DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE
ACTIVIDADE COMERCIAL
Sumário

I – Relevante para aferir do conceito de “actividade”, para efeitos da causa de dissolução de sociedades prevista no art. 142º, nº 1, al. c), do Código das Sociedades Comerciais, é verificar se a sociedade praticou actos inseridos no âmbito do seu objecto estatutário, mas também actos que, a montante ou a jusante desta actividade, são comuns a todos os sujeitos que intervêm na actividade económica, ou ainda actos instrumentais, preparatórios e organizatórios da actividade.
II – Não foi intenção do legislador abranger na possibilidade de dissolução prevista na referida norma os casos de sociedades que, ainda que tenham parado a sua actividade por dois anos consecutivos, retomaram, entretanto, essa actividade e já não estão inactivas no momento da decisão sobre a sua dissolução.

Texto Integral

Processo nº 7948/19.7T8VNG.P1
(Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 4)

Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Deolinda Varão
2ª Adjunta: Isoleta Costa

*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I AA, residente na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, intentou, em Novembro de 2018, na Conservatória do Registo Comercial de Vila Nova de Gaia, Procedimento Administrativo de Dissolução e Liquidação de Entidades Comerciais, requerendo a dissolução e liquidação administrativas da sociedade comercial por quotas “F..., Lda”, com sede no Lugar ..., freguesia e concelho de Águeda, em virtude de a sociedade, da qual é sócia, não exercer qualquer actividade há mais de dois anos consecutivos: não vendeu mercadorias nem prestou serviços, não adquiriu mercadorias e matérias primas necessárias à sua actividade e não teve gastos com pessoal, com fornecimentos e com serviços, a unidade fabril que possuía está inactiva há vários anos e o prédio onde estava instalada encontra-se devoluto e degradado.
Notificados da pendência do procedimento, pronunciaram-se contra o peticionado BB, CC e DD, herdeiros do sócio EE, entretanto falecido, residentes na Rua ..., Águeda.
Em 02/10/2019 foi proferida decisão pela Senhora Conservadora que declarou a dissolução da sociedade, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 11º do RJPADLEC.
Cada um dos referidos herdeiros interpôs Impugnação Judicial da decisão proferida, no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, pugnado pela sua revogação, invocando sensivelmente os mesmos fundamentos, alegando, além do mais, que a sociedade se encontrava, e encontra, em plena actividade à data da decisão, pois a situação foi regularizada desde o ano de 2018.
Após diversas ocorrências processuais, foram os autos com vista ao Ministério Público, o qual, em 07/04/2022, emitiu parecer no sentido da procedência da impugnação, nos seguintes termos:
«No caso em apreciação, é patente dos autos que os conflitos existentes entre os sócios da sociedade “F..., Ld”, familiares entre si, estarão na génese do ponto a que a sociedade chegou.
No entanto, apesar de se concluir que a sociedade, nos anos de 2016 e 2017, não vendeu mercadorias nem prestou serviços, não adquiriu mercadoria e matérias primas necessárias à sua actividade, não teve gastos com pessoal, com fornecimentos e com serviços, não se pode deixar de considerar que, por outro lado, praticou, ainda assim, actos que, em nosso entender, não podem ser desvalorizados pelo Tribunal.
Assim é que, concretamente, a sociedade cumpriu, nesses anos de 2016 e 2017, obrigações tributárias e procedeu ao depósito das contas dos referidos anos - o que, s.m.o., é demonstrativo da intenção de prosseguir a sua actividade material – além de, embora já em momento posterior, ter tido a actividade inerente à emissão das facturas de vendas cujas cópias foram juntas – e que, embora do ano de 2019 e de valores baixos- não podem deixar de relevar para os efeitos aqui em apreciação.
Tais indícios, que não foram atendidos pela Conservatória de Registo Comercial, e principalmente, o cumprimento das referidas obrigações perante o Estado, constituem, em nosso entender, uma manifestação de que a sociedade sempre pretendeu (e pretende) prosseguir o seu escopo, não se encontrando totalmente inactiva, “apenas aparentemente existente” para os fins previstos no Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março.».
De seguida, foi proferida sentença, em 21/04/2022, na qual se decidiu julgar procedente a impugnação judicial e, em consequência, revogar a decisão proferida pela Senhora Conservadora em 02/10/2019, que declarou a dissolução da sociedade “F..., Lda”.
