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CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
PESSOA PARTICULARMENTE INDEFESA
CONCEITO
CONCURSO APARENTE
CONSUMPÇÃO
Sumário
I – Na sua génese, a função do artigo 152º do Código Penal é prevenir as formas de violência no âmbito da família, agora alargado a outros relacionamentos, como seja o namoro, sendo essa criminalização resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos, estando a “ratio” do tipo na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. II - Tal norma tutela um bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, bem jurídico esse que pode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade da vítima. III – O nº 1 do referido preceito incriminador define a conduta típica e nas suas várias alíneas são identificadas, taxativamente, as possíveis vítimas do crime de violência doméstica, o que significa que, se a vítima da conduta delituosa não estiver aí expressamente prevista, o agente poderá incorrer em quaisquer outros ilícitos, designadamente, como é mais frequente, ofensa à integridade física, ameaça, coacção ou injúria, mas não no crime agora em análise. IV – Contudo, o crime de violência doméstica não é um mero somatório dos vários ilícitos de menor gravidade abrangidos pela conduta do agente, tais como os supra referidos, pois que estão-lhe subjacentes condutas efectivamente maltratantes, física ou psiquicamente. V – A lei não contém uma definição de pessoa particularmente indefesa, avançando apenas que essa circunstância poderá advir, nomeadamente, da idade, de deficiência, de doença, de gravidez ou de dependência económica, sendo, em todo o caso, exigível que essa pessoa coabite com o agente. VI – A menoridade deixou de ser, por si só, um elemento integrante do tipo incriminador, podendo, contudo, essa condição de pessoa particularmente indefesa advir em razão da idade, quer por a vítima ser muito jovem, quer por ser já muito idosa. VII – Tal como tem sido sustentado pela doutrina e pela jurisprudência, é entendimento dominante que, para o preenchimento dos elementos típicos da alínea d) do nº 1 do artigo 152º do Código Penal, a verificação de dois pressupostos, a saber, que a vítima coabite com o agente e que, em razão da idade, que pode ser avançada ou tenra, de deficiência, física ou psíquica, de doença, de qualquer natureza, de gravidez ou de dependência económica relativamente ao agente do crime, seja considerada uma pessoa particularmente indefesa. VIII – No que especificamente respeita ao crime de violência doméstica relativamente aos crimes de ofensa à integridade física, ameaça, injúria e importunação sexual, naquele integrados numa relação de concurso aparente de normas, consumpção, dúvidas não restam que aquele protege mais intensamente a vítima e que estes são mais favoráveis ao arguido, até pelas penas acessórias àquele associadas, pelo que, em caso de convolação daquele ilícito para estes, não é exigível o cumprimento do disposto nos artigos 358º, nºs 1 e 3, e 424º, nº 3, ambos do Código de Processo Penal, pois que estes representam um “minus” relativamente ao crime de violência doméstica.
Texto Integral
Processo n.º 218/21.2GBAMT.P1
CONFERÊNCIA DE 16-11-2022(Crime de violência doméstica - conceito de “pessoa particularmente indefesa” - convolação em ofensas à integridade física simples, ameaça agravada, injúria e importunação sexual).
I
Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Nos presentes autos de Processo Comum Colectivo n.º 218/21.2GBAMT, do Juízo Central Criminal de Penafiel - Juiz 3, foi proferido acórdão, em 19-07-2022, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto o tribunal colectivo decide julgar a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência: a.Absolver o arguido da prática, em autoria material, de oito crimes de abuso sexual de menor dependente, previsto e punível pelo art.º 172.º, n.º 1, al. a), do C. Penal. b.Condenar o arguido pela prática na pessoa de AA de um crime de violência doméstica, p. p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. a), e n.ºs 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão e nas penas acessórias de proibição de contacto com a mesma assistente pelo período de 3 (três) anos, a qual incluirá o seu afastamento desta, da sua residência e do seu local de trabalho, a uma distância de pelo menos 500 metros, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, se em tal a ofendida consentir, e da obrigação de frequência de programa de prevenção de violência doméstica e/ou análogo a concretizar pelos competentes serviços e reinserção social. c.Condenar o arguido pela prática na pessoa de BB de um crime de violência doméstica, p. p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d), e n.ºs 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão e na penas acessórias de proibição de contacto com a mesma assistente pelo período de 3 (três) anos, a qual incluirá o seu afastamento desta, da sua residência e do seu local de trabalho, a uma distância de pelo menos 500 metros, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, se em tal a ofendida consentir, e à obrigação de frequência de programa de prevenção de violência doméstica e/ou análogo a concretizar pelos competentes serviços e reinserção social. d.Condenar o arguido pela prática, em data não concretamente apurada, mas seguramente entre 5 de Maio de 2018 e Janeiro de 2020, na pessoa de BB, de dois crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. p. pelo art.º 172.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), do C. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão por cada um. e.Condenar o arguido pela prática, em data não concretamente apurada, mas seguramente no ano de 2020, na pessoa de BB, de 1 (um) crime de abuso sexual de menor dependente, agravado, p. p. pelo art.º 172.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.º 1, al. a), do C. Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão. f.Condenar o arguido pela prática, na pessoa do ofendido CC, de um crime de ameaça agravada p. e p. pelo art.º 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), 1.ª parte, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão.
E em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas condenar o arguido na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução, com regime de prova, por igual período, e a imposição dos seguintes deveres e regras de conduta: - frequentar consultas atinentes a aferir, tratar e fiscalizar a sua eventual dependência de álcool e bem assim a tratamento psiquiátrico, caso se apresente necessário, para o que já deu o seu consentimento; afastamento das assistentes AA e BB, da sua residência e local de trabalho, e proibição de as contactar por qualquer meio, de acordo com plano individual de readaptação social, que será concretizado e acompanhado e fiscalizado pelos competentes serviços da DGRSP que reportará aos autos, semestralmente, relatório. e nas penas acessórias de proibição de contacto com as assistentes AA e BB pelo período de 3 (três) anos, a qual incluirá o seu afastamento destas, da sua residência e do seu local de trabalho, a uma distância de pelo menos 500 metros, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, se em tal as identificadas ofendidas consentirem, e de obrigação de frequência de programa de prevenção de violência doméstica e/ou análogo a concretizar pelos competentes serviços e reinserção social. g.Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil formulado por AA e, consequentemente, condenar o arguido/demandado ao pagamento a esta da quantia de €6.000 (seis mil euros), absolvendo-o do mais peticionado. h.Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil formulado pela demandante BB e, consequentemente, condenar o arguido ao pagamento a esta demandante da quantia de €7.000 (sete mil euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal desde a notificação até efectivo e integral pagamento. i. Condenar o arguido nas custas da parte criminal, cuja taxa de justiça se fixa em 4 Ucs – art.ºs 513.º e 514.º do C. P. Penal e art.º 8.º, tabela anexa III, do RCP, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficie. j. Custas da parte civil a cargo de demandantes e demandado, sem prejuízo do benéfico de apoio judiciário de que gozem – art.º 527.º do C. P. Civil, ex vi art.º 523.º do C. P. Penal.” (ref.ª 89469276, de 19-07).
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O arguido DD interpôs recurso de tal decisão, tendo apresentado a respetiva motivação, com conclusões, as quais se sintetizam nas seguintes questões:
a) Preenchimento do elemento típico da alínea d) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal (“pessoa particularmente indefesa”) relativamente à filha BB, pugnando o recorrente pela sua absolvição desse crime de violência doméstica (parte I da motivação e conclusões 1 a 19).
b) Montante das indemnizações, por danos não patrimoniais, atribuídas às demandantes BB e AA, invocando o recorrente serem os valores exagerados e pugnando pela sua redução (parte II da motivação e conclusões 20 a 30) - (ref.ª 8141880, de 18-08).
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Admitido tal recurso, respondeu ao mesmo a Exm.ª Magistrada doMinistério Público, a qual, em síntese, sustentou não assistir razão ao recorrente, pois que se encontram preenchidos todos os elementos do crime de violência doméstica relativamente à vítima BB, atenta a relação familiar existente e o contexto em que ocorreram os factos, além de que as indemnizações atribuídas se reputam adequadas, pelo que deve ser negado provimento ao recurso e manter-se a decisão recorrida (ref.ª 8161110, de 02-09).
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Remetidos os autos a Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjuntoemitiu parecer, no qual,dizendo aderir à argumentação contida na resposta e invocando jurisprudência atinente ao referido normativo incriminador, concluiu que o recurso deverá improceder (ref.ª 16206269, de 17-10).
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Foi proferido despacho liminar e colhidos os vistos, com decisão em conferência.
II
As conclusões, resultado da motivação apresentada, delimitam o objecto do recurso (art. 412.º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo de apreciação de questões de conhecimento oficioso que pudessem suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo que o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995).
Assim, não se suscitando outras de conhecimento oficioso, passa a apreciar-se o recurso, concretamente as seguintes questões: a) Preenchimento do elemento típico da alínea d) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal (“pessoa particularmente indefesa”) relativamente à filha BB, pugnando o recorrente pela sua absolvição desse crime de violência doméstica (parte I da motivação e conclusões 1 a 19).
Para melhor perceção e análise das questões colocadas pelo recorrente, importa reproduzir os factos dados como provados e não provados pelo Tribunal recorrido, que se transcrevem. Assim,
“II. Fundamentação de Facto.
A. Resultou provado com interesse para a decisão da causa.
1. O arguido DD e a vítima AA casaram catolicamente em 14 de Agosto de 1993, tendo fixado residência na Travessa ..., ..., Amarante.
2. Em data não apurada, mas entre o final do ano de 2019 / início de 2020, mudaram de residência e fixaram a morada de família na Avenida ..., também em ..., concelho de Amarante.
