PRINCÍPIO DA PLENITUDE DA ASSISTÊNCIA DO JUIZ
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
Sumário

I - O princípio da plenitude da assistência do juiz significa que a sentença - que atualmente engloba a decisão sobre a matéria de facto e de direito -, deve ser proferida pelo juiz que assistiu a todos os atos de instrução realizados durante a audiência final.
II - A audição do registo fonográfico dos depoimentos prestados naquela audiência não garante nem preenche, em primeira instância, o princípio da plena assistência do juiz.
III - Ainda que as partes tenham sido ouvidas previamente sobre a possibilidade de a sentença ser proferida por um juiz, que não o que presidiu à audiência final, e não tenham deduzido oposição, esta sua atitude é irrelevante, uma vez que não se trata de matéria na livre disponibilidade das partes.

Texto Integral

Processo n.º 81852/19.2YIPRT.P1

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Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto,

I- Relatório
1- I..., Ldª intentou procedimento de injunção, convolado em ação declarativa especial, contra AA e BB, pedindo que estes sejam condenados a pagar-lhe a quantia de 8.454,33€, sendo 6.000,00€ de capital, 972,33€ de juros de mora, 1.380,00€ de IVA e 102,00€ de taxa de justiça.
Isto porque, em síntese, os RR. não lhe pagaram a remuneração acordada num contrato de mediação imobiliária que com ela celebraram para a venda de um imóvel que identifica.
2- Contestaram os RR., rejeitando este pedido porquanto, em resumo, não foi a intervenção da A. que originou a venda do dito imóvel.
Daí que peçam a improcedência desta ação.
3- A A. respondeu pedindo a improcedência da oposição dos RR.
4- Terminados os articulados, foi, em seguida, no dia 24/05/2021, realizada a audiência final, à qual presidiu a Mª Juiz de Direito, Drª CC.
5- Depois de conclusos os autos para sentença, foi, posteriormente, no dia 11/05/2022, lavrado termo de cobrança dos autos, no qual se consignou que essa cobrança era devida ao facto daquela Mª Juiz se encontrar de atestado médico desde o dia 21/02/2022 e tendo em vista à apresentação dos autos ao Mº Juiz, Dr. DD.
6- Feita essa apresentação, foi, no dia 12/05/2022, proferido o seguinte despacho:
“Ao ora signatário foi atribuída a prolação de sentença nos presentes autos por pedido da Exmª Srª Juiza Presidente da Comarca do Porto efectuado junto do CSM.
Uma vez que já se mostra realizada a audiência de julgamento nestes autos e por forma a evitar atraso na tramitação processual (sendo, pois, proferida sentença com base na gravação da audiência de julgamento realizada nos autos) convido os ilustres mandatários das partes para, em 5 dias, ao abrigo dos princípios da economia processual, agilização processual e adequação formal (vide arts. 130º, 6º e 547º do CPC) a informarem se aceitam que seja proferida sentença com recurso à gravação da audiência de julgamento (evitando-se, assim, a repetição do julgamento) – sendo o silêncio tido como aceitação tácita quanto a essa situação”.
7- Notificado este despacho às partes, nada foi requerido ou alegado.
8- Seguidamente, no dia 31/05/2022, pelo referido Mº Juiz, foi proferida sentença que termina julgando a presente ação totalmente improcedente e absolve os RR. do pedido.
9- Inconformada com esta sentença, dela recorre a A., finalizando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
“1.A sentença recorrida é nula, dado que, como se pode constatar pela análise dos presentes autos, a audiência de julgamento foi dirigida pela Exm.ª Juiz de Direito, Sr.ª Dr.ª CC e a sentença recorrida foi proferida pelo Exm.º Juiz de direito, Sr. Dr. DD, sem que tenha sido dado cumprimento ao disposto n.º 1 do artigo 605.º do C.P.C. que consagra o “princípio da plenitude da assistência do Juiz”.
