I. Para a coautoria, não é indispensável que cada um dos intervenientes participe em todos os atos para obtenção do resultado pretendido, já que basta que a atuação de cada um, embora parcial, seja um elemento componente do todo indispensável à sua produção.
II. Na expressiva classificação do acórdão recorrido, eram os co-arguidos, como casal, “os donos do negócio”, sem embargo da “liderança/predominância” de um. A atividade dos dois arguidos foi desenvolvida de forma conjunta, em coautoria, agindo, em negócio comum, a dois, vendas “por conta do casal”, mediante prévio acordo e em conjugação de esforços e vontades, almejando os mesmos objetivos. Atividade levada a cabo pelos dois, sem distinção, numa atuação concertada e permanente e recebendo ambos os proventos desses seus atos ilícitos. Cada um, necessariamente, com o seu papel.
III. Cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente do grau de culpa dos outros (artigo 29 do CP).
IV. Deve salientar-se a gravidade que encerra a instrumentalização dos consumidores dependentes (“indecorosa” a apelidou o acórdão recorrido), no exercício da atividade de tráfico, já que nem o contacto direto que os traficantes diariamente com eles têm os inibem de suspender tal atividade, revelando enorme insensibilidade e indiferença perante os efeitos nefastos e o sofrimento causados pelo consumo que lhes sustentam em troca dos seus serviços e que observam diariamente.
I - RELATÓRIO
I.1. O arguido AA foi condenado por acórdão de 30/05/2022, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Criminal de Braga, juiz ..., pela prática, em coautoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º1, do Decreto-lei n.º15/93, de 22.01, com referência às tabelas I-A e I-B, anexas a tal diploma, na pena de cinco (5) anos e três (3) meses de prisão efetiva.
Não se conformando com o douto acórdão, no estrito segmento da fixação da medida concreta da pena, do mesmo interpôs recurso.
I.2. Apresentou as seguintes conclusões:
“A. O recorrente coloca à ponderação do tribunal ad quem apenas a medida da pena.
B. A decisão no que diz respeito à decisão a matéria de facto não merece qualquer reparo, face às declarações dos arguidos, conjugada com a demais prova produzida.
C. Ainda que a decisão faça o recorrente participante da actividade da coarguida BB, sua mulher, certo é que o papel desta tem notoriamente mais peso, atentas as circunstâncias particulares que rodeiam a actividade.
D. Com efeito, o ponto 1 da matéria apurada situa-nos no bairro social onde a co-arguida BB tem a família; as condições pessoais reveladas pelos pontos 48, 55 e 56 61, 68 a 71 da matéria apurada dão o retrato da vida de cada uma.
E. E o que decorre do ponto 9 da matéria dada como apurada, bem como o que decorre da fundamentação, nomeadamente quanto à confissão da co-arguida a chamar a si os actos e decisões de maior importância determinam que se caracterize e adjective como de maior relevância o papel da co-arguida BB.
F. Isto confere menor ilicitude nomeadamente na matéria que se prende com os pontos apurados sob 39, 41 e 42 pois que a sua importância é sempre menor.
G. Esta importância da co-arguida, atentas as particulares circunstâncias onde a actividade colocou-os nos actos de venda directa (pontos 11, 18, 22, 26 e 29 da matéria apurada) a sofisticação inexiste na medida em que o recorrente, co-responsável na acividade de tráfico, é ele próprio o rosto visível da venda, com o risco assumido de forma directa e clara perante todos, incluindo da polícia que tinha a cargo a investigação, como decorre dos pontos 22 e 26 acima referidos.
H. A postura processual a assumir essa realidade em julgamento, com a confissão – ponto 96, a particularização do lucro da actividade nos termos dos pontos 15, 35 e 37 da matéria apurada e ausência de sinais de riqueza, determinam, para si, um critério mais benévolo na fixação da medida da pena.
I. Estamos perante venda directa, de pequenas doses, para consumo de quem compra e, por isso, mau grado o número de pessoas, as quantidades e em consequência o rendimento ilícito daí resultante não assume uma expressão avultada que mereça um registo para além do que apura a decisão nos pontos 37 e 40.
J. Não se questiona o preenchimento do tipo legal previsto e punido pelo artigo 21º do DL 15/93, aderindo-se ao referido no acórdão, cuja matéria de facto se aceitou, nomeadamente a que decorre e que tem importância nesta parte, os pontos 39, 41, 42, 44 e 45 da matéria apurada.
K. Já a fixação da medida concreta da pena para o recorrente merece um reparo.
L. As condições de vida do recorrente, nomeadamente o facto de provir de seio familiar com algumas disfuncionalidades, marcado pela problemática etílica do progenitor e, não obstante o abandono precoce do ensino escolar, a aquisição de competências que lhe possibilitaram um percurso laboral inserido, revelando hábitos de trabalho; a constituição de uma família com a coarguida BB, de quem tem um filho em comum, com quem mantém laços afetivos e o seu sustentáculo até à detenção em 2022 e a sua retaguarda familiar, que o apoia, que o visita regularmente em meio prisional, e, por fim, o contexto prisional onde ocupa o quotidiano com atividades estruturadas de natureza laboral/normativa; merecem relevo.
M. Não se passa ao do facto de não referir a existência de vítimas neste tipo de crime, mas o ponto 96 colmata e a decisão exara o arrependimento do recorrente, o que merece valoração.
N. Claro é que o envolvimento anterior em crime de igual natureza havia ocorrido em 2010 e tal impede um juízo de prognose favorável quanto a uma suspensão da execução da pena de prisão.
O. Mas não impede, atento o proclamado protagonismo da co-arguida – que tse encontra a cumprir pena pela prática de crime de crime de igual natureza - se reduza a pena do recorrente, por este estar numa posição de colaboração com aquela mas com outro envolvimento e outra densidade dolosa no cometimento dos factos.
P. O recorrente colaborava nos concretos actos de venda a terceiros, dando a cara , mas não tomava parte nas decisões de aquisição e em todas as que daí tivessem a sua sequência, como seja a determinação de quantidades, tipo de estupefaciente, preços e lucro.
Q. Por isso, para o recorrente impõe-se pena inferior a 5 anos, uma pena fixada entre 4 anos e 6 meses e 4 anos e 9 meses.
R. A sua atuação é de entreajuda e é determinante é o facto de viver com a co-arguida.
S. O seu grau de ilicitude é necessariamente mais baixo.
T. A decisão recorrida incorreu, por isso na violação do disposto nos artigos 40º e 71º do CP.”
I.3. Respondeu o MºPº na 1ª instância:
Disse, além do mais, que “Para decidir da pena concreta a aplicar há que ter em consideração, assim, as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, relevam para a culpa e prevenção. Na prossecução dessa tarefa há que atender, designadamente, aos factores previstos no n.º 2 do citado artigo 71º do Código Penal.
E foi o que efectivamente sucedeu no caso sub judice, conforme se constata da análise minuciosa levada a cabo a fls. 5855 verso a 5858. Na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal a quo, entre o mais, não deixou de ponderar os antecedentes criminais do arguido, o tipo de produto estupefaciente vendido (cocaína e heroína, ou seja as chamadas “drogas duras”, das mais nocivas) e o local escolhido para o efeito (habitação social atribuída ao cônjuge do arguido, mas que ambos não destinavam à habitação, mas à venda de produto estupefaciente), a utilização de toxicodependentes na venda dos produtos estupefacientes, o sistema de rotatividade da vendam a duração temporal dos factos – cerca de 1 ano e 2 meses. (…) as necessidades de prevenção geral do crime de tráfico são muito elevadas, (…) não pode o recorrente olvidar que fora condenado pelo crime de tráfico no Proc. 140/11...., por decisão transitada em julgado 9/1/2012, numa pena de 4 anos e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período. Essa pena foi declarada extinta 26/4/2016. A verdade é que, como resulta dos presentes autos, ainda decorria a suspensão da execução da pena de prisão do referido processo, e o arguido já deitava por terra o juízo de prognose que fora feito a seu favor, não aproveitando a oportunidade que lhe fora, e voltando precisamente a cometer o mesmo tipo de crime, pelo qual foi condenado nos presentes autos, sendo que nem a ameaça de uma pena já de média duração o fez arrepiar caminho.”