De tal sentença veio a requerente do procedimento, AA, interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1ª Pelas razões aduzidas nos pontos I a IV das alegações do presente recurso, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, é manifesto que, estando em causa no procedimento administrativo de dissolução e de liquidação da sociedade comercial “F..., Lda”, requerido em 03/11/2018 pela aqui Recorrente/Apelante, o exercício, ou não, de qualquer atividade pela mesma nos anos de 2016 e 2017, nele ficou demonstrado que esta sociedade comercial “não vendeu mercadorias nem prestou serviços, não adquiriu mercadorias e matérias primas necessárias à sua atividade, não teve gastos com pessoal, com fornecimentos e com serviços” nesses anos,
o que resulta das prestações individuais de contas daquela sociedade comercial respeitantes aos exercícios dos anos de 2016 e 2017 depositadas e registadas na competente Conservatória do Registo Comercial, bem como da informação/ofício da Autoridade Para as Condições do Trabalho enviado e junto ao procedimento administrativo em 04/06/2019,
não tendo o que deles resulta sido posto em causa pelo alegado pelos aqui Recorridos/Apelados nos requerimentos que juntaram ao procedimento administrativo em 03/06/2019 e em 02/10/2019 - antes pelo contrário, até confirmam implicitamente o que resulta daqueles documentos -,
pelo que não subsistem dúvidas que a sociedade comercial “F..., Lda” não exerceu qualquer atividade nos anos de 2016 e 2017,
e, como tal, nada existe a apontar à decisão proferida pela Conservadora nesse procedimento administrativo em 02/10/2019, designadamente, à decisão de declarar dissolvida a sociedade comercial “F..., Lda” por aplicação do disposto no Artº. 4º, nº.1, al. c, do RJPADLEC.
2ª) Pelas razões aduzidas nos pontos I a IV das alegações do presente recurso, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, é manifesto que os factos dados como provados na decisão ora recorrida, e que nela são invocados para fundamentar a conclusão de que a sociedade comercial “F..., Lda” não se encontra totalmente inativa, NÃO permitem essa conclusão.
Desde logo, o fa[c]to de, durante os mesmos anos de 2016 e 2017 - bem como nos anos seguintes de 2018 e 2019 -, a sociedade comerc[ia]l “F..., Lda” não ter cessado nem pedido a suspensão da sua atividade em sede de IVA e IRC,
ter entregue à Autoridade Tributária as declarações periódicas de IVA e IRC,
e ter entregue a Informação Empresarial Simplificada relativa a esses anos,
NÃO permite concluir, nem indicia, que a mesma sociedade comercial tenha exercido qualquer atividade durante tais anos,
antes pelo contrário.
o teor das declarações periódicas de IVA e IRC entregues pela sociedade comercial “F..., Lda” à Autoridade Tributária, designadamente, as respeitantes aos anos
de 2016 e 2017, revelam, de forma clara e inequívoca, que a mesma não exerceu qualquer atividade nesses anos,
o mesmo decorrendo do fa[c]to de, como resultou provado, esta sociedade comercial não ter declarado quaisquer trabalhadores ao seu serviço nesses anos.
Por outro lado, e pelas razões já aduzidas em sede de alegações — e que aqui se dão por integralmente reproduzidas -, as cinco vendas efetuadas pela sociedade comercial “F..., Lda” - mais concretamente pelo aqui Recorrido/Apelado CC em seu nome - no período compreendido entre 30/08/2019 e 01/10/2019, NÃO permitem concluir pelo exercício de qualquer atividade por aquela sociedade nos anos de 2016 e 2017,
e nem são bastantes para permitir que a mesma sociedade comercial tenha exercido qualquer atividade no ano de 2019.
