INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÃO INILIDÍVEL
INDEMNIZAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Sumário

I. Sendo a sentença omissa quanto aos factos não provados e tendo da mesma sido interposto recurso de apelação, no âmbito do qual se invocou tal omissão como configurando uma nulidade ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, inexiste obstáculo legal a que o tribunal recorrido, aquando do despacho que admite tal recurso, reconheça a sua existência e a supra, nessa sequência se considerando o despacho proferido (pelo qual se elencaram os factos não provados e respectiva motivação) complemento e parte integrante daquela decisão – artigo 617.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

II. O descrito no ponto anterior em nada belisca os limites do poder jurisdicional do juiz (sendo que, no mais, a sentença manteve-se inalterada) e, pese embora não se esteja perante um lapso material, mostra-se desprovido de relevância jurídica o facto de, no despacho que supriu a alegada nulidade, ter sido invocado, para além do artigo 613.º, n.º 2, o artigo 614.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC.

III. Ao recorrente será, contudo, possível alargar o âmbito do recurso interposto, em conformidade com a alteração sofrida pela sentença (n.º 3 do artigo 617.º do CPC).

IV. A alteração da matéria de facto fixada pela 1.ª instância apenas deverá ocorrer pela Relação quando se conclua pela existência de uma errada apreciação quanto aos concretos pontos de facto impugnados.

V. O apuramento de factualidade integradora das previsões das alíneas d), f), h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE consubstancia presunção inilidível (jure et de jure), da qualificação da insolvência como culposa, sem necessidade de prova do nexo de causalidade entre o facto e a insolvência ou o seu agravamento.

VI. Contudo, tal presunção não impede/inviabiliza que se alegue e prove a não verificação dos factos que a lei, pela sua gravidade, ali associa à existência de uma insolvência culposa.

VII. Resultando provado que, no período a que alude o n.º 1 do artigo 186.º do CIRE, a insolvente, através da sua única sócia e gerente, dispôs do montante de 100.000€ (referente a parte do produto da venda dos seus bens, efectuada pelo montante global de 145.000€, cerca de um mês antes da apresentação à insolvência) em benefício (ilegítimo) do irmão da mesma, com o inerente prejuízo que daí resulta para os credores e para a própria empresa, sempre a insolvência terá de ser qualificada como culposa por força das als. d) e f) do n.º 2 do mesmo artigo 186.º.

VIII. O artigo 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE abarca três grupos de condutas distintas - a) incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada; b) manutenção de uma contabilidade fictícia ou de uma dupla contabilidade; ou c) prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor -, sendo que, a inclusão na contabilidade de saldos devedores sem qualquer existência e de saldos credores que em nada correspondem aos efectivamente existentes, valores sem qualquer suporte documental, sempre traduzirá a criação de uma situação patrimonial ilusória, com prejuízo relevante para todos quantos estão interessados e têm o direito de conhecer o estado de saúde económico-financeiro da sociedade devedora.

IX. A devedora insolvente, através da sua única sócia e gerente, está obrigada a prestar todas as informações/esclarecimentos solicitadas pelo Administrador da Insolvência e que se revelem imprescindíveis à compreensão da sua situação patrimonial e financeira. Assim não agindo, assumindo de forma reiterada uma postura de desauxílio, verifica-se a qualificação prevista na al. i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.

X. Estando em causa uma insolvência qualificada como culposa por força do disposto no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, impõe-se extrair dessa qualificação todos os efeitos, designadamente os efeitos pessoais que resultam para aquela que possa ser afectada pela mesma, ou seja, quem, no período considerado relevante, foi a única sócia e gerente e teve uma conduta culposa.

XI. Na fixação do período de inibição a que alude a al. c) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, deverá o tribunal atender à gravidade da conduta da pessoa afectada e à sua relevância para a verificação da situação da insolvência ou para o agravamento da mesma.

XII. A fixação da indemnização a que alude a al. e) do n.º 2 do mesmo artigo 189.º, deverá ser efectuada de forma casuística, atendendo, não apenas ao valor global do passivo que logrou obter satisfação através do activo da massa insolvente, mas também ao grau de culpa e de ilicitude da conduta da pessoa afectada, dessa forma se observando o princípio da proporcionalidade.

Texto Integral

Acordam na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.

