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EMBARGOS DE EXECUTADO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RESPONSABILIDADE DO FIADOR
DESONERAÇÃO DA OBRIGAÇÃO
DEVER DE INFORMAÇÃO
Sumário
1. A exoneração do passivo restante do devedor principal não extingue a responsabilidade dos fiadores nem os desonera da responsabilidade do pagamento na parte sobrante.
2. No âmbito de aplicação do artigo 653.º CC, o credor não tem de permanecer de «olhos bem abertos» à gestão patrimonial do devedor susceptível de inutilizar a chamada garantia geral. 3. Os fiadores só ficarão desonerados da obrigação contraída caso, por facto positivo ou negativo do credor, não possam ficar sub-rogados nos direitos que a este competem.
4. Uma vez iniciada a quebra de pagamentos por parte do devedor, desde que indiciadora da dificuldade ou impossibilidade económica do devedor cumprir, o credor tem o ónus de informar o fiador.
5. Se o não fizer, o fiador, quando instado para pagar, já eventualmente em processo executivo, pode opor ao credor a excepção de inexigibilidade (parcial) da obrigação exequenda, argumentando com o facto de não lhe ser eficaz o agravamento da dívida posterior ao momento em que razoavelmente deveria ter sido informado da quebra de pagamentos.
6. Se o banco, credor garantido, adquiriu no processo de insolvência do devedor imóvel hipotecado pelo valor de €51.000,00 e se, para salvaguarda das custas do processo e dívidas da massa insolvente e evitar a venda do bem, procedeu ao depósito de 20% do valor da adjudicação, não se justifica considerar que o montante pago a título de custas pelo credor continua ou em dívida pelo devedor.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
O Banco intentou a execução ordinária contra P, C, N e F, com vista a obter a cobrança da quantia de €65.795,76, acrescida de juros vincendos calculados sobre o capital em dívida de €64.978,54.
Deu à execução dois contratos de mútuo com hipoteca celebrados com V, entretanto declarado insolvente, através dos quais emprestou a este as quantias de €79.400,00 e de €30.000,00, e nos quais os executados intervieram na qualidade de fiadores, alegando que o imóvel dado em garantia do pagamento dos mútuos lhe foi adjudicado no processo de insolvência do mutuário, mas que o valor que aí recebeu não foi suficiente para dar integral pagamento ao seu crédito, remanescendo em dívida o capital de €64.978,54 que os executados, interpelados, não pagaram.
Os executados deduziram embargos. Alegam que, só no final de 2019, com a interpelação, é que tiveram conhecimento de que o mutuário tinha sido declarado insolvente e exonerado do passivo restante e que o imóvel dado em garantia do cumprimento dos contratos de mútuo tinha sido vendido; que o requerimento executivo é inepto por o exequente não demonstrar a existência da dívida ou os cálculos matemáticos que conduziram ao valor reclamado; que a fiança que prestaram se extinguiu, em resultado da extinção da obrigação principal decorrente da exoneração do passivo restante do mutuário, da impossibilidade jurídica de sub-rogação, e do facto da fiança não poder exceder a dívida principal, que se mostra reduzida a zero; e que não renunciaram ao benefício do prazo, não foram chamados ao processo de insolvência nem foram interpelados pelo exequente para o que quer que fosse.
Recebidos os embargos, contestou o exequente pugnando pela sua improcedência.
Indeferido o pedido de intervenção principal provocada do mutuário V, que os embargantes haviam requerido, foi realizada audiência prévia, na qual se julgou improcedente a exceção de ineptidão do requerimento executivo, identificando-se o objeto do litígio, enunciando-se os temas da prova e admitindo-se a prova apresentada pelas partes.
Após audiência final, foram julgados os embargos improcedentes e, em consequência, determinado o prosseguimento da execução.
Inconformados, interpuseram os embargantes competente recurso, cuja minuta concluíram da seguinte forma:
«A. O presente recurso é interposto da sentença proferida nos presentes autos, através da qual foram indeferidos os Embargos apresentados pelos Embargantes, aqui Recorrentes e que determinou o prosseguimento da execução.
B. Os Recorrentes não se conformam com a referida decisão, por entenderem que, subjacente à mesma, esteve uma errada apreciação e valorização da prova por parte do Tribunal a quo, bem como uma má aplicação do Direito.
C. De facto, o Tribunal a quo elencou a sua decisão sobre a matéria de facto provada através de catorze pontos, através da qual identificou os “factos com interesse para a decisão da causa”, sendo que alguns pontos não resultaram provados e outros, com interesse, não foram considerados.
D. A premissa fundamental de um título executivo e da instância executiva é a de, cabalmente, de forma segura, objetiva e direta, permitir descortinar exatamente o valor em dívida, o que não se verifica.
E. A decisão final coloca também em crise o instituto da Fiança, materializando-se numa situação de tremenda injustiça material à qual os Tribunais Superiores não poderiam ficar alheios.
F. Com efeito, salienta-se ao Tribunal a quo uma breve enunciação da matéria aqui em causa:
a. Os Recorrentes assumiram a posição de fiadores de um contrato de mútuo, por entenderem que as garantias a ele associadas (hipoteca de imóvel) eram suficientes para cobrir o valor do mútuo;
b. O incumprimento, pelo devedor principal, do contrato de mútuo, antecedeu em quase 8 (oito) anos a primeira notificação aos Recorrentes;
c. Quando os Recorrentes são, pela primeira, notificados do incumprimento do Mutuário, já tinha sido alienado o imóvel que servia de garantia hipotecária ao cumprimento dos contratos de mútuo;
d. Essa garantia hipotecária foi adjudicada à própria Recorrida, por um valor muito inferior ao valor de mercado;
e. Apenas é dado conhecimento aos Recorrentes da insolvência do Mutuário após a declaração de exoneração do passivo restante, ou seja, quando o Mutuário já não era devedor perante a Recorrida do contrato e dos montantes de que os Recorrentes eram fiadores.
f. Por fim, são os Recorrentes condenados ao pagamento da alegada dívida do Mutuário à Recorrida, encontrando-se absolutamente impossibilitados de reclamar esse montante ao devedor principal, anulando-se, efetivamente, as defesas da fiança.
G. O grande thema decidendum dos presentes autos consistia em apurar, por um lado, da exigibilidade e liquidez da obrigação reclamada em sede executiva e, por outro lado, da sobrevivência da fiança à extinção da obrigação principal.
H. O primeiro aspeto decorre, principalmente, da matéria dada como provada e não provada, ao se dar provimento à injustificada tese da Recorrida, em prejuízo das evidências juntas aos autos pelo Recorrente, sendo que o segundo aspeto é, sobretudo, matéria de Direito, a qual se abordará oportunamente.
I. Só no final do ano de 2019, após interpelação da Recorrida, é que os Recorrentes tiveram conhecimento que o Mutuário (i) foi declarado insolvente em 05.12.2011; (ii) o bem hipotecado foi vendido na pendência do processo de insolvência e (iii) no final do processo de insolvência, o Mutuário foi exonerado do passivo restante, encontrando-se, neste momento, absolutamente perdoado quanto a todas as suas dívidas – incluindo a que agora é peticionada nos autos e que (iv) em 22.02.2019, o Mutuário beneficiou da exoneração do passivo restante.
J. No ínterim, mediaram dois períodos muito significativos:
a. De 09.06.2008 a 05.12.2011 – No qual os contratos de mútuo foram cumpridos;
b. De 05.12.2011 a 22.02.2019 – Período em que decorreu a ação de insolvência.
