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AUTORIDADE TRIBUTÁRIA
OBRIGAÇÃO FISCAL
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
CADUCIDADE
IMPOSTO
DÍVIDAS FISCAIS
DIVIDA TRIBUTÁRIA
QUANTIFICAÇÃO
MÉTODOS INDIRECTOS
CRIME DE FRAUDE FISCAL
REQUISITOS
CRIME DE PERIGO ABSTRATO
CRIME DE PERIGO CONCRETO
COMPARTICIPAÇÃO CRIMINOSA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
Sumário
I – A caducidade do direito de liquidar impostos reconhecido à Autoridade Tributária constitui um modo de extinção da obrigação fiscal no âmbito estritamente tributário, pelo que só tem relevância para efeitos de a administração tributária liquidar, e cobrar, o imposto em falta e não tem qualquer influência sobre a eventual prática do crime. II – Por outro lado, a impossibilidade de cobrança pela Autoridade Tributária do imposto suplementar em dívida, por falta de liquidação atempada e consequente caducidade do direito de liquidação, não se traduz, necessariamente, na impossibilidade da sua quantificação e, claramente, não prejudica o ressarcimento dos prejuízos causados à administração fiscal, decorrentes da prática do crime fiscal. III – Quanto à quantificação do montante do imposto, designadamente para aferição dos pressupostos objetivos da responsabilidade criminal, é pacífica a possibilidade de recurso a métodos indiretos. IV – O tipo objetivo do crime de fraude fiscal basta-se com o atentado à verdade ou transparência corporizado nas diferentes modalidades de falsificação previstas no nº 1 do artigo 103º do RGIT, infração que se consumará mesmo que nenhum dano/enriquecimento indevido venha a ter lugar, ou seja, o tipo não exige que o bem jurídico seja lesado, mas contém uma cláusula de idoneidade no sentido de que os comportamentos proibidos têm de ser aptos a atingir um determinado resultado lesivo, sem que este tenha efetivamente de se verificar, pelo que, no que respeita à sua estrutura típica, consubstancia um crime de perigo abstrato-concreto. V – Porém, não sendo um crime de resultado, o desvalor de resultado, caso se verifique, pode assumir relevância, designadamente para efeito de determinação da medida da pena. VI – No que concerne ao tipo subjetivo de ilícito, o crime de fraude fiscal configura--se como um crime doloso, sendo punível sob qualquer categoria de dolo, não se afigurando a exigência de verificação de um dolo específico. VII – Quanto à comparticipação criminosa, não existe especialidade face às normas do direito penal comum. VIII – O pedido de indemnização civil em processo penal nos crimes fiscais não tem por objeto a definição e exequibilidade de acto tributário, mas a obrigação de indemnização por danos emergentes da conduta danosa que integra o crime praticado, com fundamento na responsabilidade por factos ilícitos daí decorrente, nos termos dos artigos 483º e seguintes do Código Civil.
Texto Integral
Proc. nº 2362/20.4T9AVR.P1
Recurso Penal
Juízo Central Criminal de Aveiro – Juiz 2
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I. Relatório
No âmbito do processo comum coletivo que, sob o nº 2362/20.4T9AVR.P1, corre termos pelo Juízo Central Criminal de Aveiro, foi submetido a julgamento o arguido AA, tendo, a final, sido proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
“Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, decide o Tribunal coletivo:
A) – Condenar o arguido, AA, pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º, n.º 1, al. b), e 104º, n.º 3, do R.G.I.T., na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por 5 (cinco) anos, condicionada ao dever de comprovar nos autos a entrega anual da quantia de 6.000,00€ (seis mil euros), ao longo dos cinco anos subsequentes ao trânsito em julgado do acórdão, perfazendo o montante global de 30.000,00€ (trinta mil euros), sem prejuízo do infra determinado no âmbito do pedido de indemnização civil, mas a descontar no valor fixado neste âmbito;
B) – Julgar improcedente o pedido de pedido de perda de vantagem patrimonial do facto ilícito formulado pelo Ministério Público;
C) – Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público, em representação do Estado Português – Autoridade Tributária, e condenar o arguido/demandado a pagar a quantia de 246.722,50€ (duzentos e quarenta e seis mil setecentos e vinte e dois euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde o dia seguinte ao da notificação do pedido até efetivo e integral pagamento;
D) – Condenar o arguido no pagamento de 3 (três) unidades de conta de taxa de justiça, bem como nos demais encargos a que a sua atividade deu lugar (artigos 513º e 514º do Código Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais), e nas custas do pedido de indemnização civil (art. 527º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 523º do Código de Processo Penal). […]”.
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Inconformado com a decisão condenatória, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
“1. O douto acórdão julgou incorretamente provados os factos descritos sob os n°s 10, 11, 13, 14, 16, 17 e 19 a 27.
2. Não foi com o recurso à prova documental, por inexistir, que o Tribunal deu como assentes os factos, designadamente, os ora impugnados.
3. Não existe nos autos qualquer documento que sustente o montante das receitas originadas através da exploração das máquinas de dardos afetas ao Recorrente (relação contratual entre ele e o BB, com a contrapartida de 30%).
4. Deste modo, o Tribunal deu como provados os factos 3, 4, 5 e 6 da factualidade provada, relativos ao montante das receitas resultantes da exploração das máquinas de dardos, com base nas declarações do Recorrente que foram, assim, consideradas credíveis e válidas para dar por assente a matéria constante daqueles pontos.
5. No entanto, o Tribunal recorrido não teve em conta as declarações do Recorrente, corroboradas que foram pelas testemunhas, no que concerne à diminuição do seu rendimento em consequência das parcerias que mantinha com BB e CC e sustentadas na prova documental contante dos autos - extratos bancários.
6. Além disso, o Tribunal não podia, como fez, ter deixado de considerar a diminuição de receitas em consequência das parcerias, por inexistência de documentos elegíveis fiscalmente, tendo agido como se estivesse perante prova vinculada.
7. Por outro lado, no que diz respeito às despesas com os trabalhadores que o Recorrente manteve nos anos de 2013 a 2016, face á prova testemunhal produzida - declarações dos próprios trabalhadores - e à documental constante dos autos – salários declarados à Segurança Social -,
8. o Tribunal não podia deixar de dar por assente que o Recorrente teve as despesas inerentes ao pagamento dos salários e que tais custos diminuem a matéria coletável e, em consequência, o IRS.
9. Acresce que, a testemunha DD, Inspetor Tributário, declarou de forma peremptória que face ao valor das receitas apuradas nos autos era, de todo, impossível que as despesas não fossem muito superiores às declaradas pelo sujeito passivo.
10. Em suma: resultou provado que o Recorrente teve receitas e despesas.
11. Para que a factualidade inserta nos pontos 10,11, 13, 14, 16, 17 e 19 a 27 pudesse ter sido dada como provada, como foi, a acusação teria de ter provado que as despesas do Recorrente no exercício da sua atividade comercial tinham sido somente as que por ele foram declaradas nos respetivos exercícios fiscais, o que não ocorreu.
12. Pelo contrário, foi produzida prova no sentido de que as despesas do Recorrente foram muito superiores aos valores declarados.
13. Assim, a matéria coletável constante dos pontos 10, 11, 13, 14, 16, 17 e 19 a 27 da factualidade provada foi fixada de forma errónea e, em consequência, a quantificação do valor do imposto (IRS) está incorreta.
14. Para efeitos criminais é a acusação que tem a obrigação de provar o valor da matéria coletável (receitas e despesas) e, em última instância, é sobre o Tribunal que recai o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente os factos submetidos a julgamento.
15. O Tribunal não pode satisfazer-se com a verdade formal, nem escorar-se em argumentos formais como, por exemplo no caso em apreço, de que não relevou as despesas não declaradas por estas não serem elegíveis ou fiscalmente irrelevantes.
16. O Tribunal tem o dever de aferir se a matéria coletável contemplou ou não as despesas reais e concretas efetuadas pelo Recorrente, sejam elas ou não documental e fiscalmente elegíveis.
17. O princípio da investigação exige que o tribunal se empenhe no apuramento da verdade material.
18. Em resumo: o valor do rendimento atribuído ao Recorrente e o inerente imposto foram calculados única e simplesmente com base nas receitas sem cuidar das correlativas despesas, pelo que, deviam ter sido dados como não provados os factos constantes dos pontos 10, 11, 13, 14, 16, 17 e 19 a 27 da factualidade provada.
19. No mínimo, existe a dúvida fundada acerca do real valor do imposto - elemento objetivo do crime de fraude fiscal e inexiste prova nos autos suscetível de fundamentar a condenação do Recorrente e que deveria ter sido absolvido do crime de fraude fiscal qualificada de que vinha acusado.
20. Ao decidir de modo diverso o tribunal recorrido incorreu em erro na apreciação da prova e de julgamento, ofendeu as regras da experiência e fez uso indevido dos poderes que lhe conferia o art.° 127° do CPP e ofendeu o princípio da investigação oficiosa dos factos submetidos a julgamento.