3. Do casamento nasceram dois filhos, CC, nascido em .../.../1996, e BB, nascida a .../.../2003, os quais coabitaram até 21 de Maio de 2021 com ambos os progenitores.
4. O arguido desde o início do casamento que ingere frequentemente bebidas alcoólicas em excesso, altura em que iniciava discussões com a mulher AA.
5. No decurso de tais discussões, em datas não concretamente apuradas, o arguido apelidava a então mulher de “sua puta, sua vaca, és uma deficiente, és uma grande puta, és uma enorme, vai mas é dá-lo para as Árvores (local conotado em Amarante com a prostituição), sua grande puta”, mais lhe dizendo “ó minha puta eu mato-te, sua grande puta! Se te apanho com eles eu mato os dois”.
6. No decurso dessas discussões o arguido arremessava na direcção da ofendida diversos objectos, tais como bancos e peças de loiça, apenas não a atingindo porque esta se desviava.
7. No dia 24/06/2019, no decurso de uma discussão com a AA, o arguido disse-lhe “tu és uma filha da puta, não vales nada” e, em acto contínuo, agarrou-lhe os cabelos, puxando-lhos, causando-lhe dor.
8. Após a mudança de residência para a Avenida ..., ..., Amarante, o comportamento do arguido agravou-se, já que o mesmo aumentou a ingestão diária de bebidas alcoólicas e, nesse estado, quase diariamente, ao regressar a casa ao final do dia, iniciava discussões.
9. Em data não concretamente apurada, já na Avenida ..., entre a data da mudança para esta e 21 de Maio de 2021, o arguido, quando se levantou por volta das 05h30, em tom de voz alto e exaltado, disse à ofendida AA, enquanto esta lhe preparava o saco para que ele levasse para o trabalho, “ah minha puta, ó vaca, o que andas a fazer?!... és uma grande puta que aqui andas… sua puta do caralho. desaparece, mete nojo, nem posso olhar para ti, puta do caralho”.
10. Em dia não determinado, situado no mês de Fevereiro de 2021, entre as 23h00 e as 23h30, o arguido disse à ofendida que queria manter com ela relações sexuais, tendo a mesma recusado. De imediato, perante a recusa da ofendida, o arguido desferiu-lhe um estalo no rosto, causando-lhe dor e um hematoma.
11. Os filhos do casal deslocaram-se em auxílio da mãe até ao quarto do casal, e o filho CC impediu o arguido de continuar a bater na mãe, agarrando-o, ao mesmo tempo que o arguido gritava “larga-me que eu mato esta puta hoje”.
12.A filha mais nova do casal, BB, perante aquela situação, começou a chorar, altura em que o arguido, se lhe dirigindo, disse: “e esta filha da puta cheia de mimo a chorar”.
13.Após, quando já se encontravam no corredor junto às escadas o arguido empurrou a ofendida BB, que apenas não caiu por ter sido amparada pelo namorado.
14. Em data imprecisa do mês de Março de 2021, a um sábado à noite, cerca das 22h30, na cozinha, o arguido disse, diante dos membros da família e do namorado da sua filha, dirigindo-se à ofendida AA, “esta puta anda aqui a foder-me a cabeça, para é que eu quero uma mulher assim, que não quer foder comigo. Então não quer nada comigo vou amarrar um nagalho na puta da gaita”.
15.Cerca de trinta minutos depois, estando a ofendida AA deitada num quarto do rés-do-chão e tendo o seu telemóvel na mão, foi surpreendida pelo arguido, que lhe disse “ah minha puta estás aí a mandar mensagens aos teus amantes…eu esborracho o filho da puta no chão”.
16. E em acto contínuo, o arguido agarrou a ofendida AA pelos seus cabelos, puxando-os com força, levando a que esta caísse no chão e, de seguida, empurrou-a, levando-a pelos cabelos contra a parede, local onde esta embateu com a cabeça.
17. Os filhos CC e BB vieram em auxílio da ofendida AA, sendo que o arguido, no momento em que a filha BB ia ajudar a mãe, a empurrou, fazendo com que a mesma se desequilibrasse e embatesse com a cabeça na esquina da cama do quarto.
18. Em consequência do comportamento do arguido, a ofendida BB sentiu dor e a ofendida AA sofreu um inchaço na cabeça, sentindo dores durante cerca de quinze dias.
19. No momento em que o filho CC tentou agarrar o arguido, para que o mesmo não voltasse a agredir a sua mãe e irmã, o arguido disse “vós podeis vir quatro ou cinco que eu não tenho medo de nenhum de vós”.
20. Em data não determinada do mês de Abril de 2021, pelas 23h00, quando o casal se encontrava deitado na cama, o arguido, perante a recusa da ofendida AA em manter com ele relações sexuais, colocou-se em peso sobre o seu corpo, agarrou com ambas as mãos o pescoço dela, apertando-o com força, causando assim à ofendida AA muita dificuldade em respirar, ao mesmo tempo que lhe dizia “ai tu não queres nada comigo sua puta, eu vou-te matar sua puta”.
21. Após, o arguido rasgou as cuecas da ofendida AA e, usando da força e da sua supremacia física, tentou introduzir o pénis na vagina dela, o que acabou por não acontecer apenas porque a vítima se defendeu e persistiu na recusa.
22. A ofendida AA conseguiu soltar-se e saiu do quarto, tendo ido para o piso inferior da residência, momento em que o arguido se deslocou até ao quarto do filho CC, que se encontrava a dormir e lhe disse em tom de voz alto “vai lá abaixo e chama aquela filha da puta para vir para cima”.
23. Desde pelo menos o início do ano de 2021 que o arguido, com uma periodicidade quase diária, no interior da residência comum, acusa a ofendida AA de manter relacionamentos extraconjugais, dizendo que a filha BB não é filha dele e que vai exigir um teste de paternidade, mais lhe dizendo no decurso de discussões “sua puta, sua vaca, tenho nojo de ti. És uma puta e vaca que aqui anda, só andas bem com os outros, qualquer dia mato-te sua grande puta”.
24.No dia 06 de Maio de 2021, cerca das 22H00, no final do jantar, o arguido iniciou com a ofendida AA uma discussão, no decurso da qual lhe disse “estás a desafiar-me sua puta? Mas eu fodo-te. Tu não me desafias. Estás contente, o teu amante, pôs-te a mão lá, sua vaca, sua filha da puta, tenho nojo de olhar para a tua cara…» e, pegando num banco, que levantou na sua direcção, disse-lhe em tom sério «eu mato-te já…», tentando atingi-la com o referido banco, o que apenas não logrou fazer por ter sido impedido pelo filho CC.
25. Após, o arguido, dirigindo-se à ofendida AA e aos ofendidos BB e CC, disse-lhe em tom de voz alto e exaltado “eu mato-vos… ponho uma bomba nesta casa e morre toda a gente… é o fim, o que a minha cabeça mandar eu faço… fodo esta merda toda, vai tudo pelo ar”.
26. A ofendida AA em diversas ocasiões, em datas não concretamente apuradas, do ano de 2021, disse ao arguido que queria divorciar-se, ao que este lhe respondeu “pede o divórcio que eu mato-te sua grande puta”.
27. Em datas não concretamente apuradas do ano de 2021 o arguido disse ao filho CC, quando este lhe explicava que a medicação que a mãe tomava lhe diminuía a libido, “negar uma coisa ao homem? Puta que a pariu. Ela não é uma mulher é um bicho. As putas da rua também dão e estão lá a ganhar o delas”.
28.Os descritos factos tiveram sempre lugar na residência comum do casal.
29. Em datas não apuradas em concreto, mas situadas entre a data em que a assistente BB atingiu os 15 anos de idade (5 de Maio de 2018) e o final do ano de 2019 / início do ano de 2020, ainda na primeira residência do agregado familiar, o arguido, pelo menos por duas ocasiões e em circunstâncias distintas, apalpou-lhe os seios por debaixo da roupa directamente sobre a pele.
30. De igual modo, em datas não concretamente apuradas, por duas vezes, na residência da ..., em momentos e circunstâncias distintas, uma das quais seguramente no ano de 2020 e outra entre o fim do ano de 2019 / início de 2020 e 20 de Maio de 2021, o arguido, apalpou os seios da filha BB por debaixo da roupa e directamente sobre a pele.
31.Em data não apurada em concreto, mas situada em momento em que também já viviam na actual residência, ou seja, entre final de 2020 e 20 de Maio de 2021, o arguido pediu à filha BB que lhe levasse uns boxers ao quarto e quando esta ali chegou, depois de bater à porta e aquele a mandar entrar, o arguido exibiu o seu corpo totalmente despido, causando-lhe medo e constrangimento e fazendo com que chorasse.
32. Ao comportar-se do modo descrito, agiu o arguido livre e consciente, sem ignorar que praticou os factos supra descritos na residência comum do casal, contra a sua esposa e os seus filhos, mesmo enquanto os mesmos eram menores e na presença deles.
33. Com a conduta do arguido, as ofendidas AA e BB sentiram dores, bem como vergonha e humilhação, e ainda medo e ansiedade de que o mesmo possa atentar contra a sua integridade física, vida e liberdade sexual.
34. Com a conduta do arguido descrita em 25., o ofendido CC sentiu medo e ansiedade de que o mesmo pudesse atentar contra a sua vida da sua mãe e irmã.
35. Agiu, o arguido, deliberada, livre e consciente, com o propósito, concretizado, de maltratar física e psicologicamente a ofendida AA, bem como a sua filha BB, molestando-lhes o corpo e saúde, bem sabendo que a sua conduta a estas direccionada, era apta a causar-lhes dores e as lesões supra descritas, dirigindo-lhes ainda palavras adequadas a causar-lhes medo e inquietação, fazendo-as crer que estava disposto a tirar-lhes a vida, bem sabendo que a sua conduta era idónea a provocar-lhes medo, receio e inquietação, como efectivamente causou, bem como ofendê-las na sua honra e consideração.
