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BENS COMUNS DO CASAL
COMUNHÃO DE MÃO COMUM
DIVÓRCIO
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
EX-CÔNJUGE
LEGITIMIDADE PASSIVA
Sumário
I - No âmbito da propriedade dos bens comuns do casal, também chamada comunhão de mão comum ou propriedade coletiva, não assiste aos contitulares o direito a uma quota ideal sobre cada um dos bens integrados na comunhão, mas sim o direito a uma fração ideal sobre o conjunto do património comum, como é o direito à meação do património do casal, apenas concretizável pela partilha. II - Ainda que, em termos gerais, o facto de a ação ser proposta após o trânsito em julgado da sentença de divórcio e antes da partilha de bens possa justificar a obrigatoriedade da intervenção de ambos os ex-cônjuges pelo lado ativo (ou de um com o consentimento do outro), esse litisconsórcio necessário depende sempre do facto de, da ação, poder resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos. III - Não é juridicamente sustentável e constitui mesmo um contrassenso jurídico fazer depender da coautoria do ex-cônjuge ou do seu consentimento a instauração e a prossecução de uma ação instaurada pelo outro ex-cônjuge em que aquele é demando e tem legitimidade passiva, pelo que a falta de consentimento também não tem que ser judicialmente suprida.
Texto Integral
Proc. nº 139/22.1T8PVZ.P1 - 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto – Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - J 3
Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
AA, residente na Rua ..., freguesia ..., Matosinhos, instaurou ação com processo comum contra BB, CC e DD, todos residentes na Rua ..., ..., Matosinhos, alegando essencialmente que, tendo sido casado com a 1ª R. desde 9.4.2005, sob o regime de comunhão de adquiridos, o matrimónio foi dissolvido por sentença de divórcio de 30.9.2021. Por escritura de 22.11.2006, o casal comprou um prédio com duas casas juntas, de habitação, tendo, para o efeito, contraído financiamento junto do Banco 1..., tendo beneficiado também para o efeito da doação de €30.000,00 que os 2º e 3ª RR., pais da 1ª R., fizeram ao casal (genro e filha). Por acordo entre todos, passaram os 2º e 3ª RR. a residir uma das referidas casas, cientes de que o A. e a 1ª R. eram os donos do prédio.
Em setembro de 2009, o A. e a 1ª R. contraíram um novo empréstimo junto do Banco 1..., no valor de €59.179,00, para realizarem obras de conservação e restauro do imóvel e para reforço de tesouraria dos 2º e 3ª RR., tendo sido aquele valor dividido entre os dois casais, em partes iguais.
Para garantirem o uso da casa que habitavam, os 2º e 3ª RR. comodatários, com a colaboração da 1ª R., convenceram o A. a formalizar em documento que consignasse o direito ao uso vitalício da parte do prédio que vinham utilizando (o andar superior da casa do nº 45, como artigo matricial ..., Matosinhos. Em contrapartida, estes RR. comprometeram-se a pagar metade do valor das prestações do crédito à habitação a que o A. e primeira R. se tinham obrigado a pagar ao Banco 1....
O A. foi então levado a assinar uma procuração que supunha estar destinada a servir aquele propósito quando, afinal, tal documento de procuração serviria para o representar na doação de metade da totalidade do prédio urbano em que todos habitavam e para assegurar à 1ª R. uma quota parte do imóvel superior àquela a que tinha direito, por ser herdeira dos 2º e 3ª RR. Nunca o A. e os 2º e 3ª RR., seus ex-sogros, quiseram a divisão da propriedade ou a doação, mas apenas assegurar a manutenção do estado de coisas que lhe é anterior. Na base da doação de metade do imóvel, por parte do A., do 2º e 3ª RR. e da R. BB, nunca houve a intenção de doação pura e simples de metade do imóvel, enquanto ato de generosidade.
Com base nestes factos, o A. argui, subsidiariamente:
- Simulação relativa do negócio, por ter sido sua intenção fazer uma doação do direito de usufruto aos 2º.ª e 3ª RR. relativamente à fração em que habitam.
Com base neste vício, pretende que se declare nula a doação e a validade da confissão de dívida efetuada e do negócio dissimulado.
