QUESTÃO NOVA
JUSTO IMPEDIMENTO
ESTADO CIVIL
PROVA DE FACTOS
HERANÇA JACENTE
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Sumário


I – Tendo a Apelante colocado pela primeira vez nas alegações de recurso, questão respeitante a incidente de justo impedimento que não havia sido colocada em primeira instância, olvidando a regra basilar do sistema recursório vigente, de que os recursos se destinam a impugnar decisões já proferidas com vista ao seu reexame, e não a fazer o julgamento de questões colocadas ex novo perante o tribunal superior, não pode este tribunal conhecer do invocado incidente de justo impedimento para a não apresentação da contestação.
II – Em ação não contestada, não existe a invocada nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia, se o juiz declarou tabelarmente verificados os pressupostos processuais relativos à personalidade, legitimidade e inexistência de questões prévias, cumprindo antes apreciar se ocorreu ou não erro de julgamento, o que este tribunal pode fazer em sede de recurso, por estarmos perante questões de conhecimento oficioso.
III – Sendo controvertida a questão de saber se factos sujeitos a registo obrigatório, como são o casamento e o óbito, podem ser considerados provados, designadamente por acordo, ou confissão, em face do preceituado nos artigos 1.º e 4.º do CRC, aderimos ao entendimento que temos como mais correto de que, quando o facto a provar desse modo não constitua o thema decidendum da ação em apreço, nada obsta a que se produza o efeito cominatório decorrente da confissão ficta.
IV – Acresce que, na presente ação de prestação de contas, não só o casamento e o óbito não constituem objeto direto da ação, mas meros pressupostos da decisão a proferir, como até, para além da confissão ficta existe prova documental dos mesmos, faltando apenas a sua transcrição em Portugal.
V – Assim, admitindo-se a possibilidade de prova por outro meio que não o extraído do registo civil, havendo na situação em apreço documentos probatórios daqueles factos cuja autenticidade não foi impugnada, também por maioria de razão, a falta da sua transcrição no assento respetivo em Portugal, não impede que se considerem provadas tais relações jurídicas prejudiciais ou condicionantes, que constituem meros pressupostos da decisão a proferir.
VI – Estando demonstrado que a herança aberta, ainda não foi aceita por algum dos sucessíveis nem declarada vaga para o Estado, é a herança jacente que tem personalidade judiciária e legitimidade para instaurar a ação de prestação de contas, estando, na espécie, regularmente representada por pessoa a quem a lei admite incumbir a sua administração durante a situação de jacência, ou seja, a herdeira legitimária a quem a lei defere o cargo de cabeça-de-casal, sem que haja necessidade de intervenção dos demais sucessíveis, inexistindo a invocada preterição de litisconsórcio necessário ativo.
VII – Se o fundamento pelo qual a Recorrente invoca que não tinha que prestar contas à herança, tem como pressuposto um facto, que não foi oportunamente alegado, já que a Ré não apresentou contestação, ficou precludido o direito à sua demonstração em sede recursiva.
VIII – Assim, mostrando-se inelutavelmente provado que a Ré, na qualidade de procuradora, não devolveu ao falecido mandante nem aos seus herdeiros a quantia monetária que lhe foi entregue, em nome daquele, na sequência dos contratos de compra e venda que celebrou enquanto mandatária, e de cujo valor metade pertencia ao falecido, incumbe-lhe prestar à herança as contas que deviam ter sido prestadas ao mandante.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Processo n.º 1265/21.0T8FAR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]


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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – Relatório
1. Herança Jacente de AA, representada pela cabeça-de-casal BB, veio instaurar a presente ação declarativa de condenação com processo especial de prestação de contas, contra CC, pedindo que a Ré seja citada para, ao abrigo do disposto no artigo 942.º do Código de Processo Civil, apresentar, no prazo de 30 (trinta) dias, as contas pedidas ou contestar a presente ação, sob pena de não poder deduzir oposição às apresentadas pela Autora.
Em fundamento da deduzida pretensão, alegou, em síntese, que AA faleceu em .../.../2016, nos Estados Unidos da América, no estado de casado com a ora cabeça-de-casal; o falecido e o irmão eram herdeiros de um vasto património por óbito dos respetivos pais, entre o qual se incluem duas frações autónomas, sitas em Faro; por instrumento de procuração de 20.05.2015, o falecido AA instituiu a Ré sua procuradora; após o óbito de AA, os herdeiros deste tomaram conhecimento que a Ré vendeu, em nome daquele, as referidas frações, em 4.04.2016 e 15.06.2016, sem que tivesse dado prévio conhecimento ao falecido; por essas vendas a Ré recebeu, em nome do falecido, 30.000,00€ e 103.000,00€, dos quais metade pertencia ao referido AA; apesar de várias vezes interpelada até à data, a Ré não entregou o montante de 66.500,00€ à herança do falecido, que ainda não foi aceite por todos os sucessíveis, nem declarada vaga para o Estado.

2. A Ré foi citada em 19.05.2021 (cfr. aviso de receção junto a fls. 22 dos autos) e não apresentou contestação.

3. Em 04.11.2021, foi proferido despacho a declarar verificada a obrigação da ré, enquanto mandatária, de prestar contas à herança do mandante, e a considerar devolvida à A. a possibilidade de as apresentar.

4. Por requerimento apresentado em 13.12.2021, a Autora veio apresentar contas, em forma de conta corrente, conforme consta de fls. 24v.º e 25., indicando um saldo a favor da herança de AA no valor de 81.144,44€ e requerendo a notificação da Ré nos termos e para os efeitos previstos no artigo 944º, n.º 5, do Código de Processo Civil.

5. Após, o tribunal a quo declarou não vislumbrar outras diligências a realizar, importando julgar as contas apresentadas, tendo em 11.05.2022 proferido sentença, com o seguinte dispositivo: «julgo a presente acção procedente e, em consequência, julgo prestadas as contas da administração da Ré CC relativamente às fracções autónomas designadas pela letra J, correspondente ao segundo andar frente direito, destinada a habitação, do prédio denominado Urbanização ..., em Gambelas, Faro, e pela letra E, destinada a habitação, correspondente ao segundo andar direito do prédio sito na Rua ..., em Faro, que pertenciam, na proporção de metade a AA, considerando apurado o montante de receitas de 66.500,00€, e verificado o saldo final nesse valor, condenando-se a Ré no pagamento dessa quantia ao Autor, acrescida dos juros de mora vencidos à taxa legal desde .../.../2016».

6. Notificada da sentença em 13.05.2022, e não se conformando com a mesma, a Ré interpôs o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
«1. A doença da Recorrente impediu que esta cumprisse a apresentação da contestação no prazo legal e mesmo após a sua alta hospitalar, sendo este incumprimento resultante de facto que não lhe pode ser imputado, tratando-se de um justo impedimento, conforme prevê o nº 1 do artigo 140º do Código de Processo Civil.
2. A Autora/Recorrida intentou esta acção especial de prestação de contas contra a ora Recorrente, alegando a sua qualidade de cabeça-de-casal da herança do falecido AA, por ter sido casada com o mesmo, sem comprovar essa qualidade;
3. A Autora apenas juntou um certificado de óbito de AA, que foi emitido por uma autoridade dos Estados Unidos da América,
4. Óbito que não comprova ter sido registado em qualquer posto consular daquele país e não se mostra transcrito para a ordem jurídica portuguesa até à presente data, uma vez que este não tem qualquer averbamento no seu assento de nascimento.
5. Assim como também não se mostra transcrito qualquer casamento com a Autora,
6. tendo o AA falecido no estado de divorciado de DD.
7. Cabia à Autora apresentar a certidão do assento de casamento com o falecido AA,
8. E comprovar a transcrição para a ordem jurídica portuguesa, quer do seu casamento com o falecido, quer do óbito.
9. Assim, não tem sido transcrito o óbito do AA para a ordem jurídica portuguesa, não se produziram quaisquer efeitos jurídicos decorrentes do seu falecimento, nomeadamente, os seus efeitos sucessórios.