36. O arguido não se inibiu de praticar as condutas descritas de 29. a 31. em relação à filha BB, na data dos factos, menor, que com ele vivia e se encontrava dele dependente, para alcançar os seus intentos, não ignorando que lhe devia respeito, competindo-lhe dela cuidar, bem sabendo que a mesma não tinha capacidade séria de lhe oferecer oposição, atenta a sua idade, fragilidade física e temor que lhe tinha.
37. O arguido bem sabia que as palavras que dirigiu ao ofendido CC, seu filho, eram aptas a causar neste medo e inquietação de que concretizasse os seus intentos, o que efectivamente logrou alcançar.
38. Ao agir da forma descrita de 29. a 31., o arguido actuou ainda com o propósito concretizado de satisfazer os seus impulsos libidinosos e sabia que atentava contra o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade da então menor BB, sua filha, na sua esfera sexual, aproveitando-se da sua ascendência e de ser seu pai, para a constranger a suportar tal conduta, limitando dessa forma a sua liberdade sexual, fazendo-a temer que o arguido prosseguisse com a prática de actos sexuais, bem sabendo ainda que, à data da prática dos factos descritos e ocorridos entre 2018 e 2020, a mesma tinha menos de 18 anos de idade.
39. Mais sabia o arguido que praticava os factos supra descritos no interior da residência comum.
40. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que praticava factos proibidos e punidos por lei penal.
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41. Em virtude da conduta descrita o arguido causou à assistente / demandante AA dores, mau estar físico generalizado, inquietação, perturbação do sono, medo, incerteza, vergonha e ansiedade.
42. E ainda hoje a assistente AA teme pela sua integridade física e vida.
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43. A assistente / demandante BB, em virtude das condutas do arguido, sentiu medo, angústia e humilhação, sentimento de culpa, vergonha e tristeza.
44. E passou a viver em estado de ansiedade e sobressalto e com receio de estar simplesmente em casa, que ainda hoje persiste. Mais se provou.
45. No período aproximado a que se reportam os factos descritos, o arguido CC vivia com a vítima e com os dois filhos do casal, que actualmente possuem 18 e 26 anos de idade.
46. Residiam inicialmente numa vivenda, com condições modestas de habitabilidade, situada na freguesia ..., nas imediações da cidade de Amarante, numa zona semi-rural, em zona não associada a problemáticas sociais/criminais.
47. Em finais de 2019 / inícios de 2020 mudou de residência para a Avenida ..., na freguesia ..., do concelho de Amarante, numa vivenda com dois andares, adquirida com crédito bancário, com boas condições de habitabilidade, em zona semi-rural e sem problemáticas sociais/criminais associadas.
48. A sobrevivência económica do agregado era assegurada pelos rendimentos decorrentes da actividade laboral do arguido, que trabalha desde os 15 anos de idade na empresa “H...”, como manobrador de máquinas.
49. O agregado apresentava como despesas as referentes ao quotidiano, nomeadamente pagamento de luz, água, gás, alimentação e as referentes à educação dos filhos, e o crédito bancário da habitação no valor de 210€ mensais.
50. Na sequência da medida de coacção aplicada nestes autos, o arguido saiu da habitação a 20 de Maio de 2021. O arguido e a assistente mulher já se encontram divorciados.
51. Após o desencadear do processo judicial e saída da habitação de família, o arguido CC foi residir com a irmã, na Rua ..., ..., em Felgueiras, tendo a irmã vindo a falecer por motivos de doença prolongada.
52. O arguido mantém actividade laboral na mesma empresa, com o vencimento de 790 Euros, mais prémios e horas extraordinárias, que ao sábado são de pelo menos 46€ (semanais).
53. Como despesas, apresenta a renda mensal do alojamento, de cerca de 120 euros, o crédito da habitação, no valor de 210 euros, da anterior residência, gastos relacionados com as despesas de manutenção da habitação, como água, luz e gás, despesas com o uso da viatura automóvel e as referentes à alimentação, referindo uma situação económica suficiente face às suas necessidades, mas de gestão contida.
54. No presente, o arguido CC beneficia do apoio de familiares, nomeadamente dos irmãos, que residem nas imediações.
55. No presente momento ambos os filhos não contactam com o arguido.
56. O arguido mantinha e mantém uma boa relação com os seus colegas, encarregado de obra e com o seu patrão, que têm uma opinião favorável do mesmo.
57. As rotinas do arguido CC centram-se sobretudo na actividade laboral de segunda a sábado, tendo folga semanal apenas ao domingo, dia esse que usa para ir à missa e ao supermercado.
58. Não são conhecidas actividades lúdico-recreativas em que o arguido esteja inserido.
59. Em contexto comunitário, o arguido revela um padrão comportamental tendencialmente adaptado e é possuidor de uma imagem favorável, especialmente na área de residência da morada de família.
60. A entidade empregadora e os irmãos desconhecem o consumo excessivo de álcool pelo arguido.
61. O arguido refere padecer de problemas cardíacos, hipertensão e diabetes.
62. E ter-se deslocado a uma clínica em ... devido a questões psiquiátricas, por sua vontade.
63. O processo de desenvolvimento do arguido decorreu junto dos progenitores e dos seus irmãos, sendo o mais novo de uma fratria de seis, num ambiente familiar sustentado no trabalho, mais concretamente na agricultura, mas descrito como unido e de suporte.
64. O pai e a mãe laboravam na agricultura e vendiam os produtos em feiras como complemento.
65. Após a conclusão da escolaridade obrigatória, 4.ª classe, o arguido CC iniciou a actividade laborar, na lavoura com os pais, por vontade deste e por falta de motivação escolar, tinha o arguido no momento 12/13 anos de idade.
66. Com 16 anos de idade iniciou a sua trajectória laboral, no ramo da construção civil, actividade que mantém até aos dias de hoje, sem interrupções.
67. No presente processo, o arguido CC encontra-se sujeito, desde 13 de Junho de 2021, à medida de coacção de afastamento e proibição de contactos com a mulher e a filha, no decurso da qual o arguido tem adoptado uma atitude colaborante com os técnicos da DGRSP, cumprindo globalmente as regras inerentes à medida em curso.
68. O arguido manifesta preocupação e receio face ao desfecho do presente processo.
69. E revela diminuta capacidade reflexiva face aos factos, consciência da sua ilicitude e danos associados à problemática criminal inerente.
70. Descreve-se como um pouco nervoso e impulsivo em certos momentos.
71. Nada consta no certificado de registo criminal do arguido.
B. Não resultou provado com interesse para decisão da causa.
a. Sem prejuízo dos factos provados e descritos sob os pontos 29. a 31., o arguido em datas não apuradas, mas situadas entre o momento em que BB atingiu a puberdade e 20 de Maio de 2021, na residência do agregado familiar e por mais oito vezes, apalpou os seios da filha.”
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E importa também referir a fundamentação da sentençaquantoao enquadramento jurídico dos factos respectivos no crime de violência doméstica, a qual é a seguinte:
“C – Enquadramento jurídico-penal.
i. Do crime de violência doméstica.
Nos termos do disposto no art.º 152.º do C. Penal comete tal crime quem, de modo reiterado ou não, infligir [segundo o n.º 2 do aludido preceito, no domicílio comum ou perante menor] «maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais», nomeadamente, ao seu cônjuge ou ex-cônjuge (n.º 1, al. a)) e a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez, ou dependência económica, que com ele coabite (al. d)) - (hipóteses que no caso interessam).
O ponto de partida para apreciar se certa conduta é penalmente ilícita deve ser a lei que se encontra(va) em vigor à data da sua prática e no caso quanto ao tipo legal e questão em apreço importa considerar a redacção introduzida pelas Leis n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, e n.º 44/2018, de 9 de Agosto, ainda que para o caso e para o que importa a redacção da Lei n.º 57/2021, de 16 de Agosto, não apresente relevância, mantendo o respectivo teor e punibilidade intactos.
O art.º 152.º está sistematicamente integrado no Título I, do Código Penal, relativo aos “Crimes contra as pessoas”, e, dentro deste, no Capítulo III, sob a epígrafe “Crimes contra a integridade física”.
Tal como refere TAIPA DE CARVALHO, Comentário Conimbricense, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 332, a propósito da anterior redacção do ilícito em apreço, mas ainda com actualidade relativamente ao tipo vertente,tal tipo de ilícito visa a protecção da pessoa individual e a sua dignidade humana, sendo que o bem jurídico protegido se reconduz à saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental. Neste sentido também acórdão do STJ, de 02.07.2008, disponível em www.dgsi.pt (relator Cons. Raul Borges), citando-se aí o acórdão daquele Supremo Tribunal de 30.10.2003 (CJ/Acs. STJ, 2003, T. 3) em que se manifesta o entendimento de que “o bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem-estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal da vitima e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem-estar.