I - RELATÓRIO
Em 31/10/2018, a sociedade “CMR … Lda” apresentou-se à insolvência, a qual foi declarada por sentença proferida em 07/11/2018, já transitada em julgado.
Em 03/01/2019, pelo Sr. Administrador da Insolvência (AI) foi apresentado o relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE.
Em 17/01/2019, em cumprimento do disposto no artigo 188.º, n.º 1 do CIRE, veio o AI alegar e propor a qualificação da insolvência como culposa, por entender estarem preenchidas as alíneas d), f), h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
Requereu, ainda que, pela qualificação, fosse afectada CM, gerente da sociedade.
Concluiu em tal requerimento:
“Considerando que:
• a contabilidade da sociedade insolvente parece, salvo melhor entendimento em contrário, apresentar-se como fictícia, tornando-se impossível compreender através da mesma qual a atual situação patrimonial e financeira da empresa;
• a sociedade insolvente, ao ceder a terceiros, em 01 de Outubro de 2018, através de um negócio de “venda” ou “trespasse” a generalidade do seu património, e ao não integrar o produto da venda no património da sociedade insolvente, parece ter disposto de bens em proveito pessoal de terceiros e/ou feito dos bens um uso contrário ao interesse da mesma;
• a sociedade insolvente parece não ter cumprido com o seu dever de colaboração, ao Administrador de Insolvência é de parecer que estão preenchidas as alíneas d), f), h) e i), do n.º 2, do artigo 186.º do CIRE.
(…) Assim, e em face dos argumentos expostos, (…) O Administrador de Insolvência é de PARECER que se está na presença de uma insolvência culposa, e que deverá ser, para efeitos do artigo 188.º do CIRE, afetado pela qualificação da insolvência culposa, a gerente da sociedade insolvente CM (…)”.
A credora S … Lda”, em 21/01/2019, veio apresentar requerimento no mesmo sentido já propugnado pelo AI, defendendo, no entanto, estar ainda preenchida al. b) do n.º 3 do mesmo artigo 186.º do CIRE. A este requerimento respondeu a insolvente em 31/01/2019.
Também a credora Banco Santander Totta, SA se pronunciou em 31/01/2019 (defendendo a qualificação da insolvência como culposa, nos termos do artigo 186.º do CIRE). 
Por despacho de 31/01/2019 foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.
Tendo vista nos autos, o Ministério Público, em 19/02/2019, pronunciou-se, igualmente, pela qualificação da insolvência como culposa, com afectação da gerente, nos moldes descritos pelo AI (aderindo ao requerimento apresentado por este último).
Por despacho de 01/03/2019 foi ordenada a notificação da insolvente e a citação da respectiva gerente, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 188.º, n.º 6 do CIRE.
Por requerimento de 21/03/2019, invocando ter existido um contrato de trespasse, o AI veio requerer que fosse oficiado ao Banco Santander Totta, SA para que juntasse cópia do cheque bancário referente ao débito operado na conta da insolvente no dia 08/10/2018, no montante de 100.000€.
Tendo o requerido sido deferido, veio a referida instituição bancária juntar tal cópia em 06/05/2019, do qual consta ter sido seu beneficiário FM.
Em virtude de não ter sido possível citar pessoalmente a gerente da insolvente, procedeu-se à sua citação edital e, pela mesma, em 27/11/2020, foi deduzida oposição.
Para tanto alegou, em síntese, ter suportado despesas da insolvente no montante global de 273.351,90€, o qual não foi vertido na contabilidade da sociedade, pelo que esta última não detém qualquer crédito sobre a oponente (verificando-se, antes, o inverso) – 78.000€ de juros, rendas e indemnizações emergentes de um processo judicial; 25.000€ a título de rendas das anteriores instalações; 68.666€ por conta das obras efectuadas nas novas instalações; 2.000€ de dívidas à segurança social - estando em curso um plano de pagamento prestacional à autoridade tributária-; 33.000€ a título de rendas das novas instalações; 66.685,90€ referente a dívida exequenda (execução instaurada contra si e o seu marido). A impossibilidade de suportar os encargos referentes às instalações da sociedade (cuja renda mensal era de cerca de 3.000€), levou à revogação do contrato referente às mesmas.
Mais alega sempre ter agido de boa-fé, diligenciando pela regularização das dívidas contraídas pela sociedade, pelo que não se verifica o exigido nexo causal entre a imputada actuação e o agravamento da insolvência, por forma a que esta seja qualificada como culposa.
Concluiu pela improcedência do incidente, pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita.
Com relação à oposição apresentada, pronunciaram-se a credora “S …, Lda.” e o AI, impugnando o que da mesma consta, bem como a documentação junta.
E, na sequência de para tanto terem sido notificados, vieram o AI, o Ministério Público e a proposta para afectação comunicar aos autos manterem as respectivas posições anteriormente defendidas.
Em 17/05/2021 foi proferido despacho saneador, tendo-se fixado o objecto do litígio e enunciado os temas da prova, nenhuma reclamação tendo sido apresentada.
Realizou-se a audiência final e, em 05/10/2021, foi proferida SENTENÇA que qualificou como culposa a insolvência da sociedade “CMR … Lda” e, como tal: a) declarou afectada pela qualificação a gerente CM; b) declarou esta última inibida, pelo período de quatro anos e seis meses, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; e c) condenou-a a indemnizar os credores da devedora no montante dos créditos não satisfeitos até às forças do respectivo património.
Inconformada com tal decisão, dela foi interposto RECURSO pela requerida, formulando, para tanto, as respectivas CONCLUSÕES que aqui se transcrevem:
I. A recorrente, com devido respeito por douto entendimento diverso, não pode conformar-se, quer de facto, quer de direito, com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, no que alude, quer à decisão aí proferida sobre a matéria de facto e respetiva fundamentação, quer à aplicação que do Direito fez o dito tribunal, razão pela qual apresenta o presente recurso.
II. Desde logo, a Recorrente não se conforma com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, uma vez que a mesma padece de nulidade, por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