- Erro na declaração negocial do A. por nunca ter querido doar uma quota-parte da totalidade do seu prédio, mas apenas criar um direito de usufruto sobre uma parte determinada do mesmo e a constituição da obrigação de pagamento de metade do valor das prestações do crédito habitação e reforço de hipoteca. Não sabia o A. que estava a doar metade indivisa do seu prédio nem a colocar-se na posição de défice económico porquanto manteria o pagamento das prestações mensais do crédito bancário a seu cargo, na integra, sabendo todos os RR. da existência e da essencialidade desse erro para o A. Com este fundamento, pediu a anulação do negócio.
- Usura no negócio, designadamente por a 1ª R. se ter aproveitado do seu ascendente psicológico e, consequentemente, conformou a vontade do seu marido para benefício dos seus pais, e, após o divórcio, para seu benefício próprio, justificando-se também por esta via a anulação do contrato de doação.
Com tal contrato, ficou a 1ª R. com uma quota de ¼ do imóvel, e os seus pais, 2º e 3ª RR., com uma quota de 2/4 do imóvel, de que é única herdeira, ficando o A. apenas com a quota de 1/4 do prédio e com a obrigação de pagar o valor do mútuo ao Banco que lhe concedeu o empréstimo para aquisição e para obras.
- Dolo, que também justifica a anulação do negócio.
Ainda subsidiariamente, o A. invocou o enriquecimento sem causa dos RR.
O demandante faz culminar o seu articulado com a seguinte pretensão:
«A) A doação realizada ser declarada nula em consequência de se tratar de um negócio jurídico que padece de simulação relativa. A) Ou, a doação realizada ser anulada por se tratar: I. De um negócio jurídico no qual existiu um erro na declaração negocial. II. Caso assim não se entenda, deve a mesma doação ser anulada por se tratar de um negócio usurário. III. Ou, por se tratar de um negócio jurídico cuja vontade negocial foi conformada com dolo. Seguindo-se as demais consequências legais. B) Subsidiariamente ao exposto, devem os Réus ser condenados a restituir ao Autor tudo aquilo que se locupletaram. C) Devem os Réus serem condenados a pagar as custas de parte e procuradoria condigna a favor do Autor.»
Citados, os RR. contestaram, em conjunto, a ação. Começaram por invocar a ilegitimidade que consideraram ser da 1ª R. BB, por ter sido doado por ambos os membros do casal, ainda na pendência do casamento, um bem então adquirido (comum). Entendem que por força dos art.ºs 1682º, n.º 1 e 1682º-A, n.º 1, al. a), do Código Civil, só por ambos o bem pode ser alienados e só por ambos ou por um deles com o consentimento do outro, a ação pode ser proposta. O A. não podia ter instaurado sozinho a ação, desacompanhado da agora sua ex-cônjuge, pelo que tal falta de intervenção da pessoa que interveio na relação controvertida e é titular de metade dos direitos, é motivo de ilegitimidade nos termos do art.º 33º do Código de Processo Civil.
Os RR. invocaram ainda a caducidade do direito do A. e impugnaram grande parte da matéria alegada na petição inicial, concluindo pela sua absolvição da instância, em razão da ilegitimidade, ou, caso assim não se entenda, pela sua absolvição do pedido face à caducidade do direito ou à improcedência dos fundamentos da ação. Pedem ainda a condenação do A. como litigante de má fé.
Em resposta, o A. opôs-se às exceções invocadas pelos RR., designadamente, quanto à ilegitimidade, argumentando que, à data da instauração da ação, já havia sido decretado o divórcio, sendo aplicável o art.º 34º do Código de Processo Civil apenas às situações em que se mantém a sociedade conjugal.
Considerando existir condições para proferir decisão, o tribunal notificou as partes para, a respeito, dizerem o que tivessem por conveniente, pronunciando-se o A. favoravelmente, no sentido da nulidade e ineficácia do negócio em apreço por A. e 1ª R. não poderem dispor de metade de um bem comum; e os RR., opondo-se, reiteraram o que passaram a qualificar como sendo ilegitimidade ativa do A. por a ação de que possa resultar a perda de um bem comum, como é o caso, ter de ser instaurada também pela aqui 1ª R., justamente por força do citado art.º 34º do Código de Processo Civil, com a consequente absolvição da instância.