Não sendo agora já exigido que o agente actue com malvadez ou egoísmo para se ter como preenchido o tipo legal de crime em causa, como sucedia, na versão primitiva do Código Penal, no artigo 153.°, certo é que só comportamentos que possam ver-se, social e ético-juridicamente, como violadores - pela prática (agora também já não necessariamente reiterada, mas sempre com uma entidade substancial que justifique o recurso à tutela penal) de atentados à dignidade das vitimas que a incriminação visa salvaguardar que podem reconduzir-se a outros tipos legais, ocorrendo uma relação de especialidade entre o crime de violência doméstica e “os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, o crime de sequestro simples, o crime de coacção sexual previsto no artigo 163.º, n.º 2, o crime de violação previsto nos termos do artigo 164.º, n.º 2, o crime de importunação sexual, o crime de abuso sexual de menores dependentes previsto no artigo 172.º, n.º 2 ou 3, e os crimes contra a honra”. Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 465-466). No entanto, se o crime de violência doméstica é punido mais gravemente que os ilícitos de ofensas à integridade física, ameaças, coacção, sequestro, etc., e se é distinto o bem jurídico tutelado pela respectiva norma incriminadora, então, para a densificação do conceito de maus tratos não pode servir toda e qualquer ofensa. Ora, se a fórmula legal (“de modo reiterado ou não”) não permite qualquer dúvida quanto ao propósito do legislador de ultrapassar a querela doutrinal e jurisprudencial e consagrar o entendimento de que o tipo legal (de violência doméstica) não exige reiteração de acções ofensivas, também é certo que um único acto ofensivo só consubstanciará um “mau trato” se se revelar de uma intensidade tal, ao nível do desvalor (quer da acção, quer do resultado), que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – a saúde física, psíquica ou emocional -, pondo em causa a dignidade da pessoa humana. Como elucidativamente afirma Plácido Conde Fernandes (“Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal”, in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305), não havendo razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido (…), também se mantém válida a asserção de que a dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa. Na mesma linha de exigência de que o acto ofensivo singular se revista de uma certa gravidade, situa-se o acórdão do STJ de 06.04.2006 (CJSTJ, 2006, T. 2, p.166), no qual se salienta não bastarem as meras ofensas à integridade física e que é indispensável que um singular comportamento possa ter uma carga suficiente demonstradora da humilhação, provocação, ameaças, mesmo que não abrangidas pelo crime de ameaças, do acto de molestar o cônjuge (ou os demais a que se reporta o tipo legal).
O tipo subjectivo de ilícito exige actuação dolosa por parte do agente.
Descendo ao caso concreto e à factualidade provada relativamente às assistentes mulher e filha dúvidas não restam, sem necessidade de muitas considerações, que o comportamento do arguido para com estas atingiu, intoleravelmente,o núcleo essencial do bem jurídico protegido pela incriminação.
Com efeito, toda a actuação do arguido integra uma actividade de agressão física, psicológica, de insultos verbais, ameaça grave, sexual (mesmo relativamente à assistente filha e para o que a este propósito aqui importa os factos descritos em 31 (claramente importunação sexual, não sendo autonomizáveis desde logo porque puníveis com pena menos grave – cfr. art.º 152.º, n.º 1, parte final, do C. Penal) é abarcada pelas modalidades de acção do tipo em apreço, assente no elemento comum aglutinador de configurarem actos exercidos pelo marido e pai sobre o cônjuge e filha, constituindo um tratamento ofensivo e ultrajante da dignidade pessoal destes.
E a punição desta conduta, mais do que uma simples punição individualizada pelas ofensas à integridade física, injúrias, ameaça, coacção e importunação sexual integra-se na necessidade global de punição do comportamento do arguido, considerado no seu conjunto, para protecção da sua mulher e filha, no fundo da família.
Acresce que a ofendida BB no âmbito da actuação do arguido que para o caso interessa era menor de 18 anos e do pai dependia economicamente (al. d) do n.º 1, do preceito legal em análise).
Daí que se considere estarem inequivocamente preenchidos todos os elementos objectivos do tipo de crime de violência doméstica, não estando preenchidos, autonomamente, os elementos dos enunciados tipos legais, tendo ocorrido invariavelmente no interior da habitação de todos.
Acresce que também preenchidos estão os elementos subjectivos do crime, posto que a actuação do arguido revela a existência de dolo (estão preenchidos os seus elementos intelectual e volitivo) e na forma de dolo directo, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 1, do C.P.: age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actua com intenção de o realizar.
Verifica-se ainda que a conduta do arguido é culposa, pois o mesmo é imputável e actuou com consciência da ilicitude.
Pelo que cometeu o arguido os dois crimes de violência doméstica de que vinha acusado, na pessoa das assistentes mulher e filha.”
*
Apreciando.
Como é sabido, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (art. 428.º do CPP).
Versando o recurso sobre matéria de direito, como é o caso, a lei impõe que sejam indicadas nas conclusões, além do mais, “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do CPP).
Os recursos representam um meio de impugnação das decisões judiciais, cuja finalidade consiste na eliminação dos erros, defeitos ou lapsos das mesmas através da sua análise por outro órgão jurisdicional, constituindo um instrumento processual de consagração prática dos princípios constitucionais de acesso ao direito e de garantia do duplo grau de jurisdição (arts. 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP).
Como se verifica, a discordância do recorrente CC reporta-se, nesta parte, exclusivamente à condenação pelo crime de violência doméstica relativamente à sua filha BB, considerando o mesmo que não se mostram verificados os elementos típicos do referido crime, concretamente no que concerne à alínea d) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal.
Atentemos, então, na redacção deste artigo 152.º, em vigor à data dos factos respectivos (entre Fevereiro e Maio de 2021), a qual era a seguinte (no que agora releva):[1]
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma reacção de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”
(…).”
Na sua génese, a função deste preceito é prevenir as formas de violência no âmbito da família (agora alargado a outros relacionamentos, como seja o “namoro”), sendo essa criminalização resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos, estando a ratio do tipo na “protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana”. Esta norma tutela um “bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, bem jurídico esse que pode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos (…) que afectem a dignidade” da vítima.[2]
A conduta do agente desse crime pode preencher, prima facie, uma série de outros ilícitos típicos, de menor gravidade, designadamente, como é mais frequente, ofensas à integridade física, ameaças, coacção ou injúrias (art. 143.º, 153.º, 154.º e 181.º do C. Penal).
Efectivamente, trata-se de tipos de crime que especificamente tutelam bens pessoais visados no ilícito de violência doméstica, maxime os ditos “maus tratos físicos ou psíquicos”.
Contudo, o crime de violência doméstica não é um mero somatório daqueles tipos de ilícitos de menor gravidade, pois que estão-lhe subjacentes condutas efectivamente maltratantes, física ou psiquicamente, levadas a cabo pelo agente.
O n.º 1 do referido preceito incriminador define a conduta típica e nas suas várias alíneas são identificadas, taxativamente, as possíveis vítimas do crime de violência doméstica. O mesmo é dizer que se a vítima da conduta delituosa não estiver aí expressamente prevista, o agente poderá incorrer em quaisquer outros ilícitos, mas não no crime agora em análise.
No que respeita especificamente à alínea d) desse n.º 1, a qual está aqui em causa, importa densificar o conceito de “pessoa particularmente indefesa”, sendo que em lado algum a lei dá tal definição, apenas avançando que essa circunstância poderá advir, nomeadamente, da idade, de deficiência, de doença, de gravidez ou de dependência económica, sendo, em todo o caso, exigível que essa pessoa coabite com o agente.
Como é sabido, a autonomização do crime de violência doméstica relativamente aos “maus tratos e infracção de regras de segurança” ocorreu com a reforma do Código Penal operada em 2007 (Lei n.º 59/2007, de 04-09), passando aquele a integrar o artigo 152.º e estes últimos os artigos 152.º-A e 152.º-B do dito Código.
Mas enquanto no anterior crime de “maus tratos e infracção de regras de segurança” se aludia a “pessoa menor ou particularmente indefesa” (n.º 1 do art. 152.º, antes da alteração da dita Lei n.º 59/2007), depois a menoridade deixou de ser, por si só, um elemento integrante do tipo incriminador, podendo, contudo, essa condição de “pessoa particularmente indefesa” advir em “razão da idade”, quer por a vítima ser muito jovem, quer por ser já muito idosa.
Mas o que é uma “pessoa particularmente indefesa”?
Desde logo, é manifesto que tal qualidade está relacionada com as características, condições ou circunstâncias específicas do ofendido pelo crime. Trata-se, pois, de uma qualidade endógena da própria vítima.
Para Paulo Pinto de Albuquerque tais pessoas são “aquelas que se encontram numa situação de especial fragilidade, devido à sua idade precoce ou avançada, deficiência, doença física ou psíquica, gravidez ou dependência económica do agente (…).”[3]
No acórdão deste Tribunal da Relação de 14-07-2021 (Proc. n.º 158/20.2GDSTS.P1) escreveu-se que pessoa particularmente indefesa para efeitos do disposto naquela norma legal (al. d) do n.º 1 do art. 152.º) é aquela “que se encontra numa situação de especial fragilidade, que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma”.[4]
Também no acórdão desta mesma Relação de 10-11-2021 (Proc. n.º 263/20.5GBOVR.P1) se escreveu que pessoa particularmente indefesa será “aquela que, com concretização factual, se encontra numa situação de especial fragilidade, que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz em função de qualquer das qualidades previstas na norma, idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica”.[5]
Tal jurisprudência é mencionada na resposta ao recurso (e o primeiro também na motivação e no parecer), em apoio da posição aí sustentada pelo Ministério Público (vide pág. 9 da resposta). Contudo, não cremos que essas decisões, atento o seu teor e fundamentação, dêem aconchego a esse entendimento, ou seja, que a ofendida BB possa ser considerada, para efeitos de preenchimento do indicado crime, uma pessoa particularmente indefesa, acolhendo-se, por isso, os argumentos do recorrente CC.
Com efeito, não basta a coabitação e que o ofendido se encontre numa dessas circunstâncias (idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica do agente). É também indispensável que, perante os factos dados como provados, se possa concluir que a vítima era uma pessoa particularmente indefesa, por se encontrar numa situação de particular vulnerabilidade e de especial incapacidade de reacção relativamente às investidas do agente.
E tal vulnerabilidade e incapacidade poderão advir não só do facto de a vítima ter uma capacidade física inferior ao agente, ao ponto de não estar em condições de confrontar-se corporalmente com ele e de defender-se das agressões de forma minimamente eficaz, mas especialmente do facto de não estar sequer em condições de denunciar a situação maltratante e de pedir ajuda, com vista a fazer cessar os maus tratos. Daí que, em tal contexto, fique plenamente à mercê do agente, sendo pelo mesmo subjugada aos seus intentos agressivos e caindo na condição de indefesa.