21. A decisão recorrida violou ainda, entre outros, os princípios “in dubio pro reo” e o da presunção de inocência.
22. Os factos que o douto acórdão considerou provados não preenchem os requisitos típicos objetivos do crime de fraude fiscal.
23. O IRS é uma prestação tributária dependente de liquidação que é da competência da Administração Tributária (art° 75° ClRS) com formas próprias e procedimentos de liquidação (art° 76° e segs do CIRS).
24. O apuramento do imposto, através da liquidação, constitui uma operação necessária para se aferir se essa prestação, com o valor previamente liquidado, integra ou não o elemento objetivo – valor do imposto superior a 15.000,00€ - do crime de fraude fiscal.
25. A existência e o tipo de infração só se podem determinar depois de calculada a matéria coletável (resultado entre as receitas e as despesas) e calculado o valor da prestação tributária, no caso IRS, sendo que o meio para o apurar é através da liquidação (primária ou adicional), realizada pela administração Tributária, nos termos dos art°s 75° e seguintes do CIRS.
26. Ora, o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, conforme preceituado no art.° 45° da LGT.
27. Dispõe o n° 3 do art.° 21° do RGIT que o prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infração depender daquela liquidação.
28. Assim, o prazo de prescrição do procedimento criminal nos presentes autos é igual ao da caducidade do direito à liquidação.
29. A infração tributária fraude fiscal existirá se, após a liquidação do imposto (IRS), o valor deste for superior a 15.000,00€.
30. A Administração Tributária não liquidou o IRS e quando o presente processo crime foi instaurado estava já ultrapassado o prazo do direito à liquidação.
31. Desta forma o procedimento criminal pelo crime de fraude fiscal extinguiu-se, por prescrição, por ter já decorrido o prazo de quatro anos, pelo que o douto acórdão impugnado deve ser revogado.
32. Não existindo, por isso, um apuramento real, concreto e efetivo do imposto, desconhece-se se houve ou não um prejuízo patrimonial do Estado, pelo que o pedido de indemnização civil deve ser julgado improcedente.
TERMOS EM QUE, julgando o recurso procedente e revogando o douto acórdão impugnado, farão Vossas Excelências a habitual JUSTIÇA!”.
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O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
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A Exma. Magistrada do Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida, salientando, para tanto, em síntese, que a existência da infração criminal em causa não está dependente do procedimento tributário de liquidação e, por outro lado, que o prazo de prescrição do procedimento criminal é de dez anos, nos termos previstos no art.º 118.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, inexistindo, para além disso, qualquer erro de julgamento da matéria de facto impugnada ou vício decisório detetável a partir da leitura do acórdão recorrido.
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O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos da resposta do Ministério Público junto da 1ª instância, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta ao parecer.
Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art.º 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes:
1) Houve errada apreciação e valoração da prova produzida na audiência de julgamento, tendo sido violados os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, com a consequência de que foram incorretamente julgados os factos constantes dos pontos 10), 11), 13), 14), 16), 17) e 19) a 27) dados como assentes?
2) Não se encontra preenchido o tipo objetivo do crime de fraude fiscal, tanto mais que o apuramento do imposto em causa não foi efetuado através do procedimento de liquidação?
3) O procedimento criminal encontra-se prescrito?
4) O pedido de indemnização civil deve ser considerado improcedente, na medida em que se desconhece se houve ou não um prejuízo patrimonial causado ao Estado?
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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida.
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Factos provados e não provados (transcrição):
“A) – FACTUALIDADE PROVADA
Da discussão da causa, resultam provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
1. Desde 2012 e até, pelo menos, dezembro de 2016, o arguido encontrava-se coletado, a título principal, pelo exercício da atividade de “Outras atividades de serviços pessoais Diversas, N.E.”, com o CAE ..., e a título secundário, pelo exercício de “Atividades de Gravação de Som e Edição de Música”, com o CAE ....
2. No âmbito do desenvolvimento daquelas identificadas atividades, o arguido encontrava-se enquadrado no regime de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), na categoria B, no regime de contabilidade organizada, na área do Serviço de Finanças ....
3. Pelo menos, durante o período de janeiro de 2013 a dezembro de 2016, o arguido atuou como intermediário na prospeção e implantação de máquinas de jogo de dardos “PHOENIX DARTS”, nas áreas geográficas de Aveiro, Coimbra, Porto, Braga e Viana do Castelo.
4. E atuou dessa forma em decorrência de contrato celebrado para esse concreto efeito com a sociedade “P..., Lda.”, com o NIPC ..., representante exclusiva em Portugal da “H...”, detentora da rede das máquinas de dardos “PHOENIX DARTS”.
5. Enquanto intermediário/operador da prospeção e instalação das referidas máquinas de dardos em estabelecimentos comerciais, o arguido recebia, em contrapartida, 30% do valor das receitas geradas pela exploração daquelas máquinas.
6. Nos anos de 2013 a 2016, as receitas totais decorrentes da exploração das máquinas de dardos, afetas à área geográfica de atuação do arguido, foram as seguintes:
Ano 2013: 435.859,76€;
Ano 2014: 608.039,84€;
Ano 2015: 667.096,75€;
Ano 2016: 667.419,51€.
7. Sendo que, o arguido recebeu em cada um dos referidos anos 30% do valor das receitas correspondentes.
8. Sucede, porém, que o arguido não fez constar da sua contabilidade, nem declarou perante a Autoridade Tributária todos os rendimentos decorrentes da exploração das referidas máquinas de dardos.
9. Com efeito, no ano de 2013, o arguido declarou à Administração Tributária, para efeitos de IRS os seguintes valores:
Vendas e serviços prestados
18.859,18€
Fornecimento e serviços externos
4.740,79€
Gastos com o pessoal
5.820,00€
Resultado tributável
8.298,40€
10. No entanto, no referido ano de 2013, o arguido obteve, pelo menos, rendimento no valor de 130.757,93€ (cento e trinta mil setecentos e cinquenta e sete euros e noventa e três cêntimos), provenientes da exploração das máquinas de dardos “Phoenix Darts”.
11. Pelo que, relativamente ao ano de 2013, o arguido aquando da apresentação da declaração de IRS, omitiu à Administração Tributária, pelo menos, o valor de 111.898,75 Euros (cento e onze mil oitocentos e noventa e oito euros e setenta e cinco cêntimos).
12. No ano de 2014, o arguido, mediante a entrega da respetiva declaração de IRS, declarou à Autoridade Tributária os seguintes rendimentos:
Vendas e serviços prestados
4.019,08€
Fornecimento e serviços externos
0,00
Gastos com o pessoal
Resultado tributável
4.019,08€
13. Contudo, no referido ano de 2014, o arguido obteve rendimentos de, pelo menos, 182.411,95 Euros (cento e setenta e oito mil trezentos e noventa e dois euros e oitenta e sete cêntimos), provenientes da supra descrita atividade.
14. Donde se infere que, no ano de 2014, o arguido omitiu à Administração Tributária ter recebido rendimentos no valor de 178.392,87 Euros (cento e setenta e oito mil trezentos e noventa e dois euros e oitenta e sete cêntimos).
15. No ano de 2015, o arguido, através da apresentação da declaração de IRS, declarou os seguintes valores:
Vendas e serviços prestados
12.433,77€
Fornecimento e serviços externos
6.658,26€
Gastos com o pessoal
Resultado tributável
5.808,51€
16. Todavia, o arguido nesse concreto ano de 2015, obteve, pelo menos, rendimentos correspondentes ao valor de 200.129,03 Euros (duzentos mil cento e vinte e nove euros e três cêntimos), decorrentes da exploração das máquinas de dardos.
17. Pelo que, no ano de 2015, o arguido omitiu à Administração Tributária o recebimento de rendimentos no valor de 187.695,26 Euros (cento e oitenta e sete mil seiscentos e noventa e cinco euros e vinte e seis cêntimos).
18. No ano de 2016, o arguido declarou à Administração Tributária, para efeitos de IRS, os seguintes valores:
Vendas e serviços prestados
60.341,94€
Fornecimento e serviços externos
52.433,70€
Gastos com o pessoal
Resultado tributável
7.908,24€
19. No entanto, o arguido no ano de 2016 auferiu rendimentos, pelo menos, no valor de 200.225,85 Euros (duzentos mil duzentos e vinte e cinco euros e oitenta e cinco cêntimos), decorrentes da descrita atividade.
20. No ano de 2016, o arguido omitiu à Administração Tributária o recebimento de 139.883,91€ (cento e trinta e nove mil oitocentos e oitenta e três euros e noventa e um cêntimo).
21. Ao não incluir os descritos valores omitidos, nas declarações de rendimentos dos respetivos anos fiscais, o arguido obteve vantagem patrimonial indevida e impediu a Administração Tributária de contabilizar aqueles valores em sede de lucro tributável, para apuramento do montante devido a título de IRS.