III. Da mesma forma, a Recorrente não aceita a decisão proferida, em virtude de, em sede de audiência de julgamento, não se ter logrado verificar a existência de elementos determinantes e suficientes para que o Tribunal a quo tivesse concluído pela qualificação como culposa da insolvência da Sociedade “CMR … Lda”.
IV. A decisão recorrida está inquinada de vício que implica a sua nulidade, nos termos do disposto do n.º 4, do art.º 607.º e do n.º 1, al. b) do art.º 615.º do Código de Processo Civil (aplicáveis ex vi do art.º 17.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas) e do art.º 205.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
V. Ainda que não se entenda pela nulidade da sentença, o que apenas por mera cautela de patrocínio se concede, ao contrário do que o Tribunal a quo afirma, não se verificando o preenchimento dos pressupostos do art.º 186.º, n.º 2, alíneas d), f), h) e i), que pressupõem a qualificação da insolvência como culposa, só poderia a mesma ter sido qualificada como fortuita.
VI. Com efeito, dos artigos 205.º, n.º 1 da CRP e do art.º 607.º do CPC, resulta uma obrigação expressa de fundamentação das decisões para o Julgador, que assenta na discriminação dos factos dados como provados e como não provados,
VII. O Tribunal a quo, na sentença que profere, faz referência ao ponto “4. Fundamentação de facto”, limita-se a transcrever ipsis verbis todos os factos que tinham, já em sede de despacho saneador, sido considerados matéria de facto assente,
VIII. De seguida, elenca os temas da prova que, uma vez mais, em sede de despacho saneador, tinham sido já enunciados.
IX. Posteriormente, o Tribunal a quo passa por referir o ponto “5. Motivação”, consignando que: “A motivação do Tribunal quanto aos factos dados como provados, que integral os Temas da Prova, a convicção do Tribunal funda-se na análise critica e conjugada, á luz das regras de experiência e saber dos meios de prova produzidos em audiência e juntos aos autos, por admitidos tempestivamente”.
X. O Tribunal a quo, em violação do dever a que se encontra adstrito, não particularizou os factos dados como provados e não provados, isto é, não os especificou, elencou e fez constar, de forma clara e inequívoca, na sentença proferida.
XI. Só se podendo concluir, ao abrigo do disposto no artigo 205.º, n.º 1 da CRP e 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, pela nulidade da sentença proferida pelo Tribunal a quo, nulidade que, desde já, se requer.
XII. Ainda que se considere que o Tribunal a quo, pretendeu fazer-se valer dos temas da prova enunciados, para os considerar, na totalidade, como factos dados como provados, interpretação que apenas por mero dever de patrocínio se concede, tal não pode ser admitido.
XIII. Não é suficiente, nem claro que o tenha feito, ao elencar os factos dados como provados, através de uma espécie de “remissão” para os temas da prova que se haviam fixado, aquando da proferição do despacho saneador.
XIV. Desta forma, deve concluir-se pela nulidade da sentença proferida pelo Tribunal a quo, nulidade que, desde já se requer, pela violação do art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC e art.º 205.º, n.º 1 da CRP.
XV. No que concerne à qualificação da Insolvência como culposa o Tribunal a quo, considerou que a Recorrente dispôs de bens da sociedade antes de se apresentar à insolvência, desviou dinheiro da mesma e incumpriu os deveres de apresentação e de colaboração a que estava adstrita, para com o Sr. Administrador da Insolvência.
XVI. Contudo, a prova testemunhal e documental carreada para os autos não é compatível com a fundamentação de facto plasmada na sentença em crise.
XVII. Deste modo, o Tribunal a quo, considerando estar verificada a factualidade prevista no n.º 2, al. d) e f) do artigo 186.º do CIRE, referiu que: “a conduta da gerente conforme descrito nos factos provados subsume-se á al. d) – disposição de bens da sociedade a favor da LC …; fez do crédito devedor uso contrário ao interesse do mesmo já que o dinheiro saiu da sociedade para a esfera do seu irmão - al. f)”.
XVIII. Neste circunspecto, o Tribunal a quo refere na motivação da sua decisão que em relação à quantia de €100.000 (cem mil euros), proveniente do negócio celebrado com a Sociedade Insolvente e a empresa LC …, LDA., o seguinte: “Quanto a €100000 os cheques foram depositados na conta da Insolvente e de imediato debitados através de FM que á data, segundo apurou o Administrador de Insolvência, não era credor, não encontrando justificação para este movimento”;
XIX. Mais adiante, na sua motivação o Tribunal a quo afirma que: “no teor do depoimento de FM, por sua vez, irmão da gerente, proposta afectanda, referiu ter financiado a irmã no negócio das jóias ao longo dos anos, e que estando ela inibida de emitir cheques, foi ele a colocar o nome no cheque para levantamento.”
XX. Todavia, a Recorrente não dispôs dos bens da Sociedade Insolvente, em proveito de terceiros ou, in casu, da Sociedade “LC …LDA., pelo que não se verificando tal pressuposto, deve cair a presunção de culpa que a acompanha.
XXI. Outrossim, a Sociedade Insolvente celebrou um negócio com a LC …LDA., tendo recebido, em contrapartida, a quantia de € 145.000 (cento e quarenta e cinco mil euros), valor utilizado, apenas, para liquidação das dívidas da Sociedade Insolvente.
XXII. Tendo sido apurado, inclusivamente que, desse montante total, €45.000 (quarenta e cinco mil euros) se tinham destinado ao pagamento de rendas da Sociedade Insolvente.
XXIII. Ademais, resultou claro do depoimento de FM que existia uma dívida da Sociedade para com ele, no valor de €60.000 (sessenta mil euros), dívida que foi liquidada, tendo-lhe sido entregue um cheque bancário, no valor de €100.000 (cem mil euros) - (vide transcrição constante no artigo 40 do presente Recurso).
XXIV. Da mesma forma, resultou claro do depoimento de FM que não foi o próprio a colocar o seu nome no cheque do levantamento, tratou-se de um cheque bancário que foi emitido em seu nome - (vide transcrição constante no artigo 42 do presente Recurso) - razão pela qual é falso o plasmado na douta sentença quando se afirma que “estando ela inibida de emitir cheques, foi ele a colocar o nome no cheque para levantamento”,
XXV. Consequentemente, devem ser dados como provados os seguintes factos:
1. “O produto do negócio de compra e venda, realizado entre a Sociedade Insolvente e a Sociedade LC …, LDA., foi utilizado, apenas, para a liquidação de dívidas já vencidas da Sociedade Insolvente”;
