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APOIO JUDICIÁRIO
NOMEAÇÃO DE PATRONO
PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO DO PRAZO EM CURSO
POSTO DE TRABALHO
ABANDONO
COMUNICAÇÃO
CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE
Sumário
1. Referido na petição inicial que o A. litiga com o benefício do apoio judiciário, e junto documento comprovativo desse benefício, incluindo a nomeação e pagamento da compensação a patrono, no julgamento da excepção de prescrição deve a acção considerar-se proposta na data de apresentação daquele requerimento. 2. O eventual incumprimento pelo patrono do prazo de 30 dias para propositura da acção não deve ser imputado ao demandante, se não estiver demonstrada qualquer culpa sua por essa demora. 3. Tratando-se de uma figura de natureza excepcional, o abandono do trabalho exige uma muito apertada qualificação jurídica dos factos, para não se cair nas facilidades de uma analogia proibida. 4. Não revela abandono a comunicação expedida por trabalhador, marítimo a bordo de navio que arvora a bandeira portuguesa, que comunica a intenção de desembarcar daí a dias, “por motivos familiares”, mas não revela a intenção de desvinculação definitiva do rol da tripulação e de não regressar. 5. Verificada a situação de abandono do trabalho, a denúncia do contrato não opera automaticamente, sendo necessário que a entidade empregadora cumpra a comunicação exigida pelo art. 403.º n.º 3 do Código do Trabalho. 6. Tal procedimento é condição de atendibilidade ou requisito de invocação do abandono do trabalho por parte da entidade empregadora. (Sumário elaborado pelo Relator)
Texto Integral
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
No Juízo do Trabalho de Beja, DD… demandou PROMARINHA – Gabinete de Estudos e Projectos, S.A., pedindo a sua condenação na quantia global de € 30.729,79, ou, subsidiariamente, na quantia global de € 12.607,86 euros, ambos os valores acrescidos de juros.
Alega ter sido admitido ao serviço da Ré com a categoria profissional de Praticante de Piloto, em navio que arvora a bandeira portuguesa. A cláusula de motivação do termo é nula, porquanto não justificada; a Ré não pagou ao autor a remuneração mínima prevista no CCT aplicável; a partir de 28.05.2019 não lhe deu qualquer ocupação nem pagou qualquer retribuição, o que levou o A. a denunciar o contrato a 04.09.2020.
Os pedidos relacionam-se com diferenças salariais, vencimentos não pagos, férias, subsídios de férias e de Natal, e horas de formação não ministrada.
Contestando, a Ré alegou a incompetência territorial do tribunal, a sua ilegitimidade passiva, a prescrição dos créditos reclamados (o contrato teria cessado a 27.05.2019, por abandono do trabalhador, e a acção foi proposta a 13.10.2020), que é mera agente de recrutamento e colocação de marítimos e celebrou o contrato em representação do armador, sendo a este que o A. obedecia e quem o fiscalizava, e que este abandonou o trabalho, pelo que nada lhe é devido.
Após julgamento, a sentença julgou a acção totalmente improcedente.
Para o efeito considerou que o contrato de trabalho cessou a 27.05.2019, com o desembarque do A., o que equivale a desvinculação definitiva. E também considerou que os créditos do A. se mostravam prescritos: apesar da suspensão dos prazos de prescrição entre 09.03.2020 e 03.06.2020, sempre o prazo findaria a 22.08.2020.