3ª) Pelas razões aduzidas nos pontos I a IV das alegações do presente recurso, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, é manifesto que as referidas vendas efetuadas entre 30/08/2019 e 01/10/2019 constitu[í]ram uma tentativa desesperada e isolada do aqui Recorrido/Apelado CC para obstar que fosse declarada a dissolução da sociedade comercial “F..., Lda” no procedimento administrativo que estava a correr termos desde 03/11/2018,
essas vendas não tiveram continuidade - não foi efetuada mais nenhuma depois de 01/10/2019 -, nem resultaram ou deram origem a outros atos de que se possa aferir e concluir pela vontade da sociedade comercial de prosseguir a sua atividade - aquisição de mercadorias/matérias primas necessárias à sua atividade, contratação e gastos com trabalhadores, despesas com fornecimentos (luz, água) e /ou serviços (transportes) necessários à sua atividade -,
pelo que tais vendas, por si só e no contexto em que foram efetuadas, não são bastantes para afastar a conclusão de que a sociedade comercial “F..., Lda” não exerceu qualquer atividade nos anos de 2016, 2017 - os anos que estavam em causa quando requerido o procedimento administrativo de dissolução e de liquidação da mesma -,
assim como não são bastantes para concluir que a mesma sociedade comercial tenha na realidade exercido qualquer atividade nos anos posteriores, designadamente, no período de tempo compreendido entre 30/08/2019 e 01/10/2019,
continuando-se a verificar, tal como sucede relativamente aos anos de 2016 e 2017, os pressupostos de fa[c]to para a aplicação do disposto no Artº. 4º, nº. 1, alínea c), do RJPADLEC,
e, por consequência, para a decisão proferida pela Conservadora em 02/10/2019 de declarar a dissolução da sociedade comercial “F..., Lda”.
4ª) Pelas razões aduzidas nos pontos I a IV das alegações do presente recurso, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, é manifesto que, ao assim não entender, a decisão ora recorrida viola o disposto naquele Artº. 4º, nº. 1, alínea c), do RJPADLEC,
o que, constituindo fundamento bastante para o presente recurso - cfr. Artº. 639º, nº. 2, al. a), do Código do Processo Civil -, determina a revogação da mesma,
e a sua substituição por outra que, julgando improcedente a impugnação judicial interposta pelos aqui Recorridos/Apelados, mantenha a decisão proferida pela Conservadora em 02/10/2019 que declarou a dissolução da sociedade comercial “F..., Lda”.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO,
Deve o presente Recurso de Apelação ser julgado procedente por provado e, em consequência, deve a sentença ora recorrida ser revogada e substituída por outra que mantenha e confirme a decisão proferida pela Conservadora em 02/10/2019 que declarou a dissolução da sociedade comercial “F..., Lda”, assim fazendo V.Exªs. a habitual JUSTIÇA.».
CC apresentou resposta, pugnando por que seja negado provimento ao recurso, devendo ser confirmada a sentença recorrida.
Também BB apresentou resposta, igualmente pugnando por que seja negado provimento ao recurso, devendo ser confirmada a sentença recorrida.
O Ministério Público respondeu ao recurso, defendendo que a decisão recorrida deve “ser mantida nos seus precisos termos, tendo sido feita a devida e correcta interpretação da lei, designadamente do art.º 4º, nº 1, al c) do RJPADLEC”.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), é uma única a questão a tratar:
a) apreciar da existência, ou não, de fundamentos para a dissolução da sociedade “F..., Lda”.
**
Apreciemos então, tendo em conta os factos dados como provados na decisão recorrida (transcrição):
«A. Por decisão proferida pela senhora Conservadora a 2/10/2019, foi declarada a dissolução da sociedade “F..., Lda”.
B. A sociedade “F..., Lda”, com sede em ..., ... Águeda, tem como sócia AA.
C. De 2/11/1995 a 17/10/2019 foi gerente da sociedade EE.
D. A sociedade não cessou a sua actividade em sede de IVA e IRC ou sequer requereu a suspensão da sua actividade em sede de IVA, tendo entregue à Autoridade Tributária as declarações periódicas de IVA e IRC, bem como a Informação Empresarial Simplificada.