O tribunal proferiu sentença começando por conhecer da exceção da ilegitimidade ativa, fazendo culminar assim a sua argumentação e decisão, ipsis verbis:
«(…) Retomando o caso dos autos, verifica-se que a ex-mulher do A. não só não interveio na acção como A. como não prestou consentimento antes da propositura da acção, e, na sua qualidade de R. manifestou-se contra a presente acção e as pretensões do A. e favorável à posição dos demais RR., com a consequente perda do bem comum. De onde, por preterição do litisconsórcio necessário a que se refere o art. 34.º, n.º 1 do CPC, é forçoso concluir pela ilegitimidade do A. relativamente ao objecto da acção, que sendo insanável, nos termos sobreditos, conduz necessariamente à absolvição dos RR. da instância de acordo com o art. 278.º, n.º 1, al. d) do CPC. Pelo exposto, e ao abrigo do art. 595.º, n.º 1, al. a) do CPC, julgo o A. parte ilegítima e, em consequência, absolvo os RR. da instância.»
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Inconformado, o A. apelou daquela decisão final, tendo produzido alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
«
». (sic)
Defendeu, deste modo, a revogação da sentença e a declaração de legitimidade do A. para estar por si só do lado ativo da ação.
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Não foram oferecidas contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
O objeto do recurso --- exceção feita para o que for do conhecimento oficioso --- está delimitado pelas conclusões da apelação do embargado, acima transcritas (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).
Com efeito, importa apreciar e decidir se o A. tem legitimidade (ativa) para, por si só, desacompanhado ou sem o consentimento do seu ex-cônjuge, instaurar e fazer prosseguir a ação.
*
III.
Os factos relevantes para o conhecimento da questão resultam do relatório que antecede.
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IV.
A propósito da legitimidade processual ativa dos cônjuges, dispõe o art.º 34º, nº 1, do Código de Processo Civil, que “devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as ações de que que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as ações que tenham por objeto, direta ou indiretamente, a casa de morada de família”.
Na falta de acordo, o tribunal decide sobre o suprimento do consentimento, tendo em consideração o interesse da família, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no art.º 29º (nº 2 do mesmo artigo), ou seja, não sendo sanada a falta dentro do prazo que for designado, o réu é absolvido da instância.
É a sociedade conjugal que justifica a previsão das referidas regras especiais sobre a legitimidade ativa (e passiva, no nº 3 do art.º 34º).
Exige-se o litisconsórcio ativo ou, pelo menos, o consentimento do outro cônjuge, nas ações de que possa resultar a perda ou oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos.
Esta solução impõe que se observem determinadas disposições de direito substantivo. No que, para o caso releva, o art.º 1682º-A, nº 1, al. a), do Código Civil, determina que “carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação e bens: a) A alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns; (…)”.
Argumenta o recorrente que não faz qualquer sentido a aplicação do comando do art.º 34º, nº 1, do Código de Processo Civil, após a dissolução do vínculo conjugal, uma vez que tais normas foram criadas para proteção da sociedade conjugal, atualmente extinta por divórcio decretado em 30.9.2021; porém, reconhece que, não tendo havido partilha dos bens comuns, subsiste, até lá, uma forma de comunhão de direitos, sendo caso de litisconsórcio voluntário (e não necessário), por aplicação a regra geral da legitimidade prevista no art.º 30º do Código de Processo Civil.
O que dizer?
No regime de bens conjugal da comunhão de adquiridos (o regime supletivo) --- o regime de bens que vigorou no casamento entre o A. e a 1ª R. --- existe comunhão de bens, dela fazendo parte nomeadamente o produto do trabalho dos cônjuges e os bens por eles adquiridos na constância do matrimónio que não sejam excetuados por lei (art.ºs 1717º e 1724º do Código Civil[1]).
O divórcio dissolve o casamento e tem juridicamente os mesmos efeitos da dissolução por morte, sem prejuízo das exceções previstas na lei (art.º 1788º do Código Civil).
As relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução do casamento (art.º 1688º do Código Civil).
Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respetiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, podendo ainda qualquer dos cônjuges requerer que os efeitos retrotraiam à data em que a separação de facto entre os cônjuges estiver provada no processo (art.º 1789º nºs 1 e 2, do Código Civil).
Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se à partilha dos bens do casal (art.º 1689º, nº 1, do Código Civil): recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo também cada um deles o que dever a este património.