Inconformado, o A. recorre e formula as seguintes conclusões:
A) No âmbito dos presentes autos foi dado como provado que o contrato celebrado entre o ora recorrente e a ora recorrida é, efectivamente, um contrato de trabalho e que a verificar-se algum incumprimento do referido contrato seria a Ré, ora recorrida, que teria que ser responsabilizada pelo mesmo;
B) A questão com a qual o ora recorrente não concorda prende-se com a data que a Mma Juíza do Tribunal “a quo” considerou ter sido cessado o contrato de trabalho em questão;
C) O ora recorrente e a ora recorrida celebraram um contrato de trabalho a bordo de um navio, o qual teve início em 19/04/2019, data em que o ora recorrente embarcou no navio “Furnas”;
D) A Ré, ora recorrida, por sua iniciativa, nunca cessou por nenhuma via o contrato em questão que celebrou com o ora recorrente;
E) No decurso da relação laboral mantida entre as partes, o ora recorrente teve a necessidade de, por motivos familiares, pedir para desembarcar alguns dias mais cedo face ao previsto, tendo enviado um email para a ora recorrida a dar conta da necessidade de, por essas razões, desembarcar do Navio no dia 27/05/2019;
F) Considerou a Mma Juíza do Tribunal “a quo” que, com o envio do email atrás referido, o ora recorrente denunciou o seu contrato de trabalho, por, alegadamente, ter sido esse o entendimento da Ré, ora recorrida, tendo, nesse seguimento, considerado que a relação laboral mantida entre as partes havia cessado no dia 27/05/2019;
G) Entendimento esse com o qual o ora recorrente não pode concordar;
H) Com efeito, com o envio do email supra referido, o que o ora recorrente transmitiu á Ré, ora recorrida, foi a necessidade de desembarcar alguns dias antes do previsto, por motivos familiares, o que demonstra a existência de um acontecimento ocasional e pessoal do mesmo, que desencadeou aquela necessidade, encontrando-se demonstrado o carácter transitório do referido acontecimento;
I) O ora recorrente nunca refere que é sua intenção cessar o vínculo laboral mantido com a ora recorrida, nem tão pouco invoca as normas previstas no nosso Código do Trabalho acerca da denúncia dos contratos de trabalho;
J) À luz daquilo que é a prática corrente das relações laborais e ao abrigo do princípio da boa fé, cremos que o sentido a retirar do teor do email enviado pelo recorrente e supra referido, será similar aos casos em que os trabalhadores comunicam aos respectivos empregadores a necessidade de faltarem ao trabalho por motivos familiares – nomeadamente assistência a filhos em situações de doença – sendo que, nessas situações, não se verifica obviamente a cessação dos respectivos contratos de trabalho;
K) Tendo sido precisamente essa a situação que se verificou no caso do ora recorrente;
L) O ora recorrente apenas informou a sua empregadora – conforme lhe competia – da necessidade de se ausentar do Navio por motivos familiares, o que demonstra que havia uma razão por de trás daquela necessidade de desembarque, que nada tinha que ver com a intenção do mesmo em terminar o seu contrato de trabalho, vindo tal a ser manifestamente comprovado se se atentar nos vários emails enviados pelo ora recorrente para a Ré após esse desembarque, a dar conta da disponibilidade para voltar a embarcar ao serviço da mesma, tendo o primeiro desses emails datado logo do dia 23/06/2019;
M) Entender-se que o ora recorrente denunciou o seu contrato de trabalho ao enviar o email para a ora recorrida a informar da necessidade de, por motivos familiares, desembarcar uns dias mais cedo face ao previsto, parece-nos, salvo o devido respeito, um entendimento manifestamente errado;
N) E, tanto o ora recorrente não denunciou, nem pretendeu denunciar, o seu contrato de trabalho com o envio do email a que nos vimos a referir, que nem sequer a ora recorrida o entendeu dessa forma;
O) Com efeito, o que alega a ora recorrida é que o ora recorrente abandonou o seu trabalho, e não que o mesmo procedeu a denúncia do seu contrato de trabalho, sendo ambas as figuras realidades jurídicas completamente diferentes e que não se confundem;
P) Uma coisa é a denúncia de um contrato de trabalho (regulada nos arts. 400º e 401º do nosso C. Trabalho) e outra coisa é o abandono do trabalho, previsto e regulado no art. 403º do referido Código;
Q) Acontece que para a ora recorrida poder considerar cessado o contrato de trabalho celebrado com o recorrente pelo alegado abandono de trabalho do mesmo, teria que ter comunicado a este os factos constitutivos do abandono ou da presunção do mesmo, por carta registada com aviso de recepção para a última morada conhecida do mesmo, conforme expressamente previsto no nº 3 do art. 403º do nosso C. Trabalho, o que a recorrida não logrou fazer;
R) Razão pela qual não se pode considerar cessado o contrato de trabalho com base no suposto abandono do trabalho por parte do recorrente por, desde logo, não se verificarem os respectivos requisitos legais;