K. Ficou cabalmente demonstrado nos autos, mas não vertido na fundamentação de facto, que os Recorrentes nunca tiveram conhecimento do processo de insolvência e que a recorrida dolosamente omitiu essa informação deles, quando eram fiadores e teriam, naturalmente, o interesse e necessidade de conhecer da interposição do processo de insolvência.
L. Em momento algum no processo, veio a Recorrida indicar cabalmente qual o valor que, tendo por referência os títulos executivos (dois contratos de mútuo), já haviam sido liquidados pelo Mutuário, quanto era devido para cada contrato e o que era devido a título de capital e juros.
M. Consequentemente, nos factos provados com interesse para a decisão da causa nada consta sobre o valor da quantia exequenda.
N. O Tribunal a quo assumiu o Julgador que o valor de referência para efeitos da execução não poderiam ser os valores constantes nos títulos executivos, isto é, os contratos de mútuo, mas sim os valores da reclamação de créditos no processo de insolvência, que não sofreram contraditório do Mutuário e que, em algum momento, poderiam ter sido objeto de impugnação pelos Recorrentes.
O. Ou seja, os Recorrentes eram fiadores de um contrato de mútuo, que serviu de título executivo, mas contra eles aplicou-se apenas o que foi suscitado numa reclamação de créditos de um processo que correu à sua margem.
Ademais,
P. Sucede, porém, que a execução foi interposta também na pendência do processo de insolvência, no qual a Recorrida veio a receber montantes adicionais por conta das dívidas do Mutuário.
Q. O crédito garantido pela Recorrida em sede de processo de insolvência era de €194.294,44, ou seja, muito superior ao valor de €64.978,54 reclamando nos autos.
R. Na pendência do processo, por requerimento junto a 11.05.2022, constataram os Recorrentes que apenas a 07.03.2022 foi encerrada a insolvência do Mutuário, ou seja, muito depois do início da instância executiva, sendo que, segundo a proposta já esboçada pelo Administrador Judicial, a Recorrida receberia, em rateio final, o montante de €10.619,09 para pagar pagamento parcial do crédito.
S. Então, inevitavelmente, este valor teria de ser reduzido à quantia exequenda.
T. Por dizer respeito diretamente a montantes recebidos pela Recorrida, do Mutuário, abrangidos pela fiança dos Recorrentes.
U. Além disso, a partir do momento em que é do conhecimento do Tribunal a quo que, três anos (!) após o início da instância executiva, a Recorrida recebeu montantes cuja origem é – precisamente – para pagamento dos créditos alegadamente garantidos pelos Recorrentes e forçosamente se deverá concluir que a Recorrida não logrou demonstrar o valor em dívida, devendo ocorrer a liquidação da quantia exequenda.
V. O ponto 8 alude, especificamente, ao facto de ter sido apreendida, no processo de insolvência e respetivamente adjudicada, a fração autónoma designada pelas letras DI, a qual foi apreendida no processo de insolvência e adjudicada ao aqui Recorrida pelo valor de €51.000,00, ficando o mesmo dispensado de depositar o preço de €40.800,00, sendo que a diferença, corresponde à caução de 20% do valor da venda, isto é, €10.200,00, o qual é aproximado ao montante a receber pela Requerida no rateio final, sendo evidente a correlação entre ambos.
W. A Recorrida fez seu o imóvel por um valor substancialmente abaixo do valor de mercado, sendo que o Tribunal a quo não pretendeu sindicar a margem de lucro dessa venda, a qual, segundo regras evidentes de Justiça, deveria ser apurada e refletida também naquilo que se considera ser a dívida global do Mutuário.
X. O depoimento de Parte dos 4 Recorrentes demonstrou, através da prova gravada, a sua absoluta ignorância quanto à existência de um processo de insolvência, não foi valorado em sede de Sentença.
Y. Assim, por ser relevante para a boa decisão dos presentes autos, devem ser acrescentados os seguintes pontos à matéria de facto dada como provada:
• «O montante de €10.619,09, utilizado para pagamento parcial do crédito da Recorrida, deverá ser imputado à quantia exequenda, devendo deduzir-se à mesma, não se demonstrando que a mesma foi imputada a outros créditos da Recorrida.»
• «Os Recorrentes nunca foram informados pela Recorrida dos autos de insolvência, sendo que data do incumprimento do devedor principal até Setembro de 2019, nunca foram notificados pela Recorrida.»
Z. Notavelmente, não há menção na Sentença quanto ao depoimento de RGR, testemunha apresentada pela Recorrida, que, na qualidade de gestor do processo dos Recorrentes, revelou que desconhecia a composição da dívida, confessou que apenas em 2019 deu conhecimento aos Recorrentes da existência do incumprimento do mutuário e desconhecia a imputação dos valores recebidos em sede de insolvência.
AA. Assim, por ser relevante para a boa decisão dos presentes autos, devem ser acrescentados o seguinte ponto à matéria de facto dada como provada:
• «Do depoimento da Testemunha RGR, resulta que a Embargada desconhecia, ela própria, a exata composição da dívida dos Embargantes e, bem assim, da imputação dos valores recebidos em sede de processo de insolvência.»
DO DIREITO
BB. Salvo melhor opinião, da leitura atenta de todas as peças processuais e documentos juntos pela Recorrida neste processo, encontra-se absoluta e inteiramente omissa a alegação de factos que permitam, de forma clara, descortinar a forma de cálculo da quantia exequenda.
CC. Evidência clara disso mesmo é o facto de que há duas fontes de obrigação (dois contratos) mas um único valor, global, que é cabalmente apresentado ao longo do processo, tendo a Requerida sempre se mostrado incapaz de o decompor.
DD. O que está em causa é, por isso, a insuficiência do título executivo como meio apto a identificar claramente a fonte da obrigação e o seu valor.
Adicionalmente,
EE. Conforme resulta evidente do exposto supra, houve montantes pagos à Recorrida na pendência desta ação, em consequência dos prosseguimentos dos autos de insolvência, sendo que tais factos, apurados supervenientemente, constituem matéria de modificação dos direitos alegados pela Recorrida e, com efeito, da própria obrigação exequenda.
FF. Como refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido com o n.º 3167/20.8T8FNC-A.L1-7, em 23.11.2021, “Não se tendo alcançado em sede de embargos de executado, a liquidação da quantia exequenda, pode o tribunal determinar, na procedência parcial dos embargos, que a Recorrida o faça em sede de execução, ficando a mesma suspensa até que tal se mostre efetuado.”
GG. Ou seja, deveria o Tribunal a quo ter procedido a uma análise cabal da matéria e procedido a nova liquidação da quantia exequenda em virtude dos factos modificativos do direito apresentados na pendência da ação.
Ademais,
HH. Nos termos do artigo 627.º, n.º 1 do Código Civil, a fiança é uma garantia pessoal de uma obrigação, no qual o fiador assegura, com o seu património, a satisfação do direito do crédito do credor. Atenta a sua natureza e conforme consta do artigo 627.º, n.º 2 do Código Civil, a fiança é acessória da obrigação que recai sobre o principal devedor.
II. A acessoriedade da fiança face à obrigação principal é a pedra de toque do regime das garantias, cujo corolário consta no artigo 651.º do Código Civil, que determina que “a extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança”.
JJ. Conforme refere Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, ao comentar o artigo 627.º do Código Civil, “a extinção da fiança pela extinção da obrigação principal é uma consequência necessária da natureza acessória da garantia”, pelo que sem obrigação principal, não há garantias, porque não há nada a afiançar.
