal, existiam outros bens a partilhar e a casa terá valor superior ao ali pressuposto), então também é inválido tudo quanto o mais consta do documento ou papel onde se objetivou a promessa de partilha e onde consta aquela obrigação de suportar as ditas despesas.
Posteriormente, acrescentou o A. a este raciocínio um elemento factual de correlação intrínseca entre o contrato de promessa de partilha e aquela assunção de despesas de molde a ver o segundo afetado pela nulidade do primeiro, emergindo a obrigação de restituição do disposto no art. 289.º CC.
Já não considerando a circunstância de este facto novo e essencial apenas ter vindo a ser alegado em articulado avulso, destinado apenas ao exercício do contraditório relativamente a supostas exceções invocadas pela Ré em contestação (as quais, todavia, se não vislumbram), o que violaria o disposto nos arts. 3.º, 5.º, 265.º e 552.º, n.º 1 d) do CPC, não sendo, por isso, admissível, a verdade é que o mesmo se não demonstrou, como vimos. Além disso, nunca se trataria de tornas em sentido real ou técnico.
Tornas são as compensações que, mediante uma divisão de bens, um beneficiário paga ao outro por ter ficado com bens de maior valor. Assim, para existir um crédito de tornas, é necessário que exista partilha e não apenas promessa de partilha, posto que o interessado apenas se torna credor pela diferença quando esta se acha alcançada. Pressupõe por isso que se ache o valor global da massa a partilhar, se divida por dois (por se tratar de património do casal), e se ache o valor concreto com que um dos interessados fica favorecido relativamente ao outro.
No caso, não foi efetuada partilha, mas simples promessa. O direito a tornas apenas nasceria com a partilha, mas essa nunca se concretizou. Sendo assim, não é de tornas que se fala quando um dos cônjuges suporta despesas correntes de água e luz do outro, e filhos, e o faz desde que deixou de habitar a casa de morada de família.
A qualificação desta prestação a cargo do A. nunca seria, pois, de obrigação de tornas, por nunca haver sido efetuada partilha.
Por outra parte, também se verifica que o valor do suposto crédito da Ré sobre o A. seria flutuante (com os consumos de água, luz e outros) e absolutamente não objetivável, à partida, posto que o pagamento das referidas despesas domésticas, não sendo concretizado no seu quantum (não se indica o valor médio a suportar ou o teto máximo dessa contribuição), também não era definível relativamente ao tempo durante o qual seria de manter, por se ignorar, à data da promessa de partilha, até quando a Ré permaneceria a habitar o imóvel, uma vez que também o comodato prometido (a durar até à maioridade do filho mais novo) não foi celebrado.
Esta incerteza quanto ao valor real e concreto da obrigação a cargo do A. ( e bem assim do imóvel a partilhar) impede igualmente se considere tratar-se de uma real e verdadeira intenção de pagamento de tornas.
A nulidade da promessa de partilha é, pois, absolutamente irrelevante para a assunção desta obrigação por parte do A.
Então, de que trata, tecnicamente, o acordo firmado em sétimo do documento celebrado aquando do divórcio por meio do qual o A. assumiu a obrigação de suportar despesas domésticas periódicas da Ré, sua ex-cônjuge?
Auxiliados por advogado ou advogados, A. e Ré apresentaram-se a divórcio por mútuo consentimento e, entre os acordos necessários para o efeito, incluíram um relativo a alimentos recíprocos, de que ambos declararam prescindir. Concomitante, na mesma data, firmaram um acordo por via do qual o A. assumiu a obrigação de suportar despesas da Ré, nomeadamente com água e luz.
Que prestação é esta a cargo do A.?
O art. 1775.º, n.º 1 c) CC, exige que o divórcio inclua com o acordo base relativo ao divórcio, os chamados acordos complementares, de entre os quais acordo sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça.