E. A sociedade tem procedido todos os anos ao depósito da prestação individual de contas.
F. A sociedade não declarou quaisquer trabalhadores ao serviço nos últimos dois anos.
G. A sociedade procedeu à venda, a 2019/08/30, de materiais à sociedade V..., Unip., Lda, no valor de € 156,38.
H. A sociedade procedeu à venda, a 2019/09/16, de materiais à sociedade V..., Unip., Lda, no valor de € 97,39.
I. A sociedade procedeu à venda, a 2019/09/09, de materiais à sociedade B..., Unip., Lda, no valor de € 40,65.
J. A sociedade procedeu à venda, a 2019/09/23, de materiais à sociedade B..., Unip., Lda, no valor de € 52,73.
K. A sociedade procedeu à venda, a 2019/10/01, de materiais à sociedade B..., Unip., Lda, no valor de € 69,47.».
Da análise do histórico do processo, nomeadamente da matrícula junta em 26/10/2021 (constando no histórico como “informação de base de dados”) retira-se ainda a seguinte factualidade, com relevo para o recurso em apreciação:
1. Da matrícula da sociedade “F..., Lda” consta que o seu objecto social é a indústria de fiação e tecelagem de lãs.
Pretende a recorrente que da factualidade dada como provada decorre a verificação do pressuposto previsto no art. 4º, nº 1, al. c), do R.J.P.A.D.L.E.C. para a declaração de dissolução da sociedade em questão.
O Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais consta do diploma que constitui o Anexo III ao D.L. 76-A/2006, de 29/03.
Entre diversas medidas de simplificação implementadas, “adopta-se uma modalidade de dissolução e liquidação administrativa e oficiosa de entidades comerciais, por iniciativa do Estado, quando existam indicadores objectivos de que a entidade em causa já não tem actividade embora permaneça juridicamente existente. Esta medida é especialmente relevante tendo em conta o elevado número de sociedades comerciais criadas sem actividade efectiva na economia nacional, pois estima-se que existam dezenas, senão centenas, de milhar de empresas a estar nessas circunstâncias. (…). Finalmente, acolhe-se igualmente um procedimento administrativo da competência da conservatória para os casos legais de dissolução e liquidação de entidades comerciais, a requerimento de sócios e credores da entidade comercial” (cfr. Preâmbulo do aludido diploma legal).
Anteriormente a este decreto-lei o procedimento para dissolução de uma sociedade comercial era judicial, pressupondo a instauração de uma acção. A partir do mesmo, esse procedimento passou a ser administrativo, com formalidades simplificadas, embora prevendo a impugnação judicial da decisão do conservador.
Não obstante, o que aqui se regula é o procedimento de dissolução, continuando as causas de dissolução reguladas no Código das Sociedades Comerciais, nos arts. 141º e segs..
No que ao presente caso interessa, prevê-se no art. 142º, nº 1, al. c), do C.S.C. a possibilidade de requerer a dissolução administrativa da sociedade quando esta não tenha exercido qualquer actividade durante dois anos consecutivos.
Esta causa de dissolução já estava prevista na anterior versão do Código das Sociedades Comerciais, simplesmente o prazo de inactividade era de cinco anos.
Tal causa de dissolução constitui fundamento para o início voluntário do procedimento administrativo, por iniciativa de alguma das pessoas indicadas no nº 1 do art. 4º do R.J.P.A.D.L.E.C., estando aí expressamente prevista, nos mesmos exactos termos, na alínea c).
Assim, o foco da questão está em saber o que deve entender-se por não exercer qualquer actividade.
“O que está em causa é uma inactividade de natureza económica, o que não inclui os actos dos sócios que visam cumprir preceitos legais relativos a sociedades activas.
Mais concretamente, a inactividade em questão respeita à exploração das empresas correspondentes em que se subsume o objecto negocial da sociedade. Assim, se a actividade económica a ser exercida se incluir no âmbito da previsão estatutária sobre o objecto, não há lugar a dissolução (…).
Para tal, cumpre verificar, num primeiro momento, se a sociedade fez ou não fez algo; depois, há que analisar se determinados actos e actividades relevam para efeitos da não verificação da hipótese da norma”, tendo presente que “o leque de actuações possíveis da sociedade” abrange também “actos que, a montante ou a jusante da actividade correspondente ao objecto, são comuns a todos os sujeitos que intervêm na actividade económica” e engloba ainda “todos os actos instrumentais, preparatórios e organizatórios da actividade (como a compra de um imóvel para instalar um armazém)”.