10.Para além disso, a Autora intentou a presente acção de prestação de contas desacompanhada dos herdeiros do falecido AA, nomeadamente as suas duas (2) filhas.
11.A actuação em juízo de uma herança para pedir prestação de contas pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, por se tratar de uma situação de litisconsórcio necessário activo, como decorre do nº 1 do artigo 2.091º do Código Civil e em conformidade com o nº 2 do artigo 33º do Código de Processo Civil.
12.A herança do falecido AA não tem qualquer direito a pedir prestação de contas à Recorrente, porque esta actuou no exercício de um mandato que terminou antes do seu falecimento, e só o falecido poderia exigir contas, que lhe foram prestadas em devido tempo pela Recorrente, em cumprimento pelo disposto na alínea d) do artigo 1.161º do Código Civil.
13.Nos termos conjugados da alínea e) do nº 1 do artigo 577º, com o artigo 578º, ambos do Código de Processo Civil, a ilegitimidade é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso.
14.Por isso, cabia ao Tribunal “a quo” conhecer oficiosamente a mencionada excepção dilatória de ilegitimidade activa da Autora/Recorrida.
15.Bem como conhecer as demais questões relativas à existência do direito da herança a pedir contas à Recorrente que actuou numa relação de mandato, que findou antes do falecimento do mandante.
16.Mostram-se, deste modo, violadas as disposições legais constantes da alínea d) do artigo 1.161º e do nº 1 do artigo 2.091º, ambos do Código Civil, bem como do nº 2 do artigo 33º, da alínea e) do nº 1 do artigo 577º e do artigo 578º, todos do Código de Processo Civil.
17. O que determina que se verifique uma das causas de nulidade de sentença, prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, por violação do disposto no nº 2 do artigo 607º do mesmo Código de Processo Civil, porquanto existe omissão de pronúncia em questões que são do conhecimento oficioso e tinham de ser apreciadas.

7. A Autora não apresentou contra-alegações.

8. No despacho de admissão do recurso, a Senhora juíza declarou entender que a decisão proferida não padece de qualquer nulidade.

9. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objeto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objeto do recurso se limita pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, as questões colocadas no presente recurso de apelação, pela sua ordem lógica de apreciação são as de saber se: i) se verifica o invocado justo impedimento para a não apresentação de contestação; ii) a sentença enferma de nulidade por omissão de pronúncia; iii) a cabeça-de-casal não comprovou documentalmente a sua qualidade e legitimidade para instaurar a presente ação; iv) em qualquer caso, a autora não é parte legítima por preterição de litisconsórcio necessário ativo, com os demais herdeiros; v) não assiste à herança o direito de pedir a prestação de contas, por haverem sido prestadas ao falecido mandante.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto:
1. Para além do que consta no relatório, após prolação de despacho onde foram tabelarmente julgados verificados os pressupostos processuais, declarando-se a legitimidade da autora, a fundamentação expendida pela Senhora Juíza na sentença recorrida, na parte atinente à condenação da Ré, foi a seguinte:
«III - Fundamentação
Atendendo à falta de contestação e impugnação das contas apresentadas, consideram-se provadas as verbas apresentadas pela A. a título de receitas e despesas sob a forma de conta corrente no requerimento de 13.12.2021.
a) Do Direito
É com fundamento no disposto nos artigos 1161º, alínea d), do Código Civil e 941º, do Código de Processo Civil, que a A. demanda a R. enquanto procuradora do autor da herança, falecido em .../.../2016, para apresentar as contas da sua administração de duas fracções autónomas que, na proporção de metade, integravam património daquele e que a Ré vendeu.
Com base no mandato que lhe foi conferido, a Ré outorgou dois contratos de compra e venda relativos às duas fracções, um em 4.04.2016 e outro em 15.06.2016, tendo recebido as respectivos preços no valor de 30.000,00€ e 103.000,00€, do qual metade pertencia e deveria ter sido entregue ao falecido e por morte deste à respectiva herança, ora Autora.
Como se provou, com o óbito de AA caducou o mandato (art. 1174º, al. a), do CC), encontrando-se a Ré obrigada a prestar contas desde aquele óbito e a entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste (art. 1161º, als. d) e e), do CC).
Das contas apresentadas pela Autora, resulta um saldo final de 81.144,44€, correspondente à soma das quantias de 15.000,00€ e 51.500,00€, respectivamente acrescidas dos juros de mora calculados à taxa legal e que a autora liquidou desde a data da outorga dos contratos de compra e venda (04.04.2016 e 15.06.2016).
Acontece, porém, como já antes referimos, apenas com a caducidade do mandato era exigível à Ré prestar contas e entregar o recebido.
Assim, apenas se pode considerar os juros vencidos desde a data do óbito do autor da herança, ou seja, .../.../2016.
Considerando o supra exposto, julgo prestadas as contas da administração da Ré relativamente às fracções autónomas designadas pela letra J, correspondente ao segundo andar frente direito, destinada a habitação, do prédio denominado Urbanização ..., em Gambelas, Faro, e pela letra E, destinada a habitação, correspondente ao segundo andar direito do prédio sito na Rua ..., em Faro, que pertenciam, na proporção de metade a AA, considerando ser de fixar um saldo positivo de 66.500,00€, acrescido dos juros de mora vencidos à taxa legal desde .../.../2016, condenando-se a Ré no pagamento dessa quantia a título de saldo final.(…)».
2. Para além do referido, e considerando as alegações da Ré, importa ainda atentar no seguinte desenvolvimento processual:
- Na petição inicial, apresentada em 05 de maio de 2021, a autora alegou que:
«1.º O Sr. AA faleceu em .../.../2016, nos Estados Unidos da América, no estado de casado com a Sra. BB, conforme documento n.º 1.
2.º A Sra. BB é, assim, a cabeça-de-casal da respetiva herança (cfr. cit. documento n.º 1).
3.º Tal herança, embora tenha sido aberta, ainda não foi aceite por todos os sucessíveis nem declarada vaga para o Estado.
4.º Pelo que, tem personalidade judiciária – artigo 12.º, alínea a), do Código de Processo Civil.
5.º Ora, o falecido AA e o irmão deste, EE, eram herdeiros de um vasto património, por óbito dos seus pais, FF e GG, conforme documento n.º 2.
6.º E, entre tais bens, estavam incluídas:
a) a fração autónoma designada pela letra J, corresponde ao segundo andar frente direito, destinado a habitação, integrado no prédio urbano denominado Urbanização ..., sito em Gambelas, freguesia do Montenegro, concelho de Faro, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...08
e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º ...06; e
b) a fração autónoma designada pela letra E, destinada a habitação, que corresponde ao segundo andar direito do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., União das freguesias de Faro (Sé e São Pedro), concelho de Faro, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...65, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º ...23, conforme documentos n.ºs 3 e 4, que se juntam e se dão por reproduzidos.
7.º Ora, por escritura lavrada no Cartório Notarial ..., sito em Faro, em 20 de Maio de 2015, o falecido AA tinha constituído a Ré como sua procuradora.
8.º Sucede que, após o óbito do falecido AA, tomou-se conhecimento de que, sem que tivesse existido qualquer prévia comunicação ao falecido AA, a Ré outorgou, em nome do falecido AA, entre outros, 2 (dois) contratos de compra e venda dos imóveis acima identificados, em 4 de Abril de 2016 e 15 de Junho de 2016, no âmbito dos quais recebeu, em nome deste, respetivamente €: 30.000,00 (trinta mil euros) e €: 103.000,00 (cento e três mil euros), dos quais metade pertenciam ao falecido, conforme documentos n.ºs 5 e 6 que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos.
9.º Assim, como se mostra evidente, metade do valor recebido, ou seja, €: 66.500,00 (sessenta e seis mil e quinhentos euros) devia ter sido de imediato depositado na conta bancária do falecido AA.
10.º Pois, o valor entregue pelos compradores de tais imóveis não pertence à Ré, mas, antes, ao Sr. AA, entretanto falecido.
11.º A Sra. BB já entrou inúmeras vezes em contacto com a Ré, solicitando a restituição de tal montante.
12.º A Ré, contudo, nega-se a entregar tal valor, sem qualquer justificação ou explicação.