22. Em consequência da conduta do arguido, nos anos de 2013 a 2016, a Administração Tributária liquidou, a título de IRS, valores inferiores aos que eram devidos pelo arguido, em face dos rendimentos reais auferidos, o que importou para o arguido uma vantagem patrimonial ilegítima e equivalente prejuízo para o Estado, no valor total de 246.722,50€ (duzentos e quarenta e seis mil setecentos e vinte e dois euros e cinquenta cêntimos), nos termos do quadro infra:
23. O arguido, pela forma descrita, pretendeu e conseguiu apresentar à Autoridade Tributária, para efeitos de IRS, um resultado líquido tributável inferior ao real, com o concretizado propósito de se furtar à competente tributação, tornando impossível a liquidação da quantia verdadeiramente devida a título de IRS.
24. O arguido bem sabia que estava obrigado a faturar e declarar perante a Autoridade Tributária a totalidade dos rendimentos obtidos, mediante a entrega das competentes declarações de IRS.
25. Bem sabia ainda o arguido que, ao agir dessa forma, obtinha para si uma vantagem patrimonial indevida, no valor total de 246.722,50 € (duzentos e quarenta e seis mil setecentos e vinte e dois euros e cinquenta cêntimos), à custa do não pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional e do consequente prejuízo desta, no mesmo valor.
26. O arguido agiu de acordo com o estabelecido e concretizado propósito de defraudar o Estado, mediante a omissão da sua real situação tributária, protelando no tempo, designadamente entre o período compreendido entre janeiro de 2013 e dezembro de 2016, a realização da conduta omissiva perante a Administração Tributária.
27. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei penal.
28. O arguido é natural de Coimbra, tendo o seu percurso de crescimento decorrido em agregado de humilde condição socioeconómica, composto pelo progenitor, desenhador projetista, pela progenitora, funcionária pública, e pela irmã mais nova, num ambiente familiar descrito como conflituoso, entre o progenitor, com problemas de alcoolismo e comportamentos violentos, e os restantes elementos do agregado, vítimas de maus tratos e humilhações por parte daquele. O relacionamento do arguido com a progenitora e a irmã como adequado e gratificante.
29. O arguido ingressou no 1.º ano de escolaridade em idade adequada, tendo um percurso escolar desinvestido até à frequência do 10.º ano, altura em que desiste de estudar e passar a trabalhar como aprendiz numa unidade fabril até aos seus 20 anos de idade, período em que cumpriu o serviço militar obrigatório.
30. No regresso à vida civil e, depois de 2 anos de trabalhos em áreas indiferenciadas, o arguido passou a trabalhar por conta própria na exploração de um bar, e posteriormente de um café, atividade laboral de abandonou em 2009.
31. Seguidamente, o arguido iniciou-se, por conta própria, na área de exploração de máquinas de diversão e recreativas, nomeadamente na colocação, manutenção e gestão de máquinas de prática desportiva (dardos/setas), atividade que ainda exerce presentemente.
32. Em termos afetivos, aos 20 anos (1992) iniciou relacionamento de namoro com EE, com quem casou cinco anos depois e de quem se divorciou passado doze anos (2009), tendo desta união dois descendentes.
33. Aquando do casamento, o ex-casal residiu em habitação arrendada, até que em 2006 decidiram comprar casa, com recurso a empréstimo bancário, sendo esta a residência na qual o arguido ainda hoje habita. Após o divórcio, os filhos ficaram, durante alguns anos, aos cuidados da mãe, sendo presentemente a guarda partilhada.
34. O arguido iniciou o consumo de bebidas alcoólicas durante a adolescência, reconhecendo um percurso marcado pelos consumos abusivos em contexto social (convívios e festas), identificando de forma objetiva as repercussões relevantes na sua vida pessoal, familiar, social e profissional, tendo estado essa dependência de bebidas alcoólicas, na origem do seu primeiro contacto com o Sistema da Administração da Justiça Penal e na intensificação das adversidades na convivência conjugal.
35. Entre 2015 e 2017, o arguido esteve em acompanhamento na Associação Ser+ Pessoa, em Santa Maria da Feira, reconhecendo os benefícios alcançados com a manutenção/consolidação do acompanhamento de que beneficiou, encontrando-se abstinente de consumos de bebidas etílicas.
36. Quer à data dos factos, quer na atualidade, o arguido tem residido na morada constante dos autos, sozinho, e, quinzenalmente, com os filhos, FF, de 18 anos, estudante universitária e GG, de 13 anos, estudante (guarda partilhada), sendo a ambiência intrafamiliar gratificante em termos afetivos e relacionais.
37. A habitação em que o arguido reside encontra-se localizada num condomínio em zona residencial em meio rural, próximo do centro da freguesia ..., em Ovar, e sem conexão a problemáticas sociais e de marginalidade, tratando-se de uma moradia em banda, tipologia 3, com área exterior ajardinada, com boas condições de habitabilidade, pagando mensalmente 401 euros de prestação referente ao crédito bancário contraído para a sua aquisição.
38. Há aproximadamente 6 anos que o arguido mantém um relacionamento de namoro com HH, 43 anos, profissionalmente ativa e residente em Ovar, que ambos consideram gratificante.
39. O arguido trabalha por conta própria na exploração de máquinas de entretenimento desportivo, alcançando ganhos variáveis, retirando a quantia de 2.000 (dois mil) euros por mês para as suas despesas pessoais.
40. A situação de pandemia e a aplicação do plano de contingência e confinamentos sucessivos obrigou ao encerramento dos estabelecimentos para os quais trabalhava por tempo muito dilatado e, consequentemente, à privação de rendimentos, originando o incumprimento de algumas das suas responsabilidades financeiras, assumindo, ainda, fragilidades quanto a adoção de estratégias de organização e gestão do seu negócio.
41. Tem, atualmente, como encargos financeiros a prestação mensal do crédito da habitação em que reside (401 euros) e as despesas correntes de manutenção da mesma, a prestação de um crédito automóvel (261 euros), as despesas da estadia da descendente em contexto universitário (230 euros) e, desde finais do ano passado, a prestação mensal de 109 euros referente a um crédito de uma segunda habitação (em ..., ...) e demais despesas associadas à sobrevivência do próprio e dos seus descendentes.
42. O quotidiano do arguido é pautado pelo cumprimento dos seus compromissos profissionais que implicam contínuas deslocações geográficas, das suas responsabilidades parentais, convívio com a namorada, não dispondo de tempos de lazer para participar em atividades estruturadas.
43. O arguido apresenta alguma preocupação face à incerteza do desfecho da presente situação processual e consequências que da mesma possam advir, manifestando disponibilidade, no caso de ser proferida decisão condenatória, para o cumprimento de uma medida de execução na comunidade para cumprimento de um plano de pagamento fracionado à Autoridade Tributária.
44. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
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B) – FACTUALIDADE NÃO PROVADA
Inexistem alegações factuais relevantes que não se tenham provado.”.
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Apreciando os fundamentos do recurso.
1) Impugnação da matéria de facto.
Defende o recorrente que a matéria constante dos pontos 10), 11), 13), 14), 16), 17) e 19) a 27) dos factos assentes foi incorretamente julgada, com violação dos princípios da apreciação da prova – designadamente, o princípio da livre apreciação da provae o princípio in dubio pro reo-, devendo transitar para o elenco da factualidade não provada.
Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cfr.º art.º 428.º do Código Processo Penal).
A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:
- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;
- na impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
Quanto a esta última modalidade de impugnação (a ampla) o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
Todavia, este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto.
Com efeito, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art.º 430º do Código de Processo Penal), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que sejam especificados e indicados como não corretamente julgados [sem prejuízo da audição da totalidade da prova para contextualização do alegado – cfr. nº 6 do art.º 412º do Código de Processo Penal].
De notar, ainda, que a censura quanto ao modo de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, consubstanciada, designadamente, na inexistência dos dados objetivos que se apontam na motivação, ou na violação dos princípios para a aquisição desses dados objetivos.
Assim, não basta à procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal, sendo necessário que as provas concretas imponham a modificação da decisão de facto, isto é, que façam prova por si de que os factos se passaram de forma diversa da que perfilhou o tribunal a quo.
Como bem se expende no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 [1], “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Ora, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida. [2].
Na verdade, dispõe o art.º 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal.
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que sem sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [3]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [4].
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Contudo, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva.
A este propósito refere Germano Marques da Silva [5] que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.
Porém, vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de primeira instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados. Com efeito, no processo de formação da convicção do juiz "desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (cfr, no sentido apontado, o acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss).
Contudo, e como observa o Conselheiro António Gama [6], a imediação não pode funcionar como desculpa de menor rigor na elaboração da fundamentação, nem torna, em regra, inatacável a decisão do tribunal de 1ª instância.