2.Acresce que, embora a sentença tenha sido proferida após a notificação de um despacho que de modo algum dava cumprimento ao referido normativo processual, de acordo com o referido despacho terá sido elaborada com recurso á gravação da audiência de julgamento requerida pela Autora, hipótese que o artigo n.º 1 do artigo 605.º do C.P.C, não contempla, até porque é sabido e sobejamente referido pelos Tribunais da Relação em recursos interpostos sobre matéria de facto, que a audição do ocorrido em audiência, exclui o visionamento das feições e das posturas das partes e das testemunhas, o que, não raras vezes, torna tal meio insuficiente para formar um juízo cabal sobre a prova gravada.
3. Apenas com base nas declarações de parte dos Réus /Recorridos, não deverão ser considerados como provados os FP 17, 18, 19, 20, 21, 22 e 23 que constam da matéria de facto que em A) da sentença recorrida.
4. Isto porque, embora para prova do alegado pelos Réus, a sentença recorrida tenha referido ter considerado as declarações de parte dos próprios Réus alegadamente conjugadas com prova documental, constata-se que a única prova documental que os RR juntaram aos autos foram os contratos de mediação que celebraram com a I… e com outras 3 mediadoras, o que em nada contrariou o alegado pela Autora que, para além de também ter juntado aos autos o contrato em questão onde claramente tinha sido estipulado o regime de não exclusividade, nunca afirmou que o contrato de mediação tinha sido celebrado em regime de exclusividade.
5. Na verdade, para além dos referidos contratos de mediação, os RR não juntaram qualquer outro documento ou arrolaram alguma testemunha que pudessem comprovar o por eles alegado, pelo que, como fundamentação para a produção de prova a toda esta matéria, só pode concluir- se que a sentença recorrida considerou apenas e tão só… as declarações de parte dos próprios Réus!
6.A Autora/recorrente dispensa-se de juntar aos autos transcrição das referidas declarações de parte pois ainda que os Réus, nas suas declarações, tivessem reproduzido, ipsis verbis, o por eles alegado na oposição segundo a estratégia que a Ilustre Advogada destes delineou para a sua defesa, de modo algum tal matéria deveria ter resultado provada sem que as referidas declarações fossem complementadas por outros meios de prova, que os RR nem sequer indicaram.
7.No que respeita á fundamentação da prova considerada como produzida aos FP supra referidos, verifica-se que ela não é consistente na medida em que, analisando o que aí consta a fls 9, não podemos deixar de perguntar, como é que a sentença pode ter considerado coerente e credível um depoimento segundo o qual uma proposta de 90.000€ não E... suficiente para pagar uma hipoteca de 80.000€, ainda que tal implicasse o pagamento de uma comissão mínima de 6.000€+IVA?!
8.Tal como é manifesta a inexistência de qualquer análise á luz das regras da experiência inerente a contratos de mediação imobiliária, na fundamentação expressa a fls 10 da sentença recorrida, designadamente quando aí foi considerado que o facto de na ficha de visita a interessada, poderia fazer coma que a tal visita não teria sido essencial para decisão de comprar o imóvel, sabendo-se que tal interessada acabou por comprar o mesmo imóvel com a mesma “sala pequena” que este tinha.
9.Embora não se entenda qual é a convicção do tribunal para a qual terá caminhado o depoimento da testemunha EE, arrolada pela Autora, a sentença recorrida já pretendia antecipar, apenas se pretende esclarecer que a menção, na ficha de visita, de um aspecto que menos agradou aos interessados (sala pequena), nenhuma relevância pode ter na essencialidade da referida visita para a opção pela compra do imóvel, se efetivamente esse imóvel acabou por ser adquirido pela referida interessada, se a sala do imóvel que acabaram por adquirir, continuou a ter as mesmas dimensões que tinha quando foi feita a visita com a E..., pelo que as considerações transcritas, mais uma vez demonstram que, distintamente do referido na sentença recorrida, a análise da matéria de facto, não pode ter sido feita á luz da experiência que deve presidir nos contratos de mediação imobiliária, ou sequer á geral experiência de vida.
10. No que respeita á decisão sobre a matéria de direito, consta-se pela prova produzida pela Autora aos FP 6, 7, 8, 9 e 13, que esta cumpriu a obrigação de encontrar os interessados que acabaram por formalizar o contrato mediado, prevista no artigo 2.º da Lei 15/2013 e na clausula 2.ª do Contrato de mediação que os Réus celebraram com a Autora.