E concluiu que:
“Atento o que vimos de expor e o mais claramente explanado no acórdão em apreciação, a pena em causa nada tem de excessivo, sendo pelo contrário justa, necessária, adequada e proporcional ao caso vertente.”
I.4. O Exmo PGA emitiu o seguinte parecer:
“O arguido AA recorre da decisão, e limitando o seu pedido no sentido da redução da pena imposta, apontando para uma que se situe entre os 4 anos e 6 meses e os 4 anos e 9 meses (e, adiante-se, não solicitando a suspensão da sua execução, antes logo admitindo – conclusão N. - que o seu envolvimento anterior em crime de igual natureza impede um juízo de prognose favorável quanto a uma suspensão de execução da pena de prisão).
Para este efeito invoca, quer no texto da motivação, quer nas respetivas conclusões, basicamente a circunstância de se ter de entender, na sua perspetiva, ter sido mais baixo o seu grau de ilicitude do que o da co-arguida BB (condenada, como atrás se referiu, na pena de 6 anos e 9 meses de prisão), pois que, como também invoca, o papel desta teria tido maior peso na prática do crime, sendo o seu papel o de colaborador daquela (conclusão O.), decorrendo de com a mesma viver, «colaborando nos concretos actos de venda a terceiros, dando a cara, mas não tomava parte nas decisões de aquisição e em todas as que daí tivessem a sua sequência, como seja a determinação de quantidades, tipos de estupefacientes, preços e lucro», não mostrando sinais de riqueza, estando-se perante venda direta em pequenas doses. Invoca ainda as suas condições de vida (provir de uma família com algumas disfuncionalidades, possuir hábitos de trabalho, ter família que o apoia), o ter confessado os factos e ter demonstrado arrependimento, e ainda a circunstância de manter bom comportamento prisional, como elementos a ter em conta para a pretendida redução da pena aplicada
recorrente, não resultou provado o que alega quanto a ser um mero executor das decisões tomadas pela coarguida, sua companheira, BB, limitando-se a «dar a cara» pelas decisões tomadas por aquela.
que ficou provado (e não foi contestado pelo recorrente, lembre-se), foi que toda a atividade destes dois arguidos foi levada a cabo de forma conjunta, mediante acordo e execução também conjuntos, em comunhão de esforços, visando alcançar, como alcançaram, os mesmos objetivos. Daí a coautoria a que o acórdão de 1ªinstância se refere precisamente para caracterizar a conduta em questão, lembrando que «a comparticipação criminosa sob a forma de coautoria pressupõe um elemento subjetivo o acordo, com o sentido de decisão, expresso ou tácito, para a realização de determinada ação típica - e um elemento objetivo, que constitui a realização conjunta do facto, ou seja, tomar parte direta na execução.
O Supremo Tribunal de Justiça tem, de há muito, consagrado a tese segundo a qual, para a coautoria, não é indispensável que cada um dos intervenientes participe em todos os atos para obtenção do resultado pretendido, já que basta que a atuação de cada um, embora parcial, seja um elemento componente do todo indispensável à sua produção.
O autor deve ter o domínio funcional do facto; o coautor tem também, do mesmo modo, que deter o domínio funcional da atividade que realiza, integrante do conjunto da ação para a qual deu o seu acordo, e na execução de tal acordo se dispôs a levar a cabo.
O domínio funcional do facto próprio da autoria significa que a atividade, mesmo parcelar, do coautor na realização do objetivo acordado se tem de revelar indispensável à realização da finalidade pretendida. Ou seja, a contribuição de cada coautor deve revelar uma determinada medida e significado funcional, de modo que a realização por cada um do papel que lhe corresponde se apresente como uma peça essencial da realização do facto» (citando Jescheck).
Ora, se poderá ter havido alguma liderança da arguida BB na organização, o que – conforme resulta da fundamentação da decisão, terá sido referenciado no decurso da audiência -, tal alegada liderança não foi de molde a levar a entender pela verificação de qualquer posição subalterna do ora recorrente na organização que ambos lideraram, visando a venda lucrativa de estupefacientes. Os atos de execução dados como provados, os contactos mantidos com os compradores e com os consumidores que angariaram para venda direta a terceiros, toda a gestão do tráfico (incluindo os contactos mantidos através de contactos telefónicos), foi levada a cabo pelos dois, sem distinção, numa colaboração permanente e recebendo ambos os proventos desses seus atos ilícitos.
Sendo que até há a referir que acabou a arguida por ser mais severamente punida do que o recorrente (a que, no entanto, não terá sido alheia a circunstância de ter sido já anteriormente punida, com pena de prisão efetiva, pela prática do mesmo tipo Criminal enquanto que o arguido/recorrente igualmente foi punido, igualmente pela mesmo crime, mas em pena suspensa que acabou por ser julgada extinta pelo decurso do tempo), pelo que o pedido do recorrente no sentido de a sua punição ser inferior à da coarguida se mostra já satisfeito...
- Termos em que – e mais uma vez dando por reproduzido tudo o que consta na resposta dada pelo Ministério Público da 1ªinstância em sede de resposta – entende-se que deverá ser julgado improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.”
I.5. Notificado o parecer ao arguido, nos termos do artigo 417, nº 2, do CPP, não veio resposta.
Foi aos vistos e decidiu-se em conferência
I.6. Admissibilidade e objeto do recurso
O Mmº Juiz desembargador Relator do Tribunal da Relação ..., Tribunal para onde foi endereçado o recurso interposto pelo arguido no âmbito do presente processo, declarou aquele Tribunal como incompetente para o apreciar, invocando o disposto no artº 432º, nº 1, al. c), do CPP.
E bem. Na verdade, sendo a decisão recorrida um acórdão final do tribunal coletivo, que aplicou pena superior a 5 anos, e visando o recurso, exclusivamente, o reexame de matéria de direito, é competente para dele conhecer o Supremo Tribunal de Justiça, em harmonia com o disposto no art.º 432.º, n.os 1, al. c), e 2, do CPP, na redação conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, e com a jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de Fixação de Fixação de Jurisprudência, n.º 8/2007, publicado no DR, I Série, de 4-06-2007. Como anota em “Código de Processo Penal Comentado ─ Comentado”, Henriques Gaspar et alii, em nota ao artigo 432,: «O recurso segue, nesse caso, directo para o Supremo.»
I.7. Questão a decidir: medida concreta da pena.
II - FUNDAMENTAÇÃO
Matéria de facto
II.1. Da audiência de julgamento e com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
“Acusação pública
1. Entre os arguidos BB, AA e o coarguido CC foi acordada a venda, num sistema de rotatividade, por período de oito dias a cada um, de heroína e cocaína, a partir da Entrada..., do Bloco ..., do Bairro ....
2. No referido sistema de rotatividade, a venda era feita nas 24 horas diárias, havendo também rotatividade entre as pessoas que serviam os toxicodependentes/compradores, também eles dependentes de drogas.
3. A venda direta de estupefacientes aos consumidores tinha lugar a partir da referida da Entrada..., do Bloco ..., do Bairro ...:
a) na ..., residência atribuída a DD, de alcunha “EE”;
b) no ... andar, residência atribuída ao casal FF e GG; e
c) no ... andar, residência atribuída à arguida BB, mas que nela não habitava.
4. Para tal decidiram que a venda de produtos estupefacientes seria feita com recurso a toxicodependentes/consumidores que, a troco de heroína e cocaína para consumo próprio, aceitaram a execução das tarefas que lhe eram destinadas.
5. De forma a conferir uma maior segurança ao local de venda, foi colocado à porta um toxicodependente com a tarefa de encaminhar os consumidores, indicando o ponto de venda, avisar da presença da Polícia, usando para tal uma senha através da vociferação do termo “água” (a significar a presença da polícia) e do fecho da porta do prédio com o uso de uma tranca em madeira ou escora metálica, para impedir a entrada desses mesmos agentes, refugiando-se, em seguida, no interior do apartamento onde se estava a desenrolar a venda direta do estupefaciente e caso se apercebessem do arrombamento da porta da entrada do prédio, procediam de imediato à destruição do estupefaciente.