KK. O Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do processo n.º 644/09.5TBOAZ.P1, de 06.07.2010, abordou a questão “de saber se a extinção da obrigação do devedor principal extingue também a obrigação assumida pelo fiador.”, tendo concluído que “neste quadro normativo, apresenta-se correta a decisão recorrida, já que se mostra extinta a obrigação principal – a ser doutro modo, como pretende o apelante, nesta sede, teríamos uma obrigação acessória de fiança totalmente desacompanhada da obrigação principal, que aquela se destinara precisamente a garantir, o que se não coaduna em nada com a natureza e o regime jurídico da própria fiança.”
LL. Por outro lado, não há dúvidas quanto ao efeito extintivo da exoneração do passivo restante, que extingue a obrigação entre Mutuário e Recorrida.
MM. O Mutuário não é devedor da Recorrida, porque a sua dívida foi extinta à luz da exoneração do passivo restante, pelo que, consequentemente, a partir do momento em que que esta obrigação foi extinta por determinação judicial, ope legis, ocorre a extinção das garantias da obrigação – o que inclui, naturalmente, a fiança prestada pelos Recorrentes.
Além disso,
NN. Nos termos do artigo 644.º do Código Civil, “o fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos”. Esta sub-rogação legal permite ao fiador adquirir os poderes que competiam ao credor em relação ao devedor, como se o crédito se transferisse para ele, com todas as garantias e acessórios, nos termos dos artigos 582.º (aplicável ex vi do artigo 593.º) e do artigo 594.º do Código Civil.
OO. É impossível aos Recorrentes subrogar-se à credora junto do Mutuário.
PP. Curiosamente, neste aspeto, veio o Tribunal a quo citar dois Acórdãos proferido no Tribunal da Relação de Guimarães, de 18.01.2006, relativo ao processo n,.º 2421/05-1 e pelo Tribunal da Relação do Porto, proferido a 30.05.2018, mas num contexto diferente, onde se discutia os efeitos da declaração de insolvência vs a fiança.
QQ. Mas o que está em causa é os efeitos da declaração de exoneração do passivo restante versus os direitos de garantia da fiança e a subsistência da fiança, num quadro em que, confessadamente, a Recorrida omitiu aos Recorrentes do incumprimento dos contratos de mútuo e do início do processo de insolvência.
RR. Como refere Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, página 661, ao comentar o artigo 651.º do Código Civil sobre a subrogação, “este direito do fiador não é um direito próprio de regresso (…) Não é um direito novo mas o direito do credor que se transmitiu por sub-rogação, em consequência do cumprimento.”
SS. É um facto imputável ao Credor a impossibilidade dos Recorrentes exercerem os seus direitos de defesa no momento oportuno!
TT. Seguindo o mesmo entendimento, o já referido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.07.2010 refere que “Para além de que se não entenderia como poderia a fiadora pagar o resto da quantia exequenda (donde a devedora principal já saiu) e ficar sub-rogada nos direitos do credor sobre essa devedora, os quais já não existiam, por ter sido a mesma desobrigada do resto da dívida. Pelo que há aqui aplicação daquele já transcrito regime previsto no artigo 653.º do Código Civil, com a consequente desoneração da fiadora da obrigação que assumira.”
UU. Caso os devedores tivessem sido demandados após a prolação da sentença de insolvência e antes da exoneração do passivo, os Recorrentes ainda poderiam exercer a sub-rogação prevista no artigo 644.º do Código Civil – o problema seria o efetivo recebimento.
VV. Mas como nesta fase não há relação jurídica entre Recorrida e mutuário, é juridicamente impossível os Recorrentes sub-rogarem-se ao credor – que, em bom rigor, já não o é.
WW. A impossibilidade da sub-rogação, por facto positivo ou negativo do credor gera a liberação dos fiadores, nos termos do artigo 653.º do Código Civil.
XX. E, efetivamente, o Recorrida apenas se poderá culpar a ele próprio, caso tivesse demandado os Recorrentes em momento atempado.
YY. O que, aliás, até poderia ser do interesse de todas as Partes, já que provavelmente os Recorrentes teriam pago a dívida existente, ficando proprietários do bem hipotecado.
ZZ. O que, obviamente, não se pode admitir é o melhor de dois mundos: a Recorrida beneficia do Plano de Insolvência e de todos os pagamentos durante o período de 5 anos, beneficia do bem hipotecado muito abaixo do valor de mercado e sem conhecimento ou consentimento dos Recorrentes e, finalmente, esgotado o património do mutuário, ainda vai atacar o património dos fiadores.
AAA. Não se pode exigir o cumprimento do fiador – como o faz a Recorrida nestes autos – e, simultaneamente, ser negado ao fiador o direito legal a beneficiar do respetivo cumprimento e fazer sua a posição da Recorrida perante o Mutuário… que já não o é.
BBB. Consequentemente, estabelece o artigo 653.º do Código Civil que “os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem”.
Adicionalmente,
CCC. Caso se considere que a fiança não foi estruturalmente finda em virtude da exoneração do passivo restante, sempre se dirá que a acessoriedade da fiança é igualmente manifestada pelo facto da “fiança não pode exceder a dívida principal nem ser contraída em condições mais onerosas”, como refere o artigo 631.º, n.º 1 do Código Civil.
DDD. Caso, porém, a fiança exceda a dívida principal, “não é nula, mas apenas redutível aos precisos termos da dívida afiançada”, nos termos do artigo 631.º, n.º 2 do Código Civil.
EEE. No caso sub judice, a dívida principal é, neste momento, de 0 € (zero euros).
FFF. Consequentemente, a fiança terá de ser reduzida aos mesmos termos que a dívida principal e, por conseguinte, extinguir-se por si só.
GGG. Pelo que se deverá admitir a presente exceção perentória, pela verificação de factos modificativos dos efeitos jurídicos peticionados pela Recorrida em virtude da redução da fiança e, por conseguinte, nos termos do artigo 576.º, n.º 3 do Código do Processo Civil, serem os Recorrentes absolvidos do pedido.
Finalmente,
HHH. Conforme consta no artigo 634.º do Código Civil, “a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor.”
III. Porém, nos termos do artigo 782.º do Código Civil, “a perda do benefício do prazo não se estende aos co-obrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia.”
JJJ. Assim, os fiadores não renunciaram ao direito ao benefício do prazo, não sendo exigível o pagamento global do valor em dívida.
KKK. Num caso semelhante, o Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 954/13.7TBLSA-C.C1, de 23.01.2018, referiu que “não tendo o fiador renunciado ao benefício do prazo, vigorando o regime do art.º 782º, do CC, e não tendo o Recorrida alegado ou demonstrado a interpelação do fiador (com a indicação do montante em dívida, da data do incumprimento e, sobretudo, do prazo de que o fiador dispunha para proceder ao pagamento), terá de se concluir que a execução deverá prosseguir quanto a este apenas para cobrança das prestações vencidas pelo decurso do prazo e não realizadas pelo devedor principal.”
LLL. É certo que, como já vimos, o caso sub judice tem uma particularidade: é que a dívida já não existe.
MMM. No caso concreto, a perda do benefício do prazo ocorreu com o primitivo incumprimento do Mutuário.
NNN. Era nesse momento, em 2011 ou 2012 (facto que nem se apurou) que os Recorrentes poderiam ter beneficiado do prazo e das condições do mútuo.
OOO. Ficou demonstrado, antes, que apenas em 2019 tiveram conhecimento do incumprimento do Mutuário, sendo que, como resulta do facto n.º 10, não lhes foi dada a oportunidade de se substituir, nos exatos termos, ao Mutuário.