Esta previsão surge na sequência do disposto no art. 2016.º, n.º 2, CC, que estipula o direito de alimentos entre ex-cônjuges, independentemente do tipo de divórcio (com ou sem culpa), apesar de tal regime ter uma natureza subsidiária e de caráter excecional, face ao princípio da autossuficiência que preside às relações pós-divórcio (de acordo com a Lei 61/08, de 21.10, inspirada nos Princípios de Direito da Família Europeu Relativos a Divórcio e a Alimentos entre os ex-cônjuges, publicados em 2004).
O fundamento clássico da figura reconduz-se “quase invariavelmente a uma ideia de solidariedade, que, no caso particular dos alimentos pós-divórcio, se transforma em solidariedade pós-conjugal”, embora atualmente encontre a sua razão de ser numa ideia de responsabilidade, pois se, “quando associados a determinados fatores geradores da necessidade, os alimentos pós-conjugais persistem na sua função original (i.e., puramente assistencial e com fundamento solidarístico)”, “quando a génese ou o aprofundamento da necessidade estão ligados à própria relação entre os cônjuges, os alimentos podem assumir algumas colorações compensatórias, fundadas numa ideia de responsabilidade”. (Paula Távora Vítor, OS ALIMENTOS PÓS-DIVÓRCIO — ENTRE A SOLIDARIEDADE E A RESPONSABILIDADE, in Julgar on line, N.º 40 – 2020, p. 182 e 197).
Ora, «Neste novo modelo – associado, em grande medida, ao divórcio desligado do conceito de culpa – o referido direito depende apenas da verificação dos pressupostos gerais da necessidade e da possibilidade enunciados no art. 2004.º do CC (sendo que o primeiro, como decorre expressamente do texto do n.º 3 do art. 2016.º-A do CC, já não é aferido pelo estilo de vida dos cônjuges durante a relação matrimonial) e deve cingir-se ao indispensável para o sustento, habitação e vestuário (art. 2003.º, n.º 1, do CC), não se verificando, contudo, se “razões manifestas de equidade” levarem a negá-lo» (Ac. STJ, de 27.4.2017, Proc. 1412/14.8T8VNG.P1.S1.
A noção de alimentos acha-se no art. 2003.º CC, aí se incluindo o que for indispensável ao sustento, habitação e vestuário.
Está aqui definido o objeto da prestação alimentar (sustento, habitação e vestuário) e critério para os estabelecer (tudo o que for indispensável).
Cabem no primeiro (objeto), claro está, despesas com consumos básicos e prioritários, como seja a água e a luz.
Quer isto dizer que o acordo dos ex-cônjuges, com o divórcio ou depois deste, por via das quais um deles assume a obrigação de suportar despesas regulares e periódicas do outro, nomeadamente com água e luz, não pode deixar de ser literalmente configurado como a atribuição de uma prestação alimentar por um ao outro.
Deste modo, em retas e lineares contas, o que se acha acordado pelos ex-cônjuges, em sétimo do acordo documentado no documento que intitularam promessa de partilha, reveste a natureza jurídica de prestação de alimentos, não tendo, claro está, qualquer relação com o teor do restante documento.
É esta a conclusão que resulta da prova efetuada e é, ademais, a que corresponde aos critérios interpretativos que a lei estabelece para os negócios jurídicos.
Veja-se que o art. 236.º CC estabelece que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.
Saber-se qual o sentido jurídico de uma declaração negocial é tarefa que tem como ponto de partida o teor literal ou a expressão declarada. A não serem claras e inequívocas as palavras, atentar-se-á no seu contexto, i.é, no contexto negocial em que a declaração apareceu; nos antecedentes próximos ou elementos preparatórios; na finalidade da declaração; no tipo de negócio em causa, valores e interesses em jogo.
Temos, pois, que, como já referimos, as palavras contidas em sétimo do documento em análise são claras e inequívocas em si.
Porém, surgem em contradição com o acordo complementar junto ao processo de divórcio por mútuo consentimento, onde os elementos do casal declararam prescindir de alimentos entre si.
Sendo assim, importa atender ao contexto negocial em que surgiu o acordo em apreço, datado do mesmo dia do acordo concomitante ao divórcio, fazendo apelo aos antecedentes e elementos preparatórios e aos interesses em jogo.