11.Isto porque, a prova produzida pela Autora aos FP 6, 7, 8, 9 e 13, independentemente da procedência do recurso sobre a matéria de facto supra interposto, deverá ser considerada como suficiente para provar o nexo de causalidade entre a visita ao imóvel e a troca de propostas de alienação e a conclusão do negócio e ao consequente direito da Autora á remuneração contratada, cuja prova, no regime contratual de não exclusividade, efectivamente incumbe á mediadora e que, distintamente do considerado na sentença recorrida, a Autora provou.
12. Acresce que, embora nos termos do disposto no artigo 19.º da Lei 15/2013, a Mediadora só com a conclusão do negócio tenha direito á sua remuneração, tal não implica que a referida conclusão seja obrigatoriamente acompanhada pela mediadora, até porque, muitas vezes, para evitar o seu pagamento, compradores e vendedores se conluiam para esconder desta a realização do negócio, o que, obviamente, impede a mediadora de formalizar o negócio e, na verdade, o negócio visado pelo exercício da mediação contratada entre Recorrente e Recorridos foi concluído com a escritura de compra e venda celebrada em 11.05.2017, escassos 4 meses depois da primeira visita dos compradores ao imóvel.
13.Pelo exposto, constata-se que a Autora cumpriu a sua obrigação contratual, geradora do direito de receber a correspondente remuneração e que tal direito ao recebimento já se venceu, pelo menos na data da celebração da escritura e que tal deverá ser suficiente para prova do nexo de causalidade adequada entre a actividade realizada pela Autora e a conclusão do negócio que comprovadamente se realizou com as pessoas que, em 5.01.2017, visitaram o imóvel com a E... e que através da Autora/recorrente trocaram propostas de alienação do imóvel mediado.
14- Lamentavelmente, no mercado imobiliário português há uma tendência para concluir o negócio mediado sem a intervenção das mediadoras, depois de através delas os clientes terem conseguido interlocutores para o negócio, sendo que tal acontece porque, por um lado, o vendedor tenta evitar o pagamento da remuneração, como foi o caso dos autos e, por ter plena consciência de tal facto, o comprador tem a expectativa de conseguir melhor preço para o negócio sem a intervenção da mediadora, o que manifestamente aconteceu nos presentes autos, pois se analisarmos os números constatamos que o preço de 88.500€ corresponde, aproximadamente ao preço de 95.000€ mencionado no contrato de mediação que os RR pretendiam obter pelo imóvel, depois de descontada a comissão mínima de 6.000€, o que, desde logo seria suficiente para “desmontar” a versão que os RR contaram na sua oposição e na qual, o tribunal de 1.ª instância, ingenuamente, acreditou.
15. Neste contexto criam-se as condições ideais para a existência de conluio entre vendedores e compradores para esconder da mediadora a realização do negócio, pelo que é de assinalar, por relevante, toda e qualquer ligação entre aqueles e algum documento que esta tenha conseguido obter, como é o caso da visita do comprador ao imóvel, que ficou comprovada através da ficha de visita junta aos autos, bem assim como a proposta de compra apresentada pelos compradores e a contraproposta apresentada pelos Réus, sempre através da I… (vide doc. n.º 4 junto com a resposta ás excepções).
16. Pelo exposto, negar o direito á remuneração em casos como o presente em que a Autora até conseguiu provar o nexo de causalidade através dos documentos supra referidos, mais do que injusto para a empresa de mediação que desenvolveu o seu trabalho sem depois poder cobrar-se da efectiva utilidade que o mesmo acabou por ter para os seus clientes, ora Réus, incentiva os clientes das mediadoras em geral, a não cumprirem as obrigações assumidas nos contratos de mediação celebrados em regime de não exclusividade.
17. Na verdade, provado que, graças á actividade da Autora, o imóvel dos Réus foi visitado por quem acabou por o comprar e que, através daquela foram apresentadas propostas de alienação, tal facto, deve ser considerado nexo de causalidade bastante, tal como é considerado no douto Acórdão proferido por este Tribunas da Relação em de 13.05.2014.