“O contrato de sociedade supõe também um especial modo de actuação, para além da indicação de certas actividades - que se analisa no modo de actuação empresarial, na criação de valor acrescentado na vida económica. Este aspecto é importante pois, sem ele, há apenas mera fruição e não actividade económica. Assim, se algo não pode ser qualificado como actividade e modo de actuação para a sociedade no contrato, também não é algo que possa evitar a dissolução da sociedade.” - este, porém, não é “um obstáculo absoluto: se nessa actividade se cria mais-valia, pode ser exercida societariamente - por exemplo, entre aquisição ou formação de empresa e cedência ou exploração cria-se um valor novo e a actividade é precisamente a criação desse tipo de novo valor” (Salomé dos Santos Freitas, Dissolução e Liquidação de Sociedades: Aspectos críticos do regime em vigor, Dissertação de Mestrado em Direito Empresarial, Lisboa, Abril/ 2018, págs. 36/37, acessível para consulta na Internet, no seguinte endereço: https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/26067/1/Dissolu%C3%A7%C3%A3o%20e%20Liquida%C3%A7%C3%A3o%20Aspectos%20cr%C3%ADticos%20Vers%C3%A3o%20Completa.pdf).
Sobre o conceito de “actividade” para este efeito, decidiu-se no Ac. do S.T.J. de 24/01/2002, citado por Abílio Neto, em Código das Sociedades Comerciais, Jurisprudência e doutrina, 2ª ed., Março de 2003, na anotação 24 ao art. 142º, págs. 382 e 383, que aquele “não se traduz na prática de um único acto, mas de uma sucessão de actos, pelo que a prática de um único acto isolado não tem capacidade para, só por si, permitir a conclusão de que a sociedade em causa exerça a actividade para a qual se constituiu” – ainda assim, concluiu-se não haver lugar à dissolução de uma sociedade com a actividade de construção civil, que esteve inactiva durante 4 anos e 11 meses e começou a levar a cabo uma empreitada numa moradia, que terminou cerca de 2 meses depois de se iniciar, por não haver “elementos que permitam concluir que tal construção foi um acto isolado realizado com o único objectivo de interromper o prazo legal”.
Um outro contributo para a interpretação do conceito pode retirar-se da decisão proferida no Ac. do S.T.J. de 22/02/2007, publicado em C.J.S.T.J., tomo 1, pág. 83 – entendeu-se que uma sociedade que cessou a sua actividade principal de moagem em Setembro de 1994, que até 2007 se limitou a constituir em propriedade horizontal o único prédio urbano sua propriedade, a vender algumas fracções desse prédio, a arrendar umas outras e receber as respectivas rendas, e a fazer diligências para transformar em espaço urbano o que é espaço rústico, se limitou a “ir cumprindo" “a valorização e eventual venda de activo”, “caminho explícito para a sua própria extinção”.
Aí se diz que “nada, nestes actos, olhado de um ponto de vista substancial, significa um caminho de empresa, o colocar de uma estrutura organizativa e os necessários meios de produção ao serviço da criação da riqueza”, não lhe correspondendo “um substracto material que traduza uma organização produtiva em movimento”.
Os actos materiais ou jurídicos praticados “já não são o levar à prática do seu objecto social, definido contratualmente, nem mesmo sequer o aproveitamento de uma estrutura organizacional criada com a forma jurídica e com o objecto mencionados para seguir um outro caminho empresarial”.
Ou seja, relevante seria ter uma “actividade nos termos definidos no seu objecto social”, ou “qualquer actividade à margem desse objecto, qualquer actividade de facto como elemento central de uma empresa (…) como "organização de pessoas e bens que tem por objecto o exercício de uma actividade económica em economia de mercado” (…)”.
A aproximação ao conceito, nos termos que resultam da análise acabada de efectuar, tem ainda que ter em conta o princípio da conservação da sociedade que se pode retirar do regime legalmente previsto para a dissolução das sociedades.
Vista a factualidade provada (e que se encontra definitivamente assente) à luz do que acabou de se expender, verifica-se que dela não se pode retirar a conclusão de que a sociedade em causa não exerceu qualquer actividade durante dois anos consecutivos, não sendo para tal suficiente o facto de não ter declarado quaisquer trabalhadores ao serviço “nos últimos dois anos” – não só porque não se sabendo a data exacta do início de contagem destes anos, nem por referência a que data (articulados? decisão da Conservatória? sentença?) a mesma foi considerada, não é possível dizer que se trata de dois anos (24 meses) consecutivos, mas principalmente porque a não declaração de trabalhadores não significa que eles não existam, e ainda que não existam trabalhadores é possível a existência de prestadores de serviços (note-se que a actividade da sociedade é compatível com a utilização de prestadores externos).