Na verdade, parece-nos seguro que a qualidade de pessoa particularmente indefesa não advém, automaticamente, do facto de a vítima coabitar com o agente e de se encontrar numa daquelas circunstâncias, designadamente por dele depender economicamente ou ser menor de idade.
Torna-se, assim, indispensável, para o preenchimento dos elementos típicos da citada alínea d) do n.º 1 do artigo 152.º, a verificação de dois pressupostos: (i) que a vítima coabite com o agente e (ii) que, em razão da idade (que pode ser avançada ou tenra), de deficiência (física ou psíquica), de doença (de qualquer natureza), de gravidez ou de dependência económica relativamente ao agente do crime, a vítima seja considerada uma pessoa particularmente indefesa. Voltando ao caso presente, temos como provado que a ofendida BB é filha do arguido CC e da também ofendida AA, tendo nascido em .../.../2003 e coabitado com ambos os progenitores e o irmão CC até 21-05-2023 (factos 3 e 45 a 47).
E está também provado que a sobrevivência económica do agregado era assegurada pelos rendimentos decorrentes da actividade profissional do arguido, como manobrador de máquinas (facto 48, relativo às condições pessoais do arguido, comprovadas pelo relatório social).[6]
Verificava-se, pois, uma situação de coabitação entre o arguido e a ofendida BB e de dependência económica desta relativamente àquele, sendo que a mesma era menor de idade aquando dos factos ocorridos antes de 05-05-2021 (data em que atingiu a maioridade).
Mas tal não basta, a nosso ver, para que a ofendida BB seja tida como uma pessoa particularmente indefesa relativamente ao arguido, seu pai.
Com efeito, ressalvando o que se disse quanto à dependência económica, atentando nos factos dados como provados relativamente ao imputado crime de violência doméstica, tal como fundamentado no acórdão recorrido, constata-se que os mesmos ocorreram em dia indeterminado de Fevereiro de 2021, em data imprecisa de Março de 2021 e no dia 06 de Maio de 2021 (factos 10 a 13, 14 a 18, 24 e 25), além do episódio ocorrido em data não apurada, mas situada entre final de 2020 e 20 de Maio de 2021 (facto 31), pois que este, qualificado como importunação sexual, também foi integrado naquele tipo de ilícito (cfr. fundamentação de direito na pág. 16 do acórdão, acima transcrita).
Assim, à data dos episódios de Fevereiro e Março de 2021 a ofendida BB tinha 17 anos, sendo, por isso, menor de idade (art. 122.º do C. Civil), sendo que aquando do episódio de 06-05-2021 tinha já completado 18 anos (o aniversário foi no dia anterior). Relativamente ao episódio ocorrido em data indeterminada, situada entre final de 2020 e 20-05-2021 a mesma teria uma idade entre 17 e 18 anos.
Não pode, pois, dizer-se que a eventual condição de pessoa particularmente indefesa pudesse advir da idade da ofendida, pois que a mesma, em situação de normalidade, corresponde a uma fase de vigor intelectual e físico indesmentível. E nada consta em contrário dos factos dados como provados.
E desses mesmos factos também não resulta que tal condição pudesse advir da dependência económica que, na realidade, existia por parte da ofendida BB e dos restantes membros do agregado relativamente ao arguido CC.
Pelo contrário, os factos dados como provados, no que respeita às circunstâncias em que os mesmos ocorreram, afastam, a nosso ver, essa condição de pessoa particularmente indefesa por parte da BB.
Com efeito, tal como alega o recorrente, as agressões físicas e verbais do arguido à filha BB ocorreram em ocasiões em que aquele ofendia corporal e verbalmente a mulher AA, indo os filhos do casal em auxílio da mãe, sendo que, pelo menos, no episódio de Fevereiro de 2021 estava também o namorado da BB, que a amparou para ela não cair em consequência do empurrão que o arguido lhe deferiu (factos 10 a 13). Já no episódio de Março de 2021, tendo ambos os filhos ido também em auxílio da mãe, o arguido desferiu um empurrão à BB quando esta ia ajudar a mãe, fazendo com que aquela se desequilibrasse e embatesse com a cabeça na esquina da cama do quarto, o que lhe causou dor (factos 14 a 18). Quanto ao episódio de 06-05-2021, ocorrido no final do jantar, mais uma vez estavam os quatro familiares (pais e filhos), tendo o CC impedido o arguido de agredir a mãe com um banco, altura em que este, dirigindo-se a todos eles proferiu a referida expressão ameaçadora (factos 24 e 25). Finalmente, no episódio ocorrido em data indeterminada, entre final de 2020 e 20 de Maio de 2021, o arguido exibiu perante a filha BB o seu corpo totalmente despido numa altura em que esta se deslocou ao seu quarto para, a seu pedido, lhe levar uns boxers, causando medo e constrangimento naquela, fazendo com que ela chorasse (facto 31).
Ora, não só não está comprovado factualmente que a ofendida BB estivesse, nessas circunstâncias, particularmente incapacitada de se defender do arguido, quer pela sua idade, quer pela sua condição de dependente economicamente, como até está comprovado, na generalidade das situações, que a mesma, juntamente com o irmão CC, foi socorrer a mãe, fazendo ambos “frente” ao arguido. A sua condição pessoal, o contexto familiar e as circunstâncias em que os factos ocorreram permitem afastar, claramente, a condição de pessoa particularmente indefesa a que se refere o tipo incriminador.
Na verdade, o que se detecta é uma conjugação de esforços e entreajuda entre os restantes elementos do agregado para pôr cobro aos actos agressivos do arguido, não se evidenciando (ressalvado os casos de abusos sexuais, com incriminação autónoma) uma investida do arguido, fora desse contexto, relativamente à filha BB, com aproveitamento das eventuais fraquezas físicas, devido à sua juventude, ou até da dependência económica da mesma relativamente à sua pessoa, tal como a filha não se inibiu de reagir, em defesa da mãe, pelo facto de ser uma jovem de 17/18 anos e de depender economicamente do arguido.
Considera-se, por isso, que a mesma, apesar de vítima dos actos do arguido, não pode ser considerada abrangida pela citada alínea d) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal.
E já se disse que o crime de violência doméstica só pode ser praticado relativamente a determinadas categorias de pessoas, precisamente as enunciadas nas alíneas a) a d) do n.º 1 desse preceito, na redacção então em vigor (acima transcrita).
A ofendida BB, atento quanto já se referiu, não se enquadra na mencionada alínea d), nem tão pouco em qualquer outra. Daí que não pudesse ser imputado ao arguido um crime de violência doméstica relativamente à mesma, atento o princípio da legalidade e da tipicidade (art. 1.º do C. Penal).
E tal não pode ser ultrapassado pelos contornos típicos do crime de violência doméstica, nem tão pouco pelos instrumentos legais, incluindo os internacionais, protectores das crianças e jovens, designadamente os indicados na resposta do Ministério Público.
Ademais, certamente por detectar tal lacuna legal, o legislador veio alterar novamente o dito artigo 152.º do Código Penal através da Lei n.º 57/2021, de 16-08 (em vigor desde o dia seguinte à publicação), acrescentando uma nova alínea ao seu n.º 1, com o seguinte teor: “e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite.”
Ou seja, aquele tipo de actos (elencados no n.º 1) têm agora essa qualificação típica quando levados a cabo contra menor, seja descendente do agente (em qualquer grau, designadamente filho ou neto), do seu cônjuge ou ex-cônjuge, da pessoa com quem mantenha ou tenha manido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges ou ainda de progenitor de descendente comum em 1.ª grau, mesmo que não coabite com o agente.
E com esta alteração legislativa abriu-se, de forma muito significativa, a amplitude da norma incriminadora relativamente a vítimas menores.
Por tudo quanto se disse, não se mostrando preenchidos os respectivos elementos típicos, impõe-se a absolvição do arguido CC relativamente ao imputado crime de violência doméstica que tem por ofendida a filha BB, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea d), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal.
*
Contudo, os factos dados como provados relativamente a tal ofendida não são inócuos criminalmente. Como se referiu na sentença e acima se transcreveu, o crime de violência doméstica encontra-se numa relação de especialidade relativamente a outros ilícitos, designadamente os crimes de ofensa à integridade física, ameaças, injúrias e importunação sexual. Ou seja, aquele consome estes outros.
Assim, atenta essa relação de consumpção, caso não se mostrem preenchidos todos os elementos típicos do crime consumptor, “renascem” os crimes consumidos. É o que sucede no caso presente.
Com efeito, aquelas agressões corporais levadas a cabo pelo arguido relativamente à filha BB, em Fevereiro e Março de 2021, integram a prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples, pois que se mostram verificados todos os seus elementos objectivos e subjectivos (factos 10 a 13, 14 a 18, 33, 35 e 40, aqui dados por reproduzidos).
Comete tal crime “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa” (n.º 1 do art. 143.º do C. Penal), o que no caso ocorreu, tendo o arguido agido com consciência da ilicitude de tais actos e com dolo directo (n.º 1 do art. 14.º). Tratando-se de duas acções separadas no tempo, ainda que contra a mesma vítima, o agente incorreu em dois crimes (n.º 1 do art. 26.º).
Refira-se, ainda, que para a verificação do ilícito não se exige que o ofendido tenha sofrido lesão física ou mesmo dores em resultado da agressão corporal.[7]
Por outro lado, os factos ocorridos em 06-05-2021 integram a prática de um crime de ameaça agravada, cujos elementos objectivos e subjectivos se mostram verificados (factos 24 e 25, 33, 35 e 40, aqui dados por reproduzidos).