13.º E, não restituiu até hoje a quantia em questão.
14.º A Ré bem sabia que a quantia monetária que lhe foi entregue, na qualidade de procuradora do falecido AA, não lhe pertence.
15.º E, que deveria ser entregue ao falecido AA.
16.º Ou, após o óbito deste, aos seus herdeiros.
17.º Não obstante, a Ré integrou tal quantia no seu património, comportando-se como se fosse a proprietária do dinheiro. (…)
24.º Ora, conforme resulta do acima exposto, a Ré foi procuradora do falecido AA até .../.../2016, data em que caducou o mandato por morte do Sr. AA.
25.º A Requerida tinha, na qualidade de procuradora, poderes de administração dos bens do falecido AA.
26.º Aliás, no âmbito de tais poderes, a Ré outorgou, em nome do falecido AA, entre outros, 2 (dois) contratos de compra e venda dos imóveis acima identificados, em 4 de Abril de 2016 e 15 de Junho de 2016, no âmbito dos quais recebeu, em nome deste, respetivamente €: 30.000,00 (trinta mil euros) e €: 103.000,00 (cento e três mil euros).
27.º A extinção do mandato obriga à prestação de contas.
28.º Contudo, não obstante tenha sido interpelada para o efeito, até hoje a Ré não ofereceu nem prestou quaisquer contas.
29.º Pretende assim a Autora, pela presente ação, que o Ré preste contas da sua administração da sua administração como procuradora do falecido AA.».
3. Com a petição inicial a Autora juntou os documentos mencionados adiante de cada um dos factos alegados, designadamente, e no que aos termos do presente recurso importa: a certidão de óbito de AA, falecido em .../.../2016, nos Estados Unidos da América, no estado de casado com a Sra. BB, acompanhada ainda da certidão comprovativa do registo do casamento entre ambos, da dissolução do casamento anterior, por divórcio, e dos correspondentes certificados de tradução, tudo conforme fls. 19 a 21v.º.
4. Com as alegações de recurso a Ré juntou dois documentos:
a)- “Relatório Clínico” datado de 02.06.2022, subscrito pelo Dr. HH, especialidade: Medicina Geral e Familiar, com o seguinte teor:
“Para os devidos efeitos, e como médico assistente da doente supra identificada, se declara que a mesma sofria de Arritmia Cardíaca com crises de Taquicardia Paroxística, que “lhe causavam crise de Lipotimia com perda de conhecimento, não podendo ser sujeita a situações de stress, tendo culminado numa Ablação Cardíaca realizada no Hospital de Santa Cruz em Lisboa a 18/10/2021. Por esta razão clínica a doente não pôde comparecer no Tribunal Judicial de Faro durante o mês de Maio de 2021”.
b)- Cópia integral do assento de nascimento de AA, com o n.º ..., emitida pela Conservatória do Registo Civil de Faro em 31.05.2022, na qual consta como averbamento n.º 2 a dissolução do casamento com DD, averbado sob o n.º 1, por divórcio, decretado por sentença de 24 de junho de 1983, proferida pelo Tribunal da Comarca do Condado de Arlington, Estado da Virgínia, Estados Unidos da América, revista e confirmada.
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III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. – Do justo impedimento
Como “questão prévia” a Recorrente veio nas alegações de recurso, invocar a existência de justo impedimento para a não apresentação de contestação, aduzindo que foi notificada para contestar a presente ação no dia 19.05.2021[4], mas “padece de grave doença cardíaca desde, pelo menos, o mês de Maio de 2021 e que se mantém até esta data, doença que tem e tem tido graves reflexos na sua capacidade de gestão da sua vida pessoal. E, assim, no período compreendido entre Maio a Outubro de 2021, a Recorrente sofreu vários internamentos e foi sujeita a várias intervenções cirúrgicas, conforme comprova pelo relatório médico que junta como Documento n.º 1, tendo ficado com um debilitado estado de saúde, que impediu que tivesse consciência do processo em curso e para o qual tinha sido notificada para contestar”.
Mais aduziu que, “mesmo a sua alta hospitalar, ocorrida em Novembro de 2021, não lhe trouxe o discernimento necessário para recordar a existência deste processo judicial e procurar mandatário para a defender, realidade com a qual só agora voltou a contactar ao ser notificada da douta sentença proferida. A doença da Recorrente impediu que esta cumprisse a apresentação da contestação no prazo legal e mesmo após a sua alta hospitalar, sendo este incumprimento resultante de facto que não lhe pode ser imputado, tratando-se de um justo impedimento, conforme prevê o nº 1 do artigo 140º do Código de Processo Civil”.
Vejamos.
De acordo com o preceituado no artigo 573.º, n.º 1, do CPC, que consagra o princípio da concentração da defesa na contestação, «toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado».
Por seu turno, o n.º 2 do preceito prevê a denominada defesa superveniente, ao estatuir que depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.
Vale isto por dizer que a oportunidade para a Ré deduzir a defesa que pretendia apresentar se encontrava – como não pode deixar de ser em face da expressa estatuição legal –, no momento da contestação, cujo prazo de apresentação, estabelecido na lei, configura um prazo perentório, nos termos do artigo 139.º, n.ºs 1 e 3 do CPC, cujo decurso extingue o direito de praticar o ato, ressalvadas as possibilidades legalmente previstas de o mesmo ser ainda praticado posteriormente, entre as quais se inclui a ocorrência de situação de justo impedimento (artigos 139.º, n.º 4 e 140.º do CPC, única que ora importa considerar).
Dispõe o artigo 140.º, n.º 1, do CPC que “considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do ato”, estatuindo o n.º 2 do preceito, que “a parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respetiva prova”, acrescentando seguidamente que o juiz, ouvida a parte contrária, admite o requerente a praticar o ato fora do prazo, se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.
São, portanto, requisitos cumulativos para que possa ser declarada pelo juiz a existência de justo impedimento: i) que o evento invocado não seja imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários; ii) que esse evento determine a impossibilidade de praticar tempestivamente o ato omitido; iii) que a parte se apresente a requerer a prática do ato omitido logo que o evento impeditivo cesse; iv) e que ofereça logo a prova dos factos atinentes ao alegado evento impeditivo.
Existem, pois, requisitos de natureza formal e substancial a cumprir, de natureza cumulativa, o que bem se compreende se tivermos presente que, não fora esta invocação, o decurso do prazo perentório já extinguira o direito da parte praticar o ato, quando já extemporaneamente se apresenta a requerer a sua admissão com o fundamento na existência de um circunstancialismo factual obstaculizador da sua prática atempada.
Não estamos, pois, perante questão de conhecimento oficioso.
Isto dito, in casu, é evidente que a invocação está votada ao insucesso, desde logo por uma razão de ordem formal.
Com efeito, é pacífico e reiterado o entendimento exemplarmente vertido inter alia no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Março de 2010[5], enfatizando que:
«Os recursos, como é sabido, são meios de apreciação de decisões proferidas pelos tribunais inferiores e já não instrumentos com vista à apreciação de questões colocadas ex novo.
Através deles colocam as Partes, aos tribunais superiores, as críticas tidas por pertinentes, com vista a obterem a alteração do por aqueles julgado, em função das questões vertidas nas respectivas peças processuais. Só perante questões de conhecimento oficioso podem e devem os tribunais de recurso intervir (facto que, como é evidente, não inibe as Partes de as colocarem)».
Foi o que aconteceu no caso, porque a Apelante colocou pela primeira vez nas alegações de recurso, questão que devia ter sido colocada em primeira instância, e não foi, olvidando a regra basilar do sistema recursório vigente, de que os recursos se destinam a impugnar decisões já proferidas com vista ao seu reexame, e não a fazer o julgamento de questões colocadas ex novo perante o tribunal superior.
Efetivamente, pretendendo a Recorrente suscitar a existência de justo impedimento para a apresentação da contestação, atento o referido recorte legal do instituto, teria que o ter feito perante a primeira instância, recorrendo depois, caso o incidente não fosse atendido, para que a Relação reapreciasse essa decisão.