2. “FM, era Credor da Sociedade Insolvente”;
3. “A Sociedade Insolvente devia ao Credor FM a quantia de €60.000 (sessenta mil euros)”;
4. “O cheque bancário n.º 00296751, foi entregue, em representação da Insolvente, por CM, ao seu irmão, FM para que este liquidasse a quantia que se encontrava em dívida de €60.000 (sessenta mil euros).”;
5. “O cheque bancário n.º 00296751, no valor de €100.000 (cem mil euros), é um cheque bancário que, como tal, foi emitido pelo Banco Santander Totta, S.A., à ordem de FM, a mando de CM, pelo facto de a própria, tal como a Insolvente, se encontrar inibida do uso de cheques.”;
XXVI. Para a qualificação da insolvência como culposa, exige-se não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor e dos seus administradores, levada a cabo no período de três anos anteriores à apresentação da insolvência, mas ainda um nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência, nexo esse que consistirá na contribuição desse comportamento para a criação e agravação da situação de insolvência.
XXVII. Sendo certo que, neste concreto caso, não logrou demonstrada a relação entre a atuação da Recorrente e a criação ou agravação da situação de insolvência da Sociedade declarada insolvente.
XXVIII. Resulta claro que o produto do negócio realizado com a LC …, LDA., foi utilizado para pagamento de dívidas da sociedade, em concreto, da quantia devida pela Sociedade Insolvente a FM que, ao longo dos anos, foi emprestando quantias monetárias necessárias à manutenção da Sociedade Insolvente.
XXIX. Tal pagamento, necessariamente, diminuiu as dívidas da Insolvente, pelo que não existe uma disposição do bem da Sociedade “CMR … Lda”, em proveito pessoal ou de terceiro, mas tão só da própria Insolvente.
XXX. Da mesma forma, o crédito em causa da Insolvente não teve uso contrário ao interesse da mesma, nem dos seus credores, tendo sido usado para ressarcir um deles.
XXXI. Devendo concluir-se, pela não verificação do preenchimento das alíneas d) e f) do n.º 2, do art.º 186.º do CIRE e, consequentemente pelo carácter fortuito da insolvência da sociedade “CMR … Lda”, com as legais consequências.
XXXII. A Sociedade Insolvente dispunha de contabilidade organizada, sendo que não resulta dos autos a existência de uma contabilidade fictícia.
XXXIII. Não obstante, podendo aqui apontar-se à Recorrente uma potencial violação do dever de diligência a que a mesma estava adstrita, pois que deveria ter entregue tais elementos ao Contabilista Certificado, tal não significa que possamos, automaticamente, assumir que a Recorrente incumpriu a obrigação de manutenção da contabilidade organizada, com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
XXXIV. Na verdade, o Tribunal a quo serve-se de tais irregularidades para imputar, a título doloso, a responsabilidade à Recorrente, todavia, não faz uso dessas mesmas irregularidades, para reconhecer o esforço financeiro, a título pessoal, que a Recorrente fez para tentar salvar a sociedade Insolvente,
XXXV. A Recorrente só conseguiu proceder ao pagamento de grande parte das dívidas da Sociedade Insolvente, vendendo o seu próprio património, o que vinha já ocorrendo muito antes da apresentação a insolvência.
XXXVI. Nada poderá ser mais falso do que a afirmação de que a sociedade insolvente dispõe de um crédito sobre a sua sócia gerente, pois, a existir um crédito, o mesmo é da Recorrente sobre a Sociedade Insolvente, e não o contrário.
XXXVII. Posto que, a Recorrente na tentativa de honrar todos os compromissos financeiros da Sociedade Insolvente, despendeu a quantia global de €273.351,90 (duzentos e setenta e três mil e trezentos e cinquenta e um euros e noventa cêntimos), montante que não se encontra refletido na contabilidade da Sociedade Insolvente mas que, nem por isso, deixou de ser liquidado, a expensas próprias da Recorrente.
XXXVIII. Consequentemente, devem ser dados como provados os seguintes factos:
6. “CM, Sócia da Insolvente viu-se obrigada a vender a casa de morada de família, para fazer face às dívidas da Insolvente.”;
7. “CM, assumiu, pessoalmente, o pagamento da quantia de €68.666,00 (sessenta e oito mil e seiscentos e sessenta e seis euros), respeitantes a obras nas instalações do Centro Comercial Alegro, sito em Alfragide, onde a Insolvente laborava.”;
8. “CM e o seu marido assumiram, pessoalmente, enquanto Executados, o pagamento da dívida exequenda da Insolvente, no valor de €66.685,90 (sessenta e seis mil e seiscentos e oitenta e cinco euros e noventa cêntimos), no âmbito do processo executivo n.º 17600/11.6YYLSB, que correu termos no 2.º Juízo de Execução de Lisboa, 1.ª secção, que foi extinto pelo seu pagamento.”.
XXXIX. Pelo exposto, não poderá concluir-se pela violação do disposto no art.º 186.º, n.º 2, alínea h), só podendo a insolvência qualificar-se como fortuita.
XL. Quanto ao preenchimento da al. i) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, o Tribunal a quo, fazendo-se valer do afirmado pelo Sr. Administrador da Insolvência afirmou que o mesmo “tentou falar com a gerente, mas a única colaboração efectivamente dada pela gerente foi quanto à viatura (…) nunca disponibilizou documentação”.
XLI. Ora, tal não corresponde à verdade, pois a Recorrente sempre colaborou com o Sr. Administrador, na medida do que lhe era possível, com as limitações inerentes aos seus conhecimentos, para o esclarecimento de questões várias, assim como para a entrega do que lhe foi sendo solicitado pelo Sr. Administrador da Insolvência.
XLII. Quanto ao demais, todos os elementos que lhe foram solicitados encontravam-se na posse do Contabilista Certificado da Sociedade Insolvente, pelo que, necessariamente, teria de ser ao mesmo a quem o Sr. Administrador da Insolvência teria de requerer a documentação necessária, estando a Recorrente desonerada de
qualquer obrigação acrescida.
XLIII. Não se podendo concluir, perante o exposto, pela violação do disposto no art.º 186.º, n.º 2, alínea i), devendo a insolvência em apreço, ser qualificada como fortuita.
XLIV. Quanto à inibição para o exercício do comércio, o 189.º, n.º 1 e 2 e 191.º, n.º 1 do CIRE, o Tribunal a quo declarou afetada pela qualificação a gerente da Sociedade Insolvente, CM, declarando-a inibida pelo período de quatro anos e seis meses, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.