Efectivamente, comete tal crime “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida (…), de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação” (n.º 1 do art. 153.º do C. Penal), sendo que a pena desse crime é agravada quando os factos respectivos forem realizados “Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos” (al. a) do n.º 1 do art. 155.º).
No caso a expressão proferida constituiu uma ameaça de morte, o que configuraria, pelo menos, o crime de homicídio simples (art. 131.º do C. Penal).
Além disso, os factos ocorridos em data indeterminada, entre final de 2020 e 20-05-2021, integram um crime de importunação sexual agravado, pois que se mostram preenchidos os seus elementos objectivos e subjectivos (factos 31, 38 e 40, aqui dados por reproduzidos).
Comete tal crime “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de carácter exibicionista (…) - (art. 170.º do C. Penal). E sendo a conduta levada a cabo perante descendente, como é o caso, há lugar à agravação da pena (art. 177.º, n.º 1, al. a), do mesmo Código).
Refira-se, ainda, que a expressão proferida pelo arguido naquela primeira ocasião (Fevereiro de 2021) para a filha (“e esta filha da puta cheia de mimo a chorar”) tem virtualidade bastante para integrar o crime de injúria (art. 181.º do C. Penal), atento o seu teor e o contexto em que ocorreu, mostrando-se, por isso, verificados os elementos típicos de tal crime (factos 10 a 12, 35 e 40, aqui dados por reproduzidos).
Efectivamente, comete esse ilícito “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos (…) ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração” (art. 181.º do C. Penal).
Clarifica-se que a ofendida BB, quando foi ouvida nos autos, como testemunha, formulou o desejo de procedimento criminal contra o arguido (fls. 51 a 52 verso/81 a 84), além de que posteriormente se constituiu assistente e deduziu acusação, acompanhando também a acusação proferida pelo Ministério Público (fls. 384 a 388), estando, por isso, assegurada a legitimidade para o exercício da acção penal (arts. 49.º e 50.º do CPP).
*
Ainda que agora se proceda à alteração de qualificação jurídica dos factos dados como provados, na parte indicada, considera-se não ser exigível o cumprimento do disposto nos artigos 358.º, n.ºs 1 e 3, e 424.º, n.º 3, do CPP.
Com efeito, os ilícitos agora enunciados representam um minus relativamente ao crime de violência doméstica, encontrando-se nele integrados e existindo uma relação de concurso aparente de normas. Efectivamente, verifica-se entre as respectivas incriminações uma relação de especialidade, aplicando-se a pena, mais grave, prevista para a violência doméstica.[8]
Existindo, como se disse, uma relação de consumpção, caso não resultem provados todos os elementos típicos do crime mais grave acabam por “renascer” os crimes menos graves (os consumidos nessa relação de concurso aparente).
Tal foi o que sucedeu no caso sub judice, tratando-se, manifestamente, de uma situação mais favorável para o arguido do que aquela que sobre ele pendia com o acórdão proferido.
Efectivamente, o regime estabelecido no artigo 358.º do CPP visa assegurar as garantias de defesa do arguido, com consagração constitucional (art. 32.º, n.º 1, da CRP).
Deste modo, tendo em conta a ratio deste instituto (consagrado no citado art. 358.º), “só nos casos em que as garantias de defesa do arguido o exijam (possam estar em causa) está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder-lhe prazo para preparação da defesa”. Daí que que o dever de comunicação não exista “quando a alteração resultar da imputação de um crime menos grave do que o da acusação ou da pronúncia, designadamente em consequência de redução da matéria de facto na sentença, quando esta redução não constituir, obviamente, uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, ou seja, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação.”[9] No mesmo sentido se pronunciou o STJ no já distante acórdão de 03-04-1991.[10]
No que especificamente respeita ao crime de violência doméstica relativamente aos crimes de ofensa à integridade física, ameaça, injúria e importunação sexual, dúvidas não restam que aquele protege mais intensamente a vítima e que estes são mais favoráveis ao arguido (até pelas penas acessórias àquele associadas).
Daí que a convolação efetuada, mantendo-se a respectiva factualidade, não represente um qualquer agravamento da situação do arguido, não se justificando, por isso, a comunicação dessa alteração de qualificação jurídica, nos termos previstos no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, na medida em que, de modo algum, resultaram reduzidas as suas garantias de defesa, salvaguardadas pela invocada norma constitucional (n.º 1 do art. 32.º).
Ainda que se conheça entendimento contrário, tem sido sustentado pelos Tribunais Superiores, incluindo este Tribunal da Relação, que essa tal comunicação não se impõe em casos como o dos presentes autos.[11]
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Importa, agora, proceder à escolha e graduação das penas relativamente aos referidos ilícitos criminais. Assim, o crime de ofensa à integridade física simples é punido com pena de prisão de 1 mês a 3 anos ou pena de multa de 10 a 360 dias (arts. 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 143.º, n.º 1, do C. Penal). O crime de ameaça agravado é punido com pena de prisão de 1 mês a 2 anos ou pena de multa de 10 a 240 dias (arts. 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), do C. Penal). O crime de injúria é punido com pena de prisão de 1 mês a 3 meses ou pena de multa de 10 a 120 dias (arts. 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 181.º, n.º 1, do C. Penal). Finalmente, o crime de importunação sexual agravado é punido com pena de prisão de 40 dias a 16 meses ou pena de multa de 13 a 160 dias (arts. 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, 170.º e 177.º, n.º 1, al. a), do C. Penal).
Dispõe o artigo 70.º do Código Penal que “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidade da punição.”
No caso presente, embora tal alternativa punitiva se verifique relativamente a todos esses ilícitos, atenta a globalidades das condutas imputadas ao arguido, sendo as necessidades preventivas de ordem geral muito elevadas, atento o grau de censura social a elas inerente, afasta-se a aplicação da pena de multa relativamente a tais crimes.
No que respeita à determinação da medida da pena, estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.” Por sua vez, o n.º 2 enuncia as circunstâncias a que o tribunal deve atender, quer deponham a favo do agente, quer contra ele (referidas na várias alíneas desse normativo).
Desde logo, importa reter que os dois vectores a considerar para a determinação da pena concreta são a culpa do agente e as exigências de prevenção (geral e especial).
Como ensina Jorge de Figueiredo Dias, “Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências da prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime - ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente - limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.”[12]
Tal como estabelece o artigo 40.º, n.º 1, do mesmo Código a aplicação de penas visa a “protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, sendo que o limite máximo da pena é determinado pela “medida da culpa” (n.º 2 desse preceito).
Deste modo, a medida da pena tem de ser aferida pela necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto, mas não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Dentro dessa bitola, e tendo presente o princípio da proibição da dupla valoração ínsito no n.º 2 do referido artigo 71.º (“não fazendo parte do tipo de crime”), importa considerar as circunstâncias que deponham a favor e contra o agente, designadamente os factores relativos à execução dos factos (alíneas a) a c) desse n.º 2 do art. 71.º), os factores relativos à personalidade do agente (alíneas d) e f)) e os factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto (alínea e)).
Tendo em conta tal amplitude das molduras penais, releva aqui, desde logo, o grau bastante elevado da ilicitude dos factos levados a cabo pelo arguido, em face das circunstâncias em que ocorreram, na residência familiar, tendo como vítima a sua filha, a qual lhe competia respeitar e até proteger, atentas a suas responsabilidades parentais. Os primeiros ilícitos foram praticados num contexto em que ela foi em apoio da mãe, sendo certo que as consequências para ela advenientes em termos físicos foram reduzidas, sem lesões corporais, sentindo apenas dor. O arguido agiu sempre com dolo directo, sendo essa a modalidade mais intensa (n.º 1 do art. 14.º do C.Penal).
Por outro lado, o arguido tem mantido integração social e laboral, assumindo-se, enquanto integrante do núcleo familiar, como o sustento de todos os elementos da família (factos 48 e 56 a 59). Além disso, não possui quaisquer outras condenações criminais, estando já próximo de completar 49 anos de idade, o que é relevante (facto 71).
Tudo ponderado e diferenciando as situações em função da sua gravidade, afigura-se ajustado fixar as seguintes penas: 6 meses de prisão pelo crime de ofensa à integridade física simples praticado em Fevereiro de 2021 (factos 10 a 13); 9 meses de prisão pelo crime de ofensa à integridade física simples praticado em Março de 2021 (factos 14 a 18); 4 meses de prisão pelo crime de ameaça agravada praticado em 06 de Maio de 2021 (factos 24 e 25); 1 mês de prisão pelo crime injúria praticado em Fevereiro de 2021 (factos 10 a 12) e 6 meses de prisão pelo crime de importunação sexual agravado praticado em data indeterminada, mas entre final de 2020 e 20 de Maio de 2021 (facto 31).
Clarifica-se que, ao contrário da violência doméstica, a tais ilícitos não corresponde qualquer pena acessória relativamente à ofendida BB, por não lhe ser aplicável o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 152.º do Código Penal.
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Perante tal alteração de qualificação jurídica e diferentes penas aplicadas, importa realizar novo cúmulo jurídico.
Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”
Acrescente o n.º 2 desse preceito que “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”
Assim, a moldura do concurso tem como limite mínimo 2 anos e 8 meses (a pena mais elevada) e como limite máximo 11 anos e 6 meses (a somas de todas as penas em que foi condenado nos autos).
Assim, importa ter em conta a diversidade dos factos e a sua gravidade, como acima enunciado, com cometimento de vários ilícitos no mesmo enquadramento espácio-temporal, os quais foram direccionados a três vítimas, além da personalidade do arguido, designadamente em termos de grau de escolaridade e de integração social e laboral, conforme evidenciam os factos provados, aqui dados por reproduzidos, além da ausência de passado criminal.