S) Ora se nem a própria recorrida entendeu e interpretou o email enviado pelo recorrente como uma denúncia do contrato de trabalho do mesmo, não nos parece plausível e aceitável que seja o Tribunal “a quo” a determinar que o sentido a retirar do teor do email enviado pelo recorrente seja esse, quando, repita-se, nem sequer a recorrida – destinatária do referido email – o interpretou dessa forma;
T) O contrato de trabalho celebrado entre as partes apenas veio a terminar com a denúncia do mesmo efectuada pelo recorrente em 04/09/2020, através do envio de carta registada com aviso de recepção para a sede da recorrida, e não em nenhum momento anterior;
U) Nessa senda, entende o recorrente que o Tribunal “a quo” não andou bem quando aplicou e interpretou os arts 400º, 401º e 403º do nosso C. Trabalho, porquanto os mesmos referem-se a realidades jurídicas diferentes, sendo que a que estaria alegadamente em causa no entendimento da recorrida, seria a do abandono de trabalho previsto no art. 403º do nosso C. Trabalho, e não a denúncia do contrato de trabalho prevista nos arts. 400º e 401º do mesmo Código, porquanto nunca foi intenção do recorrente denunciar o seu contrato de trabalho, nem tendo sequer nunca tal sido entendido pela recorrida;
V) A ser assim, o Tribunal “a quo” deveria ter apurado se se mostraram cumpridos os requisitos legais para a recorrida poder considerar cessado o contrato de trabalho em causa com base no abandono do trabalho invocado – devendo a recorrida, nesse caso, ter dado cumprimento ao disposto no nº 3 do referido art. 403º do nosso C. Trabalho e, consequentemente, comunicar ao recorrente tal consideração - o que não se verificou, pois a mesma não o logrou fazer;
W) Pelo que deverá ser a Ré, ora recorrida, condenada a pagar ao recorrente todos os créditos laborais devidos ao mesmo durante todo o tempo em que perdurou a relação laboral entre as partes, ou seja, entre o dia 19/04/2019 e o dia 04/09/2020, não se verificando qualquer prescrição dos referidos créditos, atendendo a que o recorrente teria um ano após a cessação do respectivo contrato de trabalho – que ocorreu em 04/09/2020 - para vir peticionar os seus créditos laborais, tendo-o feito em Outubro de 2020 e, por isso, tempestivamente.
X) Relativamente ao valor do respectivo vencimento base do ora recorrente, entende o mesmo que lhe seria devido o pagamento mensal de 985,00 euros, uma vez que é este o valor que se encontra previsto no anexo II do Acordo Colectivo de Trabalho celebrado entre a Empresa de Navegação Madeirense Lda. e Outras e a FESMAR – Federação de Sindicatos dos Trabalhadores do Mar para a categoria profissional do ora recorrente, que era a de Praticante;
Y) A possibilidade de ajustar o valor da retribuição dos praticantes para o valor da remuneração mínima mensal garantida, apenas ocorreu até Fevereiro de 2018, conforme se encontra expressamente previsto na nota h) do anexo 1 da CCT supra referida, sendo que para os contratos celebrados dessa data em diante, como o do ora recorrente, já não se poderia aplicar tal redução, ao contrário do decidido pelo douto Tribunal “a quo”;
Z) Por outro lado, e no que ao pagamento do suplemento previsto no nº 1 da cláusula 68ª da CCT a que ora nos reportamos e respectiva suspensão do pagamento do mesmo diz respeito, importa atentar no nº 3 da referida cláusula que veio estabelecer que o pagamento do referido suplemento ficaria suspenso até 29/02/2020, pelo que, no início do contrato de trabalho entre as partes – 19/04/2019 - e até à referida data de 29/02/2020, tal suplemento não era exigível;
AA) Devendo a ora recorrida pagar ao ora recorrente os respectivos proporcionais dos subsídios de férias e de Natal durante os primeiros dez meses de vigência do contrato de trabalho entre as partes;
BB) Contudo, o contrato de trabalho do recorrente apenas veio a cessar em 04/09/2020, pelo que, a partir do dia 01/03/2020 – data em que terminou o período de suspensão do pagamento do referido suplemento - e até à data de cessação do contrato de trabalho do mesmo – 04/09/2020 – a recorrida deveria ter recomeçado a pagar àquele o referido suplemento, no valor dos 675,90 €, nos exactos termos previstos no nº 1 da cláusula 68ª da CCT;
CC) Pelo que, face a tudo quanto foi exposto, entende o ora recorrente que mal andou o Tribunal “a quo” ao interpretar e aplicar a cláusula 68ª da CCT, bem como a nota h) ao anexo II da mesma CCT, devendo ser considerado como vencimento mensal do recorrente a quantia de 985,00 €, e devendo ainda ser considerado que o mesmo teria direito a receber o pagamento do valor do suplemento de 675,90 € a partir do mês de Março de 2020 e até à data da efectiva cessação do contrato de trabalho entre as partes, que ocorreu a 04/09/2020.