Como fez notar o STJ, no acórdão de 30/11/2006 [7], “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efetivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento”.[8]
Em conclusão, e como é salientado nos acórdãos do STJ de 14/3/2007 e de 3/7/2008 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para tanto, deve o Tribunal de Recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
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A presunção de inocência é, consabidamente, um princípio fundamental num Estado de Direito democrático, cuja função é, sobretudo (mas não só), a de reger a valoração da prova pela autoridade judiciária, ou seja, o processo de formação da convicção com base nos meios de prova [9].
Visando o processo penal apurar se, no caso concreto, estão verificados os pressupostos para que o Estado exerça o seu jus puniendi através da aplicação de uma sanção penal, o princípio da presunção de inocência garante que a condenação só será proferida se e quando se fizer prova inequívoca, através de meios legalmente admissíveis e válidos, de que o acusado praticou os factos que lhe são imputados. Porque na dúvida sobre a culpa do arguido (um non liquet em matéria de prova dos factos) se impõe a sua absolvição, o princípio da presunção de inocência é identificado com o in dubio pro reo.
Entre o princípio da livre apreciação da prova e o princípio basilar da presunção de inocência, de que o “in dubio pro reo” é uma das suas várias dimensões, existe uma estreita conexão.
O “in dubio pro reo”, sendo uma das várias dimensões do princípio basilar da presunção de inocência, configura-se, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos - ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida razoável e irresolúvel sobre a verificação, ou não, de determinado facto -, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o nº 2 do art.º 410º do CPP, a eventual violação do in dubio pro reo há de resultar, claramente, do texto da decisão recorrida e, portanto, ocorrerá quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que deverá decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto [10].
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Delineados os princípios gerais da apreciação crítica da prova e decisão da matéria de facto, analisemos os pontos da matéria de facto questionados pelo recorrente.
Como vimos, o recorrente defende que os factos constantes da matéria de facto assente (em particular, os que constam dos pontos 10), 11), 13), 14), 16), 17) e 19) a 27) foram incorretamente julgados – com violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo -, impondo a prova produzida na audiência de julgamento decisão diversa, coincidente com a falta de demonstração do elemento objetivo do tipo legal de crime por que foi condenado.
Na decisão recorrida, o Tribunal a quo fundamentou nos seguintes moldes a sua convicção quanto à demonstração da factualidade atrás transcrita:
“1. A livre convicção do Tribunal deve assentar nas provas constituídas no processo e constituendas, valoradas em consonância com os princípios que enformam o direito processual penal, designadamente da concentração, do contraditório e da imediação.
A apreciação dos meios de prova pelo Tribunal é livre, com as exceções expressamente previstas na lei. Como decorrência do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal – segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” –, no processo de formação da convicção do julgador, as primeiras regras a observar são, naturalmente, as da lógica, seguidas pelas regras da experiência, que resultam da estrutura nomológica da realidade física e emergem, fundamentalmente, da intervenção do princípio da causalidade.
A prova oral mostra-se gravada em sistema digital em uso na plataforma informática Citius e os documentos constam dos autos, podendo, por isso, ser facilmente revisitados e analisados.
Naturalmente, no que tange à prova declarativa e testemunhal, importa assinalar que a gravação não permite total perceção da qualidade das declarações/depoimentos na medida em que aquela é condicionada por determinadas contingências que conformam normalmente o seu conteúdo, que apenas são percetíveis pela postura corporal e expressões fisionómicas adotadas, pelas hesitações que quem os produz demonstra nas respostas às questões que lhe são colocadas, nos olhares de cumplicidade trocados com um ou outro interveniente processual, enfim numa multiplicidade de pormenores que, a maioria das vezes, apenas a imediação permite percecionar. Ademais, o depoimento testemunhal traduz-se no relato ao Tribunal da representação da realidade percecionada, interpretada e memorizada pela testemunha segundo as suas idiossincrasias, o que terá que ser tido em consideração.
2. - Tendo presentes as enunciadas traves mestras da arquitetura do processo de formação da convicção subjacente à decisão de facto e respetiva motivação, e considerando que a prova oral se mostra gravada e os documentos constam dos autos, de seguida, de forma necessariamente resumida, salientaremos alguns aspetos da prova que, conjugados entre si, permitiram ao Tribunal formar convicção pela forma vertida na factualidade provada.
Analisou-se, desde logo, a abundante prova documental constituída nos autos, designadamente o Anexo II da Informação da Autoridade Tributária, de fls. 77 a 125, o Anexo IV da Informação da Autoridade Tributária, de fls. 126 a 141, e o Anexo V da Informação da Autoridade Tributária, de fls. 142 a 172.
O arguido predispôs-se a prestar declarações, tendo, em síntese, admitido a essencialidade dos factos descritos na acusação e o conhecimento de que a sua atuação era proibida e punida por lei criminal e que, ainda assim, quis agir como agiu, refutando, porém, que tivesse tido as receitas correspondentes às quantias monetárias ali mencionadas.
Com efeito, embora tenha admitido que, nos termos contratuais, a proporção da repartição das receitas decorrentes da exploração das máquinas de dardos que lhe cabia fosse de 30%, sustentou que mantinha uma parceria, por acordo verbal, com outros dois indivíduos – BB [sócio gerente da sociedade P..., Lda.] e CC –, em duas zonas geográficas distintas, tudo nos moldes que explicou, e que, no âmbito dessas parcerias, após a dedução das despesas [designadamente, de transporte, instalação e manutenção das máquinas, consumíveis e empregados], repartia, na proporção de metade, com o BB e o CC, o lucro referente às máquinas que com um e com o outro explorava.
Mais alegou que concretizava essa repartição do lucro através de transferências bancárias para os referidos indivíduos, conforme documentos juntos com a contestação, nos moldes que explicitou.
Contudo, admitiu que nem o valor da receita correspondente a essa percentagem do lucro que alegadamente lhe caberia nas ditas parcerias – que corresponderia a 15% – declarou para efeitos fiscais e que também não refletia, nem contabilisticamente, nem fiscalmente, tais parcerias e as transferências bancárias alegadamente efetuadas nesse âmbito.
De igual modo, sustentou que teve despesas no âmbito de tal atividade que não foram declaradas para efeitos fiscais, sobretudo nos anos de 2014 e 2015.
De resto, referiu que a sua contabilista apenas fez constar na contabilidade e nas declarações fiscais os elementos que lhe fornecia e os documentos que lhe facultava, nada tendo feito à sua revelia, assumindo, portanto, a sua responsabilidade pelo declarado perante a Autoridade Tributária.
BB, indicado como testemunha pelo arguido, recusou-se a depor nessa qualidade, ao abrigo do disposto no artigo. 133º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal.
Por seu turno, CC, também indicado como testemunha pelo arguido, alegou que não era ele que tinha uma parceria com este, mas antes o seu pai, confirmando que o lucro das máquinas colocadas em Aveiro, após dedução das despesas suportadas a meias, era repartido na proporção de 15% para cada um deles. Contudo, depondo de forma notoriamente comprometida, não soube explicar como eram tratados, nem contabilisticamente, nem fiscalmente, as receitas, as despesas e os fluxos financeiros entre o arguido e o seu pai, asseverando que os documentos juntos com o segundo requerimento probatório apresentado pelo arguido não se reportam à sua conta bancária.
Também a testemunha EE, que à data dos factos vivia com o arguido e com ele colaborou profissionalmente, confirmou a parceria deste com o BB e o CC e aludiu ao espaço comercial que o primeiro explorava e aos trabalhadores que tinha ao seu serviço.
A testemunha II transmitiu a convicção que tinha de que o arguido e o BB eram sócios na atividade de exploração de máquinas de dardos pelas razões que aduziu objetivamente.
As testemunhas JJ e KK afirmaram que trabalham para o arguido no âmbito da atividade por este desenvolvida de exploração de máquinas de dardos, a primeira desde 2013 e a segunda desde 2015/6, descrevendo cada uma as respetivas funções.
A testemunha LL, contabilista certificado que presta serviços de contabilidade para o arguido desde 2020, revelou não ter conhecimento direto dos factos em apreciação.
As declarações do arguido e o depoimento da testemunha CC convergem no sentido de que, nem a totalidade das receitas decorrentes da atividade de exploração das máquinas de dardos, nem a relação negocial entre o arguido e os referidos BB e CC, eram refletidos contabilisticamente e fiscalmente, por razões óbvias – evitar o pagamento de impostos.
Que o arguido omitiu rendimentos resulta comprovado, para além da confissão pelo próprio, pela prova documental coligida nos autos, mormente nos mencionados anexos, e explicitada pela testemunha indicada na acusação.