Não o tendo feito, e invocando pela primeira vez nesta instância o incidente cuja decisão pretende ver proferida, que não configura questão de conhecimento oficioso, não pode este tribunal conhecer do invocado incidente de justo impedimento para a não apresentação da contestação.
Improcede, pois, sem necessidade de maiores considerações, a primeira questão suscitada.
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III.2.2. – Da nulidade por omissão de pronúncia
Invoca a Recorrente que na sentença recorrida não foram apreciadas questões, que o deviam ter sido, por serem de conhecimento oficioso, referindo-se concretamente à sua nulidade por não ter emitido pronúncia sobre a ilegitimidade ativa da Autora e a inexistência do direito da herança a pedir a prestação de contas.
Vejamos.
Estabelece a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Esta causa de nulidade da sentença ou acórdão consiste, portanto, na omissão de pronúncia, sobre as questões que o tribunal devia conhecer; ou na pronúncia indevida, quanto a questões de que não podia tomar conhecimento[6].
Esta nulidade está em correspondência direta com o vertido no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, que impõe ao juiz a resolução de todas as questões que as partes submeteram à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras, não podendo, porém ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo as que sejam de conhecimento oficioso, constituindo, portanto, a sanção prevista na lei processual para a violação pelo juiz do dever estabelecido no referido artigo[7].
Como lembra FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA[8] «[i]ntegra esta causa de nulidade a omissão do conhecimento (total ou parcial) do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão (não a fundamentação jurídica adrede invocada por qualquer das partes).
Não confundir, porém, questões com razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vingar as suas posições (jurídico-processuais ou jurídico-substantivas); só a omissão de abordagem de uma qualquer questão temática central integra o vício invalidante da sentença, que não a falta de consideração de um qualquer elemento da retórica argumentativa produzida pelas partes».
Postos estes ensinamentos é linear concluir que a nulidade por omissão ou por excesso de pronúncia a que alude agora o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, por referência ao artigo 608.º, n.º 2, está configurada para a decisão de mérito proferida pelo juiz que lavra a sentença sem decidir todas as questões que as partes lhe colocaram para resolução ou cujo conhecimento oficioso se lhe impunha, ou ainda, inversamente, decidindo questões que as mesmas não submeteram à respetiva apreciação.
No caso vertente, não podemos olvidar que não houve contestação.
Assim, as questões suscitadas no recurso, foram enfrentadas na sentença recorrida, mas sem que tivesse que existir o desenvolvimento correspondente à fundamentação de uma questão controvertida, quando então não o era.
Revertendo ao caso em presença temos que, aquando do saneamento tabelar dos autos, a julgadora, não vendo que tal como a ação foi configurada se suscitava alguma questão a respeito da prova documental junta, da legitimidade da representante ou da personalidade judiciária da herança jacente, afirmou expressamente que «as partes têm personalidade e capacidade judiciárias, possuem legitimidade e a autora está regularmente patrocinada. Inexistem questões prévias ou outras excepções dilatórias que obstem desde já ao conhecimento do mérito da causa»[9].
Depois, a respeito da razão pela qual entendia que a Ré tinha que prestar contas, na fundamentação jurídica da causa, a julgadora referiu-se à falta de contestação e impugnação das contas apresentadas, afirmando seguidamente que «como se provou, com o óbito de AA caducou o mandato (art. 1174º, al. a), do CC), encontrando-se a Ré obrigada a prestar contas desde aquele óbito e a entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste (art. 1161º, als. d) e e), do CC)».
Portanto, inexiste a propalada omissão de pronúncia sobre as invocadas “questões”.
Na verdade, e salvo o devido respeito, a Apelante confunde nulidade com erro de julgamento.
Porém, conforme o Supremo Tribunal de Justiça tem repetidamente afirmado «não há que confundir entre nulidades de decisão e erros de julgamento. As primeiras (error in procedendo) são vícios intrínsecos (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, isto é, trata-se de vícios que afetam a regularidade do silogismo judiciário) da peça processual que é a decisão, nada tendo a ver com erros de julgamento (error in iudicando), seja em matéria de facto, seja em matéria de direito»[10].
Do que vem dito já se compreende que a arguição efetuada pela Ré na apelação não configura nulidade mas, a existir, erro de julgamento, por um lado, na vertente de facto da causa, considerada na decisão recorrida em face da não contestação, quanto à legitimidade da Autora e, por outro, da alegada existência de erro no segmento da decisão do qual a Recorrente dissente por considerar não haver que prestar contas à herança.
Portanto, não existe a invocada nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia, cumprindo assim apreciar se ocorreu ou não erro de julgamento, o que este tribunal pode fazer, também quanto aos pressupostos processuais julgados tabelarmente verificados, por ser questão de conhecimento oficioso.
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III.2.3. – Da comprovação da qualidade e da legitimidade da cabeça-de-casal
Invoca ainda a Recorrente, que na presente ação especial de prestação de contas a Autora foi representada por BB, alegando a sua qualidade de cabeça-de-casal da herança do falecido AA, por ter sido casada com o mesmo, sem que haja comprovado documentalmente essa qualidade, porquanto não apresentou a certidão do assento de casamento com o falecido, nem a escritura de Habilitação de Herdeiros que permitissem conferir a qualidade de cabeça-de-casal que alega, e consequentemente a sua legitimidade para representar a herança jacente.
Nesta alegação, estão colocadas duas questões.
A primeira concerne à invocada inexistência de prova do casamento e do óbito do falecido.
Com efeito, aduz a Recorrente, que a Autora apenas juntou um certificado de óbito de AA, que foi emitido por uma autoridade dos Estados Unidos da América, óbito que não comprova ter sido registado em qualquer posto consular daquele país, e não se mostra transcrito para a ordem jurídica portuguesa até à presente data, uma vez que este não tem qualquer averbamento no seu assento de nascimento, conforme certidão do assento de nascimento do falecido que juntou como Documento nº 2, acima referido. Assim, conclui a Recorrente que, não tendo sido transcrito o óbito do AA para a ordem jurídica portuguesa, não se produziram quaisquer efeitos jurídicos decorrentes do seu falecimento, nomeadamente, os seus efeitos sucessórios, sendo que, como comprova a certidão do assento de nascimento que juntou, aquele faleceu no estado de divorciado de DD, e não no estado de casado com a Autora, como esta alega, casamento que também não se mostra transcrito na ordem jurídica portuguesa.
Cumpre, por isso verificar se, apesar da propalada inexistência de questões prévias no saneamento tabelar da causa, existia, como implicitamente entende a Recorrente, uma prova vinculada à qual o tribunal não atendeu, ou seja, se no caso em presença, era necessário que aqueles factos estivessem transcritos em Portugal para que os seus efeitos sejam atendíveis nesta ação de prestação de contas.
Apreciando.
É certo que do assento de nascimento de AA que se encontra transcrito na Conservatória do Registo Civil de Faro apenas consta o acima mencionado no ponto 4.b), não constando averbado o seu casamento com BB, que se apresenta como representante da Autora[11], nem o seu óbito.
Porém, conforme referido no ponto 3, com a petição inicial a Autora juntou os documentos mencionados adiante de cada um dos factos alegados, designadamente, e no que aos termos do presente recurso importa: a certidão de óbito de AA, falecido em .../.../2016, nos Estados Unidos da América, no estado de casado com BB, acompanhada ainda da certidão comprovativa do registo do casamento entre ambos, da dissolução do casamento anterior, por divórcio, e dos correspondentes certificados de tradução, conforme fls. 19 a 21v.º.
In casu, não tendo havido contestação, a autenticidade de tais documentos não foi colocada em causa. Aliás, a Recorrente, ao longo da sua peça processual várias vezes se refere ao falecido e também não nega que este tenha sido casado com a identificada senhora, o que pretende é que a mera apresentação daqueles documentos emitidos por autoridade estrangeira e a não transcrição desses factos no registo civil em Portugal, impede a produção dos seus efeitos jurídicos.