Face ao exposto,
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO DOUTAMENTE SUPRIDOS POR V.EXAS, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, PROCEDENDO-SE À MODIFICAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, NOS TERMOS SUPRA ENUNCIADOS, E, CONSEQUENTEMENTE, TAMBÉM À REVOGAÇÃO DA PARTE DECISÓRIA DA SENTENÇA RECORRIDA E, EM CONFORMIDADE COM A NOVA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA, BEM COMO ATRAVÉS DE UMA CORRETA APLICAÇÃO DO DIREITO, ABSOLVER-SE O RECORRENTE DOS PEDIDOS, ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA!».
Não houve contra-alegações.
***
Constituem questões decidendas saber se:
i) deve ser alterada a decisão de facto;
ii) os títulos dados à execução são insuficientes;
iii) se as fianças se extinguiram pela extinção da obrigação principal;
iv) se as fianças se extinguiram pela impossibilidade da sub-rogação;
v) se a fiança deve ser reduzida a zero euros;
vi) se os embargantes beneficiam da falta de informação do banco sobre a situação económica do mutuário.
***
São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes no primeiro grau:
1- Em 09.06.2008, o exequente concedeu a V dois financiamentos, um de €79.400,00 e outro de €30.600,00;
2- Nessa sequência, o exequente e V outorgaram, nesse mesmo dia, no Cartório Notarial de Sintra, o instrumento notarial intitulado de “Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca e Fiança” e o respetivo “Documento Complementar”, cuja cópia foi junta com o requerimento executivo (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido), através do qual aquele V se confessou devedor daquela quantia de €79.400,00, que se obrigou a devolver ao exequente em prestações mensais, de capital e juros, durante 397 meses, nos termos definidos naquele documento complementar;
3- E outorgaram, no mesmo Cartório Notarial e na mesma data, o instrumento notarial intitulado de “Mútuo com Hipoteca e Fiança” e respetivo “Documento Complementar”, cuja cópia também foi junta com o requerimento executivo (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido), através do qual V se confessou devedor daquele montante de €30.600,00, que se obrigou a devolver ao exequente em prestações mensais, de capital e juros, durante 397 meses, nos termos definidos naquele documento complementar;
4- Para garantia do integral cumprimento do acordado, constituiu V hipoteca voluntária sobre a fração autónoma designada pelas letras “DI”, correspondente ao rés-do-chão A, com arrecadação n.º .., na cave, do prédio urbano sito na Rua …da freguesia de Algueirão-Mem Martins;
5- Os executados outorgaram nos contratos de “Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca e Fiança” e de “Mútuo com Hipoteca e Fiança”, declarando “Que afiançam todas as obrigações que” V “assume a título do presente empréstimo e que na qualidade de fiadores e como principais pagadores se obrigam perante o Banco ao cumprimento das mesmas, renunciando desde já e expressamente ao benefício de excussão prévia, bem como ao prazo previsto no art.º 782 do Código Civil.”;
6- Em 05.12.2011, V foi declarado insolvente por sentença proferida no Proc. n.º 8803/11.4TCLRS, que correu termos no 5.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Loures;
7- Em 12.01.2012, o exequente apresentou reclamação de créditos naquele processo de insolvência onde, para além do mais, reclamou o capital de €76.231,48 quanto ao contrato de “Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca e Fiança” e o capital de €29.774,61, acrescido de €227,55 de juros, relativamente ao contrato de “Mútuo com Hipoteca e Fiança”;
8- A aludida fração autónoma, designada pelas letras “DI”, foi apreendida no processo de insolvência e adjudicada ao aqui exequente pelo valor de €51.000,00, ficando o mesmo dispensado de depositar o preço de €40.800,00;
9- Em 22.02.2019, no referido Proc. n.º 8803/11.4TCLRS, foi proferido despacho de exoneração do passivo restante de V;
10- No final de setembro do ano de 2019, o exequente remeteu a cada um dos executados, através de correio registado com aviso de receção, os escritos cujas cópias foram juntas com o requerimento executivo, datados de 23.09.2019, com o assunto em epígrafe de “V MLS n.º … Processo de Insolvência N.º … Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Loures, …”, com o seguinte teor: «Como é do conhecimento de V.Exa., o Banco Comercial Português, S.A. concedeu a V, em 09 de junho de 2008, um financiamento sob a forma de Contrato de Crédito Hipotecário, internamente designado(a) por MLS n° …. Ora, acontece que, o Sr. V foi declarado insolvente por sentença de 03 de Julho de 2012, no âmbito do processo identificado em assunto, e que, de acordo com o estipulado no número 1 do artigo 91° do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, "a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente(...)”. Assim, vem o Banco…, por este meio, interpelar V. Exa., na qualidade de fiadora da responsabilidade assumida, para proceder ao pagamento do montante de capital de 64 978,54€, acrescido dos respetivos juros e imposto de selo, no prazo máximo de 30 dias a contar da presente data. Findo este prazo, o Banco procederá à remessa do dossier para Contencioso, com vista à cobrança coerciva do seu crédito, via que sempre procura evitar face a gravidade que da mesma advém».
11- Estas comunicações foram recebidas pelos executados;
12- Em 17.12.2021, foi elaborado mapa de distribuição e rateio no Proc. n.º …, dele constando que ao aqui exequente foi reconhecido um crédito garantido de €194.294,44, tendo a receber no rateio as quantias de €6.782,17 e de €3.746,77, ficando em dívida a quantia de €115.205,50 para integral pagamento do seu crédito;
13- Em 07.03.2022, foi tal processo declarado encerrado “ao abrigo do disposto no artigo 230.º, n.º 1, al. e), e 239.º, n.º 6, do CIRE”;
14- Em 16.03.2022, o Administrador de Insolvência nomeado no Proc. n.º … transferiu para o exequente as quantias de €6.775,93, €3.740,53 e €102,63, num total de €10.619,09, para pagamento parcial do seu crédito.
***
Da alteração decisão de facto
Pretendem os recorrentes que se aditem os seguintes factos à matéria assente:
• «O montante de €10.619,09, utilizado para pagamento parcial do crédito da Recorrida, deverá ser imputado à quantia exequenda, devendo deduzir-se à mesma, não se demonstrando que a mesma foi imputada a outros créditos da Recorrida.»
• «Os Recorrentes nunca foram informados pela Recorrida dos autos de insolvência, sendo que data do incumprimento do devedor principal até Setembro de 2019, nunca foram notificados pela Recorrida.»
. «Do depoimento da Testemunha RGR, resulta que a Embargada desconhecia, ela própria, a exata composição da dívida dos Embargantes e, bem assim, da imputação dos valores recebidos em sede de processo de insolvência.»
A matéria referente aos €10.619,09 está contemplada no n.º 14 dos factos provados, sendo que o restante referido, isto é, a imputação dessa quantia e a redução da quantia exequenda resulta de um juízo dedutivo que deve ser alicerçado em outros factos e não autonomizado como matéria factual autónoma.
Relativamente ao terceiro ponto não foi feita qualquer prova nesse sentido. O funcionário do Banco, RR, encarregado de proceder à cobrança da dívida juntos desembargantes afirmou que:
i) só acompanhou a parte final do processo de insolvência;
ii) o embargante P não se mostrou surpreendido com a dívida do mutuário e dispôs-se num primeiro momento a pagá-la;
iii) não sabe se os embargantes foram contactados pela Banco antes de julho de 2019, data em que enviou uma carta ao embargante P (outra carta anterior à referida em 10).