No acórdão recorrido fixou-se a pena única em 5 anos, dentro de uma moldura que variava entre 2 anos e 8 meses e 11 anos e 8 meses. Ou seja, fixou-se a pena única dentro do primeiro terço dessa moldura, mais concretamente 2 anos e 4 meses acima do mínimo legal.
Ainda que com diferente enquadramento jurídico de alguns dos factos relativamente à ofendida BB, a verdade é que a moldura do cúmulo mantém-se similar, não havendo, por isso, qualquer razão para fixar diferente pena única, pois que a mesma se considera equilibrada e justa, pelo que fixa igualmente a pena unitária em 5 (anos) anos de prisão.
Assim, procede apenas parcialmente este segmento do recurso.
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b) Montante das indemnizações, por danos não patrimoniais, atribuídas às demandantes BB e AA, invocando o recorrente serem os valores exagerados e pugnando pela sua redução (parte II da motivação e conclusões 20 a 30).
Na sentença recorrida fundamentou-se a atribuição daquelas indemnizações nos seguintes termos:
“IV. Da Responsabilidade Civil.
Dos pedidos de indemnização formulados por AA e BB:
A indemnização de perdas e danos emergentes de crime enxertada no processo penal é regulada pela lei civil - art.º 129.º CP, sendo que o art. 71.º CPP apenas se refere à indemnização civil fundada na prática de um crime, mas como refere Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume I, Editorial Verbo, 1996, p. 109, “a expressão usada pelo CPP é insuficiente, como resulta dos art.ºs 84.º e 377.º do CPP, que admitem a condenação em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, ainda que a sentença seja absolutória quanto à responsabilidade criminal”.
Nos termos do disposto no art.º 483.º, n.º 1, do CC, quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação.
São assim pressupostos da responsabilidade civil, o facto voluntário, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre facto e dano.
Face às agressões psicológicas e físicas perpetradas pelo arguido na pessoa da mulher e da filha, resultando provada tal ocorrência, evidente se torna a prática de facto voluntário, primeiro pressuposto da responsabilidade extracontratual.
Por outro lado, atendendo a que tal actuação redundou nas ofensas psíquicas e físicas das ofendidas inequívoca se verifica a violação de um direito absoluto, revelando a ilicitude do facto.
Ao actuar livre deliberada e conscientemente no que a todas as condutas diz respeito actuou o arguido dolosamente.
Acresce que a actuação do arguido causou directa e necessariamente os danos elencados nos pontos 4 a 44, o que revela a clara existência de dano e de nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Perante a factualidade provada, e face ao que se referiu anteriormente, é manifesto que se encontram verificados os pressupostos da responsabilidade civil.
Deste modo reconhece-se às demandante o direito de indemnização e o consequente dever de indemnizar a cargo do arguido.
O art.º 562.º do C. Civil estabelece o princípio da reposição natural quanto à indemnização, isto é o dever de reposição das coisas ao estado no estado em que estariam se não se tivesse produzido o dano.
A obrigação de indemnizar abrange não só os danos patrimoniais, compreendendo os prejuízos causados (danos emergentes) e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucros cessantes), bem como os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Quanto aos danos não patrimoniais a eles se refere o art.º 496.º do C. Civil, estipulando que devem ser atendidos quando pela sua gravidade mereçam a tutela do direito – art.º 496.º, n.º 1, do CC.
Por outro lado, o montante indemnizatório a título de danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade - art.ºs 494.º e 496.º, n.º 3.
Assim e tudo ponderado, designadamente as consequências da conduta (diferenciadas relativamente a cada uma das demandantes), duração e situação económica do arguido e das ofendidas, entende o tribunal ser justo, equitativo e razoável fixar o montante indemnizatório pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante AA em €6000 (seis mil euros) e relativamente à assistente BB o montante de € 7.000 (sete mil euros).
A demandante BB peticiona ainda juros de mora desde a citação.
Segundo o art.º 805.º, n.º 3, do C. Civil, nos casos de responsabilidade por facto ilícito, o devedor constitui-se em mora desde a citação.
Em conformidade com o art.º 806.º, n.º 2, do C. Civil, os juros devidos são os legais.
Atento o disposto no art.º 559.º, n.º 1, do C. Civil, os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa são os fixados em portaria, que acrescerão à quantia a esta fixada.
Já assim não acontecerá relativamente ao montante concedido a AA, porquanto os juros não foram peticionados.”
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Vejamos.
Diz o recorrente que os valores atribuídos pelo Tribunal a quo, a título de danos não patrimoniais, são exagerados, atendendo, nomeadamente, à sua situação económica, que não é desafogada, pelo que os mesmos deverão ser reduzidos, sendo quanto à AA para 3.500,00€.
Antes de mais, importa referir que, apesar de se manter a condenação criminal, ainda que relativamente à ofendida BB por diferentes ilícitos, o recurso da parte civil é autonomamente admissível (n.º 2 do art. 400.º do CPP, à contrário).[13]
Com relevo para o caso, dispõe o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
De acordo com esta norma, a obrigação de indemnizar imposta ao lesante depende da verificação de vários pressupostos, sendo eles: o facto voluntário do agente; a ilicitude; a imputação de facto ao lesante; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.[14]
Por outro lado, dispõe o artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa à sua personalidade física ou moral”.
Este preceito, que consagra uma verdadeira tutela geral da personalidade, protege uma multiplicidade de direitos pessoais, onde se incluem, necessariamente, o direito à integridade física e moral, à honra e à liberdade de determinação.
De entre os danos indemnizáveis contam-se os de natureza não patrimonial sempre que, “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, conforme resulta do artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, dispondo o n.º 3 deste preceito que o montante da indemnização será “fixado equitativamente pelo tribunal”.
Trata-se, neste caso, não de uma reparação ou reconstituição natural, como sugere o artigo 562.º do referido Código, mas antes de uma compensação pela dor, sofrimento ou transtornos causados ao lesado, uma vez que se torna impossível repor a situação no estado anterior à lesão.
Na fixação do quantitativo pecuniário devem considerar-se, designadamente, o grau de culpabilidade do responsável, a sua situação económica e a do lesado e as flutuações do valor da moeda, devendo o montante ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta os valores normalmente encontrados para situações similares e a justa medida das coisas. Na situação sub judice, a demandante AA peticionou a quantia de 10.000,00€ e a demandante BB peticionou a quantia de 15.000,00€, ambas a título de danos não patrimoniais, tendo-lhes o Tribunal a quo, ponderando especialmente a gravidade dos factos e as consequências que advieram para aquelas, bem como o longo período temporal em que os factos ocorreram, além da situação económica do responsável e das lesadas, atribuído, respectivamente, os montantes de 6.000,00€ e 7.000,00€.
Tendo presentes os factos apurados e o enunciado no acórdão, não cremos que os valores atribuídos desrespeitem os aludidos comandos legais.
É verdade que o responsável civil, tal como o mesmo alega, não obtém elevados rendimentos do trabalho, pois que aufere o vencimento de 790,00€ mensais, ao que acresce o valor das horas extraordinárias (quando as realiza), no valor de 46,00€ semanais, tendo despesas fixas assinaláveis (factos 52 e 53).
Contudo, os actos pelo mesmo perpetrados assumem elevada gravidade, pois que se traduziram em agressões físicas e verbais frequentes, incluindo ameaças de morte, além de que se prolongaram por tempo relevante, especialmente quanto à ofendida AA, assinalando-se também os actos de cariz sexual relativamente à filha BB, tudo isso lhes provocando consequências negativas no seu bem-estar físico e psíquico, que ainda hoje perduram (vide factos 41 a 44).
Não se tratou, pois, de um ou outro episódio isolado, mas sim de comportamentos graves, reiterados e muito prolongados no tempo, com consequências muito negativas para as vítimas, o que justificaria até, não fosse tal circunstancialismo da fragilidade económica do lesante, a atribuição de uma indemnização bem mais elevada. Na verdade, as indemnizações por factos ilícitos e culposos, do tipo dos apurados nos autos, têm de assumir relevo para os ofendidos, sob pena de não compensar, minimamente, os danos sofridos.
E a modesta situação económica do lesante não pode conduzir à atribuição de um valor que nada ou pouco compense o sofrimento causado. Ademais, a condição económica que o demandado CC tem vivenciado poderá vir a assumir melhorias, pois que o mesmo se encontra em plena idade activa (49 anos). Por outro lado, se a condição económica do lesado fosse, por si só, determinante para a quantificação da indemnização, a ausência de rendimentos implicaria a não atribuição de qualquer valor ou a sua fixação em montante irrisório, o que, de forma alguma, salvaguardaria as suas finalidades compensatórias.
Em todo o caso, a alegada incapacidade do demandante igualmente se verificaria relativamente ao montante pelo mesmo sugerido para a demandante AA (3.500,00€), sendo que relativamente à demandante BB nenhum valor indica em alternativa ao atribuído no acórdão, limitando-se a dizer que “o mesmo deve ser reduzido”, pelo facto de não ter praticado, na pessoa desta, o crime de violência doméstica (conclusão 20). Tratando-se de recurso em matéria de direito, o recorrente não cumpriu, nesta parte, o disposto no artigo 412.º, n.º 2, alínea b), do CPP.
Em todo o caso, independentemente do ilícito criminal cometido (violência doméstica ou outros), a verdade é que os factos ilícitos mantêm-se na sua plenitude, tal como os danos não patrimoniais que dos mesmos advieram para a demandante BB.
E se é verdade que nenhum valor compensatório apaga o ocorrido e repõe a situação das lesadas no estado anterior à lesão, atenta a concreta gravidade dos danos e suas consequências, a culpabilidade do responsável, a condição socioeconómica dos intervenientes, incluindo do responsável civil, considera-se não haver fundamento para intervir correctivamente nos valores atribuídos pelo Tribunal a quo, uma vez que não se mostram violados os comandos legais atinentes, incluindo os indicados pelo recorrente CC.