Aliás, não é outra a conclusão mesmo considerando a factualidade que foi referida (ainda que na parte que consta epigrafada “Do direito:”) na decisão da Sra. Conservadora (que, embora não conste dos factos dados como provados na sentença, aparenta ter sido aqui dada como adquirida, na medida em que, no tratamento da questão de direito, depois de se fazer referência à mesma, se diz “Contudo, resulta também provado que:”), segundo a qual “fica comprovado pelos documentos depositados nos registos por depósito das prestações de contas dos anos de 2016 e 2017, que a sociedade não vendeu mercadorias nem prestou serviços, não adquiriu mercadoria e matérias primas necessárias à sua actividade, não teve gastos com pessoal, com fornecimentos e com serviços”.
Com efeito, sendo a actividade da sociedade a indústria da fiação e tecelagem de lãs, ou seja o fabrico de materiais em lã, dali não se retira que este fabrico não existiu, como não se retira que aquela não tivesse mercadoria em stock, nem que não tivesse gastos reportados noutros anos que não os exercícios de 2016 e 2017 – note-se que há actividades conexas (de prospecção de mercado, de realização de encomendas, etc.), que não têm relevância contabilista no ano em que são levadas a cabo pois apenas se concretizam em compras e/ou vendas em anos posteriores, ou nem sequer se chegam a concretizar –, e quanto aos gastos com pessoal vale o que já se disse supra.
Portanto, mesmo esta factualidade se afigura insuficiente para retirar a conclusão, prontamente retirada na decisão administrativa, de que “fica demonstrado que a sociedade não exerceu qualquer actividade durante, pelo menos, dois anos consecutivos”.
E ainda que assim não fosse, resultando que a sociedade, para além de ter sempre cumprido com as suas obrigações contabilísticas e fiscais (embora não sejam estas o índice relevante do exercício ou não de actividade por uma sociedade – cfr. nota 98 da página 36 da Dissertação de Mestrado citada), procedeu à venda de materiais em Agosto, Setembro e Outubro de 2019, o que significa que sempre teria que ter esses materiais, fosse em stock, o que implicava a existência pelo menos de anterior gestão de stocks, fosse por os ter fabricado entretanto, ou até adquirido a terceiros a quem tivesse subcontratado o fabrico, sempre ocorre que a mesma terá retomado a actividade (ou até que não deixou de todo de a exercer) e que não se trata aqui apenas da prática de um acto isolado.
Diga-se que não se afigura curial, não tendo sido essa seguramente a intenção do legislador (veja-se a parte anteriormente citada do preâmbulo do D.L. 76-A/2006, de 29/03), que a circunstância de existir uma paragem na actividade de uma sociedade, mesmo por dois anos consecutivos, venha, já passado mais tempo, a levar à dissolução dessa sociedade mesmo tendo esta entretanto retomado a sua actividade, ou estando a retomá-la, podendo ter havido razões para a paragem, por motivos económicos ou outros.
Como se refere na sentença recorrida, a finalidade do legislador é dissolver as sociedades que de facto não existem, não têm efectivamente actividade, existindo apenas formalmente, devendo “analisar-se cuidadosamente os pressupostos do art. 4º, sob pena de se tomar uma decisão formalmente correcta, mas que substancialmente não realiza os fins da justiça”.
Aqui chegados, resta concluir que se afigura não estar demonstrado o fundamento de dissolução da sociedade “F..., Lda” em causa nos autos, tal como se concluiu também na decisão recorrida.
O que determina que não mereça acolhimento a pretensão da recorrente com a apresentação do presente recurso.
*
Em face do resultado do tratamento da questão analisada, é, pois, de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pela requerente e pela consequente confirmação da decisão recorrida.
***
III - Por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
**
Custas da apelação pela recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
*
Notifique.
**
Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
………………………………
………………………………
………………………………
*
datado e assinado electronicamente
*
Porto, 24/11/2022
Isabel Ferreira
Deolinda Varão
Isoleta de Almeida Costa