A resposta sustenta a manutenção do julgado, concluindo:
2. Entende a Recorrida, que o Tribunal A Quo retirou as conclusões devidas tendo em atenção os factos carreados para os autos;
3. Porquanto quando o Recorrente intentou a presente acção já havia corrido o prazo da prescrição do seu direito aos créditos.
4. Que prescreveram em 22 de Agosto de 2020, conforme é explanado na douta Sentença.
5. Assim pelo exposto entende o Recorrido que não assiste razão ao Recorrente.
6. Pelo que deverá a sentença proferida pelo Tribunal A Quo ser confirmada nos exactos termos em que foi proferida e em consequência a Recorrida absolvida da totalidade do pedido.
Nesta Relação, a Digna Magistrada do Ministério Público formulou parecer no sentido do provimento do recurso, ao qual as partes não responderam.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.
A matéria de facto estabelecida na primeira instância e não impugnada é a seguinte:
1. A Ré é uma empresa que exerce a actividade de Agência de Recrutamento e Colocação de marítimos.
2. O A., por sua vez, tem o curso de pilotagem pela Escola Náutica Infante Dom Henrique, mas não está habilitado a exercer a função de piloto enquanto não tiver tempo de embarque e ser considerado habilitado e certificado;
3. A pedido do autor e do Armador Mutualista Açoreana, de quem é agente, a Ré acordou com o autor, recém-formado piloto na Escola Náutica Infante Dom Henrique, a colocação como praticante no navio “Furnas” da Empresa Mutualista Açoreana para aí obter formação e tempo de embarque, mediante a contrapartida 600,00 € (seiscentos euros), incluindo o montante respeitante a subsídios de férias e de Natal;
4. Na sequência do referido acordo a ré e o autor subscreveram documento escrito em 19 de Abril de 2019, denominado “contrato de trabalho a termo incerto”;
5. Do ponto 1.5 do referido documento consta que o mesmo se encontra «inserido no Art. 140 do CT, nº3 alínea G) do Código do Trabalho (Execução de tarefa ocasional ou serviço determinado precisamente definido e não duradouro), com o objectivo da prática adquirida a bordo (tirocínio) para a obtenção do certificado de competências» e no ponto 1.6 que o contrato caduca «quando o marítimo adquirir a prática necessária a bordo, que lhe permitirá a obtenção do certificado de competências».
6. Do ponto 20 do aludido documento consta que o mesmo se rege “de acordo com as normas contempladas no Acordo Colectivo de Trabalho celebrado entre a Empresa de Navegação Madeirense Lda. e Outras e a FESMAR – Federação de Sindicatos dos Trabalhadores do Mar”.
7. O referido documento foi elaborado tendo por base as cláusulas constantes do acordo que havia sido celebrado entre o armador Mutualista Açoreana e o autor, em 19.07.2018 e que havia cessado entretanto, a pedido do referido armador.
8. O autor sabia que a ré se dedica ao recrutamento e colocação de marítimos a bordo e que foi enquanto tal que subscreveu o aludido acordo.
9. O autor embarcou no navio “Furnas” em 19.04.2019.
10. Com data de 21 de Maio de 2019 o autor remeteu e-mail dirigido ao armador e com conhecimento à ora ré, com o seguinte teor: “Venho por este meio dar conhecimento a V. Exa.s que, por motivos familiares, terei que desembarcar no dia 27 de Maio. Informo ainda que dei conhecimento ao Comandante do navio, Sr. Rui Miguel do Nascimento. Sem outro assunto, apresento os meus melhores cumprimentos. DD…”.
11. Em 27 de Maio o autor deixou o navio “Furnas”;
12. No período que decorreu entre o embarque e o desembarque o autor obedecia às ordens e indicações do Comandante do Navio e ao horário fixado por este e comunicado pelo imediato do navio, tendo sido avaliado pelo comandante no referido período e tendo discordado da referida avaliação em três itens.