18. Acresce que não fazendo qualquer sentido que, ainda que o recurso interposto sobre a matéria de facto não proceda, se considere que a visita feita ao imóvel com a E... não foi essencial, apenas porque a respectiva ficha de visita mencionou um ponto do imóvel de que os interessados não terão gostado tanto, se, como se constatou, tais interessados acabaram por adquirir o imóvel, apesar desse detalhe que não lhes teria agradado, se manter como antes.
19.Tal como também não faz sentido que, ainda que o recurso interposto sobre a matéria de facto não proceda, a sentença recorrida considere juridicamente relevante para excluir o referido nexo de causalidade entre a actividade da empresa e ao conclusão do negócio visado pelo contrato mediado, o reduzido prazo de 4 meses que mediaram entre a visita e a formalização do negócio que dependia de um crédito á habitação ou mesmo das condições inerentes ao contrato de mediação, ou seja, o facto de pagar ou não a comissão á mediadora, o que, se fosse considerado relevante teria efeitos perversos no mercado da mediação imobiliária.
20. Por tudo o exposto, os Réus/Recorridos deverão ser condenado a pagar á Autora a remuneração contratada pelo que se torna imperioso alterar a sentença recorrida pois, a não se entender assim e a tornarem-se efectivas e publicas decisões como aquela de que ora se recorre, dificilmente as mediadoras conseguirão ser remuneradas pelo serviço que prestam e pelo trabalho que desenvolvem, pois o facto de um tribunal aceitar, ingenuamente, que uma visita que determinados interessados fazem a um imóvel com determinada mediadora, e a posterior troca de propostas de alienação entre os interessados e os proprietários, sempre feitas através da mediadora, em nada contribui para o facto de esses mesmo interessados acabarem por adquirir o imóvel em questão, fomenta o desrespeito dos contratos de mediação por parte dos clientes das mediadoras, com o consequente aparecimento de novas situações semelhantes á que ora se analisa e a degradação da ética no mercado da mediação imobiliária.
VI-NORMAS VIOLADAS: A sentença recorrida violou o disposto no n.º 1 do artigo 605.º do C.P.C., n.º 1 do artigo 2.º e al. b) do n.º 1 do artigo 19.º do DL 15/2013 de 15.06 e art. 805.º e ss do C.C e ainda o 342.º e 344.º do C.C”.
Termina pedindo que a sentença recorrida seja anulada por ter sido proferida em violação do Principio da Plenitude da Assistência do Juiz; e, caso assim não se considere, que a mesma sentença seja revogada, julgando procedente o presente recurso em qualquer uma das suas dimensões.
10- Os RR. responderam começando por pedir a retificação do lapso de escrita constante do ponto 23 dos Factos Provados, de modo que aí, onde se lê que o distrate implicava o pagamento de 80.000,00€, deve passar a constar 88.000,00€.
Por outro lado, defendem que a A. atua em abuso de direito ao vir agora suscitar a nulidade da sentença recorrida por violação da violação do princípio da plenitude do juiz.
E quanto ao mais, pugna pela confirmação do julgado, uma vez que não ocorrem os fundamentos esgrimidos pela A. para a modificação do mesmo.
11- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Mérito do recurso
A- Sendo o objeto dos recursos delimitado, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil (CPC)], cinge-se esse objeto, neste caso concreto, a saber se:
a) A sentença recorrida deve ser anulada por violação do princípio da plenitude da assistência do juiz.
b) Deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto;
c) Estão reunidos os requisitos para o reconhecimento à A. do direito de crédito de que a mesma se arroga titular.
Em complemento, deve ainda apreciar-se se ocorre o erro de escrita identificado pelos RR.