Entre a data da instauração da ação de divórcio e a realização da partilha de bens decorre sempre um maior ou menor período de tempo, normalmente de meses, mas podendo ser mesmo de anos após a data do trânsito em julgado da sentença de divórcio. No caso sub judice já decorreu mais de um ano e ainda não há conhecimento de que a partilha de bens tivesse sido realizada. Nesse tempo, podem ocorrer variadas vicissitudes relacionadas com o património comum do casal, designadamente atos praticados por um dos cônjuges ou ex-cônjuges em prejuízo do outro, sem que este tenha uma possibilidade efetiva de prevenir, controlar ou influenciar as decisões e os atos do outro.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.11.2008[2], “a fixação de uma data de cessação da coabitação para efeitos patrimoniais do divórcio tem por escopo evitar que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar sobre valores do património comum. Tal fixação visa, assim, essencialmente as relações dos cônjuges, ou de qualquer deles, com terceiros, nomeadamente, evitar que um dos cônjuges possa vir a ser responsabilizado por dívidas contraídas pelo outro, bem como permitir que aos bens adquiridos ou rendimentos auferidos por cada um deles não tenha aplicação o regime da comunicabilidade, não ficando a fazer parte do património comum (regimes da comunhão de adquiridos e da comunhão de bens)”.
Compreensivelmente, é para evitar aquele prejuízo que a lei civil previu a retroação dos efeitos patrimoniais do divórcio aos momentos acima referidos (art.º 1789º, nºs 1 e 2, do Código Civil), sendo certo que os mesmos podem ser opostos a terceiros a partir da data do registo da sentença (nº 3 do mesmo preceito legal).
Deve então atender-se, na partilha, à situação patrimonial existente num daqueles momentos relevantes. Qualquer negócio que um dos cônjuges faça após a data tida como a do início da produção dos efeitos patrimoniais do divórcio só a ele responsabiliza, nada tendo o outro a ver com isso.
Em todo o caso, os bens comuns, os bens da comunhão, mantêm essa natureza até à partilha.
Na situação em análise, estamos perante atos que foram praticados por ambos os cônjuges ainda na pendência do casamento, essencialmente no que concerne à doação que realizaram como ato de disposição patrimonial a favor dos 2º e 3ª RR., pais da 1ª R. São atos que claramente responsabilizam ambos os ex-cônjuges.
A questão é que o A. interpôs a ação já depois do trânsito em julgado da sentença de divórcio e antes da partilha de bens, sustentado o tribunal que deveria ter sido instaurada por ambos os ex-cônjuges, em litisconsórcio necessário.
Não é fácil a questão do regime de bens relativamente ao tempo que medeia a instauração da ação de divórcio e a partilha dos bens do casal dissolvido, variando entre aqueles que defendem a manutenção da comunhão conjugal que a precede e a existência de um regime idêntico ao da compropriedade.[3] Enquanto alguma doutrina sustenta que se passa de uma comunhão coletivística para uma comunhão individualística, onde cada um dos cônjuges detém um quota abstrata de 50% sobre a totalidade do património comum, ainda que não concreta, sobre os bens que a integram, outra aproxima-a da comunhão hereditária: cada ex-cônjuge pode dispor da sua meação bem como pode pedir a separação das meações --- coisa que não podia fazer antes do divórcio --- mas isso não significa necessariamente que os bens comuns deixem de ser um património comum e passem a pertencer aos dois cônjuges em compropriedade.[4]
No âmbito da propriedade dos bens comuns do casal, também chamada comunhão de mão comum, não assiste aos contitulares o direito a uma quota ideal sobre cada um dos bens integrados na comunhão, mas sim o direito a uma fração ideal sobre o conjunto do património comum, como é o direito à meação do património do casal, a ser efetivado mediante partilha do mesmo, nos termos do disposto no artigo 1689º, n.º 1, do Código Civil. O património conjugal constitui uma propriedade coletiva que pertence em comum aos cônjuges mas sem se repartir entre eles por quotas ideais. O direito dos respetivos membros não incide diretamente sobre cada um dos elementos que constitui o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário; logo, a qualquer daqueles membros, individualmente considerados, não pertencem direitos específicos (designadamente uma quota) sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito, por conseguinte dispor desses bens ou onerá-los. Os bens comuns constituem uma massa patrimonial à qual a lei, tendo em vista a sua especial afetação, concede um certo grau de autonomia, e pertence aos dois cônjuges, podendo dizer-se que ambos são titulares de um único direito.