13. Com data de 23 de Junho de 2019 o autor remeteu um e-mail dirigido ao armador, à ora ré e ao comandante do navio, com o seguinte teor: “Sou a informar que estou disponível para embarcar no navio N/M Furnas, como praticante de Piloto, desde a presente data, 24 de Junho de 2019. Com os melhores cumprimentos, DD…”
14. Ao referido e-mail respondeu o armador, com data de 24 de Junho de 2019, com o seguinte teor: “Agradecemos o seu interesse, de momento não temos disponibilidade. Favor contactar connosco e insistir na sua disponibilidade. Cumprimentos, (…)”
15. Por missivas remetidas por correio electrónico para o armador, a ora ré e o comandante do navio datadas de 19 de Agosto de 2019 e 25 de Setembro de 2019, o autor voltou a informar da sua disponibilidade desde 24 de Junho de 2019, para embarcar e terminar a certificação.
16. Com data de 14 de Outubro de 2019, o autor remeteu nova missiva ao armador e ao comandante do navio Furnas, a “insistir na oportunidade de tornar a embarcar no navio N/M Furnas, como praticante, a fim de completar o tempo de mar (cerca de 7 meses) e obter a certificação”.
17. Em 27 de Novembro de 2019 o autor dirigiu à R. um e-mail a insistir no reembarque.
18. Em 28 de Novembro de 2019 o autor dirigiu ao armador e ao Comandante do navio Furnas um e-mail a “insistir no reembarque no navio da Mutualista Açoreana”.
19. O autor, remeteu, a 04/08/2020, carta registada com aviso de recepção para a sede da ora Ré, com o seguinte teor: “Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 400º n.º 1 do Código do Trabalho, venho, por este meio, comunicar a V/Exas. que pretendo denunciar o meu contrato de trabalho celebrado convosco em 19/04/2019, denuncia esta que produzirá efeitos a partir do dia 04/09/2020, dando, desta forma, cumprimento à obrigação legal de informação com trinta dias de aviso prévio.”
20. A ré pagou ao autor remuneração no valor de 780,00 euros.
Nos termos do art. 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil, e porque se trata de factos assentes, porquanto demonstrados por documentos juntos à petição inicial e não impugnados, sendo relevantes para a decisão da excepção de prescrição, adita-se ao elenco fáctico o seguinte:
21. Por requerimento de 07.07.2020, o A. requereu nos serviços da Segurança Social a concessão do benefício do apoio judiciário, nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e, ainda, nomeação e pagamento da compensação a patrono.
22. Por ofício expedido a 10.07.2020, o A. foi notificado do deferimento dessa pretensão.
23. Nessa sequência, a Ordem dos Advogados nomeou patrona do A. a Ilustre Advogada que subscreveu a petição inicial e que vem intervindo nas demais fases do processo.
APLICANDO O DIREITO Da prescrição e do abandono do trabalho
A sentença ponderou que “os prazos de prescrição estiveram suspensos entre 09.03.2020 e 03.06.2020 (86 dias), por força do disposto no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4 da Lei 1-A/2020, de 03.03.2019, e no artigo 6.º da Lei 16-A/2020, de 27 de Maio, sendo alargado o prazo de prescrição pelo período de tempo que vigorou a sua suspensão”, e que tendo findado a relação laboral a 27.05.2019, o prazo de prescrição de um ano ocorreu no dia 22.08.2020.
Não ponderou, porém, a circunstância do A. litigar com o benefício do apoio judiciário, incluindo a modalidade de nomeação e pagamento da compensação a patrono, nem aplicou o disposto no art. 33.º n.º 4 da Lei 34/2004, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei 47/2007, de 29 de Julho (Lei do acesso ao direito e aos tribunais, aqui tratada pela abreviatura “LAJ”), segundo o qual “A acção considera-se proposta na data em que for apresentado o pedido de nomeação de patrono.”