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B- Fundamentação
a) Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
1. No dia 19 de Dezembro de 2016, a autora I..., Ldª (AGÊNCIA ... DA “E...”) e os réus AA e BB, celebraram acordo reduzido a escrito, que por estes foi assinado, intitulado de «contrato de mediação imobiliária», com a referência nº ..., que, entre o mais, se regia pelas seguintes cláusulas: «Clausula 1.ª -Identificação do imóvel: O segundo contratante é proprietário e legítimo possuidor da fração autónoma destinada a habitação, com tipologia T2, uma área total de 92 m2, sito na Av. ..., ..., Bloco E, 2º dt frente, na freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia. Cláusula 2.ª – Identificação do negócio: A mediadora obriga-se a diligenciar conseguir interessado na compra pelo preço de 95.000,00€ (noventa e cinco mil euros). Cláusula 4.ª - Regime de Contratação: 1. O segundo contratante contrata e mediadora em regime de não exclusividade; Cláusula 5.ª -Remuneração: A remuneração só será devida se a mediadora conseguir interessado que concretize o negócio visado pelo presente contrato, nos termos e com as exceções previstas no art.º 19.º, da Lei 15/2013. O segundo contratante obriga-se a pagar à mediadora, a título de remuneração: A quantia de 5% calculada sobre o preço pelo qual o negócio é efetivamente concretizado, acrescida de IVA à taxa legal de 23%, não sendo essa quantia inferior a 6.000,00€ (seis mil euros), acrescida do IVA à taxa legal de 23%; (…) Cláusula 8.ª – Prazo de duração do contrato: O presente contrato tem uma validade de 12 (doze) meses contados a partir da data da sua celebração, renovando-se automaticamente por iguais e sucessivos período de tempo, caso não seja denunciado por qualquer uma das partes contratantes, através de carta registada com aviso de receção ou outro meio equivalente, com antecedência mínima de dez dias em relação ao seu termo (…) – vide contrato de mediação imobiliária junto aos autos, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.
2. Por “TÍTULO DE COMPRA E VENDA E MÚTUO COM HIPOTECA”, outorgado a 11 de Maio de 2017, na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, os réus declararam vender a FF e GG, pelo valor de 88.5000,00€, a fração autónoma destinada a habitação, com tipologia T2, uma área total de 92 m2, sito na Av. ..., ..., Bloco E, 2º dt frente, na freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrita sob o nº ... na 1ª Conservatória do registo Predial de Vila Nova de Gaia, tendo os compradores aceitado tal aquisição - vide “TÍTULO DE COMPRA E VENDA E MÚTUO COM HIPOTECA” , cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.
3. Após a celebração do acordo escrito referido em 1, a A. começou a diligenciar a promoção do negócio divulgando o imóvel, designadamente na Internet; junto das 170 agências da “E...” de todo o país; na montra da agência, onde esteve alguns dias em Dezembro de 2016 e ainda em Fevereiro e Março de 2017; na Revista Proprietário Nacional, que tem uma tiragem de mais de 100.000 exemplares e distribuição em todo o país; na página do Facebook da aqui A., em janeiro e Fevereiro de 2017.
4. A A. também promoveu a venda do referido imóvel, através da atividade dos seus vendedores e dos de outra agência da E... que, com o objetivo de conseguir comprador para o mesmo, o mostraram a interessados que pretenderam visitá-lo.
5. Um dos quais, na sequência de uma visita efetuada em 28-01-2017, apresentou proposta no valor de 90.000,00€, que não foi aceite pelos requeridos.
6. A “R... Unipessoal, Ldª”, agência da E..., ..., foi contactada por FF, que pretendia comprar um T2+1 ou T3.
7. Na sequência desse contacto, em 5-01-2017, GG (namorada do referido FF) visitou o imóvel com a mencionada agência da E..., ....
8. Tal como consta da respetiva Ficha de Visita, subscrita nesse dia, incluindo pela referida GG e pela aqui R. BB, aquela interessa salientava ter-lhe agradado a localização do imóvel e os acabamentos, apenas tendo gostado menos da sala, que considerou pequena; sendo que nesse documento (“Ficha de Visita”) consta, para além do mais, que o proprietário reconhecia que «as obrigações que assumiu através do contrato de mediação imobiliária celebrado com a E... serão efetivas se vender o imóvel ao potencial comprador, independentemente da data em que a venda seja concretizada» - vide “Ficha de Visita” junta aos autos, datada de 5-01-2017, onde consta, para além do mais, como cliente “GG”, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.