6. O arguido HH tinha a tarefa de efetuar vigilância na porta da Entrada....
7. Para contactarem entre si, bem como para contactar e serem contactados pelos indivíduos a quem compravam os referidos produtos estupefacientes, pelo menos, no período compreendido entre início de janeiro de 2016 e o dia 15 de março de 2017, os arguidos BB e AA utilizaram os seguintes IMEI’s/cartões de telemóvel:
a) A arguida BB o aparelho telefónico com o IMEI ...30, no qual operava um cartão telefónico com o n.º...34, ligado à operadora V....
b) O arguido AA o aparelho telefónico com o IMEI ...20, no qual operava um cartão telefónico com o n.º...75, ligado à operadora....
8. Os arguidos, nas conversações que estabeleciam entre si ou com naquelas que realizavam com os consumidores de heroína e cocaína, utilizavam códigos, isto é, e entre outras, utilizavam as seguintes expressões: “ir tomar café”, “aquilo”, “isso”, “ela já tá lá”, “gasolina”, “erva”, “bases”, “quilo”, “um véu”, “tens que vir cá”, “tomares um cafezinho”, “anda aqui em baixo”, “tou aqui em baixo”, “num disseste que ias à droga?”, “quer entregar-te produto”; “cinquenta contos”, “cinquenta e dois mil contos”, “Vê lá se trazes euros, que eu preciso de euros”, “produto”, códigos para se referirem aos produtos estupefacientes, dinheiro, quantidades, locais para aquisição e todas as referências que possam comprometer o seu envolvimento no negócio do tráfico de estupefacientes.
9. Para a aquisição das substâncias estupefacientes para posterior (re)venda, era a arguida BB quem se deslocava ao Bairro ..., no ....
10. Desde, pelo menos, o mês de janeiro de 2016 até 15 de março de 2017, os arguidos BB e AA dedicaram-se à venda de produtos estupefacientes, maioritariamente, heroína e cocaína, ao preço de €5,00 e €10,00 a dose, respetivamente, na habitação sita no ...... direito, da Entrada..., do Bloco ..., do Bairro ..., em ....
11. Para além de os próprios venderem diretamente, noutras ocasiões, colocaram indivíduos, geralmente, toxicodependentes da sua confiança, sendo estes que, sob a sua supervisão, procederam às vendas dos produtos estupefacientes aos toxicodependentes que aí se dirigiram, existindo outros que permaneciam na porta da entrada do bloco, em funções de vigilância e de encaminhamento dos consumidores.
12. Entre tais colaboradores estavam os coarguidos II e JJ, de alcunha “KK”.
13. No dia 12 de janeiro de 2016, pelas 11h00, na Entrada..., do Bloco ..., do Bairro ..., o coarguido JJ foi intercetado por agentes da PSP ..., quando ali se encontrava a vender heroína e cocaína, por conta do casal AA e BB.
14. O arguido JJ foi sujeito a revista, tendo-lhe sido encontrado no bolso das calças que trajava um recorte plástico contendo:
a) dezoito embalagens de heroína com o peso líquido de 2,259 gramas;
b) um recorte plástico contendo trinta e uma pedras de cocaína com o peso líquido de 3,001 gramas; e
c) três cantos de saco (recortes plásticos), onde se encontravam acondicionados cinco pedaços de cocaína, com o peso líquido de 9,334 gramas.
15. Foi-lhe ainda apreendida a quantia monetária de €185,30, bem como um pedaço de papel com apontamentos referentes à venda de estupefaciente e quantidades consumidas, onde tinha registado, no início do turno de venda, a existência de 44 pacotes e 64 bases, tendo retirado quatro pacotes e três bases para consumo do “LL”.
16. No dia 28.04.2016, no período compreendido entre as 16h50 e as 19h15, e no dia 29.04.2016, pelas 09h50, a venda de produto estupefaciente era efetuada a partir do ... andar, da Entrada..., do Bloco ..., encontrando-se a exercer funções de vigilante, junto da porta do prédio, o arguido HH.
17. No dia 20 de maio de 2016, no período compreendido entre as 09h05 e as 11h15, a venda de produto estupefaciente estava a desenvolver-se a partir do ... andar, da referida Entrada..., do Bloco ..., encontrando-se no exterior do prédio, com a finalidade de encaminhar os toxicodependentes e de avisar a presença da polícia, o arguido HH.
18. No dia 30 de maio de 2016, no período compreendido entre as 15h45 e as 16h45, no 3.º direito, daquele bloco e entrada, estavam no interior da residência o casal de arguidos BB e AA.
19. No exterior do prédio com a finalidade de encaminhar os toxicodependentes e de avisar da presença da Polícia, estava o arguido HH, que aos toxicodependentes/consumidores que questionavam onde se estava a vender estupefaciente, apontava para a residência do ... andar.
20. No seguimento da vigilância, os agentes da PSP ... intercetaram os seguintes toxicodependentes:
a) às 16h25, MM, a quem apreenderam uma pedra de cocaína com o peso de 0,153 gramas;
b) às 16h30, NN, a quem apreenderam uma embalagem de heroína com o peso líquido de 0,130 gramas e uma pedra de cocaína com o peso de 0,178 gramas.
21. O estupefaciente apreendido nas circunstâncias descritas em 20. tinha sido, minutos antes, vendido pelos arguidos BB e AA.
22. No dia 31 de maio de 2016, no período compreendido entre as 16h30 e as 17h30, a venda de produtos estupefacientes estava a fazer-se a partir do ... andar da referida Entrada..., do Bloco ..., habitação utilizada pelos arguidos BB e AA, que, de vez em quando, surgiam numa das janelas da habitação.
23. No exterior do prédio, com a finalidade de encaminhar os toxicodependentes e de avisar a presença da polícia, estava o arguido HH, que aos toxicodependentes/consumidores que questionavam onde se estava a vender estupefaciente, apontava para a residência do ... andar
24. Na sequência de uma vigilância, os Agentes da PSP procederam à interceção:
a) às 16h45, de OO, a quem apreenderam uma embalagem de heroína com o peso líquido de 0,146 gramas e,
b) às 17h10, de PP, a quem apreenderam quatro embalagens de heroína com o peso líquido de 0,543 gramas e duas pedras de cocaína com o peso de 0,346 gramas.
25. O estupefaciente apreendido nas circunstâncias descritas em 24. tinha sido, minutos antes, vendido pelos arguidos BB e AA.
26. No dia 1 de junho de 2016, no período compreendido entre as 21h20 e as 23h30, a venda de produtos estupefacientes desenvolveu-se, igualmente, a partir do ... andar, da referida Entrada..., do Bloco ..., residência utilizada pelos arguidos BB e AA, que, de vez em quando, surgiam numa das janelas da habitação.
27. No exterior do prédio, com a finalidade de encaminhar os toxicodependentes/consumidores e de avisar a presença da polícia, estava o arguido HH, que aos toxicodependentes/consumidores que questionavam onde se estava a vender estupefaciente, apontava para a residência do ... andar
28. Nessas circunstâncias, os agentes da PSP ... procederam à interceção dos seguintes consumidores:
a) às 21h25, de QQ, a quem apreenderam uma embalagem de heroína com o peso líquido de 0,115 gramas e duas pedras de cocaína com o peso de 0,232 gramas;
b) às 22h00, de RR, a quem apreenderam uma embalagem de MDMA com o peso de 0,069 gramas;
c) às 23h00, de SS, a quem apreenderam duas pedras de cocaína com o peso de 0,196 gramas;
d) às 23h25, de TT, a quem apreenderam uma pedra de cocaína com o peso de 0,082 gramas.
29. O estupefaciente apreendido nas circunstâncias descritas em 28. tinha sido, minutos antes, vendido pelos arguidos BB e AA.
30. No dia 27 de setembro de 2016, às 15h50m, pelos agentes da PSP foi intercetado UU, a quem foi apreendida uma pedra de cocaína, com o peso de 0,076 gramas.
31. No dia 27 de setembro de 2016, às 17h00m, pelos agentes da PSP foi intercetada VV, a quem foram apreendidas duas embalagens de heroína, com o peso líquido total de 0,284 gramas.