Somos, pois, reconduzidos à questão de saber se é possível a aquisição, como matéria de facto provada, da alegação efetuada pela autora no acima transcrito artigo 1.º da petição inicial, de que AA faleceu em .../.../2016, nos Estados Unidos da América, no estado de casado com BB, sem que tal facto conste transcrito no registo civil em Portugal, conforme se alcança da certidão do assento de nascimento junta aos autos pela Recorrente.
Vejamos.
Dispõe o artigo 1.º, n.º 1, alíneas d), p) e q), do Código do Registo Civil, aprovado pelo DL n.º 131/95, de 06 de junho[12], que o registo civil é obrigatório e tem por objeto, na parte que ora importa, o casamento, o óbito, e os factos que determinem a modificação ou extinção de qualquer dos factos indicados e os que decorram de imposição legal.
Por seu turno, decorre dos artigos 2.º a 4.º do mesmo diploma legal que, salvo disposição legal em contrário, os factos cujo registo é obrigatório só podem ser invocados depois de registados, não podendo a prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas ações de estado e nas ações de registo, e só podendo a prova dos factos sujeitos a registo ser feita pelos meios previstos neste Código.
Diz-nos depois o artigo 6.º, n.ºs 1 e 2, do citado diploma legal, que rege sobre os atos lavrados pelas autoridades estrangeiras, que os atos de registo lavrados no estrangeiro pelas entidades estrangeiras competentes podem ingressar no registo civil nacional, em face dos documentos que os comprovem, de acordo com a respetiva lei e mediante a prova de que não contrariam os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português; e que os atos relativos ao estado civil lavrados no estrangeiro perante as autoridades locais que devam ser averbados aos assentos das conservatórias são previamente registados, por meio de assento, nas conservatórias do registo civil ou na Conservatória dos Registos Centrais, de acordo com as regras de competência previstas nos artigos 10.º e 11.º. Com interesse, estabelece ainda o n.º 2 do referido artigo 10.º, que compete às mesmas conservatórias lavrar os registos: a) de casamento celebrado no estrangeiro; e b), de óbito ocorrido no estrangeiro.
Assim, em face destes preceitos legais, será que não tendo o casamento celebrado no estrangeiro e o óbito ocorrido no estrangeiro, apesar de atestados pelas entidades estrangeiras competentes, não podem ser atendidos nestes autos por não terem ingressado no registo civil nacional?
Cremos que, in casu, a resposta não pode deixar de ser negativa, e desde logo pela razão de que a presente ação não foi contestada.
Com efeito, estabelece o artigo 549.º, n.º 1, do CPC, que “os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns (…)”. Assim, conjugando este preceito com o disposto no artigo 942.º, n.º 1, onde se prevê que o réu é citado para apresentar as contas “ou contestar a ação”, regulando-se seguidamente o processo especial no concernente à apresentação de contas propriamente dita e dedução de oposição, mas nada se referindo quanto à falta de contestação dos fundamentos da ação, temos que concluir, em face do preceituado nestes normativos, que se aplica o disposto no artigo 574.º, n.º 2, do CPC, considerando-se admitidos por acordo os factos articulados pela Autora, que não foram impugnados, salvo se, para além das demais situações referidas, não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito.
Não desconhecendo que é controvertida a questão de saber se factos sujeitos a registo obrigatório, como são o casamento e o óbito, podem ser considerados provados, designadamente por acordo, ou confissão, em face do preceituado nos citados artigos 1.º e 4.º do CRC, aderimos ao entendimento que temos como mais correto que quando o facto a provar desse modo não constitua o thema decidendum da ação em apreço, nada obsta a que se produza o efeito cominatório decorrente da confissão ficta[13].
Em abono desta posição, louvamo-nos na fundamentação expressa nos citados arestos do nosso mais Alto Tribunal, em casos em que as instâncias tinham entendido que não podiam considerar provado o casamento por não ter sido feita a prova nos termos dos artigos 1º, nº 1 d), 4º e 211º do CRC, e o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que “[d]eve entender-se, porém, que daqueles artigos não resulta que o casamento, ou outro facto sujeito a registo, tenha sempre de ser provado pelos meios referidos no art. 211. Não se tratando de acção de estado e se a situação de casado é apenas invocada para efeitos patrimoniais não constituindo o «thema decidendum» mas apenas mera condicionante, nada impede que se considere provada se não foi contestada ou impugnada”[14].
JOSÉ MANUEL VILALONGA[15], depois de referir que a função probatória do registo assume particular relevo, acrescenta que “o facto de se tratar de um instituto que monopoliza os meios de prova do casamento não significa que o ato tenha que ser provado sempre que for invocado. Nada na lei inculca esta solução, PEREIRA COELHO não a defende (e, em bom rigor, nenhum Autor), e a Jurisprudência chega mesmo a negá-la”.
Dito de outro modo, “[o] casamento é um facto jurídico que, nos termos dos artºs. 1º, n.º 1, d), 4º, e 211º, todos do Cód. Registo Civil, só pode provar-se por um dos meios indicados no último preceito, entre os quais senão inclui a confissão.
Todavia, em processo civil, o estado civil ou o parentesco podem alcançar-se mediante acordo das partes ou confissão sempre que os respectivos factos jurídicos não constituam objecto directo da acção, antes constituindo relações jurídicas prejudiciais ou condicionantes, meros pressupostos da decisão a proferir, elementos da hipótese de facto da norma (1). (…)
Assim tratado o casamento como facto pode a sua realidade ser alcançada por admissão por acordo ou confissão, nos termos dos artºs. 352º, 354º, a), 355º, 356º, do Cód. Civil, e 484º, n.º 1, do Cód.de Procº. Civil.”[16].
Mais recentemente, e mantendo este mesmo sentido decisório o Supremo Tribunal de Justiça afirmou cristalinamente, que “[n]ão estando o casamento dos réus e o respectivo regime englobados no tema decidendum é admissível a sua demonstração por confissão tácita, sendo desnecessária a sua demonstração por documento extraído do registo civil”[17].
Subscrevendo este entendimento e revertendo ao caso em presença, resta-nos apenas acrescentar que nesta ação de prestação de contas, não só o casamento e o óbito não são o tema decidendum, já que não constituem objeto direto da ação, mas meros pressupostos da decisão a proferir, como até, para além da confissão ficta existe prova documental dos mesmos, faltando apenas a sua transcrição em Portugal. Como assim, admitindo-se a possibilidade de prova por outro meio que não o extraído do registo civil, havendo na situação em apreço documentos probatórios daqueles factos cuja autenticidade não foi impugnada, também por maioria de razão, a falta da sua transcrição no assento respetivo em Portugal, não impede que se considerem provadas tais relações jurídicas prejudiciais ou condicionantes, que constituem meros pressupostos da decisão a proferir.
Improcede, pois, a invocação da Apelante de que a Autora não demonstrou aqueles dois factos: o casamento e o óbito, consubstanciadores de relações jurídicas prejudiciais da decisão a proferir, devendo, ao invés, considerar-se demonstrado, tal como alegado no artigo 1.º da petição inicial, não contestado e documentalmente provado, que “O Sr. AA faleceu em .../.../2016, nos Estados Unidos da América, no estado de casado com a Sra. BB.
Defende, ainda, a Recorrente que a Autora (referindo-se obviamente à respetiva representante), também não comprovou a sua invocada qualidade de cabeça-de-casal da respetiva herança, porque não juntou a escritura de Habilitação de Herdeiros que permitisse conferir a qualidade que alega, e consequentemente a sua legitimidade para representar a herança jacente.
Salvo o devido respeito, cremos que a Apelante parte da premissa que o exercício do cabecelato depende da habilitação de herdeiros, e não é assim.
Como vimos supra, no artigo 2.º da petição inicial vem alegado que “A Sra. BB é, assim, a cabeça-de-casal da respetiva herança (cfr. cit. documento n.º 1)”.
Desta alegação e remissão para o mesmo documento n.º 1, ou seja, para o certificado de casamento e para a certidão de óbito, extrai-se a sua alegada qualidade, em face do que dispõe a lei.