Deveria, pois, a sentença ter considerado que a acção se considerava proposta na data de apresentação do pedido de nomeação de patrono – ou seja, em 07.07.2020, antes de findo o prazo de prescrição – tanto mais que, como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.05.2018, “referido na petição inicial o requerimento de atribuição de apoio judiciário e junto documento comprovativo da concessão do mesmo e da data em que tal requerimento foi apresentado, o tribunal, no julgamento da excepção de prescrição invocada pelo Réu, deve tomar em consideração aquele requerimento e os efeitos do mesmo decorrentes em termos de interrupção da prescrição, mesmo que o autor não tenha respondido àquela excepção.”[1]
Acresce também que o eventual incumprimento pelo patrono do prazo de 30 dias para propositura da acção, previsto no art. 33.º n.º 1 da LAJ, não pode ser imputado ao trabalhador.
A propósito, escreve Salvador da Costa[2], “no caso do titular do direito substantivo pedir a nomeação de patrono no quadro do apoio judiciário, a acção considera-se proposta na data em que foi apresentado o referido pedido. Isso significa que, pedida a nomeação de patrono no quadro da protecção jurídica antes do decurso do prazo de caducidade do direito de acção em causa, queda irrelevante o prazo que decorra entre aquele momento e o da propositura da acção pelo patrono que venha a ser nomeado. (…) Assim, a circunstância de a acção só ter sido proposta dois anos depois da apresentação nos serviços da Segurança Social do requerimento para a concessão do apoio judiciário na modalidade de patrocínio, é a data daquela apresentação que funciona para impedir o funcionamento da excepção de caducidade do direito de acção.”
Esta é também a posição que vem sendo adoptada no Supremo Tribunal de Justiça, de que é paradigmático o Acórdão de 12.09.2018 (Proc. 8158/16.0T8VNG.P1.S1), publicado na página da DGSI.
No caso, nada consta dos autos que possa ser imputável ao A. pelo facto da acção ter dado entrada a 13.10.2020, sendo assim a regra do art. 33.º n.º 4 da LAJ plenamente aplicável, e como tal deve considerar-se proposta a acção no dia 07.07.2020 e não prescritos os créditos reclamados pelo trabalhador, por respeitado o prazo previsto no art. 337.º n.º 1 do Código do Trabalho (atenta a suspensão do prazo de prescrição que ocorreu entre 09.03.2020 e 03.06.2020 e consequente alargamento daquele prazo de prescrição, como previsto no art. 6.º da Lei 16/2020, de 29 de Maio, que alterou as medidas excepcionais e temporárias de resposta à pandemia da doença COVID-19).
Quanto ao abandono do trabalho, foi alegado pela Ré ao longo da sua contestação, nomeadamente nos respectivos arts. 15.º, 16.º, 30.º, 31.º, 34.º, 81.º, 83.º e 90.º.
A sentença apontou que o art. 62.º n.º 2 do DL 280/2001, de 23 de Outubro (Regime aplicável à actividade profissional dos marítimos e à fixação da lotação das embarcações) dispõe que “Por desembarque entende-se a desvinculação temporária ou definitiva de um tripulante do rol de tripulação e do consequente serviço a bordo de uma embarcação”, e concluiu que a comunicação do A. de 21.05.2019, manifestando a intenção de desembarcar a 27 seguinte, como veio a fazer, correspondia a uma desvinculação definitiva, e como tal o contrato findou, por denúncia do trabalhador, na referida data de 27.05.2019.
Adiantamos, desde já, que tal conclusão não tem suporte fáctico nem o abandono do trabalho pode ser invocado pela entidade empregadora.
A jurisprudência vem afirmando a existência de duas formas de abandono do trabalho: real ou presumido.
A primeira figura, identificada no art. 403.º n.º 1 do Código do Trabalho, exige a ocorrência de dois elementos: um objectivo, constituído pela ausência do trabalhador ao serviço, ou seja, pela sua não comparência voluntária e injustificada no local e tempo de trabalho a que estava obrigado; e um subjectivo, constituído pela intenção de não retomar o trabalho, isto é, pela intenção de não comparência definitiva no local de trabalho.