32. No dia 25 de outubro de 2016, no período compreendido entre as 15h30 e as 17h30, a venda de produtos estupefacientes estava a fazer-se a partir do ... andar, da referida Entrada..., do Bloco ..., residência dos arguidos AA e BB, encontrando-se, no interior da habitação, a ‘servir’ os toxicodependentes/consumidores que ali se dirigiam, o coarguido WW.
33. No dia 15 de março de 2017, com início pelas 05h20m, foi efetuada busca ao ... andar, da Entrada..., do Bloco ..., do Bairro ..., onde estava a decorrer a venda de produto estupefaciente, sendo a venda direta realizada pelos coarguidos/colaboradores II e JJ.
34. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, encontravam-se na cozinha, por trás de uma banca, como se uma mesa de feira/venda se tratasse, os coarguidos II e JJ, e num dos quartos os toxicodependentes/consumidores QQ, XX, YY, ZZ, AAA, BBB, CCC, DDD e EEE.
35. No decorrer da busca foi apreendido o seguinte:
a) Na cozinha, em cima da banca de venda:
i. Dentro de uma caixa própria para tabaco 56 (cinquenta e seis) embalagens de heroína, com o peso líquido de 7,990 grs.;
ii. Dentro de uma caixa própria para tabaco 13 (treze) pedras de cocaína, com o peso líquido de 1,630 grs;
iii. 1 (um) pedaço de haxixe, com o peso líquido de 0,580 grs.;
iv. Num porta documentos, dentro das gavetas, uma embalagem de plástico, contendo 30 (trinta) pedras de cocaína com o peso líquido de 4,298 grs., 1 (uma) nota de €50, 13 (treze) notas de €20, 27 (vinte e sete) notas de €10, 20 (vinte) notas de €5, 8 (oito) moedas de €2, 55 (cinquenta e cinco) moedas de €1, 26 (vinte e seis) moedas de cinquenta cêntimos, 37 (trinta e sete) moedas de vinte cêntimos, 22 (vinte e duas) moedas de dez cêntimos, 11 (onze) moedas de cinco cêntimos e 2 (duas) moedas de um cêntimo, perfazendo o total de €774,17 (setecentos setenta quatro euros e dezassete cêntimos) e dois pedaços de cartão com anotações de venda de produto estupefaciente;
v. Um bloco com anotações referente à venda de estupefaciente;
vi. Dois rolos de papel de alumínio;
vii. Um canivete com cabo de madeira castanho marca “Topiteu”;
viii. Um canivete com cabo de madeira castanho marca “Steel”;
ix. Um par de tesouras com cabo amarelo;
x. Um X-ato de cor verde;
xi. Uma lima com cabo vermelho.
36. Momentos antes de ter sido realizada a referida busca, os arguidos JJ e II procederam à venda de heroína e cocaína, pelo menos, aos seguintes indivíduos:
a) QQ e CCC;
b) XX;
c) YY;
d) ZZ;
e) AAA;
f) BBB;
g) DDD;
h) EEE.
37. Os arguidos BB e AA adquiriram quantidades de estupefaciente, “cocaína” e “heroína”, a preços mais favoráveis e destinados ao “tráfico” na cidade ..., concretamente junto do Bairro ..., onde possuem um volume de negócio considerável, composto por largas dezenas de clientes consumidores “diários”, sendo essencialmente este dinheiro que suportava as suas despesas com a habitação, alimentação, encargos com viaturas e despesas supérfluas.
38. Durante o período temporal acima indicado, não era conhecida à arguida BB qualquer atividade profissional remunerada que garantisse a sua subsistência.
39. Os arguidos BB e AA, de comum acordo e em comunhão de esforços e de intentos entre si e com, pelo menos, o coarguido CC, dedicaram-se, no período acima indicado, à venda lucrativa a terceiros consumidores de produtos estupefacientes, mais concretamente heroína e cocaína, bem conhecendo as características daquelas mesmas substâncias e sabendo que a sua aquisição, venda e detenção é proibida e punida por lei.
40. O dinheiro apreendido nas circunstâncias descritas em 15 e 35 provinha da venda de produtos estupefacientes que os arguidos BB e AA, por si ou por conta de terceiros, fizeram naquelas datas.
41. Os arguidos BB e AA haviam adquirido o produto estupefaciente apreendido nas circunstâncias acima referidas em 35, com vista à sua venda lucrativa a terceiros consumidores, o que vinham fazendo regularmente e durante os períodos acima indicados, por um preço superior ao da sua aquisição, e, só por força da acima descrita busca e apreensões, não concretizaram a sua venda a terceiros.
42. Ao atuar da forma acima descrita, os arguidos BB e AA atuaram com intenção de proceder à venda regular de produtos estupefacientes, concretamente heroína e cocaína, aos consumidores/revendedores que os procurassem para esse efeito, substâncias que bem sabiam serem de aquisição, venda e detenção proibidas e, com isso, conseguir lucros, o que conseguiram.
43. Durante o período temporal acima referido, quiseram os arguidos BB e AA fazer distribuir substâncias estupefacientes por um número indeterminado de indivíduos e, por essa via, obter compensações monetárias e outras.
44. O arguido HH, atuando de acordo e em comunhão de esforços com os coarguidos, agiu com a intenção de colaborar ativamente na atividade de venda dos referidos produtos estupefacientes (heroína e cocaína), conhecendo as características dos mesmos e bem sabendo que a sua venda/cedência é proibida e punida por lei, com a tarefa de efetuar a vigilância na porta da Entrada n.º..., do Bloco ..., do Bairro ..., encaminhando os compradores para o local onde naquele momento se procedia à venda e estando sempre alerta para avisar, caso as autoridades policiais surgissem no local, o que fez.
45. Ao atuar da forma acima descrita, os arguidos AA, BB e HH agiram de forma livre, voluntária e consciente.
Condições pessoais, sociais e económicas dos arguidos
- Arguido AA
46. O processo de desenvolvimento do arguido decorreu no seu agregado familiar de origem, com uma dinâmica relacional marcada pelos abusos de bebidas alcoólicas por parte do progenitor, o que culminou com a separação do casal, na adolescência do arguido.
47. Precocemente, o arguido evidenciou desmotivação e desinvestimento na aquisição de competências académicas, tendo registado várias retenções, acabando por abandonar o ensino escolar após a conclusão do 6.º ano de escolaridade.
48. Iniciou atividade laboral junto do progenitor no setor ..., e posteriormente junto de um tio, auferindo montantes irregulares.
49. Aos 21 anos de idade estabeleceu relação marital com a coarguida BB, vindo a nascer desta união um filho, atualmente de ... anos de idade. Do anterior relacionamento, a cônjuge tem mais três filhos.
50. Tal relação caracterizou-se pela vinculação afetiva, tendo o casal optado por residir no concelho ..., onde a cônjuge tem familiares do seu agregado de origem.
51. À data dos factos, o arguido residia com a cônjuge e os filhos em habitação arrendada.
52. A situação económica apresentava-se frágil, tendo o agregado familiar emigrado para a ..., onde permaneceu cerca de dois anos.
53. Nesse período, manteve-se laboralmente ativo no setor da ... e a cônjuge trabalhou na área ....
54. Com o regresso a Portugal, o arguido arrendou nova habitação e assumiu as responsabilidades parentais (a cônjuge encontra-se recluída desde 02.09.2019).
55. A nível profissional, voltou a exercer atividade piscatória, acolhendo o apoio dos familiares da cônjuge nos períodos em que estava na faina.
56. A subsistência do agregado familiar, durante a sua permanência em meio livre, foi dependendo dos valores irregulares auferidos pela atividade profissional, acrescido de alguns apoios dos familiares do cônjuge.
57. No meio prisional, o arguido tem beneficiado do apoio dos seus familiares de origem, nomeadamente das irmãs, consubstanciado em visitas regulares ao estabelecimento prisional.
58. Em abstrato, o arguido reconhece a gravidade das condutas que lhe são imputadas e a existência de potenciais vítimas, adotando, contudo, um discurso desculpabilizante, centrado na família e nas dificuldades económicas.
59. Durante a reclusão evidenciou motivação na aquisição de competências laborais e formativas, aguardando colocação laboral, paralelamente efetuou inscrição na escola para o ano letivo 2021/2022.