Efetivamente, sendo a Sra. BB casada com o Sr. AA aquando do falecimento deste, é sua herdeira legitimária, conforme preceituado no artigo 2157.º do Código Civil[18]. Ora, de acordo com o artigo 2079.º do CC, “a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal”, cargo que, de harmonia com o disposto no artigo 2080.º, n.º 1, alínea a), se defere, pela ordem indicada no preceito, ou seja, em primeiro lugar, ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal”.
Portanto, o cargo de cabeça-de-casal defere-se prioritariamente ex lege, não sendo necessária a escritura de habilitação de herdeiros para assumir tal qualidade.
Pelo exposto, improcede igualmente esta questão, por se mostrar comprovada a qualidade e legitimidade da cabeça-de-casal para representar a herança jacente em juízo.
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III.2.4. – Da legitimidade da herança jacente
Invocou ainda a Apelante que a Autora é parte ilegítima, porque esta ação de prestação de contas tem que ser proposta por todos os herdeiros do falecido, no caso, também pelas suas duas filhas, tendo havido preterição de litisconsórcio necessário ativo.
Conforme já referimos, ao longo das alegações perpassa o uso indistinto da qualidade de Autora, para mencionar tanto a herança como a sua representante.
Porém, já dissemos, e repetimos, que a Autora é a herança jacente e não a pessoa singular que outorgou o instrumento de procuração para que a presente ação fosse instaurada, afirmando-se expressamente no introito da petição inicial, em letras destacadas em maiúsculas e negrito HERANÇA JACENTE DE AA, e depois, em tamanho regular e minúsculas, “aqui representada pela cabeça de casal”.
Portanto, tendo presente que na petição inicial foi invocado que a herança ainda não tinha sido aceite por todos os sucessíveis, o que importa aquilatar é se perpassa afinal dos autos que a mesma havia já sido aceite por algum dos herdeiros sucessíveis, e concretamente pela que se apresentou a representar a herança, uma vez que, a partir do momento em que um dos herdeiros a aceita, a herança deixa de estar jacente, e consequentemente de dispor de personalidade judiciária.
Conforme sintetiza CRISTINA ARAÚJO DIAS[19] “[a] aceitação ou o repúdio da sucessão não são simultâneos ao chamamento sucessório. Durante este período entre o chamamento e a aceitação, em que não existiu ainda resposta por parte do chamado, a herança está numa situação de jacência. (…)
A natureza jurídica da herança jacente tem sido discutida[20]. Sendo certo que a herança jacente não tem como seu titular nem o de cuius nem os sucessíveis, que ainda não aceitaram a herança, também é certo que não lhe é atribuída personalidade jurídica. Em todo o caso, a herança jacente tem personalidade judiciária”.
Nas palavras de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[21], “[a] figura da herança jacente, a que se referem os artigos 2046.º a 2049.º designa o património da pessoa falecida durante o período de crise que decorre entre o chamamento do sucessível e a aceitação efectiva da herança ou do legado, ou seja, entre o momento da vocação sucessória e a devolução efectiva dos bens e dos deveres que integram a herança”. Assim, “enquanto a herança (…) não for aceita (expressa ou tacitamente), haverá sempre uma série de situações jurídicas anómalas, embora transitórias, provenientes de duas circunstâncias: primeiro, da falta (temporária) de um dos sujeitos das múltiplas relações transmissíveis encabeçadas no falecido; segundo, da multiplicidade e variedade de actos em que pode desdobrar-se o processo de substituição efectiva do de cuius pelos futuros titulares das relações hereditárias.
Desta situação temporária de crise das relações jurídicas atingidas pela morte do seu titular e proveniente também do propósito de a lei não querer forçar a aceitação ou o repúdio precipitado do chamado é que provém, em grande parte, a singularidade e a excepcional riqueza normativa do direito sucessório (…)”.
Efetivamente, de acordo com a previsão do artigo 2046.º, n.º 1, do CC, “diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado”, ou seja, apesar de se ter aberto no momento da morte do de cuius (artigo 2031.º do CC), os sucessíveis ainda não a aceitaram e não foi declarada vaga para o Estado, nos termos da lei de processo, por haver sido reconhecida judicialmente a inexistência de outros sucessíveis legítimos (artigo 2155.º do CC).
Assim sendo, a herança jacente não pode ser confundida com a herança indivisa que, não obstante permanecer ainda em situação de indivisão por não ter sido efetuada a partilha, já foi aceite por algum dos sucessíveis que foram chamados à titularidade das relações jurídicas que dela fazem parte, porquanto só a primeira detém personalidade judiciária e tem legitimidade para estar em juízo, por si só.
Com efeito, por expressa intenção do legislador, consagrada no artigo 12.º, alínea a), do CPC, a herança jacente tem personalidade judiciária, ou seja, a suscetibilidade de ser parte (artigo 11.º, n.º 1, do CPC). Assim, embora carecida de personalidade jurídica, por via da decretada extensão da personalidade judiciária de que beneficia, a herança jacente pode propor ações em juízo, sendo a herança a verdadeira parte na ação e não quem aja em juízo em nome dela[22].
Ademais, o artigo 2047.º, n.º 1, do CC prevê que o sucessível chamado à herança, se ainda a não tiver aceitado nem repudiado, não está inibido de providenciar acerca da administração dos bens, se do retardamento das providências puderem resultar prejuízos. Como já referimos, BB é herdeira legitimária do falecido marido, (devendo entender-se que o referido preceito se reporta ao herdeiro[23]), tendo invocado no artigo 3.º da petição inicial que a herança, embora tenha sido aberta, ainda não foi aceite por todos os sucessíveis nem declarada vaga para o Estado. Mais invocou, justificando a necessidade da administração da herança, que já entrou inúmeras vezes em contacto com a Ré, ora Apelante, solicitando a restituição do montante que devia ter entregue ao falecido na sequência da venda de imóveis que lhe pertenciam na proporção de metade, ou após o óbito, aos herdeiros deste, mas negando-se aquela a restituir tal valor, sem qualquer justificação ou explicação.
Pese embora, como já referido, não tenha contestado a ação, a Apelante vem dizer que a Autora/Recorrida omitiu mencionar a existência de outros herdeiros do falecido, omissão que, como se verifica dos transcritos artigos 3.º e 16.º da petição inicial, não aconteceu.
De facto, não foram nomeadas pela Autora as duas filhas do falecido que a Recorrente vem agora identificar, mas de tal não decorre in casu qualquer efeito, uma vez que houve expressa referência à existência de outros herdeiros, para além da cabeça-de-casal, e não houve da parte da Apelante a apresentação de prova plena quanto à existência de aceitação da herança por parte destes, que determinasse, por via do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, a modificação da matéria de facto adquirida por confissão ficta.
Assim, como dito, não há que confundir a Autora herança jacente, com os herdeiros. E mais, ocorrendo situação em que a parte é ainda a herança jacente, pela especificidade deste período transitório, esta é parte legítima sem necessidade de intervenção de todos os sucessíveis (que podem até não ser ainda todos conhecidos).
Como impressivamente se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Março de 2001[24], “[s]endo a herança jacente a verdadeira parte em juízo não se pode falar na necessidade de intervenção conjunta de outros sucessíveis”.
Na situação em apreço, conforme acima referimos, está demonstrado por confissão ficta que a herança aberta ainda não foi aceita por todos os sucessíveis nem declarada vaga para o Estado. Por isso se tinha já adiantado que a Autora é a herança jacente e não quem se apresenta a representá-la, que no nosso caso tem a qualidade de herdeira, mas que até pode vir a repudiar a herança.
“Ora, permanecendo sem aceitação ou declaração de vacatura a favor do Estado (art. 2132º do C.Civil), a herança assume nesta situação transitória o lugar do de cujus sendo, pois, titular dos direitos e obrigações” [25].
Todavia, esta personificação judiciária cessa com a aceitação por parte de algum dos sucessores, efetuada nos termos previstos no artigo 2056.º do CC, criando-se, então, desde a aceitação da herança pelos herdeiros até à partilha, uma situação de litisconsórcio necessário.
In casu, nada nos autos permite concluir que a herança Autora tenha sido aceite por qualquer dos herdeiros, incluindo a própria representante, já que a aceitação da herança só se concretiza ou por um ato expresso ou por um ato tácito dos herdeiros.