Quanto à segunda figura – o abandono presumido, tratado no art. 403.º n.º 2 – ao empregador cabe o ónus de alegar e provar os factos integradores da presunção iuris tantum, i.e., que a ausência do trabalhador ao serviço se prolongou, pelo menos, por 10 dias úteis seguidos, e que não recebeu do trabalhador qualquer comunicação do motivo da ausência.[3]
A propósito da figura do abandono do trabalho, Júlio Gomes[4] ensina que “essa intenção (de não retoma do trabalho), há-de revelar-se com toda a probabilidade, não sendo de modo algum suficiente uma mera verosimilhança, já que também aqui a vontade de demissão, ainda que tacitamente manifestada, deve ser séria e inequívoca. Como destacou entre nós, por exemplo, o Acórdão da Relação de Évora de 14 de Julho de 1998 o abandono é não apenas “uma qualificação jurídica que tem de resultar dos factos provados”, mas inclusive uma qualificação jurídica a que não se deve proceder com ligeireza, havendo antes “necessidade de se proceder a uma muito apertada qualificação jurídica dos factos, para não se cair nas facilidades de uma analogia proibida”, dada a natureza excepcional da figura. (…) O empregador pode, pois, ter conhecimento de que a ausência do trabalhador, embora injustificada, não corresponde à intenção deste de fazer cessar o contrato de trabalho. Imagine-se que o empregador sabe que o trabalhador sofre de perturbações psicológicas ou do foro psiquiátrico, que o trabalhador partiu no gozo de férias que erroneamente julgou que lhe tinham sido marcadas ou que acreditou, sem razão, poder marcá-las ele próprio ou, ainda, que o trabalhador não comparece ao novo local de trabalho por entender erradamente que a sua transferência foi ilícita. Nestas e noutras situações similares podem existir faltas injustificadas, mas não se poderá falar em abandono.”
Pois bem, a comunicação expedida pelo trabalhador, em 21.05.2019, não permite concluir que era sua intenção não retomar mais ao navio e ao seu posto de trabalho. Aquela comunicação revela apenas a intenção de desembarque a 27 de Maio, “por motivos familiares”, mas não revela a intenção de desvinculação definitiva do rol da tripulação do navio e de não regressar.
Tratando-se de uma figura de natureza excepcional, o abandono do trabalho exige uma “muito apertada qualificação jurídica dos factos, para não se cair nas facilidades de uma analogia proibida” – como já se escreveu nesta Relação de Évora, com o apoio de Júlio Gomes – e os factos apurados não permitem estabelecer a conclusão que a primeira instância obteve.
Ademais, a entidade empregadora não cumpriu o disposto no art. 403.º n.º 3 do Código do Trabalho, pois não enviou ao trabalhador carta registada com A/R para a sua última morada conhecida, comunicando os factos constitutivos do abandono ou da presunção do mesmo.
Sucede que tal procedimento é condição de atendibilidade ou requisito de invocação do abandono do trabalho por parte da entidade empregadora.
Na verdade, verificada a situação de abandono do trabalho, a denúncia do contrato não opera automaticamente, sendo necessário que a entidade empregadora cumpra a referida comunicação, por se tratar de uma formalidade essencial para que a cessação produza efeitos.
Visto que tal comunicação não foi expedida, sempre estaria a Ré impedida de invocar o abandono do trabalho por banda do A..
Em resumo, a sentença não merece o nosso acolhimento, também na parte em que concluiu pela denúncia do contrato pelo trabalhador com efeitos a 27.05.2019.
O que nos conduz à determinação dos créditos laborais do A., a que nos dedicaremos na secção seguinte.
Dos créditos laborais
Nos autos está em causa um contrato de trabalho a bordo de navio que arvora a bandeira portuguesa, ao qual se aplicam as regras da Lei 146/2015, de 9 de Setembro (Regime da actividade de marítimos a bordo de navios que arvoram bandeira portuguesa, que designaremos pela sigla LAMBN), e, nas matérias não reguladas, as regras gerais do Código do Trabalho e as demais normas legais reguladoras do contrato de trabalho que sejam compatíveis com a sua especificidade – respectivo art. 3.º.
Para efeito de determinação dos créditos do trabalhador, importa atentar nos respectivos arts. 17.º (Direito a férias) e 19.º (Retribuição), e ainda que as partes estipularam ser aplicável o “Acordo Colectivo de Trabalho celebrado entre a Empresa de Navegação Madeirense Lda. e Outras e a FESMAR – Federação de Sindicatos dos Trabalhadores do Mar”, que está publicado no BTE n.º 16/2016, com alterações publicadas nos BTE’s n.ºs 22/2017 e 17/2018.