60. O arguido mantém os laços afetivos através dos contatos com a cônjuge recluída noutro estabelecimento prisional.”
Antecedentes criminais
II-2. “89. No processo comum coletivo n.º140/11...., que correu os seus termos nas Varas Criminais ... – ... Vara, por acórdão de 07.12.2011, transitado em julgado a 09.01.2012, foi o arguido condenado, por factos ocorridos em 17.01.2010, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, do Decreto-lei n.º15/93, de 22.01, na pena de 4 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, com regime de prova, entretanto declarada extinta por decisão de 26.04.2016.
90. No processo sumaríssimo n.º2695/15...., que correu os seus termos no Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., por sentença de 08.09.2016, transitada em julgado a 26.09.2016, foi o arguido condenado, por factos ocorridos em 12.2014, pela prática de um crime de falsificação ou contrafação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º1, alínea d), do Cód. Penal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de €6,00, entretanto declarada extinta pelo cumprimento, por decisão de 02.11.2016.”
Direito
II.3. Os factos estão fixados. Cabe ao STJ tão só o reexame de direito, no que toca à medida concreta da pena aplicada que o arguido considerou excessiva. Propõe e aceita o arguido uma pena de prisão efetiva entre quatro anos e seis meses e quatro anos e nove meses. E não solicita a suspensão da sua execução, antes logo admitindo – conclusão N. - que o seu envolvimento anterior em crime de igual natureza impede um juízo de prognose favorável quanto a uma suspensão de execução da pena de prisão.
O excedente à sua proposta, o recorrente considera-o excessivo, por violador dos artigos 40 e 71 do Código Penal, sobretudo na comparação da pena com a coarguida BB, pugnando o recorrente por uma substancial diferença de ações e de atividade de ambos que, alega, deveriam colocar a sua pena no patamar por ele indicado.
Na sua perspetiva, deve ser considerado mais baixo o seu grau de ilicitude do que o da co-arguida BB, pois, alega, o papel desta teria tido maior peso na prática do crime, sendo o seu papel o de colaborador daquela, e, se aceita que, decorrendo de com a mesma viver, colaborava nos concretos atos de venda a terceiros, dando a cara, já não aceita que tomasse parte nas decisões de aquisição e em todas as que daí tivessem a sua sequência, como seja a determinação de quantidades, tipos de estupefacientes, preços e lucro. Além de que não mostrava sinais de riqueza, estando-se perante venda direta em pequenas doses. E invoca ainda as suas condições de vida (provir de uma família com algumas disfuncionalidades, possuir hábitos de trabalho, ter família que o apoia), o ter confessado os factos e ter demonstrado arrependimento, e ainda a circunstância de manter bom comportamento prisional, como elementos a ter em conta para a pretendida redução da pena aplicada.
A co-arguida BB, pela prática, em coautoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º1, do Decreto-lei n.º15/93, de 22.01, com referência às tabelas I-A e I-B, anexas a tal diploma, foi condenada na pena de seis (6) anos e nove (9) meses de prisão efetiva, ou seja, em um ano e seis meses a mais do que o aqui recorrente.
O acórdão recorrido fundamentou as penas (e a diferença) nos seguintes termos:
“E o que dizer das condutas dos arguidos AA e BB?
Ora bem.
Como decorre da matéria de facto provada, os arguidos dedicaram-se à aquisição, transporte e detenção para posterior venda e/ou cedência de produtos estupefacientes nos moldes supra descritos, nomeadamente de cocaína e heroína. Aquelas substâncias estupefacientes eram assim adquiridas, guardadas, transportadas com vista à sua ulterior venda e/ou cedência a terceiros pelos arguidos e através de terceiros nos termos referidos na matéria de facto apurada.
Acresce que, na sequência de buscas efetuadas foram apreendidas quantidades de estupefacientes [destinadas à venda/cedência a consumidores], bem como os objetos resultantes dessa atividade.
Ora, face a esta factualidade, é de concluir que os factos que praticaram integram o tipo legal de crime em questão, pois estes arguidos nas circunstâncias referidas compraram, transportaram, detiveram, venderam e cederam ilicitamente (já que não estamos perante qualquer das situações previstas no capítulo II do diploma legal em apreço, de habilitação legal para o efeito) as identificadas substâncias.
Podemos então afirmar que as condutas destes arguidos integram o tipo fundamental, como fez a acusação?
A resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Na verdade, atendendo ao período de tempo em que desenvolveram a atividade – cerca de um ano e dois meses -, à organização que detinham para o efeito, com o recurso a colaboradores, à multiplicidade de substâncias estupefacientes que compravam/vendiam/cediam, ao número elevado de transações efetuadas, bem como às quantidades de estupefacientes que lhes foram encontradas, e pese embora a área restrita em que a desenvolviam, afigura-se-nos claro o preenchimento do tipo fundamental.
Os arguidos praticaram tais atos com o intuito de obterem lucros (o que lograram alcançar), em conjugação de esforços e de intenções e de acordo com um plano previamente gizado, sabendo das características daquelas substâncias e sabendo que a sua aquisição, detenção e cedência são proibidos, agindo, ainda, em conjugação de esforços e de intenções com outros arguidos.
De facto, no que aos mesmos diz respeito, estamos perante aspetos que, segundo pensamos, não constituem fatores justificativos da moldura penal relativa ao padrão de ilicitude correspondente ao tipo privilegiado de tráfico de estupefacientes, não se apresentando, de todo, ao mesmo nível das mais comuns situações dos pequenos traficantes. Donde se conclui que a conduta destes arguidos, analisada globalmente, na interligação das várias circunstâncias relevantes e no seu significado unitário em termos de ilicitude, se enquadra na razão de ser da tipo matriz prevista nesse artigo 21.º, podendo afirmar-se que na mesma se salientam factos suscetíveis de, pela sua extensão e/ou gravidade, levarem a considerar que integra, adequadamente, a tipicidade desse crime e não sendo, assim, coadunável com a figura do pequeno distribuidor final, do pequeno traficante, abarcada pela previsão do artigo 25.º.
Não restam, portanto, dúvidas que as condutas dos arguidos AA e BB, desde logo tendo em conta a amplitude das modalidades de ação previstas no tipo legal de crime do artigo 21.º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 15/93, integram os elementos objetivos do tipo legal fundamental do crime de tráfico de substâncias estupefacientes, como vêm acusados; (…)
Por outro lado, em face dos factos enunciados nos pontos 39, 41, 42 e 44, verifica-se que também o elemento subjetivo dos crimes se mostra preenchido, existindo dolo (mostram-se preenchidos os seus elementos intelectual e volitivo) e na modalidade de dolo direto, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º1, do Código Penal: «age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atua com intenção de o realizar», e que as condutas dos arguidos são culposas, ou seja, que estes são imputáveis e atuaram com consciência da ilicitude, conforme ponto 45 dos factos provados.
Da forma de comparticipação dos arguidos:
Os arguidos vêm acusados de terem cometido o crime em coautoria.
O coautor é senhor do facto, que domina globalmente, tanto pela positiva, assumindo um poder de direção, no plano de execução comum, como pela negativa, podendo impedi-lo.
Nessa medida, a cada um dos intervenientes é imputada a parcela de atividade dos restantes, como se se tratasse de ação própria.
De referir ainda que pratica o referido crime quem executar o facto, por si ou por intermédio de outra pessoa, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros Como se vê a comparticipação criminosa sob a forma de coautoria pressupõe um elemento subjetivo – o acordo, com o sentido de decisão, expresso ou tácito, para a realização de determinada ação típica - e um elemento objetivo, que constitui a realização conjunta do facto, ou seja, tomar parte direta na execução.
O Supremo Tribunal de Justiça tem, de há muito, consagrado a tese segundo a qual, para a coautoria, não é indispensável que cada um dos intervenientes participe em todos os atos para obtenção do resultado pretendido, já que basta que a atuação de cada um, embora parcial, seja um elemento componente do todo indispensável à sua produção.