XLV. A atuação da Recorrente não se consubstancia numa conduta dolosa, não foram ocultados bens, existiu colaboração com o Sr. Administrador de Insolvência na medida do que lhe foi sempre possível, atentos os seus conhecimentos, pelo que, a verificar-se a inibição, a mesma deverá revestir o período mínimo legal, de dois anos.
XLVI. No que concerne à indemnização pela Recorrente aos credores da Insolvente, nos termos do art.º 189.º, n.º 2, al. e), o Tribunal a quo condenou-a no pagamento de indemnização, no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património.
XLVII. Estamos em crer que tal indemnização reveste um valor consideravelmente excessivo e não tem em consideração todo o esforço pessoal e financeiro que a Recorrente investiu na Sociedade Insolvente,
XLVIII. A Recorrente encontra-se assolada por sentimentos de tristeza, angústia, mágoa e frustração, pois que, com 62 anos, após uma vida inteira a trabalhar, vê-se sem nada, pois que contraiu empréstimos, endividou-se, viu-se obrigada a vendar a casa de morada de família, tudo na tentativa de reverter a situação financeiramente fragilizada da Insolvente.
XLIX. Face ao exposto, não poderia ter sido a Recorrente condenada no pagamento de qualquer indemnização aos Credores.”
Concluiu pela procedência do recurso, devendo a insolvência ser qualificada como fortuita.
Importa deixar aqui uma breve, mas relevante, consideração quanto aos termos em que a presente apelação foi intentada, designadamente quanto a quem é recorrente.
Com efeito, no requerimento de recurso vem mencionado como sendo recorrente a sociedade “CMR … Lda”.
No entanto, não obstante assim suceder, é ostensivo que, ao longo de toda a alegação/motivação e das respectivas conclusões, é sempre identificada como recorrente a proposta afectada – a sócia e gerente CM (e não a sociedade insolvente).[1]
Ora, quando o CPC estatui no seu artigo 637.º, n.º 2 que “o requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade (…)”, mais não significa que tal requerimento e respectivas alegações/conclusões constituem uma única peça processual, sendo precisamente pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigo 635.º do CPC).
Acresce que nada obsta, antes assim se impondo, que o tribunal ad quem interprete a peça processual e extraia a conclusão sobre o sentido que à mesma se pretendeu imprimir, só dessa forma lhe conferindo eficácia e, inclusive, se salvaguardando o direito à defesa.
Tal interpretação deverá ser efectuada segundo os critérios previstos nos artigos 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1, ex vi artigo 295.º, todos do CCivil, ou seja, com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, não podendo valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Mais se dirá que o sentido a extrair não se deverá limitar ao teor literal da peça processual mas igualmente a todo o demais circunstancialismo que a suporta. Ora, no caso, como facilmente se constata pela leitura e análise da peça apresentada, todo o recurso é sustentado em moldes correspondentes ao já defendidos na oposição que a sócia e gerente da insolvente deduziu ao incidente de qualificação. E, ao longo de todo o texto, sempre a recorrente vem referenciada como sendo essa mesma sócia gerente.
Como tal, é nosso entendimento que quem recorre é a proposta pessoa afectada (e não a sociedade insolvente), estando-se perante uma situação de errada identificação da apelante. A referência à sociedade insolvente como sendo recorrente traduziu, pois, um infeliz lapso (patente e ostensivo face à leitura das alegações e conclusões de recurso) - e que, provavelmente, poderá ter sido motivado por, na prática, a denominação da sociedade ser muito similar à identificação da sua sócia gerente, sendo que o mandatário que subscreveu a apresentação à insolvência e que deduziu a oposição à qualificação é o mesmo.
Diga-se que, estando em causa um acto de interpretação da peça processual de recurso – leitura correctiva do que foi escrito, quando a declaração e respectivo circunstancialismo revelam o que se pretendia dizer -, não se impunha o prévio cumprimento do contraditório quanto a esta questão, nada obstando a que se supra o lapso cometido nos moldes acabados de expor – cfr. artigo 249.º do CCivil – “O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta.”
Por fim, acrescentar-se-á que, para além de a proposta afectada gozar de legitimidade para recorrer – cfr. artigo 631.º, n.º 2 do CPC em conjugação com o artigo 188.º, n.ºs 5 e 6 (sendo estes números referentes à redacção que vigorava antes da alteração introduzida pela Lei n.º 9/2022 de 11/01 e que correspondem actualmente aos n.ºs 8 e 9 do mesmo artigo) ex vi artigo 191.º, n.º 1, ambos do CIRE -, a mesma beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (nenhuma questão se levantando quanto à eventual omissão de não pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso).
O Ministério Público apresentou RESPOSTA, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença, tendo enunciado como CONCLUSÕES:
“I - A M.mª Juiz a quo fundamentou de facto e de direito a decisão, sendo que alicerçou na sentença os factos dados como provados, os quais evidentemente teriam de versar sobre os factos dados como assentes no despacho saneador e os ínsitos no mesmo documento sobre os temas da prova, os quais foram todos indubitavelmente
dados como provados, em harmonia com o disposto nos artigos 595.º e 596.º, n.º 1, ambos do C.P.C.
II- A nulidade invocada pela requerente, prevista no artigo 615., n.º 1, al. b) do C.P.C., inexiste quanto a nós, sendo que inclusivamente a M. mª Juiz utilizou uma expressão genérica para afirmar que inexistiam factos constantes nos temas de prova dados como não provados - veja – se no 1.º parágrafo do ponto: “ 5- Motivação: a motivação do Tribunal quanto aos factos dados como provados, que integram os temas da prova (…)”
III- Resulta dos factos provados que a conduta da gerente subsume –se nas situações previstas nas alíneas d), f), h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, visto que esta, respectivamente: dispôs dos bens da sociedade insolvente a favor da sociedade LC …; fez do crédito do devedor uso contrário ao interesse do mesmo, tendo o dinheiro saído da empresa quer para a esfera patrimonial do seu irmão quer para si própria; a contabilidade demonstra inúmeras irregularidades e por fim a gerente não colaborou, como lhe incumbia, com o Administrador da Insolvência.-vide artigo 36.º, n.º 1, al g) do CIRE.