Efetivamente, tal como resulta das formas de aceitação previstas no artigo 2056.º, n.ºs 1 e 2, do CC, a aceitação pode ser expressa ou tácita: é havida como expressa, quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir; sendo tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam – como decorre do n.º 1 do artigo 217.º do CC. Acrescenta, porém, o n.º 3 do referido artigo 2056.º que os atos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita.
Na verdade, conforme bem se notou no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.10.2015[26], “(…) A lei não define o momento em que se inicia a administração da herança, ao invés do que sucede quanto ao seu termo (artigo 2079.º do Civil).
Como refere Capelo de Sousa [10] a melhor solução para esta questão será o de atender a que a administração em causa está intimamente ligada à figura do cabeçalato [11] e a que o cargo de cabeça-de-casal prioritariamente se defere ex lege (nº 1 do artigo 2080.º do CCivil) a certas categorias de pessoas (que não são necessariamente herdeiras) independentemente quer da sua aceitação de tal cargo [12] quer da aceitação de eventual vocação hereditária. [13]”.
Explicando longamente as razões e a necessidade desta forma de administração da herança, prossegue afirmando “que desse facto não se retira, ainda que de forma tácita, que a recorrente haja aceite a herança, tanto mais como se refere no artigo 2056.º nº 3 do CCivil os actos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança. (…)
Com efeito, o nº 1 do artigo 2047.º apenas atribui uma faculdade jurídica ao sucessível ainda não aceitante ou repudiante (não lhe impondo uma obrigação jurídica (cfr. a expressão “não está inibido” daquela disposição) e apenas no caso de “do retardamento das providências poderem resultar prejuízos”, tudo o que se compagina com a possibilidade da existência, no período de jacência, de cabeça-de-casal, o qual, aliás, pode estar temporariamente impedido de tomar tais providências ou poder tomá-las mas não nas melhores condições”.
Revertendo estas considerações doutrinais e jurisprudenciais à situação em presença, é tempo de concluir, afirmando que in casu, estando demonstrado que a herança aberta por óbito de AA ainda não foi aceita por algum dos sucessíveis nem declarada vaga para o Estado, é a herança jacente que tem personalidade judiciária e legitimidade para instaurar a ação de prestação de contas, estando, na espécie, regularmente representada por pessoa a quem a lei admite incumbir a sua administração durante a situação de jacência, ou seja, a herdeira legitimária a quem a lei defere o cargo de cabeça-de-casal, sem que haja necessidade de intervenção dos demais sucessíveis.
Pelo exposto, improcede também a invocada ilegitimidade da Autora por preterição de litisconsórcio necessário ativo.
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III.2.5. – Do direito da herança à prestação de contas
Com o título “da inexistência do direito da herança a pedir prestação de contas”, veio a Recorrente alegar que “a herança do falecido AA não tem qualquer direito a pedir prestação de contas pelo exercício de um mandato que terminou antes do seu falecimento, contas que só o falecido poderia exigir e que, efectivamente, lhe foram prestadas em devido tempo pela Recorrente, em cumprimento pelo disposto na alínea d) do artigo 1.161º do Código Civil”.
Portanto, a própria Recorrente aceita – como, aliás, não podia deixar de ser em face do estatuído na alínea d) do artigo 1161.º do Código Civil –, que enquanto mandatária estava obrigada a prestar contas ao mandante.
Não obstante, coloca em causa a existência do direito da herança a pedir prestação de contas, aduzindo “que a venda dos dois quinhões pertencentes ao falecido por parte da Recorrente decorreu de uma relação de mandato, pelo qual o falecido conferiu poderes à Recorrente para o representar nas escrituras de venda desses dois quinhões.
E essas vendas ocorreram em datas anteriores, mesmo muito anteriores à data do seu falecimento, conforme está comprovado nos Autos, ou seja, ainda na vigência do mencionado mandato que o falecido conferiu à ora Recorrente.
O que significa que, para além da ilegitimidade activa da Autora/Recorrida, também se verifica que a herança do falecido AA não tem qualquer direito a pedir prestação de contas pelo exercício de um mandato que terminou antes do seu falecimento, contas que só o falecido poderia exigir e que, efectivamente, lhe foram prestadas em devido tempo pela Recorrente, em cumprimento pelo disposto na alínea d) do artigo 1.161º do Código Civil.
Pelo que também por este fundamento a Recorrente não está obrigada a prestar contas conforme exige a Autora no âmbito desta acção”.
Ademais, referiu ainda que esta questão não mereceu qualquer apreciação em primeira instância, invocando a existência da omissão de pronúncia, que no anterior ponto já julgámos não ter existido.
Acresce que, também ao contrário do que a Recorrente invoca, o tribunal a quo pronunciou-se expressamente quanto às razões de facto e de direito pelas quais considerava que a Ré tinha que prestar contas à Autora, afirmando: «É com fundamento no disposto nos artigos 1161º, alínea d), do Código Civil e 941º, do Código de Processo Civil, que a A. demanda a R. enquanto procuradora do autor da herança, falecido em .../.../2016, para apresentar as contas da sua administração de duas fracções autónomas que, na proporção de metade, integravam património daquele e que a Ré vendeu.
Com base no mandato que lhe foi conferido, a Ré outorgou dois contratos de compra e venda relativos às duas fracções, um em 4.04.2016 e outro em 15.06.2016, tendo recebido as respectivos preços no valor de 30.000,00€ e 103.000,00€, do qual metade pertencia e deveria ter sido entregue ao falecido e por morte deste à respectiva herança, ora Autora», adiantando ainda que «apenas com a caducidade do mandato era exigível à Ré prestar contas e entregar o recebido».
Portanto, também por esta fundamentação, nem se vê como poderia a este respeito proceder a sua pretensão, sendo ademais certo que os recursos não se destinam a apreciar questões novas – ressalvadas as de conhecimento oficioso – mas a reapreciar aquelas que foram, ou deviam ter sido objeto de apreciação em primeira instância.
Ora, no caso, o fundamento pelo qual a Recorrente invoca que não tinha que prestar contas à herança, tem como pressuposto um facto, que não foi oportunamente alegado, já que a Ré não apresentou contestação, tendo, pois, precludido o direito à sua demonstração em sede recursiva. Na verdade, diz agora a Apelante que não tem que prestar contas à herança porque as vendas ocorreram antes da morte do mandante (o que decorre da própria decisão impugnada, como a sua transcrição comprova), tendo-as prestado a este em devido tempo. Acontece que, este facto sublinhado – único que importa para o efeito –, sendo um facto extintivo do direito invocado pela autora, teria que ter sido oportunamente alegado na contestação da ação, para poder ser depois demonstrado, e não o foi já que, como vimos, a Ré não contestou.
Por seu turno, a Autora alegou nos artigos 8.º a 17.º da petição inicial que a Ré recebeu o valor das vendas dos imóveis, não tendo entregue nem ao falecido mandante, nem aos seus herdeiros após a morte daquele, a quantia monetária que lhe pertencia (metade do valor total), negando-se a restituir tal valor e integrando tal quantia no seu património.
Estabelece o artigo 549.º, n.º 1, do CPC, que “os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns (…)”. Assim, conjugando este preceito com o disposto no artigo 942.º, n.º 1, onde se prevê que o réu é citado para apresentar as contas “ou contestar a ação”, regulando-se seguidamente o processo especial no concernente à apresentação de contas propriamente dita e dedução de oposição, mas nada se referindo quanto à falta de contestação dos fundamentos da ação, temos que concluir, em face do preceituado nestes normativos, que se aplica o disposto no artigo 574.º, n.º 2, do CPC, considerando-se admitidos por acordo os factos articulados pela Autora, que não foram impugnados, já que não estamos perante factualidade que dependa de prova vinculada.