A circunstância de desconhecer ou de não se lembrar (note-se que muitas das suas respostas negativas resultaram de não ter à sua disposição, na altura do depoimento, mais elementos, e não que o Banco não os dispusesse), v.g. de quantas prestações foram pagas pelo mutuário, taxas de juro, quanto foi arrecadado pelo Banco no processo de insolvência, etc., mas sim o valor em dívida nos dois contratos, não permite concluir da forma pretendida pelos recorrentes.
Por outro lado, resulta do depoimento desta testemunha, que explicou que enviou uma primeira carta aos embargantes P e N, a reclamar a divida em falta do mútuo, carta anterior á referida no ponto 10, que só o executado P o contactou e que foi este que lhe deu o novo contacto do executado N que tinha entretanto mudado de casa.
Estes factos coincidem ponto por ponto com os depoimentos dos embargantes.
Com base nestes elementos de prova e no texto das cartas de 12 de Julho de 2019 enviadas aos embargantes, considera-se assente que só em julho de 2019 os embargantes tiveram conhecimento de que Banco lhes reclamava uma dívida de €64.978.00 acrescida de juros e de imposto de selo deixada pelo insolvente V referente aos acordos aludidos de 2 a 5.
Só nesta parte procede a pretensão dos recorrentes.
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Da fiança.
1. Enquadramento geral
i) Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora (artigo 601.º CC, serão deste código os artigos ulteriormente citados sem diferente menção).
ii) Está aqui assegurada ao credor uma garantia geral constituída por todos os bens que constituem o património do devedor.
iii) Não raras vezes, o credor não se contenta com esta garantia, e exige uma garantia mais forte. De entre estas, até há não muito tempo atrás, dava-se preferência à constituição pelo devedor de uma garantia real sobre um bem do seu património, maxime sobre um imóvel (hipoteca).
iv) Acontece que se tem assistido a uma depressão ou despromoção das garantias reais, justificada não só por razões económicas, mas também em virtude da erupção dos privilégios creditórios e da extensão do direito de retenção.
v) Diante desta realidade, os credores acautelam a sua posição exigindo do devedor «uma solução externa que lhes permita encontrar no futuro meios de satisfação do seu crédito, para além do património que constitui a chamada garantia geral» (Manuel Januário Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, Coimbra, 2000:44).
vi) Como explica este autor, «as providências delineadas pelo credor, com a adesão do devedor e/ou de um terceiro para aumentar a probabilidade de realizar o crédito são, grosso modo, de dois tipos: ou através da adjunção de um novo (devedor) responsável que possa responder com o devedor (agora principal) pelo cumprimento da obrigação ou pelas consequências do incumprimento – passando esse novo responsável a responder pela sua vinculação, reportada à vinculação do devedor principal, com todo o seu património ou através de facultar por um terceiro – ou pelo próprio devedor – ao credor de um objecto de satisfação (…) mas com a especificidade de ser um objecto de satisfação preferencial , na medida em que (…) tal faculdade surge acompanhado de um título de preferência» (Ibidem:46).
No primeiro tipo de situações estamos diante de uma garantia pessoal, que é um fac-simile da garantia geral (Paulo Cunha).
vii) Elucida Januário Gomes: «característico das garantias pessoais é o facto de as mesmas serem manifestação de uma intercessão – do «surgimento» de um intercedente entre o credor e o devedor. Quando o reforço da chamada garantia geral é conseguido através da adjunção ou adição de um novo responsável pessoal – e, logo, patrimonial (…) - o credor passa a ter um novo devedor que responde, a final – numa perspectiva económica – pela mesma dívida, que garante, a final, a satisfação do mesmo crédito. Para o Direito passa a existir uma nova relação obrigacional, ao lado da relação cujo crédito é garantido, relação essa que tem uma particular ligação à relação que está no «terreno» e cuja conformação depende do tipo de garantia prestada. Ao lado do devedor primário, no sentido cronológico do termo, passa a existir um devedor secundário do mesmo credor. A diversidade de vínculos acarreta em si a inconfundibilidade entre os débitos - uma é a dívida primária, outra é a dívida do garante – e os créditos – um é o crédito primário, outra é o crédito de garantia» (ibidem:58).
viii) De entre as garantias pessoais, com as referidas características, destaca-se a fiança, que o legislador descreve no artigo 627.º, 1.
ix) É usual sublinhar o carácter acessório da fiança (artigo 627.º, 2).
A acessoriedade na fiança, como garantia ligada ao crédito, é, em primeiro lugar, uma técnica de ligação do crédito ao específico direito de garantia derivado da fiança; é o direito acessório estar conformado pelo direito principal e não, como na subsidiariedade, o poder ser exercido depois de um outro o ter sido; é a manifestação da dependência de direito que se manifesta sobretudo na invocabilidade das excepções derivadas da obrigação principal (artigo 637.º, 1) e no âmbito da responsabilidade (artigo 631.º, 1 e 634).
x) O FIADOR É UM DEVEDOR e não um mero responsável; ou dito de outro modo, com as palavras do autor que temos estado a seguir: «o fiador é um devedor e que, sendo-o, é também responsável» (ibidem: 121 e 123).
xi) Discute-se o que é que o fiador deve, ou seja, em que consiste o crédito do credor face ao fiador.
Recorrendo novamente à posição de Januário Gomes dir-se-á que «assumindo que o fiador é um devedor e que a fiança corporiza um vínculo obrigacional diverso daquele que liga o credor ao devedor, forçoso é concluir que na complexa operação de fiança envolvendo o credor, o devedor e fiador, são identificáveis dois créditos centrados no mesmo sujeito e dois débitos, pertencentes (o principal) ao devedor e (o secundário) ao fiador» (ibidem:124).
xii) Deriva que o fiador não se vincula a cumprir o débito do devedor principal, que «apesar do nexo funcional existente entre as duas obrigações, da permanente correlação entre ambas, da projecção qualitativa da obrigação do devedor sobre a do fiador, este é um devedor diverso daquele, nessa medida autónomo, devendo a sua própria prestação, que tem causa própria e origem num título diverso»; «devendo a sua própria prestação, o fiador é devedor de um débito próprio , independentemente da moldagem desse débito pela existência e evolução do débito principal» ; «utilizando a linguagem milenar que vem do direito romano , o fiador, em virtude da assunção fidejussória de dívida, passa a dever o mesmo (o idem) que deve o devedor – que não aquilo (id) que por este é devido – com as diferenças posicionais resultantes de o assuntor ser um devedor secundário (prestador de garantia, no caso) e de a sua obrigação ser acessória relativamente à obrigação principal (ibidem:130/131). Este o sentido da «obrigação pessoal» perante o credor a que se refere o artigo 627.º, 1. «O credor, ao exigir a prestação do fiador, faz actuar o seu direito de crédito; não o direito de crédito que (ele mesmo) tem para com o devedor, mas o direito de crédito de garantia» (ibidem:138).
xiii) O que se diz não significa, porém, que, verificado o incumprimento do devedor não haja, dado o paralelismo das obrigações, incumprimento do fiador. Pelo contrário: «o estado da prestação a cargo do devedor reflecte-se ao estado da prestação a cargo do fiador. Se o devedor, em consequência da sua mora, deve a prestação acrescida de indemnização moratória, o fiador deve exactamente o mesmo ainda que esteja apto a demonstrar a não verificação, quanto a si próprio, de algum dos requisitos da mora». (ibidem: 140/141).