IV- A gerente inclusivamente realizou o negócio de trespasse poucas semanas antes de se apresentar à insolvência, desviou dinheiro da sociedade prejudicando deliberadamente o ressarcimento do crédito reclamados dos seus credores, incumprindo de forma reiterada o dever de colaboração com o Sr. AI, omitindo – lhe informações relevantes até à elaboração do parecer apresentado neste incidente; sendo que também não manteve a contabilidade organizada - vide alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE
V- Todas estas situações criaram e/ou agravaram a situação de insolvência, tendo inclusivamente a gerente se apresentado tardiamente á insolvência.
VI- A presunção estabelecida no artigo 186.º, n.º 2 do CIRE é uma presunção iuris et iure quanto à culpa e nexo causal entre os factos- base e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Demonstrado algum dos factos – índice ali taxativamente previstos (como o foi), a insolvência é sempre culposa.
VII- Já o “ n.º 3 do artigo 186.º do CIRE consagra uma presunção “juris tantum” de culpa grave, para que se possa qualificar a insolvência como culposa é necessário ainda concluir – se que os comportamentos omissivos ali previstos criaram ou agravaram a situação de insolvência, não bastante a mera demonstração da sua existência, ou seja, é ainda necessário provar – se o nexo causal entre a conduta gravemente culposa do devedor ou administrador e a criação ou agravamento do estado de insolvência.”- Acórdão do TC, Proc 427/07.7TBAGD- G.C1, disponível in www.dgsi.pt.
VIII- Uma vez que a conduta da gerente se subsume às alíneas d), f), h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º e do n.º 3, al. b) desse mesmo preceito, o Tribunal entendeu adequado afectar a gerente com a qualificação culposa da insolvência e fixar – lhe o período de inibição de 4 anos e 6 meses para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, condenando – a igualmente a indemnizar os credores da devedora no
montante dos créditos não satisfeitos até às forças do respectivo património.”
O recurso foi admitido em 21/01/2022 como sendo de apelação, a subir de imediato nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Simultaneamente, a Mmª. Juíza a quo pronunciou-se sobre a invocada nulidade da sentença por omissão dos factos não provados, reconhecendo a mesma, nos seguintes moldes:
“Da invocada nulidade da sentença por omissão dos factos não dados como provados, a qual se conhece:
A nulidade a que a Recorrente se reporta, prevista no art.º 615 do Código de Processo Civil – sob a epígrafe de “Causas de nulidade da sentença” – ocorre quando a sentença, nos termos da al. b) do n.º 1 “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Com efeito, não se tendo escrito na sentença “Factos Não Provados” existe uma omissão, não obstante, como responde a Digna Magistrada do Ministério Público, ter sido usada expressão genérica sobre os factos provados que se analisaram na referida peça processual (vide 1.º parágrafo do ponto: “ 5 - Motivação: a motivação do Tribunal quanto aos factos dados como provados, que integram os temas da prova (…)” seguida da mencionada análise da prova.
Assim, reconhece-se, cura de colmatar a dita omissão, apenas decorrente de arreliante lapso material, o que se se faz pelo presente despacho e ao abrigo do disposto no art.º 613/2 e 614/1 e 2 do Código de Processo Civil.
Rectifico no local próprio. Após notifique.”
Em 25/01/2022 foi proferido novo despacho com o seguinte teor:
“Consigna-se que na decorrência do despacho de 21 transacto e após devolução á Secção se constatou que as duas rectificações tentadas no documento correspondente á sentença Referência: 408737540 não foram registadas no sistema citius, ao que se infere atenta a impossibilidade de conversão em pdf ocorrida a partir de dia 18-1.
Termos em que segue o competente despacho para respectiva inserção no local próprio e posterior notificação, procedendo-se á alteração no documento e respectiva reprodução integral já com a aludida rectificação que se reporta em exclusivo aos factos não provados da oposição e respectiva motivação. E com o seguinte texto:
“Factos Não provados”
Da oposição apresentada não recolheram qualquer prova, ou tiveram mesmo prova em contrário, os seguintes factos com relevância concreta para a decisão a proferir:
Antes de exercer a sua actividade no Centro Comercial Alegro, em Alfragide, a Insolvente tinha as suas instalações no Palácio SottoMayor, em Lisboa.
Desde Maio de 2004 a Outubro de 2007, a Insolvente teve a sua sede no Palácio SottoMayor.
Neste espaço de tempo, a sócia gerente da sociedade insolvente deparou-se com diversas despesas associadas à sua actividade, nomeadamente, a título de pagamento de juros, rendas e indemnizações emergentes de um processo judicial, tendo a representante legal da insolvente - aqui Requerida - procedido ao pagamento de cerca de €78.000,00 (setenta e oito mil euros),
A sócia gerente da insolvente pagou, a título pessoal, a quantia de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) devidos pelas rendas no imóvel arrendado no Palácio SottoMayor.
A sua sócia gerente procedeu ao seu pagamento.
Ao contrário das expectativas da Insolvente, a mudança no dia 08 de Outubro de 2007, das instalações da insolvente para o Centro Comercial Alegro, sito em Alfragide comportou inúmeras despesas para a mesma, designadamente a título de obras nas suas novas instalações, a sócia gerente da Insolvente efectuou um pagamento na quantia de €68.666,00 (sessenta e oito mil e seiscentos e sessenta e seis euros) – Doc. n.º 1.
A sócia gerente procedeu ainda ao pagamento das quantias que eram devidos a fornecedores, e ainda, a sócia gerente procedeu ao pagamento, no montante de €33.000,00 (trinta e três mil euros), respeitantes a rendas do imóvel da insolvente, arrendado Centro Comercial Alegro, sito em Alfragide.