Neste segmento, do que acima ficou exposto quanto à prova efetuada em primeira instância e que determinou a exclusão do facto 13 - relativo a putativas tornas que nem técnico-juridicamente teriam cabimento – deflui que a intenção das partes, intermediada por advogado, foi a de um acordo global. Sendo assim, apesar de, para efeitos de alcançarem um divórcio por mútuo consentimento, as partes terem feito constar um tabelar e não rigoroso prescindem de alimentos, a verdade é que, nas relações entre si, estabeleceram depois, autonomamente, um vínculo próprio da obrigação alimentar e, mesmo não o configurando como tal (o que é incompreensível, face à presença de técnicos de direito), vincularam-se nos termos previstos nos arts. 2016.º e ss. e 2003.º CC.
Deste modo, é irrepetível o prestado pelo A. no cumprimento de tal acordo, não podendo o mesmo reaver o que pagou – muito menos por força da nulidade da promessa de partilha -, só podendo o assim fixado por acordo ser alterado ou cessar nas circunstâncias previstas nos arts. 2012.º e 2013.º CC.
A ação tem, pois, de improceder.
Já a reconvenção - emergente do não cumprimento pelo A. da obrigação de alimentos a que se vinculou perante a ex-mulher, por ter deixado de proceder ao pagamento daquelas despesas, desde julho de 2019 – deverá proceder, devendo o reconvindo pagar à reconvinte tais despesas que, no que respeita a água e saneamento e eletricidade, desde aquela data e até setembro de 2020, ascendem ao valor total apurado de € 530, 76 (e não aos € 912, 88, peticionados), acrescendo juros de mora, desde a notificação da reconvenção.
Acrescem também as despesas com consumos de água e luz devidas pela Ré, desde a data da reconvenção e enquanto esta ocupar a casa de morada de família, até ao limite máximo da maioridade do filho mais novo do casal.
A respeito deste último segmento refira-se que o pagamento pelo A. das despesas com água, luz e outras, constantes da cláusula sétima valeriam enquanto a Ré habitasse o imóvel, apenas se tendo estabelecido como teto máximo a maioridade do filho mais novo para o comodato projetado e não concretizado (mantendo-se atualmente a Ré na casa por força do acordo consignado na ação de divórcio – goza, pois, do direito real de habitação do art. 1484.º, n.º 2 CC – cfr. ac. STJ, de 1.7.2021, Proc. 5484/18.8T8VNG.P1.S1[1]).
Todavia, nada impede a Ré, em reconvenção, de limitar o pedido àquela maioridade, sendo a sua pretensão deferida com aquela especificidade.
Dispositivo
Pelo exposto, decidem as Juízas deste Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência revogar a sentença recorrida, julgando improcedente a ação e absolvendo a Ré do pedido; julgar parcialmente procedente a reconvenção, condenando o reconvindo/Autor a pagar à reconvinte/Ré a quantia de € 530, 76, com juros de mora, legais, desde a notificação para a reconvenção e até integral pagamento, bem como a pagar-lhe as despesas com consumo de água e luz que se venceram desde outubro de 2020 e vincendas, enquanto a Ré habitar a casa de morada de família, com o limite máximo da maioridade do filho mais novo, absolvendo-se o reconvindo do demais peticionado.
Custas da ação pelo A.
Custas da reconvenção por A. e Ré, na proporção do decaimento.
Porto, 21.11.2022
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca
Maria José Simões
_______________ [1] I. Oacordo realizado no âmbito de um processo de divórcio por mútuo consentimento, mediante o qual a um dos cônjuges, a título gratuito, foi atribuída a utilização da casa de morada de família situada num imóvel habitacional que era propriedade exclusiva do outro cônjuge, traduz a constituição, por via negocial, de um direito real de habitação a favor do primeiro, nos termos do art. 1440º, ex vi art. 1485º do CC. II. A aquisição de direitos reais, como o direito real de habitação, está sujeita a registo predial (art. 2º, nº 1, al. a), do CRP), sob pena de ineficácia quanto a terceiros, isto é, para aqueles que adquiram do autor comum direitos incompatíveis (art. 5º, nº 4, do CRP).