O autor deve ter o domínio funcional do facto; o coautor tem também, do mesmo modo, que deter o domínio funcional da atividade que realiza, integrante do conjunto da ação para a qual deu o seu acordo, e na execução de tal acordo se dispôs a levar a cabo.
O domínio funcional do facto próprio da autoria significa que a atividade, mesmo parcelar, do coautor na realização do objetivo acordado se tem de revelar indispensável à realização da finalidade pretendida.
Ou seja, a contribuição de cada coautor deve revelar uma determinada medida e significado funcional, de modo que a realização por cada um do papel que lhe corresponde se apresente como uma peça essencial da realização do facto. Cf. Hans-Heinrich Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal – Parte General”, pág. 726.
No caso concreto, os factos provados permitem a conclusão de que os arguidos AA e BB agiu em coautoria do tipo fundamental e o arguido HH do tipo privilegiado.
Neste ponto, cabe esclarecer, relativamente à prática deste crime pelo arguido HH em coautoria com os arguidos AA e BB, que não existe contradição em punir estes últimos à luz do artigo 21.º, n.º 1 e punir o seu coautor (contemporâneos entre si e/ou sucedendo-se no tempo) à luz do artigo 25.º, al. a), do mesmo diploma. Com efeito, como vimos supra, trata-se do mesmo tipo de crime, embora ao tipo privilegiado correspondam as ações do agente previstas no tipo fundamental que envolvam um grau de ilicitude sensivelmente menor.
Ora, tal não obsta a que se tome em consideração, logo para efeito de qualificação jurídica dos factos (e não apenas no momento da determinação da medida da pena, ao abrigo dos artigos 29.º e 71.º, n.ºs1 e 2, alíneas a) e b), e, eventualmente, do artigo 72.º, n.º 1, todos do Código Penal), a concreta contribuição de cada um dos comparticipantes, a qual pode limitar-se à prática de um ato isolado ou atos esporádicos, concentrados num curtíssimo período de tempo (v.g., uma semana ou um mês) ou dispersos por um longo períodos de tempo (v.g., vendas aos consumidores ao longo de mais de um ano, mas em número de 1 a 3 vendas por mês), que, por isso, não permitem imputar ao comparticipante que age nestes moldes toda a amplitude, substancialmente maior, da atividade de tráfico da qual participou e desde que a atuação de tal comparticipante não tenha contribuído de modo indispensável para a maior dimensão do facto.
E foi o que sucedeu no caso, na medida em que o arguido HH, colaborando ativamente na atividade de venda/cedência, exerceu apenas funções de vigilante, a troco de estupefaciente para o seu consumo.
Por conseguinte, incorreram os arguidos AA e BB na prática do crime tráfico de substâncias estupefacientes, previsto no artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º15/93 de 22.01, e o arguido HH na prática do crime de tráfico de menor gravidade, previsto no artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º15/93, de 22.01.
Feito o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada, cumpre determinar a espécie e medida da pena a aplicar.
A determinação da medida da pena obedece a 3 fases, que consistem:
- na determinação da moldura penal (medida legal ou abstrata da pena) aplicável ao caso,
- na escolha da espécie de pena que efetivamente deve ser imposta, e
- na determinação da medida judicial ou concreta da pena. ( Cf. Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – Parte Geral – As Consequências Jurídicas do Crime II, Coimbra Editora, Reimpressão, 2005, pág. 198.)
O crime de tráfico de estupefaciente do artigo 21.º, n.º1, do Decreto-lei n.º15/93, de 22/01, é punido com pena de quatro (4) a doze (12) anos de prisão.
Em conformidade com o artigo 25.º do Decreto-lei n.º15/93, de 22.01, o tráfico de menor gravidade é punido com uma pena de um (1) a cinco (5) anos de prisão. A escolha e a medida da pena constituem tarefas complexas, o que reclama que o julgador tenha em conta nessas tarefas a natureza, a gravidade e a forma de execução do crime, optando por uma das reações penais legalmente previstas.
O sistema punitivo português tem, como primeiro objetivo, um efeito pedagógico e ressocializador, sendo a pena detentiva ou privativa da liberdade encarada como a ultima ratio.
Neste sentido, determina o artigo 70.º do Código Penal que «se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
No entanto, no caso sub judice apenas é aplicável aos crimes em questão pena de prisão.
A escolha da pena deve obedecer, nos termos do artigo 40.º do Código Penal, à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, enquanto proteção de bens jurídicos, e à finalidade de prevenção especial de socialização referida à reintegração do agente na comunidade.
Definida a moldura abstrata pelo legislador, caberá ao julgador determinar a medida concreta da pena, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial.
Nessa determinação, o limite máximo fixar-se-á em função da medida da culpa, medida esta que delimitará a pena por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir (em salvaguarda da dignidade humana do agente). O limite mínimo é dado pelo quantum da pena que, em concreto, ainda realiza eficazmente a proteção dos bens jurídicos. Dentro destes dois limites, encontrar-se-á o espaço possível de resposta às necessidades da reintegração social do agente.
Portanto, a culpa funcionará sempre como limite máximo absolutamente inultrapassável (de acordo com o n.º2 do artigo 40.º do Código Penal), enquanto o limite mínimo deverá ser encontrado tendo em conta aquela pena que responda à necessidade de tutela dos bens jurídicos e à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada ou reafirmação contra fáctica da norma.
Daqui decorre que o juiz pode impor qualquer pena que se situe dentro do limite máximo da culpa, isto é, que não ultrapasse a culpa.
Os fatores que permitirão ao julgador decidir, face às considerações acima expostas, qual a medida da pena adequada a aplicar no caso concreto ao arguido constam do artigo 71.º do Código Penal. Estabelece, portanto, o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».
Por seu turno, dispõe o n.º2 do mesmo artigo que, na determinação concreta da pena, o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Estas circunstâncias que relevam para a determinação da medida concreta da pena podem influir por via da culpa ou por via da prevenção.
Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo. Neste sentido, Figueiredo Dias, in “As consequências jurídicas do crime”, pág. 234. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.04.2008, disponível em www.dgsi.pt.
No caso presente, temos a considerar, desde logo, que as necessidades de prevenção geral se manifestam de modo acentuado, pois «os tráficos de estupefacientes são comunitariamente sentidos como atividades de largo espectro de afetação de valores sociais fundamentais, e de intensos riscos para bens jurídicos estruturantes, e cuja desconsideração perturba a própria coesão social, desde o enorme perigo e dano para a saúde dos consumidores de produtos estupefacientes, como por todo o cortejo de fraturas sociais que andas associadas, quer nas famílias, quer por infrações concomitantes, ou pela corrosão das economias legais com os ganhos ilícitos resultantes das atividades de tráfico. A dimensão dos riscos e das consequências faz surgir, neste domínio, uma particular saliência das finalidades de prevenção geral – prevenção de integração para recomposição dos valores afetados e para a afirmação comunitária da validade das normas que, punindo as atividades de tráfico, protegem tais valores».
Ao nível da prevenção especial diga-se que todos os arguidos têm antecedentes criminais, nomeadamente pela prática de crime de tráfico de estupefacientes cometido anteriormente aos factos que ora nos ocupam, tendo os arguidos AA e HH sido condenados em pena de prisão, suspensa na execução, e a arguida BB em pena de prisão efetiva, que atualmente se encontra a cumprir. O arguido AA já foi ainda condenado pela prática de um crime de falsificação ou contrafação de documento e o arguido HH pela prática de três crimes de furto qualificado e um crime de ameaça, tendo cometido o crime destes autos, no período da suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenado no processo n.º210/13...., do Juízo Local Criminal ... – Juiz .... Mostram-se, assim, prementes as necessidades de prevenção especial, havendo uma maior necessidade de prevenir no futuro a prática de novos crimes. Na verdade, as anteriores condenações sofridas pelos arguidos, não lhes permitiu suster os percursos desajustados que vinham protagonizando e readquirir novos hábitos e rotinas potenciadores de um adequado processo de ressocialização, sendo diminutos os sinais positivos no sentido da sua reintegração social.