9. A “R... Unipessoal, Ldª”, da rede E..., ..., devidamente identificada na Ficha de Visita referida em 7, também aí declarou que o imóvel objeto da presente ficha de visita “foi angariado pela Agência E... através do ... ... celebrado em 2016-12-19…» - vide “Ficha de Visita” junta aos autos, datada de 5-01-2017, onde consta, para além do mais, como cliente “GG”, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido.
10. A interessada GG comunicou à agência da E..., ..., com a qual tinha feito a referida visita, que, depois de ter falado com o namorado FF, tinham concluído que o imóvel não lhes interessava dado que não dispunha de quarto de apoio no qual pudessem fazer um escritório.
11. Dado que a referida agência manteve contactos regulares com os interessados, em baril de 2017, a interessada GG informou que já tinham comprado um imóvel.
12. E quando em Abril de 2017, a comercial da aqui A. HH, contactou o aqui R. para agendar outra visita ao imóvel, aquele disse-lhe que não autorizava a visita.
13. Os compradores identificados em 2 são a referida interessada GG e o seu namorado FF.
14. A aqui A., em 23-11-2017, enviou aos aqui RR. carta a exigir o pagamento da remuneração a que entendia ter direito.
15. Apesar dos RR. terem recebido tal carta em 29-11-2017, até à data não liquidaram tal montante.
16. Nos anos de 2016 e 2017, os aqui RR. celebraram vários contratos de mediação imobiliária.
17. Os aqui RR. afixaram uma placa no imóvel, com a indicação de que o mesmo se encontrava à venda, tendo os eu contacto telefónico para eventuais contactos.
18. Em Março de 2017, o aqui R. foi contactado por uma pessoa do sexo masculino que referiu ter visto a placa referida e se podia visitar o imóvel.
19. Essa pessoa, acompanhada da sua namorada, foram visitar o imóvel e no decurso dessa visita afirmaram terem gostado do imóvel e que tinham interesse em adquiri-lo.
20. Os interessados referidos perguntaram qual era o preço da venda, bem como se era negociável, tendo os mesmos informado que era de 95.000,00€, mas que era negociável.
21. Uns dias mais tarde, os referidos interessados voltaram a visitar o imóvel e comunicaram que estavam interessados efetivamente em adquiri-lo mas que tinham necessidade de recorrer ao crédito bancário.
22. Dias mais tarde, os interessados informaram o R. que havia sido aprovado o crédito bancário mas que a avaliação tinha ficado abaixo do que esperavam e que teriam de negociar o preço.
23. Ao fim de algumas negociações, os interessados apresentaram uma proposta de 88.500,00€, que os RR. aceitaram uma vez que o imóvel estava onerado com uma hipoteca, cujo distrate implicava o pagamento de cerca de 80.000,00€.
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b) Na mesma sentença não se julgou provado que em Abril de 2017, o aqui R. tenha dito à comercial da A. que já haviam celebrado um contrato-promessa.
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c) Análise dos fundamentos do recurso
Começa por nele estar em causa, como vimos, a questão de saber se, por a sentença recorrida ter sido proferida por outro juiz que não aquele que presidiu à audiência final, foi violado o princípio da plenitude da assistência do juiz.
Este princípio, como assinalam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[1], “é um corolário dos princípios da oralidade e da apreciação da prova (…): para a formação da livre convicção do julgador, este terá de ser o mesmo ao longo de todos os atos de instrução e discussão da causa realizados em audiência”. E significa, em suma, que, salvo casos excecionais, a sentença (que hoje engloba a decisão da matéria de facto e de direito – artigo 607.º, do CPC) deve ser proferida pelo juiz que assistiu a todos os atos de instrução e discussão havidos ao longo da audiência final[2].
A razão de ser deste principio é simples: centrando-se, por regra, os atos de instrução e apreciação da prova na audiência final, é nela que também é posto em prática o principio da imediação, mediante a assistência do juiz a esses atos; designadamente, a produção dos depoimentos testemunhais, as declarações e depoimentos de parte, a exibição de reproduções cinematográficas ou de registos fonográficos e os esclarecimentos dos peritos aí prestados (artigo 604.º, n.º 2, als. a) a d), do CPC). Como refere Alberto dos Reis[3], o que se passa oralmente na audiência de julgamento “só pode ser captado por quem assista, do princípio ao fim, a todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência. Tal assistência é condição absolutamente imprescindível do poder de julgar; não pode decidir a matéria de facto quem não presenciou os actos sobre que há-de assentar a decisão”.