Com efeito, a testemunha DD, inspetor tributário em exercício de funções na Direção de Finanças de Aveiro, encarregue da investigação no âmbito do presente processo, depondo de forma isenta, objetiva e conscienciosa, explicitou o contexto em que este foi espoletado, descreveu as diligências de recolha e análise de elementos de prova a que procedeu e que constam dos autos, nomeadamente relativas às receitas e despesas relevantes para efeitos fiscais, e prestou os esclarecimentos que lhe foram solicitados pelos diversos intervenientes na audiência de julgamento, tudo com respaldo na prova documental constante dos referidos anexos.
Já os demais aspetos da versão sustentada pelo arguido – mormente quanto às alegadas parcerias com BB e CC e concretos termos das mesmas e à alegada existência de despesas elegíveis que não foram consideradas pela Autoridade Tributária – não puderam ser acolhidos pelo Tribunal.
Com efeito, as invocadas parcerias não resultaram comprovadas, quer porque o BB não prestou depoimento, quer porque o CC refutou, desde logo, que fosse ele o parceiro e o titular da conta bancária para a qual o arguido alegadamente fez algumas das transferências, quer, finalmente, porque nada foi documentado, nem do ponto de vista contabilístico, nem fiscal, não sendo os documentos juntos pelo arguido na fase da contestação – nomeadamente os extratos de movimentos bancários – esclarecedores a esse respeito.
Ao invés, o inspetor tributário esclareceu que analisou a documentação pertinente, constante de quatro volumes, não tendo detetado qualquer contrato que alterasse a percentagem de 30% das receitas da exploração das máquinas de dardos que cabia ao arguido, que foi plenamente admitida por este e, por isso, era questão pacífica. Aliás, o próprio arguido referiu que as alegadas parcerias não foram documentadas, para efeitos contabilísticos e fiscais, corroborando tal asserção da testemunha.
No que tange às despesas, deparamo-nos, desde logo, com a mesma fragilidade da tese do arguido, que referiu que não declarou a totalidade das mesmas e, ao assim proceder, a existirem, inviabilizou a sua consideração para efeitos fiscais.
Neste particular, esclareceu a testemunha DD que, apesar de se ter deslocado ao local para se inteirar do negócio desenvolvido pelo arguido e de ter acedido ao e-fatura, tendo detetado algumas despesas compatíveis com o exercício da atividade, nomeadamente com combustíveis, estas não podiam ser consideradas porque não foi declarada a existência de veículos afetos à atividade desenvolvida, nem foram lançadas contabilisticamente, e também já tinha caducado o direito de liquidação de imposto devido, razão pela qual não fez o apuramento das despesas reais, sendo certo que solicitou à contabilista indicada pelo arguido a contabilidade, mas esta não a facultou. Aliás, como explicou, se o arguido tinha intenção de ocultar os reais ganhos poderia intencionalmente não declarar veículos afetos à atividade desenvolvida para não surgirem despesas associadas aos mesmos de montantes elevados que indiciassem a correspondente grandeza de receitas. Daí que as despesas declaradas pelo arguido fossem condizentes com as receitas também declaradas para não suscitar suspeitas.
O mesmo se passa com as despesas com trabalhadores, sendo certo que, apesar dos depoimentos das testemunhas JJ e KK, os documentos juntos na fase da contestação [pesquisas na base de dados da Segurança Social Direta] não provam que o arguido pagou vencimentos a terceiros e, muito menos, no âmbito da atividade económica por ele desenvolvida.
Em suma, asseverou a testemunha que, ainda que o arguido tivesse tido mais despesas, se não foram declaradas, eram fiscalmente irrelevantes, além de que já havia caducado o direito de liquidação.
Obviamente, o próprio arguido estava ciente disso, pois, como é do conhecimento comum e por ele foi admitido, em condições de normalidade o contribuinte fiscal tem interesse em declarar o maior número e quantitativo de despesas, de forma a reduzir o lucro tributável. No caso vertente, porém, visando o arguido omitir a real grandeza das receitas não lhe convinha declarar despesas que indiciassem uma atividade mais lucrativa do que a que estava a declarar, sob pena de suscitar suspeitas junto da Autoridade Tributária, com a consequente averiguação da sua situação económica e, consequentemente, fiscal.
Estas as razões, em síntese, que conduziram à convicção do Tribunal da verificação dos factos pela forma exarada como provada.
No que concerne às condições pessoais do arguido, designadamente familiares, culturais, sociais, económicas, e seu percurso de vida, resultaram essencialmente do teor do relatório social junto aos autos, tendo-se ainda atendido às declarações daquele em audiência – nomeadamente quanto ao valor monetário que retira da sua atividade económica para as suas despesas pessoais – e da testemunha EE, que foi sua mulher e é mãe dos seus filhos, tendo, por isso, conhecimento privilegiado das mesmas.
Por seu lado, no que respeita à ausência de antecedentes criminais, analisámos o teor do certificado de registo criminal junto aos autos, meio idóneo à comprovação de tal facto.”.
Importa reiterar que, para alterar a decisão sobre a matéria de facto, é necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham decisão diversa da proferida (artigo 412.º., n.º 3, alínea b), do CPP), sendo que, como justamente salientou o Desembargador Neto de Moura, no acórdão deste TRP, datado de 9/11/2016 (e disponível em www.dgsi.pt), “(…) para tanto, não basta apontar disparidades, divergências, incongruências ou até contradições entre os vários depoimentos. A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos, nem, tão pouco, tem de aceitar ou rejeitar cada um dos depoimentos na globalidade. A sua tarefa é dilucidar, em cada um deles, o que merece crédito e o que lhe suscita reservas ou mesmo descrédito. Sobretudo quando a prova seja, exclusiva ou essencialmente, testemunhal, ao tribunal de recurso cabe aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.”.
E convém não esquecer que “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª Instância”, como ensina o Professor Germano Marques da Silva (in “Forum Iustitiae”, Ano 1.º, n.º 0, págs. 21 e 22).
No presente caso, o tribunal a quo explicitou, claramente e de forma perfeitamente lógica e sustentada na prova produzida, as razões pelas quais tomou a decisão atrás referida quanto à matéria de facto controvertida. O recorrente, embora com referenciação de depoimentos, limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de 1ª instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, verificando-se, porém, inequivocamente que o tribunal explica de forma coerente o motivo pelo qual se convenceu de que o arguido adotou os comportamentos descritos no acórdão recorrido, sendo da análise conjugada dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, das declarações prestadas pelo arguido na audiência de julgamento e da prova documental contida no processo - mostrando-se, no essencial, tais meios de prova coerentes e congruentes entre si - que retira a sua convicção.
Verifica-se, ainda, que os elementos de prova que o recorrente indica para contrariar as conclusões obtidas pelo tribunal não impõem, efetivamente, decisão diversa da recorrida.
Começa o recorrente por afirmar que a correta valoração das suas declarações, em conjugação com os depoimentos prestados pelas testemunhas e com a prova documental que fez chegar ao processo, imporia a consideração da existência de despesas suplementares e de um quantum de receita inferior àquele que foi reconhecido pelo tribunal a quo, com reflexo no apuramento da matéria coletável.
Mas sem razão. Como o tribunal de primeira instância fez notar no acórdão recorrido, o arguido reconheceu (e, nessa medida, confessou) que a proporção da repartição das receitas decorrentes da exploração das máquinas de dardos que lhe cabia era de 30%, admitindo também que esse lucro não foi declarado fiscalmente.
Por outro lado, as parcerias que invoca ter estabelecido com BB e CC, a ficarem demonstradas, implicariam uma diminuição da receita, por incremento das despesas – já que o recorrente repartiria com aqueles, na proporção de metade, as receitas auferidas -, pelo que o seu lucro seria apenas de 15% e não de 30%, como foi considerado.
Contudo, o arguido reconheceu que as ditas parcerias (e consequentes despesas) não foram refletidas, nem contabilisticamente, nem fiscalmente, tendo o tribunal considerado que os documentos juntos pelo recorrente na fase de contestação (nomeadamente, os extratos de movimentos bancários) não permitiram esclarecer esta matéria, o mesmo tendo sucedido com a prova testemunhal (a testemunha BB recusou prestar depoimento e a testemunha CC refutou, desde logo, que fosse ele o dito “parceiro” e titular da conta bancária para a qual teriam sido feitas algumas das transferências).
O mesmo se diga quanto às restantes despesas invocadas pelo recorrente (vencimentos alegadamente pagos a trabalhadores, despesas com combustível, etc) que, de acordo com o tribunal de primeira instância, não ficaram comprovadas, asserção com a qual concordamos.
A este propósito é de notar, como justamente salienta a magistrada do Ministério Público na resposta ao recurso, que se para efeito de determinação do rendimento coletável relevam todos os rendimentos que foram obtidos durante o período de tributação, mesmo que de natureza ilícita e/ou não documentados, já não relevam para efeito de definição da matéria coletável (art.º 15.º do CIRC) os gastos que não se encontrem em conformidade com o art.º 23.º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma (aplicável por força do disposto no art.º 32.º do Código do IRS).