Nestes termos, mostrando-se inelutavelmente provado que a Ré, na qualidade de procuradora, não devolveu ao falecido mandante nem aos seus herdeiros a quantia monetária que lhe foi entregue, em nome daquele, na sequência dos contratos de compra e venda que celebrou enquanto mandatária, e de cujo valor metade pertencia ao falecido, incumbe-lhe prestar à herança as constas que deviam ter sido prestadas ao mandante, improcedendo, sem necessidade de ulteriores considerações, a questão deduzida pela Apelante atinente à invocada inexistência do direito da herança a pedir prestação de contas, porque não está demonstrado, (e precludiu o direito de o poder eventualmente ser), que as contas haviam sido prestadas ao mandante.
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, o presente recurso deve improceder, sendo de confirmar a decisão recorrida.
Vencida, a Recorrente suporta integralmente as custas do recurso, que no caso são apenas as custas de parte, tudo de harmonia com o princípio da causalidade e em face do preceituado nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do CPC.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
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Évora, 24 de novembro de 2022
Albertina Pedroso [27]
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

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[1] Juízo Local Cível - Juiz 2
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Francisco Xavier; 2.ª Adjunta: Maria João Sousa e Faro.
[3] Doravante abreviadamente CPC.
[4] Por evidente lapso de escrita referiu o ano de 2022.
[5] Proferido na 1.ª secção cível, no proc.º n.º 5521/03.0TBALM.S1, (Relator: URBANO DIAS).
[6] Cfr. JOSÉ ALBERTO DOS REIS, in Código de Processo Civil, Anotado, vol. V, págs. 142 e ss; e Ac. STJ de 19-04-2012, processo n.º 9870/05.5TBBRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, como a demais jurisprudência abaixo citada sem menção de outra fonte.
[7] Cfr., neste sentido, exemplificativamente, Ac. STJ de 12-01-2010, processo n.º 630/09.5YFLSB; Ac. TRL de 20-12-2010, processo n.º 1650/10.2TBOER-A.L1-1; e Ac. TRC de 29-02-2012, processo n.º 144732/10.9YIPRT.C1. Este entendimento jurisprudencial pacífico estriba-se na doutrina já defendida por ALBERTO DOS REIS, que, a propósito do correspondente normativo afirmava que se impõe ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, resultando a nulidade, precisamente, da infração pelo juiz desse dever que lhe está legalmente cometido.
[8] In Direito Processual Civil, vol. II, Almedina 2015, pág. 371.
[9] O sublinhado é nosso e adiante melhor se aquilatará da sua razão.
[10] Cfr., a título meramente exemplificativo, Ac. STJ de 24-04-2018, Revista n.º 2212/09.2TBSCR.L1.S1 - 6.ª Secção, igualmente disponível em www.stj.pt.
[11] E amiúde é indistintamente referida pela Recorrente, como sendo a Autora, apesar de estarmos perante posições jurídicas diversas, que não devem ser confundidas.
[12] Doravante abreviadamente designando CRC, nas sucessivas alterações, sendo a mais recente a introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14/08.
[13] A divergência jurisprudencial tornou-se evidente em processos em que havia sido alegado o casamento e o proveito comum do casal para responsabilizar ambos pelo pagamento da dívida contraída apenas por um dos cônjuges, sem que tivesse sido junto o assento de casamento. Assim, e a título meramente exemplificativo de arestos que decidiram no sentido por nós adotado, podem consultar-se os Acórdãos do STJ de 14.01.2003 (Proc.º 02A4346), de 06.02.2003 (Proc.º 02B4731), de 12.01.2006 (Proc. 05B3427), e, mais recentemente, de 08.09.2015 (proc.º 579/08.9TBABF.E1.S1); o Acórdão da RP de 31.03.2009 (Proc.º 0827283), o Acórdão da RL de 28.04.2009 (Proc.º 1642/04.0TJLSB.L1-7), o Acórdão da RC de 20.01.2009 (Proc.º 5924/06.9TVLSB.C1) e o Acórdão da RG de 05.07.2007 (Proc.º 1092/07-2). Defendendo o sentido contrário, ou seja, que a falta de contestação não permite considerar confessados os factos do casamento, podem ver-se os Acórdãos do STJ de 22.03.2007 (Proc.º 07B708) e 11.11.2008 (Proc.º 08B3303), os Acórdãos da RL de 14.11.2006 (Proc.º 8537/2006-7) e 28.02.2008 (Proc.º 491/08-2), o Acórdão desta RE de 05.06.2008 (Proc.º 745/08-2), e o Acórdão do TRP de 30.06.2009 (Proc.º 155/07.3YXLSB.P1), todos disponíveis em www.dgsi.pt, salvo o indicado aresto de 2015, cujo sumário se encontra disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos, Cível – Ano de 2015, pág. 460.
[14] Assim, no citado Acórdão de 14 de janeiro de 2003, (Relator: AFONSO DE MELO), convocando no mesmo sentido, JOSÉ MANUEL VILALONGA, in O Direito 132, I-II p. 68 e jurisprudência aí referida. Trata-se de um acórdão do TRC de 13-12-1998, in Col. De Jurisprudência, 1988/5, p.80, em cujo sumário se pode ler que “Proposta acção sumária contra marido comerciante e contra mulher como beneficiária do negócio, não é necessária a prova do casamento, se ele não foi contestado”; e de um aresto do STJ de 29-11-1989, in BMJ n.º 391, p. 520, onde se considera que “não é de conhecimento oficioso a questão da prova do casamento (prova só documental), se não se trata de uma acção de estado e a situação de casado é invocada apenas para efeitos patrimoniais”.
[15] In Estudo intitulado “Eficácia e natureza jurídica do registo do casamento”, na obra e local citados na nota anterior.
[16] Assim, o referido Acórdão de 06 de fevereiro de 2003, (Relator: SOUSA INÊS), citando na nota (1) ANSELMO DE CASTRO, In "Lições de Processo Civil", III volume, 1966, pág. 426 e 427.
[17] Sumariou-se assim o citado aresto de 08.09.2015 (Relator: JOÃO CAMILO).
[18] Doravante abreviadamente designado CC.
[19] Em anotação ao artigo 2046.º do Código Civil Anotado, Livro V, Direito das Sucessões, 2.ª edição, Almedina, 2022, págs. 59 e ss.
[20] Para maiores desenvolvimentos sobre as posições quanto à sua natureza e um resumo sobre as diferentes posições, cfr. Autores e obras mencionadas no local citado.
[21] In Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, 1998, págs. 68 e 69.
[22] Cfr., neste sentido, ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA E SAMPAIO E NORA, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, revista e atualizada, Coimbra Editora, 1985, pág. 111.
[23] Cfr., CRISTINA ARAÚJO DIAS, obra citada, pág. 62.
[24] Proferido no processo n.º 01A455, (Relator: ARAGÃO SEIA), disponível em www.dgsi.pt.
[25] Acórdão TRC de 20.04.2021, proferido no proc.º n.º 6575/19.3T8CBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, onde se encontra explicada aprofundadamente a razão pela qual foi opção do legislador reservar a personalidade judiciária à “herança jacente”, que não se confunde com “herança impartilhada”, expressando que «[Este é o entendimento igualmente assumido por LOPES DO REGO in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Coimbra, 1999, a págs. 32 e por A. ABRANTES GERALDES, in “Personalidade Judiciária”, ed. do CEJ, 1997, a págs. 8, quando refere que «A personalidade judiciária só foi atribuída por lei à herança jacente, que não se confunde, pois com herança impartilhada»; também como razão justificativa de tal alteração da letra da lei refere LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 3.ª ed., 2014, Coimbra Editoraa págs. 40 que «Entendeu-se, por outro lado, que a fórmula proposta pela comissão Varela, que abarcava igualmente a herança já aceite mas ainda não partilhada (art. 2050 CC), ia longe demais na atribuição da personalidade judiciária, que o facto de serem já conhecidos os sucessores tornava redundante. Aliás mesmo depois da herança partilhada, os bens herdados continuam a constituir um património autónomo (2068 CC e 2071 CC), sem que alguma vez se tenha equacionado a questão de lhe ser atribuída personalidade judiciária (TEIXEIRA DE SOUSA, As partes, cit., p.18)]».
[26] Proferido no processo nº 443/14.2T8PVZ-A.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[27] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado eletronicamente pelos três desembargadores desta conferência.