Em desfavor da conduta dos arguidos, temos ainda a elevada ilicitude associada aos factos, considerando, desde logo, o grau organizacional implementado pelos arguidos AA e BB, com liderança/predominância desta última e o recurso à colaboração de terceiros, nomeadamente o arguido HH e os coarguidos JJ e II, com aproveitamento indecoroso das fragilidades destes; também a qualidade da substância estupefaciente permite classificar o grau de ilicitude como elevado; o período dos factos apurados – cerca de um ano e dois meses; o local onde a atividade delituosa foi desenvolvida – habitação de cariz social atribuída à arguida BB, mas que nela não habitava e destinou ao tráfico [este aspeto, permitindo aferir da medida da censurabilidade e dizendo diretamente respeito ao juízo e tipo-de-culpa, ainda assim se afigura relevante por via da prevenção especial]; o tipo e quantidades de estupefaciente transacionado – heroína e cocaína -, dado o forte poder aditivo do mesmo; o tipo e quantidade de estupefaciente apreendido no ... andar [56 embalagens de heroína, com o peso líquido de 7,990 grs. e 43 pedras de cocaína, com o peso líquido total de 5,928grs e um pedaço de haxixe com o peso líquido de 0,580grs.], quando foi objeto de busca; o dolo intenso (direto, dada a definição do artigo 14.º, n.º 1 do Cód. Penal e a matéria fáctica provada), relativamente a todos arguidos, sendo elevada a censura ético-jurídica inerente às condutas (inferior no caso do arguido HH).
De considerar ainda relevante é o tipo de condutas abrangido, atendendo a concreta participação dos arguidos nos factos e o papel predominante da arguida BB, sendo que a cessação da atividade de tráfico e o seu não prosseguimento deveu-se à detenção de alguns dos coarguidos e não de terem voluntariamente abandonado as suas condutas. De registar também a repetição do comportamento dos arguidos, uma vez que levaram a ação de tráfico a cabo mais do que uma vez, tendo vendido/cedido o produto estupefaciente por diversas vezes. No entanto, em si mesma, a ação de tráfico protagonizada pelos arguidos reveste diminuta ilicitude, na medida em que se tratava de mero trânsito de produto já existente no território nacional, muito mais grave seria caso se verificasse a importação para o território nacional, e através de contato direto com o consumidor.
As motivações que determinaram os arguidos às suas condutas, no caso dos arguidos AA e BB relacionadas com um aumento do seu rendimento e a angariação de mais dinheiro para as suas próprias despesas e outros bens, permitindo-lhes manter um nível de vida superior àquele que teria se não fosse esta a sua atividade e conduta; no caso do arguido HH para prover ao seu consumo de substância estupefaciente.
O arguido HH era toxicodependente e a contrapartida recebida pela colaboração na venda de produtos estupefacientes, por conta de terceiros, era a dose para consumo próprio.
A favor dos arguidos AA e BB temos a postura processual adotada, que confessaram, na generalidade, os factos, o que fizeram no início da audiência de julgamento, colaborando de forma relevante com o Tribunal, embora no caso do arguido AA de modo mais mitigado, e verbalizando arrependimento pelas condutas que adotaram.
Relativamente às condições de vida dos arguidos, o percurso evolutivo do arguido AA decorreu num seio familiar com algumas disfuncionalidades, marcado pela problemática etílica do progenitor e, não obstante o abandono precoce do ensino escolar, o arguido adquiriu competências que lhe possibilitaram um percurso laboral inserido, revelando hábitos de trabalho; constituiu família com a coarguida BB, de quem tem um filho em comum, com quem mantém laços afetivos; beneficia de apoio dos seus familiares de origem, que o visitam regularmente em meio prisional, e dos familiares da cônjuge; em contexto prisional ocupa o quotidiano com atividades estruturadas de natureza laboral/normativa; e, apesar de apresentar um discurso crítico em relação à sua conduta delituosa, tende, contudo, a desculpabiliza-la com as dificuldades económicas, não evidenciando reflexão sobre os potenciais danos a terceiros.
A arguida BB cresceu no Bairro ..., num agregado familiar pautado pelos padrões e valores culturais da etnia cigana, em que, após o falecimento do progenitor, a mãe revelou incapacidade para assegurar a subsistência e conduzir adequadamente o processo educativo dos filhos, tendo vários irmãos da arguida envolvido no consumo de estupefacientes e na prática de ilícitos, ficando aquela, desde muito jovem, exposta a situações de marginalidade e delinquência; é detentora de uma trajetória profissional instável; cumpre atualmente pena de 5 anos de prisão, pela prática do crime de estupefacientes, mantendo, em meio prisional, comportamento normativo e ocupação laboral como ...; beneficia de apoio familiar (os filhos e os outros familiares de origem visitam-na regularmente); e revela capacidade para reconhecer a gravidade e desvalor de crime de idêntica natureza ao dos autos, aspetos que necessita de consolidar e interiorizar.
(…)
Assim, sopesando os factos apurados e todas as circunstâncias enunciadas, não deixando ainda de se ponderar que os arguidos AA e BB assumiram na generalidade os factos, o que indicia, ainda que de forma diminuta, alguma interiorização do desvalor das suas condutas e arrependimento, e tendo presente o limite máximo consentido pelo grau de culpa dos arguidos, as exigências de prevenção geral positiva e a sua carência de socialização, atentos ainda os princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade, este Tribunal Coletivo considera adequadas e proporcionais as seguintes penas:
- ao arguido AA, a pena de cinco anos e três meses de prisão, pelo cometimento do crime de tráfico de estupefacientes, do artigo 21.º, n.º1, do Decreto-lei n.º15/93, de 22.01;
- à arguida BB, a pena de seis anos e nove meses de prisão, pelo cometimento do crime de tráfico de estupefacientes, do artigo 21.º, n.º1, do Decreto-lei n.º15/93, de 22.01;”
Vejamos:
Nos termos do artigo 40, nº 1, do CP a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
E de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, a medida da pena é determinada, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o artigo 40.º, n.º 2, do mesmo Código.
Na determinação concreta da pena há que atender a todas as circunstâncias do facto, que, não fazendo parte do tipo do crime, deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente o grau de ilicitude, o modo de execução, a gravidade das suas consequências, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados, os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais e situação económica do agente, a sua conduta anterior e posterior ao crime, a falta de preparação para manter uma conduta lícita. (artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal).
Encontra o regime de determinação da medida concreta da pena os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que, como é sabido, se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º e ac. STJ de 03/11/2021, proc. nº 875/19).
“A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização». in acórdão deste Supremo Tribunal, de 3/07/2014, proc. n.º 1081/11.
“Ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objectivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º n.º 1 do CP).
Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências.” in ac. do STJ de 15/12/2011, proc. nº 706/10.
O Supremo Tribunal de Justiça tem sublinhado que na fixação da pena nos crimes de tráfico de estupefacientes deve-se atender a fortes razões de prevenção geral impostas pela frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade. De facto, estamos perante um crime de perigo abstracto e pluriofensivo que põe em causa, como se lê no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 426/91, de 8 de Novembro de 1991, uma pluralidade de bens jurídicos: «a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes», afectando, «a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos», protegendo, enfim, «uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal – embora todos eles possam ser reconduzidos a um mais geral: a saúde pública».
Na lição sempre presente de Figueiredo Dias, a pena prossegue finalidades exclusivamente preventivas. “Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral I, Coimbra Editora, 2004, p.81).
A prevenção geral positiva ou de integração apresenta-se como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, não podendo a prevenção especial positiva pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, tendo a culpa como limite. Culpa sempre entendida como “censurabilidade do comportamento humano, por o culpado ter actuado contra o dever quando podia ter actuado «de outra maneira», isto é, de acordo com o dever” (Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa e Direito Penal, 1995, p. 244), devendo o agente ser censurado pela personalidade revelada no facto, pelos aspectos desvaliosos da sua personalidade contrários ao direito e revelados nesse facto. As exigências de prevenção especial convergem aqui com exigências de prevenção geral.
No que respeita às exigências de prevenção geral, e como se pode ler, entre muitos, no acórdão do STJ de 05-02-2016 (Rel. Manuel Matos), o “STJ tem sublinhado que na fixação da pena nos crimes de tráfico de estupefacientes deve-se atender a fortes razões de prevenção geral impostas pela frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade”.