E, assim, no atual regime, a sentença, que, como dissemos, engloba a decisão sobre a matéria de facto e de direito, deve ser proferida pelo juiz que tenha assistido à audiência final.
Evidentemente que esse juiz pode falecer, ficar impedido (temporária ou permanentemente) de assistir a essa audiência ou ainda ser transferido, promovido ou aposentado. Mas, nessas hipóteses, aplica-se a disciplina prevista no artigo 605.º do CPC, nos termos do qual:
“1- Se durante a audiência final falecer ou se impossibilitar permanentemente o juiz, repetem-se os atos já praticados; sendo temporária a impossibilidade, interrompe-se a audiência pelo tempo indispensável, a não ser que as circunstâncias aconselhem a repetição dos atos já praticados, o que é decidido sem recurso, mas em despacho fundamentado, pelo juiz substituto.
2- O juiz substituto continua a intervir, não obstante o regresso ao serviço do juiz efetivo.
3- O juiz que for transferido, promovido ou aposentado conclui o julgamento, exceto se a aposentação tiver por fundamento a incapacidade física, moral ou profissional para o exercício do cargo ou se for preferível a repetição dos atos já praticados em julgamento.
4- Nos casos de transferência ou promoção, o juiz elabora também a sentença”.
Há, portanto, mesmo nestas hipóteses, sempre a preocupação do legislador de assegurar a coincidência entre o juiz que profere a sentença e aquele que preside aos atos de produção de prova na audiência final. Até porque, encerrada esta audiência e concluso o processo para sentença, se o juiz não se julgar suficientemente esclarecido, pode ordenar a sua reabertura, ouvindo as pessoas que entender e ordenando as diligências que considere necessárias para o efeito – artigo 607.º, n.º 1, do CPC. O que pressupõe o acompanhamento de todos os referidos atos.
Acompanhamento esse que deve ser presencial e não remoto; através, por exemplo, do registo fonográfico das declarações aí produzidas.
Com efeito, esse registo, por si só, não garante nem preenche o princípio da plena assistência do juiz em primeira instância, já que, no domínio da livre apreciação da prova, quando a ela haja lugar, a convicção do julgador deve ser formada a partir da análise de todos os elementos probatórios recolhidos ao longo do processo e, portanto, também durante a audiência final; a partir, seguramente, das declarações aí prestadas pelas próprias partes, testemunhas ou outros depoentes, mas igualmente com base em toda a linguagem não verbal pelos mesmos exteriorizada[4], o que só é captável na imediação com esses meios de prova.
Como refere Lebre de Freitas[5], “ainda que o registo da prova (…) supra hoje, em alguma medida, a falta de presença física no ato da sua produção, a convicção judicial forma-se na dinâmica da audiência, com intervenção ativa do juiz, e é sempre defeituosa a perceção formada fora desse condicionalismo”. Aspeto que não pode deixar de ser considerado na fase de recurso.
Mas, para o que ora importa, o que se impõe acentuar é que o principio da plenitude da assistência do juiz, em primeira instância, se traduz na exigência de que a sentença seja proferida pelo juiz que assistiu a todos os atos de instrução realizados durante a audiência final. A menos que se verifique alguma das situações excecionais já referenciadas
Ora, no caso presente – todos estão de acordo –, nem a sentença recorrida foi proferida pela Mª juiz que presidiu à audiência final, nem houve repetição dos atos de instrução pelo Mº Juiz que proferiu aquela sentença, apesar de haver a notícia de que aquela Mª Juiz estava em situação de incapacidade temporária.
Torna-se, assim, evidente que a sentença recorrida não foi proferida em respeito pelo referido princípio e, nessa medida, só pode considerar-se inexistente, por falta de poder jurisdicional do judicante, neste processo[6].