Tal regime exige que os gastos a considerar estejam comprovados documentalmente, como não poderia deixar de saber o arguido/recorrente, que dispunha de contabilidade organizada. Simplesmente, o arguido/recorrente nunca entregou documentos comprovativos das despesas que agora invoca ao contabilista que lhe prestava serviço, despesas que, assim, ocultou da administração fiscal – o que se compreende, dado que a sua intenção era impedir que o fisco conhecesse a real dimensão dos seus proveitos, evitando a consequente tributação.
Em suma, tais despesas suplementares, a terem existido, eram fiscalmente irrelevantes e, mesmo em processo de liquidação, não poderiam ser consideradas. Por outro lado, neste processo, de natureza criminal, a prova que o arguido indicou e pretendeu fazer valer sobre tal matéria não foi esclarecedora, quer quanto à natureza das despesas suportadas, quer ainda quanto ao seu concreto valor.
Em resumo, resulta claramente do texto da decisão recorrida que o tribunal a quo efetuou um rigoroso e exaustivo exame crítico das provas, descrevendo quais as declarações/depoimentos que lhe mereceram credibilidade ou não, e expondo as respetivas razões lógicas e de ciência de forma clara e conforme com as regras da experiência.
Da análise dos elementos de prova de que o tribunal se baseou para formar a sua convicção, expressamente referidos na motivação, não resulta que o tribunal tenha apreciado arbitrariamente a prova produzida ou que tenha incorrido em qualquer erro lógico – bem pelo contrário.
Na verdade, o que ressalta da motivação é que o recorrente tem opinião diversa da que foi expressa pelo tribunal a quo no que respeita à análise e valoração da prova, pretendendo sobrepor a sua convicção à do julgador, de forma não consentida pelo nosso sistema, que configura o recurso sobre a matéria de facto como um remédio jurídico, com o objetivo de detetar e corrigir erros de julgamento.
A prova deve ser apreciada na sua globalidade e em conjugação com juízos de normalidade (isto é, de plausibilidade), decorrentes das regras da experiência . E cremos que a prova analisada pelo tribunal de julgamento é suficientemente clara e precisa para afirmar, com a segurança exigível à superação da presunção de inocência ínsita no princípio in dubio pro reo,[12] que os factos ocorreram do modo descrito no acórdão recorrido.
Perante isto, é evidente que o passo lógico seguinte consistia em ter por demonstrado o dolo do arguido/recorrente, como fez o tribunal de primeira instância, que afirmou, sem hesitações, a sua atuação deliberada e consciente no sentido de ocultar da administração fiscal a totalidade dos rendimentos auferidos, evitando a consequente tributação, com o intuito de obter a correspondente vantagem patrimonial indevida que, no caso concreto, ascendeu ao montante global de € 246.722,50, à custa do não pagamento dos impostos devidos à Fazenda Nacional e do consequente prejuízo desta, no mesmo valor.
Com efeito, quanto à prova dos elementos subjetivos, por via de regra, na ausência de confissão do arguido, a prova do dolo terá de ser feita através de prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum [13].
Nenhuma censura merece, assim, a firme convicção do tribunal a quo quanto à demonstração da factualidade impugnada pelo recorrente, mostrando-se esta decisão congruente com a prova produzida, aferida segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), e perfeitamente suportada pelo princípio in dubio pro reo (sendo certo que o tribunal de 1ª instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao recorrente, nem tal dúvida se evidencia perante a prova produzida).
Desta forma, e como se salienta no acórdão deste TRP, de 2/6/2019[14], “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.” [15].
Afigura-se-nos, ainda, manifesto que o acórdão recorrido não se encontra afetado por nenhum dos vícios decisórios elencados no art.º 410.º, n.º 2, do CPP, em particular pelo vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, diversamente do que parece pressupor o recorrente.
Com efeito, o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão reporta-se a lacunas no elenco factual vertido na decisão, pelo que tal vício ocorre quando da leitura desta se evidencia a omissão de factos que podiam e deviam ter sido averiguados - por se mostrarem necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição - e não o foram, em prejuízo do dever de descoberta da verdade e boa decisão da causa que incumbe ao tribunal, como nos dá conta o acórdão deste TRP, de 15/11/2018 [16].
Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito, isto é, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respetivas premissas [decisão de facto]. Ou, dito de outra forma, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adotada porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objeto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal [17].
Sucede que nenhuma insuficiência factual se deteta na decisão recorrida, quer no que concerne à matéria de facto necessária para o preenchimento do tipo de ilícito e respetivo tipo de culpa, quer na que releva para a questão da verificação da condição objetiva de punibilidade prevista no art.º 103.º, n.º 2 do RGIT.
Na verdade, não se pode afirmar que o tribunal, violando o seu dever de indagação da verdade material, desconsiderou factualidade invocada pelo recorrente e com relevo para a decisão da causa. Bem pelo contrário, o tribunal pronunciou-se expressamente no acórdão recorrido sobre as questões relacionadas com a demonstração das despesas com relevo fiscal, muito embora o arguido não as tenha invocado na sua contestação.
A circunstância de o tribunal a quo ter chegado a conclusões diversas das pretendidas pelo recorrente quanto à demonstração de despesas por si suportadas, com reflexo na quantificação do lucro tributável, não determina a ocorrência do vício em questão, que, naturalmente, não se confunde com a diferente opinião ou perspetiva relativamente à valoração da prova.
Improcede, assim, a invocada violação dos princípios gerais da apreciação crítica da prova e decisão da matéria de facto – livre apreciação da prova e observância do princípio in dubio pro reo -, não se detetando, para além disso, que a decisão recorrida padeça de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” ou de qualquer outro vício decisório previsto no n.º 2 do art.º 410.º do CPP. Com efeito, a decisão mostra-se coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para fundar uma segura decisão de direito.
Encontrando-se definitivamente fixada a matéria de facto, estamos em condições de analisar e decidir os restantes fundamentos do recurso.
*
2) Liquidação do imposto e preenchimento do tipo objetivo do crime de fraude fiscal.
Prescrição do procedimento criminal.
Defende o recorrente que o imposto em causa (IRS) é uma prestação tributária dependente de liquidação, sendo este procedimento da competência da Administração Tributária, constituindo uma operação necessária para se determinar se a prestação tributária em dívida integra ou não o elemento objetivo do crime de fraude fiscal (necessariamente de valor superior a €15.000,00).
Acrescenta que a Administração Tributária não liquidou o imposto em causa (IRS) e que, quando o presente processo criminal foi instaurado, estava já ultrapassado o prazo do direito à liquidação.
Para além disso, sendo o prazo de prescrição do procedimento criminal nos presentes autos igual ao da caducidade do direito à liquidação, conclui que, tendo decorrido o prazo de quatro anos previsto na lei, encontra-se extinto, por prescrição, o presente procedimento criminal.
A análise das questões suscitadas pelo recorrente convoca a interpretação e delimitação do âmbito de aplicação das normas contidas nos artigos 45.º da LGT e 21.º, n.º 3, do RGIT.
Assim, o art.º 45.º da Lei Geral Tributária (LGT) dispõe, na parte com relevo para o caso dos autos, o seguinte:
“Caducidade do direito à liquidação.
1 - O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro.
2 - No caso de erro evidenciado na declaração do sujeito passivo o prazo de caducidade referido no número anterior é de três anos.
3 - Em caso de ter sido efetuada qualquer dedução ou crédito de imposto, o prazo de caducidade é o do exercício desse direito.
4 - O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, exceto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efetuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respetivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário.
5 - Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano. […]”.
Estabelece, por seu turno, o art.º 21.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, sob a epígrafe “Prescrição, interrupção e suspensão do procedimento criminal”:
“1 - O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos.
2 - O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a cinco anos.
3 - O prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infração depender daquela liquidação.
4 - O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 42.º e no artigo 47.º.”.
A liquidação do IRS compete à Autoridade Tributária e Aduaneira (art.º 75.º do Código do Imposto sobre Rendimentos Singulares – CIRS) e, sendo apresentada a declaração até 30 dias após o termo do prazo legal, tem por objeto o rendimento coletável determinado com base nos elementos declarados, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 65.º do mesmo diploma legal.
De qualquer modo, e como estabelece o n.º 4 do referido art.º 75.º do CIRS, em todos os casos previstos no n.º 1, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da lei geral tributária.
A caducidade do direito de liquidar impostos, reconhecido à Autoridade Tributária, constitui um modo de extinção da obrigação fiscal, no âmbito estritamente tributário. Portanto, o prazo de caducidade que o recorrente invoca só tem relevância para efeitos de a administração tributária liquidar (e cobrar) o imposto em falta e não tem qualquer influência sobre a eventual prática do crime, que poderá ocorrer desde que se encontrem verificados os respetivos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito, [18] acrescidos da condição objetiva de punibilidade prevista no art.º 103.º, n.º 2, do RGIT[19].