2. Concretização
2.1. Da insuficiência dos títulos dados à execução
Entendem os recorrentes que os títulos dados à execução são inaptos para identificar claramente a fonte de obrigação e o seu valor.
Vejamos se lhe assiste razão.
Nos embargos que deduziram à execução, os recorrentes invocaram que o requerimento executivo é inepto, por não esclarecer conveniente como alcançou o exequente o valor que considera estar em dívida.
O tribunal, na audiência prévia que teve lugar no pp dia 13 de janeiro, pronunciou-se sobre esta matéria da seguinte maneira: «Quanto a esta matéria, estatui o art.º 724.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Civil, que, no requerimento executivo, dirigido ao tribunal, o exequente, para além do mais, deve expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo. A omissão desta obrigação acarreta a recusa do requerimento por parte do agente de execução ou o seu ulterior indeferimento liminar ou rejeição oficiosa, caso o agente de execução não o tenha recusado (art.ºs 725.º, n.º 1, al. c), 726.º, n.º 1, al. b) e 734.º, do mesmo diploma legal). Se a obrigação exequenda for uma obrigação causal, como é o caso, a causa de pedir da ação executiva são os factos constitutivos da obrigação, exigindo-se neste caso sempre a alegação da causa debendi. Ora, no caso, verifica-se que o exequente alegou a causa de pedir. Pode entender-se que o fez de forma insuficiente. Porém, tal insuficiência de alegação não determina o indeferimento liminar por ineptidão do requerimento, mas apenas a possibilidade de o juiz poder convidar o exequente a suprir as irregularidades ou insuficiências de alegação, como decorre do disposto no n.º 4 do art.º 726.º do Código de Processo Civil. Não ocorre por isso a invocada ineptidão». Agora os recorrentes voltam a invocar a insuficiência do título, que constitui fundamento para o indeferimento liminar do requerimento executivo ex artigo 726.º, 2, a) do CPC. Além de já ter havido pronúncia sobre esta matéria, não impugnada, entende-se que o título é insuficiente «quando, tendo sido apresentado um título executivo, a obrigação exequenda nele não conste» (José Lebre de Freitas et alii, Código de Processo Civil, Anotado, 3.ª ed., Vol. 3.º, Almedina, Coimbra, 2022:440).
É patente que dos títulos dados à execução -dois contratos de mútuo com hipoteca celebrados com Vítor Manuel Ramos Cunhago Ribeiro, através dos quais emprestou a este as quantias de €79.400,00 e de €30.000,00- consta a obrigação dos recorrentes derivada da fiança.
2.2. Da extinção da fiança pela extinção da obrigação principal
Defendem os recorrentes que a partir do momento em que a obrigação principal foi extinta à luz da exoneração do passivo restante e por determinação judicial, ocorre a extinção das garantias da obrigação, incluindo as fianças prestadas pelos embargantes. Quid juris?
Dando por assente a individualidade da obrigação fidejussória perante a obrigação principal e apuradas as relações ente elas, nos termos sobreditos, importa agora considerar alguns dos efeitos que a extinção da obrigação principal tem sobre o débito fidejussório e também alguns dos meios de defesa do fiador.
A extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança (artigo 651.º). Esta proposição normativa compreende-se bem: ela é a consequência necessária da natureza acessória da garantia (artigo 627.º). Forçoso é, para que a extinção se verifique, que o devedor cumpra integralmente a prestação.
Por outro lado, além dos meios de defesa que lhe são próprios, o fiador tem o direito de opor ao credor os aqueles que competem ao devedor, salvo se forem incompatíveis com a obrigação do fiador (artigo 637.º,1).
Conclui Januário Gomes, na sua tese de doutoramento várias vezes citada, que este artigo «encontra explicação no facto de a prestação fidejussória ser uma prestação-sósia da prestação padrão. A projecção da obrigação principal na obrigação fidejussória manifesta-se global e complexivamente, passando, assim, a fazer parte da posição jurídica do fiador o arsenal de meios de defesa que vão pertencendo sucessivamente ao titular da prestação-padrão» (ibidem:1257).
De entre os meios do devedor extensíveis ao fiador podemos referir o caso julgado versado no artigo 635.º, 1: o caso julgado entre credor e devedor não é oponível ao fiador, mas a este é lícito invocá-lo em seu benefício, salvo se respeitar a circunstâncias pessoais do devedor que não excluam a responsabilidade do fiador.
Anotam Pires de Lima e Antunes Varela que a razão de ser deste artigo e da doutrina do artigo 522.º é igual: «como o fiador, neste caso, não interveio na lide, não pôde defender-se da pretensão do credor, e não lhe deve poder ser oposto, consequentemente o caso julgado. Já se compreende, porém, que o fiador invoque em seu benefício, aproveitando-se da defesa do devedor, visto a solução nada ter de injusta em relação ao credor» (Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil, Anotado, 4.ª ed., Vol I, Coimbra Editora, Coimbra, 1987:652/653).
Não se vê razão que impeça que o fiador se aproveite do caso julgado relativamente à exoneração do passivo restante.
Todavia, essa invocação tem de ser conjugada com o que dispõe o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
O artigo 245.º, 1 deste diploma dispõe: A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º.
Preceitua esta regra: as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.
Catarina Serra explica que do que trata esta norma «é de salvaguardar os direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou garantes dos efeitos de duas das típicas providências com incidência no passivo (como comprova o artigo 196.º, n.º 1, al. a) do CIRE), eventualmente concedidas ao insolvente no âmbito do plano: o perdão e a redução dovalor dos créditos. Por outras palavras: o perdão concedido ao insolvente não extingue a responsabilidade do condevedor ou garante e a redução do valor da dívida do insolvente não desonera o condevedor ou garante da responsabilidade do pagamento na totalidade.
Desviando-se ligeiramente da regra predecessora do artigo 63.º do CPEREF, a norma do artigo 217.º, 4 do CIRE concede hoje alguma tutela aos interesses dos credores.
O que bem se compreende: estas são as (únicas) situações em que, no caso contrário (isto é, no silêncio da lei), o credor perderia, de uma penada, os dois patrimónios responsáveis pela obrigação, ficando-lhe – total (na hipótese de extinção) ou parcialmente (na hipótese de redução) – vedada a possibilidade de realizar o seu direito, seja às custas do condevedor ou garante» («Nótula sobre o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE (O direito de o credor agir contra o avalista no contexto da insolvência)», Estudos dedicados ao Prof. Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, 2011:381/382).
Pode, pois, concluir-se que, no caso sujeito, a exoneração do passivo restante não extingue a responsabilidade dos embargantes/fiadores nem os desonera da responsabilidade do pagamento na parte sobrante.
2.3. Da extinção da fiança por impossibilidade de sub-rogação
Afirmam os recorrentes que ficaram desonerados ex artigo 653.º, da obrigação que contraíram porquanto ficaram impossibilitados de exercer a sub-rogação prevista no artigo 644.º.
Imputam essa impossibilidade ao credor, em virtude de no seu entender este lhes ter omitido o incumprimento dos contratos de mútuo e o início do processo de insolvência e só depois de beneficiar do resultado deste processo ter instaurado esta execução contra os fiadores.
O fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos (artigo 644.º).
Por seu turno, o artigo 653.º preceitua: Os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem.