É verdade que as partes foram previamente notificadas de que aquele procedimento iria ser seguido. E que nenhuma delas e, particularmente, a A. deduziu oposição, só tendo neste recurso levantado o problema.
Esta circunstância, todavia, ao contrário do sustentado pelos RR., não faz incorrer a A. em qualquer abuso de direito.
Na verdade, para que assim fosse, necessário seria que estivéssemos perante matéria na disponibilidade das partes. Mas, não estamos.
Com efeito, como assinala Rita Lynce Faria[7], “[a] principal razão de ser do princípio da imediação reside na garantia de que ao julgador são conferidos elementos de prova mais verdadeiros e fiáveis, no sentido de fazer atuar de forma eficaz o princípio da livre apreciação da prova (art. 607.º, n.º 5, do CPC). A partir das impressões colhidas pelo tribunal na produção da prova e de acordo com as máximas da experiência, o juiz decide de acordo com a livre convicção gerada no seu espírito”. E isso, no sentido de obter a verdade material e não apenas a formal[8].
Ora este é um objetivo que não se encontra na livre disponibilidade das partes. Ou seja, nenhuma delas pode, ainda que em colaboração com a parte contrária, alterar as regras e princípios que orientam a avaliação da prova. Isto, porque são regras e princípios que têm subjacente um interesse público na boa administração da justiça[9] e esse interesse deve ser prosseguido de acordo com os ditames legais. Ou seja, nesse aspeto, o que impera é a lei e, portanto, o tribunal só a ela está vinculado e não à vontade das partes (artigo 203.º da CRP, artigo 5.º, n.º 3 e 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC). De resto, ressalvada a equidade (artigo 4.º do Código Civil), nenhum outro quadro de princípios de decisão é admissível.
De modo que é patente que a falta de oposição da A., perante o despacho que a notificou de que iria ser outro juiz, que não o que presidiu à audiência final, a proferir a sentença, só pode ter-se por irrelevante. De resto, nada na lei atribui ao silêncio o valor que lhe foi conferido pelo despacho (proferido no dia 12/05/2022) que antecedeu a sentença recorrida (cfr. artigo 218.º, do Código Civil). Logo, não há na atitude assumida pela A. neste recurso qualquer abuso de direito.
E assim sendo, como é, uma vez que aquela sentença não pode produzir qualquer efeito na ordem jurídica, a mesma só pode ser revogada, ficando, assim, prejudicada a apreciação dos demais fundamentos do recurso.
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III- Dispositivo
Pelas razões indicadas, acorda-se em conceder provimento ao presente recurso e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida.
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- Em função deste resultado e da posição assumida pelos RR, as custas deste recurso, serão suportadas por estes últimos - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC

Porto, 22.11.2022
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda
Lina Baptista
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[1] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3ª edição, Almedina, pág. 694.
[2] Neste sentido, Rita Lobo Xavier, Inês Folhadela e Gonçalo Andrade e Castro, Elementos de Direito Processual Civil, Teoria Geral, Princípios e Pressupostos, 2ª edição, UCP Porto, pág. 166.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV (Reimpressão), Coimbra Editora, 1987, pág.564.
[4] Neste sentido, José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág. 316.
[5] Ob. cit., págs. 694 e 695.
[6] Neste sentido parecem apontar, João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, ob cit., pág. 629, ao indicarem, entre outros exemplos, a decisão proferida por juiz já aposentado com fundamento em incapacidade física, moral ou profissional; a decisão proferida por juiz deprecado; ou a decisão proferida pelo Ministério Público fora das suas competências legais.
[7] In “O Princípio da Imediação no Processo Civil em Portugal em Tempos de Pandemia: A Realização das Audiências por Videoconferência”, consultável em Revista Eletrónica de Direito Processual – REDP,
https://www.e-publicacoes.uerj.br
[8] Neste sentido, com referência ao princípio da livre apreciação da prova, Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 384.
[9] “O objeto do processo pode ser um “assunto das partes”, mas a administração da justiça “em nome do povo” (art.202.º, n.º 1, CRP) não pode deixar de ser um assunto de todos” – João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, pág. 78.