Assim, improcede o recurso interposto quanto a este segmento.
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Apenas são devidas custas pelo arguido no caso de “decaimento total” no recurso, com taxa de justiça a fixar entre 3 e 6 UC, não havendo lugar às mesmas em caso de procedência, mesmo que somente parcial (arts. 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa). III Pelo exposto, na parcial procedência do recurso, decide-se: a) Revogar o acórdão recorrido na parte em que condenou o arguido DD pela prática na pessoa de BB de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d), e n.ºs 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão e na penas acessórias de proibição de contacto com a mesma assistente pelo período de 3 (três) anos, a qual incluía o seu afastamento desta, da sua residência e do seu local de trabalho, a uma distância de pelo menos 500 metros, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, se em tal a ofendida consentisse, e à obrigação de frequência de programa de prevenção de violência doméstica e/ou análogo a concretizar pelos competentes serviços e reinserção social (al. c. do dispositivo), absolvendo-o de tal crime. b)Condenar o arguido DD pela prática, na pessoa da assistente BB, dos crimes e nas penas seguintes:
- um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão; - um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão;
- um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;
- um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) mês de prisão;
- um crime de importunação sexual agravado, p. e p. pelos artigos 170.º e 177.º, n.º 1, alínea a), do C. Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão. c) Manter, quanto ao mais, o acórdão recorrido, incluindo a pena única do cúmulo jurídico (ainda que a pena acessória de proibição de contactos e imposição de afastamento se refira agora apenas à ofendida AA).
Sem custas.
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Notifique.
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Porto, 16-11-2022.
Raul Cordeiro
Carla Oliveira
Paula Pires [Declaração de voto de vencida:
Sem deixar de evidenciar a brilhante explicação e decisão tomada no acórdão elaborado pelo Excelentíssimo Relator, teria julgado totalmente improcedente o recurso apresentado pelo arguido.
“Pessoa particularmente indefesa” para efeitos do disposto na al. d) do nº 1 do art.º 152º do CP, é aquela que se encontra numa situação de especial fragilidade”, é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma.
A questão controversa nos presentes autos – saber se a filha de 17 anos, coabitante com o pai/agressor e arguido (importunador e abusador sexual) e dele dependente economicamente deve ser tida como “pessoa particularmente indefesa” relativamente àquele seu pai – foi, na minha óptica, bem decidida na Primeira Instância, com todo o respeito por opinião contrária.
E tanto assim o foi que “lege ferenda” foi claramente decidido pelo legislador que seria vítima deste crime qualquer “menor que seja seu descendente”.
A Lege ferenda levou à clara incriminação o que, em meu entender, dá apoio a tese de que a filha do arguido – atentas as circunstâncias factuais do caso em evidência - deveria ser tida como pessoa particularmente indefesa para efeitos da incriminação em causa no acórdão. O arguido aproveitou, sem qualquer dúvida, a juventude e imaturidade da menor e a sua clara ausência de capacidade defesa, pois sabia do temor e do “amor” que a filha evidenciava, fruto, acima de tudo, da sua juventude; mas também fruto do temor que foi deixando crescer face aos comportamentos do pai que resultaram provados.
O facto de a aqui vítima reagir no sentido de defender a mãe (em conjunto com o irmão – que, saliente-se, nunca foi agredido fisicamente, nem importunado sexualmente – o que revela claramente a existência de violência de género, potenciada pelo álcool) não lhe retira a qualidade de pessoa particularmente indefesa.
O que lhe era exigido? Que não defendesse nunca a mãe? Ou, por ser “forte” que se munisse de um martelo e atacasse o pai? Com a supremacia física normalmente evidenciada pelo pai adulto face à filha menor?! Ou que saísse de casa? E fosse viver na rua, como sem abrigo? Sem esquecer o sentimento de culpa que existiria por abandonar a mãe às mãos do pai agressor!
Não temos dúvidas que a relação filial, a sua juventude, imaturidade, a sua exposição em família à violência e ao abuso e a sua dependência económica a tornam, nesta situação concreta, pessoa particularmente indefesa; pessoa incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz.
É especial dever do pai a guarda e assistência aos filhos menores.
Está sobejamente comprovado por estudos que as crianças têm direito a crescer num ambiente seguro. A instabilidade e a insegurança física ou emocional afetam o seu desenvolvimento, a sua autoconfiança e a sua capacidade de aprender e de tornarem autónomas.
A Resolução da AR n.º 4/2013, de 21 de Janeiro aprovou a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011, vulgo CONVENÇÃO DE ISTAMBUL.
A Convenção de Istambul, é um instrumento jurídico vinculativo, de âmbito internacional que visa a proteção das mulheres contra todas as formas de violência, a prevenção, contribuindo para a promoção da igualdade entre mulheres e homens, por via da eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres. Todas as meninas com menos de 18 anos são equiparadas a “mulheres” para efeitos da aludida Convenção.
É seu objectivo, conceber um quadro global de políticas, medidas de proteção e assistência, promover a cooperação internacional e apoiar as organizações e organismos responsáveis pela aplicação da lei para que cooperem de maneira eficaz, adoptando uma abordagem integrada, com vista a eliminar a violência contra as mulheres e a violência doméstica.
A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica foi: adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011; aprovada pelo Governo português a 16 de Novembro de 2012; ratificada pela Assembleia da República a 21 de Janeiro de 2013; entrou em vigor em Portugal a 1 de Agosto de 2014.
Lembremos que a CONVENÇÃO DE ISTAMBUL estabelece a necessidade de especial protecção de crianças e mulheres:
- Reconhecendo que a realização de jure e de facto da igualdade entre as mulheres e os homens é um elemento chave na prevenção da violência contra as mulheres;
- Reconhecendo que a violência contra as mulheres é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens que levou à dominação e discriminação das mulheres pelos homens, privando assim as mulheres do seu pleno progresso;
- Reconhecendo que a natureza estrutural da violência contra as mulheres é baseada no género, e que a violência contra as mulheres é um dos mecanismos sociais cruciais através dos quais as mulheres são mantidas numa posição de subordinação em relação aos homens;
- Reconhecendo, com uma profunda preocupação, que mulheres e raparigas estão muitas vezes expostas a formas graves de violência, tais como a violência doméstica, o assédio sexual, a violação, o casamento forçado, os chamados “crimes de honra” e a mutilação genital, que constituem uma violação grave dos direitos humanos das mulheres e raparigas e um obstáculo grande à realização da igualdade entre as mulheres e os homens;
- Reconhecendo as violações constantes dos direitos humanos durante os conflitos armados que afectam a população civil, especialmente as mulheres, sob a forma de violações e violência sexual generalizadas ou sistemáticas, e o potencial para o aumento da violência baseada no género, tanto durante como após os conflitos;
- Reconhecendo que as mulheres e as raparigas estão expostas a um maior risco de violência baseada no género que os homens;
- Reconhecendo que a violência doméstica afecta desproporcionalmente as mulheres e que os homens podem também ser vítimas de violência doméstica;
- Reconhecendo que as crianças são vítimas da violência doméstica, inclusivamente como testemunhas de violência no seio da família;
- Aspirando a criar uma Europa livre de violência contra as mulheres e de violência doméstica.
A Convenção de Istambul reconhece a violência contra as mulheres como uma violação de direitos humanos e uma forma de discriminação. Isto significa que os Estados serão responsabilizados se não responderem adequadamente a essa violência.
Este é o primeiro tratado internacional que contém uma definição de género. Isto significa que se reconhece agora que mulheres e homens não são apenas biologicamente femininos ou masculinos – existe também uma categoria de género socialmente construída e que atribui às mulheres e aos homens os seus papéis e comportamentos específicos. Estudos revelaram que certos papéis e comportamentos podem contribuir para tornar a violência contra as mulheres aceitável.
Temos, pois, que tudo conjugado a opção da Primeira Instância foi a mais curial.
Pelo que a teríamos mantido.]
_____________ [1] Trata-se da redacção anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 57/2021, de 16-08 (em vigor a partir do dia seguinte à publicação). [2] Cfr. Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, págs. 329 a 332. [3] In Comentário do Código Penal, 2.ª edição actualizada, UCE, pág. 465. [4] Acessível em www.dgsi.pt. [5] Acessível em www.dgsi.pt e também em CJ Ano XLVI – Tomo V/2021, págs. 184 a 186. [6] Efectivamente, tal dependência económica não consta dos factos da acusação, que foram dados como provados no acórdão (pontos 1. a 40.), pelo que tal circunstâncias não poderia, neste contexto, ser considerada para o preenchimento de tal crime imputado ao arguido CC. [7] Cfr. Acórdão do STJ, de 18-12-1991 - Proc. n.º 41618, in DR I-Série A, de 08-02-1991. [8] Cfr. Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 336, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª Edição, UCE, págs. 466 e 467). [9] Cfr. Conselheiro Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, 3.ª Edição Revista, Almedina, pág. 1103. [10] In Col. Jur. Ano XVI, Tomo II, pág. 17. [11] Cfr. Acórdãos da RP de 14-03-2018 (Proc. 563/16.9GAALB.P1) e de 28-04-2021 (Proc. 668/19.4GAFLG.P1), inwww.dgsi.pt, bem como o recente Acórdão de 09-12-2021, proferido no Proc. C. Singular n.º 314/19.6GBOBR, do Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Bairro – Juiz 2, relatado pelo agora também relator. [12] In Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005, pág. 215. [13] Pois o valor dos pedidos é superior à alçada do tribunal recorrido, que está legalmente fixada em 5.000,00€, sendo que também a decisão impugnada é desfavorável ao recorrente em valor superior a metade desse valor (art. 44.º, n.º 1, da LOSJ - Lei n.º 62/2013, de 26-08). [14] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, Volume I, pág. 495.