O primeiro grau, ao analisar se houve liberação por impossibilidade de sub-rogação, opinou: «Da redação desta norma [artigo 653.º] deriva, conforme tem vindo a ser entendido pela doutrina e pela jurisprudência de forma praticamente unânime, que a extinção da fiança pressupõe um facto voluntário (ação ou omissão) do credor afiançado que inviabilize a sub-rogação do fiador nos direitos que lhe assistem. Assim, só quando a impossibilidade de sub-rogação do fiador derive de um facto imputável ao credor, é que ocorrerá a extinção da fiança. Exemplo de um facto omissivo do credor que leva o fiador a perder a possibilidade de ficar sub-rogado nos direitos do credor é a circunstância deste não reclamar o seu crédito no processo de insolvência, pois que daí deriva a perda pelo fiador da possibilidade de, na eventualidade de cumprir a obrigação, se sub-rogar nos direitos do credor. Neste caso, ficará, pois, o fiador desonerado da fiança prestada.
(…)
Podemos assim concluir que a insolvência do devedor principal e a sua exoneração do passivo restante em nada contendem com a sub-rogação do crédito do credor primitivo, traduzindo-se, tão só, numa eventual impossibilidade de cobrança do crédito sub-rogado.
E que, nos termos do art.º 653.º do Código Civil, os fiadores só ficarão desonerados da obrigação contraída caso, por facto positivo ou negativo do credor, não possam ficar sub-rogados nos direitos que a este competem.
Ora, no caso, o credor, aqui exequente, reclamou o seu crédito no processo de insolvência, crédito esse que foi reconhecido, graduado, e parcialmente pago pelo produto da venda do imóvel dado em garantia do cumprimento dos créditos, não ocorrendo nenhum facto voluntário, positivo ou omissivo, do credor que tenha inviabilizado a sub-rogação dos fiadores, aqui embargantes, nos direitos que lhes assistem.
E a circunstância dos embargantes não terem tido oportunamente conhecimento da declaração de insolvência do mutuário não é imputável ao exequente, sobre quem não recaía qualquer obrigação de os avisar desse facto, tanto mais que a declaração de insolvência é pública.
Com efeito, os credores não identificados no requerimento da apresentação à insolvência e outros interessados são citados por edital, com prazo de dilação de cinco dias, afixado na residência do devedor e no próprio tribunal, e por anúncio publicado no portal Citius (art.º 37.º, n.º 7, do CIRE)».
Estamos de acordo com esta posição. Aliamos a ela, a autoridade científica de Januário Gomes, que elucida: «…entendemos que o credor não tem um dever para com o fiador de zelar pela solvabilidade do devedor, tendo em vista a futura recuperação do crédito por parte do fiador, quando sub-rogado. Centrando-nos no âmbito de aplicação do art.º 653, é irrelevante que o credor «feche os olhos» à gestão patrimonial do devedor ou mesmo à alienação de bens, norteada, tal qual objectivamente interpretável, pelo propósito de inutilizar a chamada garantia geral. Sem prejuízo de a posição de fiador poder ser, eventualmente, titulada por outra via, o que nos parece seguro é que tais omissões do credor não põem em causa a consistência jurídica, mas apenas económica, do crédito. Pressuposto base de aplicação do regime plasmado no art.º 653 é que o fiador não possa ficar sub-rogado nos direitos do credor. Ora, nenhuma impotência patrimonial superveniente do devedor, impede que o fiador, cumprindo, fique sub-rogado na posição do credor – no direito de crédito. Certo que o fiador terá, então, dificuldade, se não mesmo impossibilidade, em obter a satisfação do seu crédito; no entanto uma tal situação poderia eventualmente ter sido prevenida pelo fiador recorrendo, em tempo, ao direito à liberação ou prestação de caução…» [artigo 648.º] (Ibidem:930).
Não se justifica assim a ampla censura feita pelos recorrentes ao comportamento do credor.
2.4. Da redução da fiança
Alegam ainda os recorrentes que como no caso sujeito a dívida principal é de €0 a fiança terá de ser reduzida ex artigo 632.º, 2, aos mesmos termos que a dívida principal, isto é, considerar-se extinta.
Ora, como veremos melhor não se demonstra que não subsista montante de dívida, pelo que cai pela base o raciocínio dos embargantes.
2.5. Do benefício do prazo
Finalmente, os recorrentes afirmam que a perda de benefício do prazo por banda do devedor não se estendeu aos recorrentes, sendo certo que verificando-se o incumprimento do mutuário em 2011 ou 2012 só em 2019 tiveram conhecimento desse incumprimento. Deve por isso aplicar-se ao caso vertente o disposto no artigo 782.º.
Terão razão?
Como é sabido e reiteradamente afirmado, o regime do artigo 781.º, não dispensa a interpelação do devedor para desencadear o vencimento imediato das prestações vincendas, e que pode ser afastado por vontade das partes (artigo 405.º), não se aplica aos fiadores, conforme decorre do artigo 782.º, a menos, como é o caso, que os garantes tenham renunciado ao benefício dessa norma.
Esta renúncia não implica, porém, que o credor tivesse ficado dispensado de informar os fiadores «dessa fase central e decisiva da vida da obrigação, que é o seu vencimento» (Januário Gomes, ibidem:946).
Já se viu, no ponto 1 supra, que o fiador está contratualmente ligado ao credor.
O que não se viu e agora importa pôr em destaque é o que acontece normalmente, segundo as regras de experiência, nas relações entre os fiadores e os bancos, e que se ajusta ao presente caso (só não dizemos que se ajusta «como uma luva», porque não se prova a relação existente entre os fiadores e o mutuário).
«Frequentemente, os bancos exigem fianças para garantia de cumprimento das obrigações assumidas pelo devedor principal. Como é sabido, pelo menos nos empréstimos concedidos a particulares, as fianças exigidas são prestadas, na maioria dos casos, como um «favor», e quase como um «pró-forma», para efeitos de o parente ou amigo obter o crédito. Nestes casos, é frequente a seguinte «prática»: se o devedor paga pontualmente, ao longo de todo o tempo clausulado para o pagamento ao banco, o fiador nunca mais é «recordado» de que prestou uma fiança; se, ao invés, o devedor deixa de cumprir, o fiador vem, de facto, a ter conhecimento da situação de incumprimento, mas só meses ou anos após o início do desrespeito pelo programa prestacional traçado, quando, entretanto, e graças também à prática de capitalização de juros, a dívida subiu em espiral. As consequências de uma tal situação para a esfera patrimonial do fiador são óbvias: por não ter sido informado logo após – ou um tempo razoável após – o incumprimento do devedor, a eventual garantia hipotecária existente já não é suficiente para «cobrir» toda a dívida; por outro lado, o fiador, que se fosse avisado e intimado para pagar «em tempo» teria suportado o sacrifício económico, não está já em condições de o fazer, sem eventualmente arruinar a sua vida e a dos seus familiares» (Januário Gomes, Ibidem:961).
O direito não pode ficar indiferente a este dado da experiência jurídica.
Aderindo à posição deste civilista, diremos que «uma vez iniciada a quebra de pagamentos por parte do devedor, desde que, pela sua frequência, seja objectivamente indiciadora da dificuldade ou impossibilidade económica do devedor cumprir – ou do propósito de não cumprir – o credor tem o ónus de informar o fiador. Se o não fizer, este, quando instado para pagar, já eventualmente em processo executivo, pode opor ao credor a excepção de inexigibilidade (parcial) da obrigação exequenda (art.º 813.º, al. h) CPC, hoje artigo
729.º, g)), argumentando com o facto de não lhe ser eficaz o agravamento da dívida posterior ao momento em que razoavelmente deveria ter sido informado da quebra de pagamentos» (ibidem:962).