De acordo com a cláusula 68.ª n.º 1 daquele instrumento colectivo de trabalho, “a retribuição dos praticantes é constituída pelo vencimento base mensal constante do anexo I e por um suplemento no montante de 675,90 €”, mas o pagamento deste suplemento ficou suspenso até 28.02.2018 – n.º 3 da dita cláusula 68.º. Na alteração publicada no BTE n.º 17/2018, a referida suspensão foi prolongada até 28.02.2020.
Acresce que a “nota h)” do Anexo II daquele Acordo Colectivo, que trata das tabelas salariais, dispõe o seguinte: “h) Devido à suspensão das ajudas públicas à contratação de praticantes e à necessidade imperiosa de promover o embarque destes marítimos, até Fevereiro de 2018 a retribuição dos praticantes filiados nos sindicatos outorgantes pode ser ajustada ao valor da remuneração mínima mensal garantida (RMMG).”
Nas alterações publicadas nos BTE’s n.ºs 22/2017 e 17/2018, esta data não foi alterada.
Na última alteração – publicada no BTE n.º 17/2018 – os praticantes achavam-se no nível VI, correspondendo a uma retribuição mensal de € 985,00 para os tripulantes de “Navios de carga geral”, como o identificado nos autos.
Sendo estas as regras essenciais a que se submete o contrato de trabalho celebrado pelo A., vejamos quais os créditos salariais a que tem direito:
· Retribuição de 19.04.2019 a 27.05.2019, inclusive (39 dias): € 985,00 x 39/30 = € 1.280,50, a que se deduzirão os € 780,00 já pagos, pelo que o crédito aqui verificado é de € 500,50;
· Período de 28.05.2019 a 24.06.2019 (data do e-mail do trabalhador a comunicar a disponibilidade para regresso ao trabalho): faltas injustificadas, que não conferem direito a retribuição;
· Retribuição de 25.06.2019 a 28.02.2020 (6 dias e 8 meses): (€ 985,00 x 6/30) + (€ 985,00 x 8) = € 8.077,00;
· Proporcionais dos subsídios de férias e de Natal pelo período de 19.04.2019 a 28.02.2020 (12 dias e 10 meses, o que equivale a 86,67% do ano civil): € 985,00 x 86,67% x 2 = € 1.707,40;
· Retribuição de 01.03.2020 a 04.09.2020 (6 meses e 4 dias), que inclui o “suplemento no montante de 675,90 €, o qual cobre as 8 horas prestadas aos sábados, domingos e feriados, os subsídios de férias e de Natal e a retribuição do período de descanso, nos termos do número 5 da cláusula 15.ª, e das cláusulas 23.ª, 24.ª e 25.ª deste ACT”, conforme consta da cláusula 68.ª n.º 1 do instrumento colectivo supra identificado: (€ 1.660,90 x 6) + (€ 1.660,90 x 4/30) = € 10.186,85;
· Dias de férias não gozadas, dos quais o A. apenas pede 22 dias (arts. 87.º, 88.º e 89.º da petição inicial), no valor de € 635,00;
· Crédito de horas por formação não prestada, no período integral de duração do contrato de trabalho (16 meses e 16 dias, reclamando o A., a este título, apenas o período de 16 meses, o que corresponde a 53,33 horas): [(985,00 x 12) : (52 x 40)] x 53,33 = € 303,06.
Os créditos reconhecidos ao A. ascendem assim à quantia global de € 21.409,81, e é nessa medida que o recurso procede.
DECISÃO
Destarte, concede-se provimento ao recurso, condenando-se a Ré a pagar ao A. a quantia global de € 21.409,81, a que acrescem juros à taxa que decorre do art. 559.º n.º 1 do Código Civil, desde a citação e até integral pagamento.
Custas na proporção do decaimento, sendo que o A. beneficia de apoio judiciário.
Évora, 24 de Novembro de 2022
Mário Branco Coelho Paula do Paço Emília Ramos Costa
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[1] Acórdão proferido no Proc. 31/14.3TTCBR.C3.S1 e publicado em www.dgsi.pt.
[2] In O Apoio Judiciário, 2012, 8.ª ed., Almedina, em anotação ao citado art. 33.º.
[3] Incidindo sobre o abandono do trabalho, e concluindo no sentido exposto, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.09.2018 (Proc. 9200/15.8T8LSB.L1.S1), publicado na DGSI.
[4] In Direito do Trabalho, vol. I, Coimbra Editora, 2007, págs. 1072/1073.