Por outro lado, a impossibilidade de cobrança do imposto suplementar em dívida pela Autoridade Tributária, por falta de liquidação atempada e consequente caducidade do direito de liquidação, não se traduz, necessariamente, na impossibilidade da sua quantificação e, claramente, não prejudica o ressarcimento dos prejuízos causados à administração fiscal, decorrentes da prática do crime fiscal, como teremos oportunidade de explicitar mais à frente.
Quanto à quantificação do montante do imposto, designadamente para aferição dos pressupostos objetivos da responsabilidade criminal, é pacífica a possibilidade de recurso a métodos indiretos.
Como é observado no acórdão deste TRP, datado de 1/7/2020 [20], é perfeitamente legítima e legal a avaliação indireta, estando esta prevista e regulada nos artigos 83º, 87º e 88º da LGT, quando ocorram anomalias na contabilidade ou esta inexista, ou ocorra “impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata dos elementos indispensáveis à correta determinação da matéria tributável de qualquer imposto”, por não poder ser obtida de outro modo, sendo que tal sistema de avaliação por métodos indiretos, visando uma “verdade material aproximada”, não é afastado pela CRP.
A avaliação indireta visa a determinação do valor dos rendimentos ou bens tributáveis a partir de indícios, presunções ou outros elementos de que a administração tributária disponha [21] e impõe-se por necessidade de salvaguarda dos princípios fundamentais tributários inerentes à verdade material, à igualdade equitativa e solidariedade, e de prossecução do interesse público na atividade tributária do Estado. Como é observado no referido acórdão do TRP, nada impede que a liquidação seja efetuada pela autoridade fiscal por avaliação indireta, pois que também as atividades e rendimentos de natureza ilícita estão sujeitos a tributação, conforme decorre do artigo 10º da LGT, sob pena de se incentivar a prática de atos ilícitos, como sucederia se os prevaricadores no cumprimento das normas legais ainda fossem exonerados dos impostos que seriam devidos.
Em suma, a existência da infração criminal, isto é, da conduta típica e ilícita, não depende do procedimento de liquidação do imposto [22] e nada obsta a que se recorra a métodos de avaliação indireta da matéria tributável.
Resolvida esta questão, importa apurar se o tipo de ilícito objetivo e subjetivo se encontra ou não preenchido e se, para além disso, se verifica a condição objetiva de punibilidade prevista no art.º 103.º, n.º 2, do RGIT.
De acordo com o disposto no nº 1 do art.º 103.º do RGIT, “Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria coletável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.”.
Dispõe, por seu turno, o nº 2 da norma em análise, que “Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima foi inferior a (euro) 15000”.
Como salientam Figueiredo Dias e Costa Andrade [23], no crime de fraude fiscal o bem jurídico protegido consiste na pretensão do Estado de contar com uma colaboração leal dos cidadãos na determinação dos factos tributáveis. Ou, na formulação sobreponível de Silva Dias, o que emerge como interesse juridicamente protegido é “a pretensão do Estado à revelação dos factos fiscalmente relevantes, construindo a ilicitude na base da violação de deveres de colaboração com a administração financeira e, portanto, do desvalor de ação”.[24]
Esta conceção aponta para um bem jurídico polarizado em torno dos valores da transparência e da verdade. Contudo, à falsidade tem de acrescer a intenção de produzir o resultado lesivo sobre o património fiscal.
No entanto, a lei penal fiscal portuguesa não inscreve o dano patrimonial entre os pressupostos objetivos da factualidade típica.
Como é salientado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18/7/2013 (disponível em www.dgsi.pt), “O crime de fraude fiscal pode ser construído ou como um crime de dano contra o património, e logo como uma infração cuja consumação requer a efetiva produção de um prejuízo patrimonial, ou como uma infração que se esgota na violação dos deveres de informação e de verdade que impendem sobre o sujeito passivo da obrigação tributária. Mas os legisladores propendem, não raro, a adotar soluções compromissórias, ensaiando conjugar a proteção das duas ordens de valores: de um lado, o património, do outro a verdade/transparência. Foi essa a solução do legislador português, que preferiu delinear a factualidade típica da infração seguindo as linhas deste compromissório modelo.”
Assim, e no que ao tipo objetivo do crime de fraude fiscal concerne, necessário – e suficiente – ao preenchimento da factualidade típica é apenas o atentado à verdade ou transparência corporizado nas diferentes modalidades de falsificação previstas no nº 1 do art.º 103º do RGIT. Uma infração que se consumará mesmo que nenhum dano/enriquecimento indevido venha a ter lugar [25].
Por isso, como é salientado no acórdão desta Relação do Porto, de 3/4/2002 (disponível em www.dgsi.pt), no crime de fraude fiscal punem-se desde logo os atos preparatórios destinados a obter uma vantagem patrimonial indevida nas relações entre o obrigado tributário e o Estado, quer a esses atos se siga o resultado lesivo para o património fiscal ou não.
As condutas tipificadas no art.º 103.º do R.G.I.T. podem revestir a forma de ação ou de omissão. A realização da conduta de modo ativo corresponde à alteração de factos ou valores que devam constar da escrita contabilística ou de declarações apresentadas à administração tributária ou ainda através da celebração de contrato simulado. A fraude por omissão tem lugar quando o agente oculta factos ou valores que devam constar da contabilidade ou de declarações tributárias [alínea a)]; ou ainda quando o agente não declara factos ou valores com relevância tributária [alínea b)].
Os comportamentos que são objeto de reprovação jurídico-penal pelo crime de fraude fiscal têm em comum visarem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.
Deste modo, o tipo de ilícito põe em paralelo, sem distinção em matéria de punição, as vantagens patrimoniais ilegítimas obtidas mediante o cálculo do montante do imposto inferior ao efetivamente devido, o recebimento indevido de uma quantia pecuniária resultante da aplicação das normas fiscais e a não tributação, total ou parcial, de determinado rendimento que à partida seria tributado.
A fraude fiscal consiste em levar a cabo os comportamentos típicos taxativamente elencados nas alíneas do nº 1, do art.º 103º do RGIT, que traduzem a violação de deveres fiscais de colaboração com a administração fiscal, de lealdade e de informação.
Mas o carácter insidioso da fraude fiscal não se resume à mera violação desses deveres. Tal carácter manifesta-se na idoneidade que tais comportamentos têm para provocar a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.
Portanto, o tipo não exige que o bem jurídico seja lesado, mas contém uma cláusula de idoneidade: os comportamentos proibidos têm de ser aptos a atingir um determinado resultado lesivo, sem que este tenha efetivamente de se verificar. Deste modo, no que respeita à sua estrutura típica, o crime de fraude fiscal consubstancia um crime de perigo abstrato-concreto: o tipo não exige que o perigo venha efetivamente a verificar-se, mas permite que seja objeto de um juízo negativo que exclui a responsabilidade penal, no caso em que o comportamento proibido não seja idóneo a provocar uma vantagem patrimonial igual ou superior a €15.000,00 [26].
Não sendo um crime de resultado, o desvalor de resultado, caso se verifique, pode assumir relevância, designadamente para efeito de determinação da medida da pena.
Como já foi salientado, no crime de fraude fiscal está em causa a violação de deveres extra - penais específicos (deveres de colaboração para com a Administração Fiscal, de verdade e de transparência), com a consequência de que apenas um número limitado de sujeitos se encontra em posição de lesar o bem jurídico.
Em resumo, o crime de fraude fiscal é um crime específico: o sujeito ativo deste crime tem de ser o sujeito passivo daquela relação tributária – isto é, o contribuinte ou o substituto do contribuinte, “a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável” (art.º 18º, nº 3, da LGT).
Tal não invalida, no entanto, que o círculo dos sujeitos que podem cometer o crime de fraude fiscal possa, em concreto, ser alargado por força da aplicação das regras legais de comparticipação criminosa, das regras legais da atuação em nome de outrem e das regras legais da responsabilidade das pessoas coletivas.
Quanto à comparticipação criminosa, não existe especialidade face às normas do direito penal comum. A questão encontra resposta na norma do art.º 28.º do Código Penal.
Como salienta Henrique Salinas Monteiro (“A Comparticipação em Crimes Especiais no Código Penal”, 1999, pág. 336), a solução adotada no Código Penal, para resolver as hipóteses de comparticipação em crimes especiais, consiste num alargamento do âmbito de aplicação pessoal dos tipos respetivos. Este resultado é alcançado mediante uma norma da parte geral, que permite a punição do extranei a título de autoria nestes crimes, ao estabelecer que basta que intervenha um comparticipante (punível como autor ou cúmplice) intraneus, para que todos respondam pelo crime especial.
No que concerne ao tipo subjetivo de ilícito, o crime de fraude fiscal configura-se como um crime doloso (sendo punível sob qualquer categoria de dolo – direto, necessário ou eventual), não se afigurando a exigência de verificação de um dolo específico [27].