Note-se que não se trata de exigir que o credor interpele o fiador, quando este elegeu as garantias oferecidas pelo devedor para satisfazer o seu crédito, mas sim de cumprir um dever acessório de conduta perante quem a ele está também ligado por um contrato (Ibidem:947-952).
Prova-se que, só em julho de 2019, os embargantes tiveram conhecimento de que Banco lhes reclamava uma dívida de €64.978.00, acrescida de juros e de imposto de selo deixada pelo insolvente V referente aos acordos aludidos de 2 a 5.
E isto, apesar de o devedor ter sido declarado insolvente por sentença proferida em 5.12.2011 e em 12.01.2012 o banco ter reclamado créditos nesse processo.
Não é conforme aos seus deveres de conduta nem à boa fé que deve reger as relações entre os contraentes esta atitude do credor, pelas razões expostas.
Não é razoável exigir aos embargantes que suportem o agravamento da dívida posterior ao momento em que razoavelmente deveriam ter sido informados da quebra de pagamento, que, no caso, perante os dados de facto assentes só pode situada cerca de 12.01.2012.
Nesta data o fiador não estava em mora. Quem se constituiu em mora foi o banco que omitiu o seu dever de informar os fiadores da quebra de pagamento por parte do devedor principal.
O credor incorre em mora quando não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação (artigo 813.º) sendo certo que durante a mora, a dívida deixa de vencer juros, quer legais, quer convencionais (artigo 814.º, 2).
Na insolvência do devedor principal, o banco arrecadou o valor de €51.000,00 com a adjudicação do imóvel dado em garantia pelo devedor.
Expliquemos a razão pela qual dizemos que é este o valor a levar em conta nestes embargos e não o de €40.800,00.
Preceitua o artigo 165º do CIRE que aos credores garantidos que adquiram bens integrados na massa insolvente e aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, é aplicável o disposto para o exercício dos respectivos direitos na venda em processo executivo.
É portanto aplicável ao caso sujeito o disposto no artigo 815º do Código de Processo Civil.
Este normativo permite, no n.º 1, que o credor com garantia sobre o bem adquirido seja dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem a receber.
Discute-se como se deve configurar a adjudicação dos bens apreendidos ou penhorados ao credor garantido. Para uma corrente trata-se de dação em cumprimento; para outros de uma compra e venda (José Lebre de Freitas et alii, Código de Proceso Civil, Anotado, 3.ª ed., Vol. 3.º, Almedina, Coimbra, 2022:732/733).
Parece-nos adequado seguir a segunda posição.
João Castro Mendes não hesita em dizer que «a adjudicação de um bem é uma modalidade de venda judicial que se realiza sobre proposta prévia de aquisição do mesmo bem pelo exequente, ou por credor reclamante com garantia sobre ele, à vista de todo ou de parte do respectivo crédito» (Direito Processual Civil, III Vol., AAFDL, 1986:461).
Por sua vez, José Lebre de Freitas opina que «dada a configuração da adjudicação como um caso de venda executiva, o apuramento do preço desta com total independência do montante do crédito do adjudicatário e o regime vigente quanto à dispensa do depósito do preço, não estamos tanto em face duma dação em cumprimento (…) como dum negócio jurídico autónomo gerador de compensação» (A Acção Executiva, 7.ª ed., Gestlegal, Coimbra, 2017: 385, nota 8).
Quem deve suportar as custas desta venda?
Sobre a garantia de pagamento das custas rege o disposto no artigo 541.º do CPC, que consagra a regra que manda sair precípuas as custas do produto dos bens liquidados.
O que quer isto dizer, explica-nos bem Alberto dos Reis: «quer dizer que feita uma liquidação judicial de bens, antes de se dar qualquer destino ao produto da liquidação há-de tirar-se desse produto a quantia necessária para pagamento total das custas» (Código de Processo Civil, Anotado, 3.ª ed., Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1949:247).
Sendo o pagamento aos credores efectuado por meio de adjudicação, que, como vimos, é uma modalidade de venda, e saindo as custas precípuas, ou os credores adjudicatários procedem ao pagamento voluntário das custas da execução, ou o executado tem de o realizar (Salvador da Costa, As Custas Processuais, 8.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009:40).
Ou dito de outro modo: «Visto que os credores só têm direito a receber o que sobejar do pagamento das custas, a adjudicação dos bens ou dos seus rendimentos pressupõe que as custas já estão pagas; fazendo sair afinal o pagamento dos valores que recebem ou tem de obter-se previamente, mediante a venda de bens, a importância necessária para esse efeito» (José Alberto dos Reis, op. cit: 250).
No caso sujeito, o banco, credor garantido, adquiriu o imóvel hipotecado pelo valor de € 51.000,00.
No entanto, para salvaguarda das custas do processo e dívidas da massa insolvente e evitar a venda do bem, o recorrido procedeu ao depósito de 20% do valor da adjudicação.
Parece-nos que nada justifica dizer que o montante pago a título de custas pelo credor continuou em dívida pelo devedor.
O banco instaurou a execução para obter o pagamento de €67.795,76 quando só podia reclamar dos fiadores € 55.006,90.
Nunca purgou a mora. Reclamou dos embargantes/fiadores, «tarde e a más horas», montante que só em parte lhe era devido. Não lhe são devidos os juros reclamados.
Ao montante de capital há que abater os €10.619,09 transferidos para o exequente, conforme informação/requerimento de 1.05.2022.
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Pelo exposto, acordamos em julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida que se substitui por outra que julga parcialmente procedente o recurso e ordena o prosseguimento da execução pela quantia de €44.387,90.
Custas por embargantes e embargado, na proporção de 2/3 e 1/3 respectivamente.
Lisboa, 06.12.2022
Luís Correia de Mendonça
Maria Amélia Ameixoeira
(#) Maria do Céu Silva
(#) Com o seguinte voto de vencido:
«Resulta do requerimento executivo que a exequente imputou ao capital em dívida a quantia de €40.800,00.
Na fundamentação do acórdão, pode ler-se:
“Na insolvência do devedor principal, o banco arrecadou o valor de €51.000,00 com a adjudicação do imóvel dado em garantia pelo devedor. … é este o valor a levar em conta nestes embargos e não o de €40.800,00.”
Discordo. Sendo a adjudicação do bem ao credor garantido uma venda geradora de compensação, como salientado na fundamentação do acórdão, o produto da venda do bem satisfaz o crédito do credor garantido na medida do preço que ele foi dispensado de depositar. Na fundamentação do acórdão, pode ler-se:
“Não é razoável exigir aos embargantes que suportem o agravamento da dívida posterior ao momento em que razoavelmente deveriam ter sido informados da quebra de pagamento, que, no caso, perante os dados de facto assentes só pode situada cerca de 12.01.2012.”
Contudo, conforme resulta do requerimento executivo, a exequente só exigiu juros sobre € 64.978,54 desde 30 de setembro de 2019.
Na fundamentação do acórdão, pode ler-se ainda:
“Nunca purgou a mora. Não lhe são devidos juros.”
Contudo, resulta do ponto 10 da matéria de facto provada que, no final de setembro do ano de 2019, a exequente informou os fiadores do vencimento das obrigações do insolvente.
Assim, e tendo em consideração que, à data da sentença recorrida, já a exequente havia reduzido o crédito exequendo em conformidade com o recebimento ocorrido na pendência da ação executiva a que alude o ponto 14 da matéria de facto provada (cf. requerimento apresentado na execução a 11 de maio de 2022), confirmaria a sentença recorrida».