Na expressiva classificação do acórdão recorrido, eram os co-arguidos AA e BB “os donos do negócio”, sem embargo da “liderança/predominância” desta. A atividade dos dois arguidos foi desenvolvida de forma conjunta, em coautoria, agindo, em negócio comum, a dois, vendas “por conta do casal”, mediante prévio acordo e em conjugação de esforços e vontades, almejando os mesmos objetivos. Atividade levada a cabo pelos dois, sem distinção, numa atuação concertada e permanente e recebendo ambos os proventos desses seus atos ilícitos. Cada um, necessariamente, com o seu papel. E se só a arguida BB se deslocava a fazer a compra, é bom de ver, a discrição o exigia e mais ninguém era necessário. Ademais quando no local de vendas sempre teria de ficar o outro. E se é verdade que o acórdão atribui a “liderança/predominância” à arguida BB não menos certo é que conclui de forma inequívoca pela coautoria.
Os factos dados como provados são claros na existência de prévio acordo para venda, sempre a dois, no trabalho e nos lucros, quer na organização, quer na rotatividade, quer na previsão de fugas ou de antecipação de esconderijos ou de retardamento de ações policiais, quer na escolha dos locais de venda, quer na angariação de dependentes como instrumentos de colaboração e de vendas, com pagamento em doses para consumo. Houve acordo para venda, em sistema de rotatividade e durante 24 horas dia. Além de também venderem diretamente. Com comunicações em código e senhas de alerta combinadas. Com encaminhadores para compra, vigilantes e trancas ou escoras preparadas para retardamento da entrada da polícia, chegando a vender na própria residência de ambos. A “largas dezenas de clientes consumidores “diários”. Era com o dinheiro do tráfico que suportavam as suas despesas com a habitação, alimentação, encargos com viaturas e despesas supérfluas. Em venda de drogas duras cocaína e heroína. Com elevado grau de erosão no tecido social. Em tempo de um ano e dois meses. Com dolo sempre direto e persistente. Atividade que só cessou com a intervenção policial.
Com o que, na conclusão do acórdão recorrido, “Em face destes elementos, ponderados à luz das regras do normal acontecer e do senso comum, é, para nós, evidente que, não obstante a predominância/liderança da arguida BB – o que, aliás, faz sentido dado que nasceu e cresceu no Bairro ..., onde tem o seu agregado familiar de origem -, a atividade de tráfico era desenvolvida pelo casal, pois o arguido AA não só sabia da atividade de tráfico desenvolvida pela companheira/esposa, como, no período temporal em apreço, a ela aderiu e nela colaborou ativamente, como casal que eram. É o que se infere, desde logo, das referidas comunicações telefónicas, onde o arguido assume o negócio como sendo também seu.
Não pode, por isso, querer ser um mero colaborador. “Despromoção” que, porque cabendo ao domínio dos factos, vedada está a este Supremo.
Na consideração da liderança/predominância da arguida BB, correspondente necessariamente a maior censurabilidade, foi ela punida mais gravemente.
Como disse e bem o MP: Sendo que até há a referir que acabou a arguida por ser mais severamente punida do que o recorrente (a que, no entanto, não terá sido alheia a circunstância de ter sido já anteriormente punida, com pena de prisão efetiva, pela prática do mesmo tipo criminal, enquanto que o arguido/recorrente igualmente foi punido, igualmente pela mesmo crime, mas em pena suspensa que acabou por ser julgada extinta pelo decurso do tempo), pelo que o pedido do recorrente no sentido de a sua punição ser inferior à da coarguida se mostra já satisfeito...
Por outro lado, a atuação da arguida não justifica nem desculpa em nada a atuação do recorrente.
Sem embargo de, o princípio da igualdade a tanto obriga, as penas dos arguidos não se poderem mostrar desequilibradas na comparação entre elas. A diferença no comparativo há de estar legal e racionalmente justificada. Por isso é que não se pode postergar, em obediência ao princípio geral consagrado no artigo 8º, nº 3, do Código Civil, o referente jurisprudencial para casos paralelos, similares ou idênticos, como o STJ, aliás o vem referindo. Estabelece o artigo 8º, nº 3, do Código Civil,: “3. Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.” Como já o disse a jurisprudência do STJ no seu acórdão de 22/06/2022, proc. nº 8/21, “I- Sendo embora certo que cada caso transporta em si a natureza de “caso único”, é de reconhecer a importância do referente jurisprudencial na actividade, sempre judicialmente vinculada, de determinação da pena. II - A preocupação com o referente jurisprudencial contribui decisivamente para a atenuação (e, se possível, erradicação) de disparidades na aplicação prática dos critérios legais de determinação de pena.” E se o referente jurisprudencial vale para penas aplicáveis em processos distintos por maioria de razão valerá para penas aplicadas no mesmo processo.
Mas além do que ficou dito, igualmente, não pode o recorrente olvidar que foi condenado pelo crime de tráfico no Proc. 140/11...., por decisão transitada em julgado em 9/1/2012, numa pena de 4 anos e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período. Essa pena foi declarada extinta a 26/4/2016. A verdade é que o recorrente deitou fora o juízo de prognose que fora feito a seu favor, não aproveitando a oportunidade que lhe fora, e voltando precisamente a cometer o mesmo tipo de crime, pelo qual foi condenado nos presentes autos, sendo que nem a ameaça de uma pena já de média duração o fez arrepiar caminho. A prisão suspensa revelou-se insuficiente na prevenção da recidiva, e a recidiva evidencia necessidades de prevenção especial elevadas. O desaproveitamento total das oportunidades de ressocialização anteriores, por um lado, e a recidiva criminosa dirigida agora pela terceira vez contra o mesmo bem jurídico, pelo outro, exigem uma pena que assegure também a reposição da confiança na norma jurídica violada.
E mais cabe lembrar que foi aplicada ao arguido uma pena de 5 anos e 3 meses de prisão (sendo a moldura penal do crime em apreço de 4 a 12 anos de prisão), pelo que graduada, pois, ainda abaixo do primeiro quinto da pena.
A pena de cinco anos e três meses de prisão responde adequadamente às concretas exigências de prevenção geral e especial, mostra-se necessária ao cumprimento das suas formalidades, e não pode dizer-se que exceda o limite da culpa do arguido.
A personalidade do arguido revelada nos factos apresenta-se aqui como medianamente desvaliosa, valoração de mediania que se mostra adequadamente efectuada no acórdão
Em suma, partindo das finalidades e princípios enunciados, como se adiantou, seguiram-se no acórdão os passos legais de ponderação sobre a pena, identificando-se corretamente as exigências de prevenção geral e especial, e respeitando o limite da culpa. E constata-se que se atendeu ali a todas as circunstâncias destacadas pelo recorrente, embora em leitura não forçosamente coincidente, contextualizando-as, como se impunha, no conjunto dos factos provados que (também) relevavam para a determinação da sanção.
Deve salientar-se a gravidade que encerra a instrumentalização dos consumidores dependentes (“indecorosa” a apelidou o acórdão recorrido), no exercício da atividade de tráfico, já que nem o contacto direto que os traficantes diariamente com eles têm os inibem de suspender tal atividade, revelando enorme insensibilidade e indiferença perante os efeitos nefastos e o sofrimento causados pelo consumo que lhes sustentam em troca dos seus serviços e que observam diariamente.
Os antecedentes criminais também não o favorecem, ademais quando já foi condenado pela prática do mesmo ilícito penal de tráfico de estupefacientes. A que acresce um outro crime de falsificação.
Assim, a fundamentação das medidas concretas das penas acabada de citar não merece censura. Mostra-se criteriosa, tem em conta os bens jurídicos protegidos, a medida da prevenção geral positiva, as exigências de prevenção especial de ressocialização e não vai além da medida da culpa do recorrente. Não se justifica, pois, intervenção corretiva deste Supremo Tribunal de Justiça.
III. DECISÃO
Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso, mantendo-se o acórdão.
Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 6 UC’s - arts 513º, nº 1 do CPP e 8º, nº 9, e Tab. III do RCP.
STJ, 30 de novembro de 2022
Ernesto Vaz Pereira, Relator
Lopes da Mota, 1º Adjunto
Conceição Gomes, 2ª Adjunta