No presente caso, partindo da factualidade considerada provada pelo tribunal de primeira instância e que temos por definitivamente assente, não há qualquer dúvida que todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime em causa estão preenchidos, para além do correspondente tipo de culpa, verificando-se, ainda, a condição objetiva de punibilidade.
Com efeito, e como foi assinalado no acórdão recorrido, o arguido pretendeu e conseguiu apresentar à Autoridade Tributária, para efeitos de IRS, um resultado líquido tributável inferior ao real, com o concretizado propósito de se furtar à competente tributação, tornando impossível a liquidação da quantia verdadeiramente devida a título de IRS. Na verdade, apesar de bem saber que estava obrigado a faturar e a declarar perante a Autoridade Tributária a totalidade dos rendimentos obtidos, mediante a entrega das competentes declarações de IRS, o arguido, agindo de forma livre, deliberada e consciente, e bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei penal, omitiu deliberadamente a totalidade dos rendimentos por si auferidos nas declarações fiscais reportadas aos anos de 2013, 2014, 2015 e 2016, obtendo, em consequência disso, uma vantagem patrimonial indevida, no valor total de 246.722,50 € (duzentos e quarenta e seis mil setecentos e vinte e dois euros e cinquenta cêntimos), à custa do não pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional e do consequente prejuízo desta, no mesmo valor.
Relativamente à questão da prescrição do procedimento criminal, igualmente invocada pelo recorrente, importa reiterar que a verificação da infração criminal de que nos ocupamos não está dependente do ato tributário de liquidação.
Como se observa no acórdão do TRC, de 26/2/2014 (in www.dgsi.pt), a perfetibilização do crime fiscal não depende de qualquer ato de liquidação que a administração fiscal haja de fazer.
Assim, não sendo de aplicar ao presente caso a norma constante do n.º 3 do art.º 21.º do RGIT, o problema resolve-se mediante a aplicação do regime contido nos respetivos n.ºs e 1 e 2. Deste modo, e uma vez que ao crime praticado pelo arguido corresponde pena de 2 a 8 anos de prisão, já que se trata de uma fraude fiscal qualificada em função do valor da vantagem patrimonial ilicitamente obtida (cfr. o n.º 3 do art.º 103.º do RGIT), o prazo de prescrição do respetivo procedimento criminal é de dez anos, em conformidade com o disposto no art.º 118.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado e, tratando-se de um crime de execução continuada, desde o dia da prática do último ato (art.º 119.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do Código Penal).
Tendo obedecido a uma resolução única, o ilícito típico praticado pelo arguido consumou-se com a entrega da declaração de IRS relativa ao ano de 2016 (cfr. ponto 18 dos factos provados e o art.º 5.º, n.º 1 do RGIT), iniciando-se a contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal no dia seguinte.
Deste modo, e independentemente da aplicação da norma contida no n.º 5 do art.º 45.º da LGT (a qual dispõe que “Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano”), mostra-se evidente que ainda não decorreu o prazo de prescrição do procedimento criminal.
Em conclusão, encontra-se integralmente preenchido o tipo de ilícito do crime de fraude fiscal em análise, para além do respetivo tipo de culpa, e o crime não se encontra prescrito, pelo que nenhuma censura merece o acórdão recorrido, improcedendo os presentes fundamentos do recurso.
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3) Pedido de indemnização civil.
O tribunal de primeira instância, considerando integralmente verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e consequente obrigação de indemnizar a cargo do arguido, condenou-o no pagamento ao Estado da quantia de €246.722,50, acrescida de legais de mora, vencidos e vincendos.
Discorda desta decisão o recorrente, defendendo que o pedido de indemnização civil deve ser considerado improcedente, na medida em que se desconhece se houve ou não um prejuízo patrimonial causado ao Estado.
É evidente que, mais uma vez, não lhe assiste razão.
Como já observámos no acórdão deste TRP, datado de 10/12/2019 (consultável em www.dgsi.pt), o pedido de indemnização civil em processo penal, nos crimes fiscais, não tem por objeto a definição e exequibilidade de ato tributário, mas sim a obrigação de indemnização por danos emergentes da conduta danosa que integra o crime praticado, com fundamento na responsabilidade por factos ilícitos daí decorrente, nos termos dos artigos 483.º e seguintes do Código Civil.
A responsabilidade criminal do arguido é patente, como já tivemos oportunidade de analisar e afirmar, independentemente da existência ou não do procedimento tributário de liquidação, do qual a presente infração criminal tributária não depende.
Além disso, e independentemente do procedimento tributário de liquidação, foi possível determinar a existência de um dano causado ao Estado/Administração fiscal e proceder à sua quantificação, estando, por isso, inteiramente verificados os necessários pressupostos para julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado no presente processo, com a consequente condenação do arguido/recorrente.
Improcede, assim, na totalidade o presente recurso.
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III - Dispositivo
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigos 513º, nº 1, do CPP, 1º, nº 2 e 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa).
Notifique.
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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
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Porto, 16 de novembro de 2022.
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
João Pedro Pereira Cardoso
_______________ [1] Relatado pelo Desembargador Brízida Martins e disponível em www.dgsi.pt [2] Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Como é sublinhado no acórdão deste TRP, de 2/6/2019 (relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt), “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.” Ou na síntese do acórdão do TRP, de 6/3/2002, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, igualmente disponível em www.dgsi.pt: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”. [3] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (www.dgsi.pt), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número. [4] Cfr., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt. [5] In “Curso de Processo Penal”, Verbo, vol. II, pág. 111. [6] In “A NECESSIDADE DE REFORMAR O SISTEMA DE RECURSOS NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA. O SISTEMA DE RECURSOS EXIGE REFORMAS?”, Reforma do Sistema de Recursos – Setembro 2019 - Ebook do Cej, acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Reforma_Recursos.pdf. [7] Relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira e disponível em www.dgsi.pt. [8] Nesta linha, o acórdão n.º 116/07 do TC julgou inconstitucional a norma do artigo 428.º, n.º, 1 “quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objetivos indicados na fundamentação da sentença objeto de recurso foram colhidos da prova produzida”.
[9] Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4ª edição revista, pág. 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”. [10] Neste sentido, o acórdão do STJ de 29/5/2008 (Relator: Conselheiro Rodrigues da Costa), disponível em www.dgsi.pt.
[11] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cfr., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt). [12] Como é salientado no acórdão deste TRP, datado de 31/10/2018 (e disponível para consulta em www.dgsi.pt). [13] Relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt. [14] Como se refere no acórdão do STJ de 21/03/2003, proc. 024324, relator Conselheiro Afonso Paiva: “A admissibilidade da respetiva alteração (referência à matéria de facto) por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respetiva fundamentação. Assim, por exemplo: a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada; b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram ) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado. c) apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.”. [15] Relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio e consultável em www.dgsi.pt. Também no acórdão do TRP de 9/1/2020, relatado pelo Desembargador Nelson Fernandes e disponível em www.dgsi.pt, é referido que “O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.”. [16] Cfr. o acórdão do TRC, de 24/10/2018 (Vasques Osório, in www.dgsi.pt). Também no acórdão do TRL, de 29/1/2020 (José Alfredo Costa, in www.dgsi.pt), se afirma que “Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando da factualidade vertida na decisão se constata que faltam dados e elementos que, podendo e devendo ser investigados não o foram, sendo de considerar que são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição.”. [17] Exatamente neste sentido, cfr. o acórdão do TRL de 16/10/2019, relatado pela Desembargadora Margarida Ramos de Almeida, disponível para consulta in www.dgsi.pt. [18] Que, como é sabido, estipula que os factos não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000. [19] Relatado pelo Desembargador José Carreto, consultável em www.dgsi.pt. [21] Cf. Rui Marques, “A liquidação do imposto e o processo penal tributário”, in RMP nº 145, ano 37, Jan/Mar 2016, págs. 153 a 173. [22] Cfr, neste sentido, para além do acórdão do TRL, de 16/10/2019, já citado, o acórdão do TRC, datado de 26/2/2014 (Desembargadora Alcina da Costa Ribeiro) e do STJ, datado de 15/9/2010 (Conselheiro Raúl Borges), ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt. [23] No estudo publicado na RPCC (Revista Portuguesa de Ciência Criminal), 6, p. 85 e seguintes. [24] Na análise do tipo legal de crime, seguimos de perto o nosso acórdão datado de 5/2/2020, publicado em www.dgsi.pt. [25] Cfr., neste sentido, Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, ob. cit., p. 90. [26] Cfr., neste sentido, André Teixeira dos Santos, in “O Crime de Fraude Fiscal: Um contributo para a configuração do tipo objetivo de ilícito a partir do bem jurídico”, 2009, páginas 227 e 272. [27] Cfr., neste sentido, André Teixeira dos Santos, obra citada, páginas 131 a 138.