O meio processual adequado para a partilha dos bens comuns subsequente a divórcio é o inventário e não a ação de divisão de coisa comum. Tais bens são partilhados, não são divididos.
Na compropriedade, o consorte é titular de uma quota ideal que recai especificamente sobre o bem indiviso, assistindo-lhe o direito de exigir a divisão da coisa comum, nos termos dos artigos 1403º, 1412º e 1413º. O entendimento dominante é que, nesta, o direito de cada um dos comproprietários exprime-se por uma quota qualitativamente igual às demais, mas que pode ser quantitativamente diferente (art.ºs 1403° nº 1 e 2 e 1408°).
Note-se que, enquanto na compropriedade cada titular pode, a todo o tempo, exigir a divisão da coisa comum, salvo se houver cláusula de indivisão (art.º 1412º do Código Civil), na comunhão conjugal nenhum dos cônjuges pode, em princípio, requerer a divisão e a comunhão mantém-se, por imperativo da lei, enquanto persistir a sociedade conjugal, a cuja sustentação económica os bens comuns se encontram adstritos (art.º 1689º do Código Civil).
É uma situação semelhante à sucessão mortis causa, ou seja, a uma herança. Esta, antes da partilha, constitui uma universitas juris, um património autónomo, com conteúdo próprio. Até à partilha, os direitos dos herdeiros recaem sobre o conjunto da herança; cada herdeiro apenas tem direito a uma parte ideal da herança e não a bens certos e determinados[5].
Como escreveu Rabindranath Capelo de Sousa[6], “nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a realização da partilha, uma vez que até aí a herança indivisa constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota-parte do património hereditário”.
O mesmo é o pensamento do Prof. Pereira Coelho[7] quando esclarece que “não se trata e uma vulgar compropriedade entendida como participação na propriedade de bens certos e determinados. Pelo contrário, contitularidade do direito à herança significa tanto como direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens de que se compõe a herança, mas sim da própria herança em si considerada”.
Esta doutrina foi seguida no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.11.2008, onde se acrescentou: “A partilha assume, assim, a característica de um negócio certificativo, um negócio que se destina a tornar certa uma situação anterior.
Cada um dos ex-cônjuges, e voltando à situação do divórcio, já tinha direito a uma quota ideal do património do casal: com a partilha, esse direito vai concretizar-se em bens certos e determinados. No fundo, esse direito a bens determinados que existe depois de efectuada a partilha é o mesmo direito indeterminado que antes existia, apenas modificado no seu objecto. Daí que a partilha não tenha efeito translativo ou constitutivo, revestindo-se antes de um carácter declarativo”.
Temos para nós que uma coisa é o direito de cada um dos ex-cônjuges no património comum, que pode ser desenhado como numa quota ideal após a dissolução do casamento, outra coisa é a afetação desse património ao cumprimento de responsabilidades assumidas perante terceiros na fase da comunhão.
Fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados (art.º 1714º, n.º 1, do Código Civil), constituindo exceção a tal regra, nomeadamente, a separação judicial de bens (art.º 1715º, do Código Civil), e isto na pendência do casamento.
Após a extinção do casamento, os bens comuns do casal mantêm-se nessa qualidade até ocorrer a respetiva partilha, só assim se respeitando a regra da imutabilidade dos regimes de bens, defendendo-se eficazmente terceiros que com algum dos membros do casal entraram em relacionamento jurídico-económico.
Noutra perspetiva, embora o divórcio extinga a sociedade conjugal, há aspetos desta que persistem, em matéria patrimonial, até à partilha, justificando-se a proteção legal dos ex-cônjuges relativamente aos seus direitos patrimoniais adquiridos na pendência do casamento; e essa proteção pode ser justificada não apenas por atos prejudiciais causados aos ex-cônjuges por terceiros, mas também a um dos ex-cônjuges pelo outro. Até mesmo na pendência do casamento, em que o legislador, em nome do superior interesse da paz conjugal e da harmonia familiar, tradicionalmente, tem evitado a responsabilização de um dos cônjuges pela administração dos bens do casal, prevê no art.º 1681º, nº 1, do Código Civil, que o cônjuge que administra bens comuns ou próprios do outro cônjuge, ao abrigo do art.º 1678º, nº 2, al.s a) a f), do Código Civil, não é obrigado a prestar contas da sua administração, mas responde pelos atos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge, ou seja, em situações de má administração do outro quando esta seja de tal modo grave e persistente que coloque em risco a conservação do seu património.[8]
Retomando o caso que nos é trazido, a disposição do direito comum em que consistiu a alienação efetuada a favor dos 2º e 3ª RR., ocorrida na pendência do casamento foi legalmente realizada por ambos os cônjuges, como impõe o art.º 1682º-A, nº 1, al. a), do Código Civil. Foi esse o verdadeiro e real ato de disposição patrimonial que o casal levou a efeito. Não assim a presente ação declarativa em que o A. tenta, por vários meios legais, que não se produzam os efeitos dessa doação que considera prejudicial ao seu interesse enquanto ex-cônjuge do dissolvido casamento.
Ainda que, em termos gerais, o facto de a ação ter sido proposta após o trânsito em julgado da sentença de divórcio e antes da partilha de bens pudesse justificar a obrigatoriedade da intervenção de ambos os ex-cônjuges pelo lado ativo (ou de um com o consentimento do outro), esse litisconsórcio necessário depende sempre do facto de, da ação, poder resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos.
Não é juridicamente aceitável e constitui um contrassenso jurídico fazer depender da coautoria do ex-cônjuge ou do seu consentimento na instauração e a prossecução de uma ação em que o mesmo é demandado, ali figurando como réu. E se esta dependência não existe, também nada justifica o suprimento do consentimento. A mesma pessoa não pode ser sujeita de interesses antagónicos ocupando simultaneamente o lado ativo e o lado passivo da mesma ação judicial.
Tendo a pretensão do A., como causa de pedir a nulidade da doação, por simulação negocial, e ainda fundamentos de anulação, como o erro, a usura e o dolo negocial, enquanto vícios do negócio jurídico em que interveio a 1ª R., sua ex-cônjuge, no seu interesse exclusivo ou dela com os seus pais (2º e 3ª RR.), enganando e prejudicando o A., situando aquela ex-mulher do lado passivo do litígio, com vista à sua condenação, a questão não pode deixar de enquadrar na regra geral da legitimidade, prevista no art.º 30º do Código de Processo Civil. O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. Nada resultando da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor, sendo que, desses termos resulta, à evidência, o interesse da 1ª R. (a par do interesse dos 2º e 3ª RR.) em contradizer a alegação e a pretensão do A. (nºs 1, 2 e 3, do citado art.º 30º).
A conclusão é óbvia: Não há fundamento para litisconsórcio necessário ativo entre os dois ex-cônjuges.
Atentos os fundamentos da ação e o pedido, o A. tem legitimidade ativa para, só por si, instaurar e fazer prosseguir a ação, devendo ser revogada a decisão recorrida que extinguiu a instância.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, devendo a ação prosseguir a sua normal tramitação.
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Custas da apelação pelos RR. por terem decaído no recurso (embora não tenham apresentado contra-alegações, invocaram, na contestação, sem fundamento válido, a preterição do litisconsórcio necessário ativo, dando assim também azo ao recurso (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
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Porto, 24 de novembro de 2022
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida.
____________________ [1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem. [2] Proc. 08A2620, inwww.dgsi.pt, citando Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. VI, 1998, pág. 227 e Pires de Lima e A. Varela, Código Civil anotado, vol. IV, 1987, pág. 561. [3] Veja-se, por exemplo, a bordagem efetuada no acórdão da Relação de Coimbra de 16.3.2010, proc. 3275/06.8TBPVZ.P1, inwww.dgsi.pt, onde é citada jurisprudência e doutrina em ambos os sentidos. [4] Idem. [5] Acórdão do STJ de 17.04.1980, in BMJ 296º-298. [6] Lições de Direito das Sucessões, pág. 185. [7] Direito das Sucessões, 2ª ed., 1966-1967. [8] Neste sentido, Pires de Lima e A. Varela, Código Civil anotado, Vol. IV, 2ª edição rev. e atualizada, pág.s 295 e 297.