Não releva por si só que o processo executivo que correu termos no 2º Juízo de Execução de Lisboa, 1ª Secção, sob o n.º 17600/11.6YYLSB, no qual constava como executados a sócia gerente da insolvente e o seu marido, tenha sido extinto, porque aqueles procederam ao pagamento da dívida exequenda, no montante de €66.685,90 (sessenta e seis mil seiscentos e oitenta e cinco euros e noventa cêntimos) - Doc. n.º 2- dado que se trata de processos distinto deste autos também quanto ao objecto.
Que tenha eventualmente como alega para fazer face a esta e demais dívidas da sociedade “CMR … Lda”, tivesse de vender a sua própria casa.
Perfazendo, como alega, o montante total de €273.351,90 (duzentos e setenta e três mil trezentos e cinquenta e um euros e noventa cêntimos) e que seja ela a credora da sociedade Insolvente e não o inverso.
Certo é que não foi, como a própria invoca, contabilizado na contabilidade da sociedade, ora Insolvente.
Admitindo a própria Requerida gerente que não tenha entregue ao Contabilista Certificado todos os documentos das dívidas da sociedade.
Também não é objecto deste incidente de qualificação não sendo essa a conduta imputada, se a sócia gerente da Insolvente realizou outros pagamentos, a título pessoal, que se encontravam em dívida, tais como, ao Instituto de Segurança Social e Autoridade Tributária e consequentemente se devido às dificuldades defrontadas não conseguiu cumprir com as suas obrigações.
Nem tão pouco e por consequência que a Autoridade Tributária aceitou o pagamento da dívida em prestações, relativa ao processo de execução fiscal n.º 3522201801183990, que a sócia gerente da Insolvente se encontrava a cumprir.
Nem que a Insolvente requereu ainda ao Serviço de Finanças de Oeiras – 2, o pagamento em prestações da dívida fiscal relativa ao processo n.º 35222018060000116361, encontrando-se aguardar resposta.
E por fim, pela mesma ordem de razão, que quanto as prestações devidas ao Instituto de Segurança Social e Autoridade Tributária a sócia gerente da Insolvente já procedeu ao pagamento de, pelo menos, €2.000,00 (dois mil euros).
A demais matéria relevaria em sede de apreciação da situação de insolvência mas também não para efeitos do incidente nesta sede processado, a saber:
- que, o estabelecimento comercial da insolvente cessou a sua actividade no dia 30 de Setembro de 2018, não tendo perspectivas de poder ter actividade rentável que lhe permita liquidar o seu passivo.
- O estabelecimento comercial em causa encontrava-se a funcionar num espaço arrendado, ao qual a insolvente pagava um valor total de aproximadamente €3.000,00 (três mil euros), que incluía a 10/104 cedência do espaço, os gastos comuns e o fundo promocional.
- que o pagamento de uma renda mensal de valor tão elevado e toda a conjuntura económica colocaram em causa a sobrevivência da Insolvente.
- o que a levou, a revogar a sua posição contratual com a Alegro Alfragide – Gestão e Exploração de Centros Comerciais, S.A., no dia 18 de Setembro de 2018 (Doc. n.º 3)”.
Tal despacho foi seguido do texto da sentença, na íntegra, com a introdução da alteração que agora se transcreveu.
Notificada deste último despacho veio a recorrente insurgir-se, defendendo não poder a sentença ser rectificada nos moldes em que o foi - ao abrigo do disposto nos artigos 614.º a 616.º do CPC.
O vício apontado no recurso intentado implica a nulidade da sentença, vício esse que não pode ser sanado pelo tribunal a quo por se ter esgotado o seu poder jurisdicional (e não configurar erro material susceptível de rectificação).
Defende não estar a sentença fundamentada, por não discriminação dos factos provados e não provados – tendo-se limitado a elencar a matéria de facto já assente e os temas de prova fixados.
Como tal, invocando o estatuído no n.º 3 do artigo 617.º do CPC, requereu o alargamento do âmbito do recurso interposto para apreciação da rectificação material da sentença, formulando, para esse efeito, as seguintes conclusões:
“I. Salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo perante a nulidade de sentença suscitada pela Recorrente – omissão dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão - não poderia ter lançado mão do instituto da retificação dos erros materiais com previsão no art.º 614.º do CPC.
II. A nulidade suscitada pela Recorrente perante o Tribunal ad quem, não poderia ser suprida pelo Tribunal a quo através do instituto da retificação de erros materiais, precisamente por não configurar, de forma alguma, um dos cenários legais suscetíveis de retificação.
III. A não especificação dos fundamentos de facto e de direito apenas poderia, por ventura, configurar a última hipótese avançada (vi),
IV. Isto é, apenas poderia configurar o que a lei designou como “quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto”,
V. O que se revela inconcebível, dada a magnitude e seriedade do “erro” em apreço.
VI. Os erros materiais a que nos reportamos tratar-se-ão, por norma, de erros bagatelares, erros sem relevância para a decisão da causa como, de resto, se pode ver pelos exemplos supra citados,
VII. Tais erros traduzir-se-ão numa divergência ou confusão entre a vontade real e a vontade declarada do Julgador, isto é, numa divergência entre aquilo que foi escrito e aquilo que queria ter sido escrito.
VIII. O que, em nada, se assemelha à nulidade significativa invocada pela Recorrente.
IX. Verificando-se a violação do dever de fundamentação - sempre que a sentença não especifique os fundamentos de facto e de direito que a justificam - de acordo com o preceituado na alínea b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, tal sentença encontrar-se-á inquinada de vício que implica a sua nulidade.
X. Vício que não pode ser sanado pelo Tribunal a quo, uma vez que o seu poder jurisdicional se esgotou, não podendo ser retomado por se não tratar de um erro material suscetível de retificação, de acordo com o art.º 614.º do CPC.
XI. O Tribunal a quo, para além de não enunciar, particularizar e fazer constar os factos dados como não provados na sentença que proferiu (nulidade que pretendeu sanar ao abrigo do n.º 1 do art.º 614.º do CPC, apesar de ser claro que tal nulidade extravasa, em larga medida, as “matérias” que podem ser objeto de retificação),
XII. Também não especificou, de forma clara e inequívoca, quais os factos dados como provados.
XIII. Sendo certa a omissão quantos aos factos dados como não provados, no que respeita aos factos dados como provados, cumpre dizer que:
XIV. Ainda que o Tribunal a quo entendesse que os temas da prova (previamente fixados) resultaram, em sede de audiência de julgamento, como factualidade provada, teria que fazer constar tal apreciação, de forma inequívoca, na sentença recorrida.
XV. Estamos diante um vício grosseiro, grave e manifesto que não se assemelha com um mero lapso.
XVI. Vício que, como se disse, nunca poderia ser sanado através de retificação de erro material, por simples despacho.
XVII. Razão pela qual a nulidade invocada na sentença recorrida nunca se poderá ter como sanada.
XVIII. Desta forma, a Recorrente requer a V. Ex.ªs, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 617.º do CPC, o alargamento do âmbito do recurso interposto em 04/11/2021, para apreciação da retificação material de sentença por parte do Tribunal a quo, devendo a mesma ser revogada.”
Concluiu peticionando que seja “revogada/anulada a retificação material da sentença operada pelo Tribunal a quo, sendo a mesma legalmente inadmissível”, bem como que seja o recurso interposto julgado procedente, por provado, e decretada a nulidade da sentença, em conformidade.
Em 09/03/2022, pelo tribunal a quo é proferido o seguinte despacho:
“Cientes de que nenhuma pretensão do interveniente processual em abstracto, e consequentemente, no caso em concreto, pode ser encarada como insignificante, bem como dos requisitos do acto impugnado, o Tribunal actuou ao abrigo do disposto no art.º 617/1 e 2 do Código de Processo Civil, conjugados com o disposto no art.º 614/1 e 2 (que alude a rectificação de inexactidão devida a outra omissão ou lapso manifesto) e 613/2 (supressão de nulidade) ambos do Código de Processo Civil.
O despacho passou assim a ser parte integrante da sentença, admitindo-se a ampliação do recurso admitido por despacho de 21-1 transacto –art.º 617/2 do Código de Processo Civil (pretensão decorrente do ponto 73 do requerimento que se aprecia).
Notifique.
Dando-se por renovado o despacho de 21-1 parte final.”
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
II – DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal ad quem não estar limitado pela iniciativa das partes - artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC. Contudo, não está este tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, desde que prejudicados pela solução dada ao litígio.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
- Aferir da invocada nulidade da sentença por falta de fundamentação;
- Aferir da admissibilidade da rectificação da sentença;
- Aferir da reapreciação/ampliação da matéria de facto;
- Aferir se a insolvência deve ser qualificada como fortuita - ou se, pelo contrário, se encontram preenchidos os pressupostos considerados para a qualificação da mesma como culposa;
- Mantendo-se a qualificação culposa, aferir se o período de inibição e a indemnização aos credores fixados na sentença são excessivos, devendo ser reduzidos.  
*
III – FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
 “Com interesse para a decisão do presente incidente resulta já provado por assente que:
1-A- A sociedade insolvente foi constituída por contrato de sociedade inscrito em 05 de Março de 2004 na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, com o objecto social “comércio a retalho de artigos de ourivesaria, joalharia e relojoaria”, 3. com sede social na Avenida … Lisboa, e com o capital social de 5.000,00€, titulado pela sócia e gerente CM. – cfr. o documento junto sob o n.º 1, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
2-B- Através de requerimento datado de 31 de Outubro de 2018, a sociedade apresentou-se à insolvência, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio de Lisboa, a qual foi declarada por sentença proferida a 07 de Novembro de 2018, já transitada em julgado.
3-C- Como gerente da referida sociedade mostra-se nomeada a sócia CM, desde 30 de Janeiro de 2004 cfr., neste sentido, o documento junto sob o n.º 2, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
4-D-Na PI de apresentação á insolvência não se refere o negócio a sociedade insolvente e a “LC, Lda” – cfr documento junto sob o n.º 3.
5-E- À ordem dos presentes autos de insolvência, o Administrador de Insolvência apenas apreendeu à ordem da Massa Insolvente o veículo automóvel com a matrícula ..-..-TC, da marca BMW, modelo 3 Series (346K), com um valor comercial que não deverá ultrapassar o montante de 1.500,00€- vide apenso D.
6-F- A contabilidade da sociedade insolvente era feita pelo Contabilista Certificado – Sr. Dr. V –, com domicílio profissional na Av. … Lisboa.
7-G-Os autos foram encerrados em 18-3 passado por insuficiência da massa.
*
E dos Temas da Prova
8-1- Em 1-10-2018 a sociedade insolvente e a sociedade que gira sob a firma “LC …, Limitada” firmaram um “negócio”, através do qual esta sociedade adquiriu àquela “diversos objectos comercializados por aquela no âmbito da sua actividade”, tendo o referido preço sido pago pela sociedade “LC …” à sociedade insolvente através de dois cheques bancários, com os n.ºs 7343193326 e 6259783386, nos montantes de 100.000,00€ (cem mil euros) e 45.000,00€ (quarenta e cinco mil euros), respectivamente.
9-2- As quantias referentes ao sobredito negócio foram efectivamente creditadas na conta com o n.º 0003.32094815020, domiciliada no Banco Santander Totta, S.A. (Agência de Benfica/Calhariz), titulada pela sociedade insolvente.
10-3- No entanto, a quantia de 100.000,00€ (cem mil euros) que foi creditada na conta bancária da sociedade insolvente em 03 de Outubro de 2018, foi, quase nesse imediato, debitada através do cheque bancário com o n.º 00296751, sendo o beneficiário dessa quantia FM.
11-4- As facturas inerentes ao aludido negócio não se encontravam reflectidas nos elementos contabilísticos da sociedade insolvente, o que só aconteceu após contacto com o Contabilista Certificado da sociedade insolvente.
12-5- As facturas n.ºs 01C/9 e 01C/7, ambas de 01 de Outubro de 2018, foram, após contacto com o Contabilista Certificado, reflectidas na contabilidade, mas o inerente pagamento não.
13-6- O conhecimento adveio da constatação por parte do Administrador de Insolvência da existência do referido negócio surgiu no seguimento da consulta ao Portal “E-Factura” (Portal das Finanças), no qual as mesmas se encontravam espelhadas. – cfr., neste sentido, o documento junto sob o n.º 4.
14-7- Na contabilidade da sociedade insolvente figurava o montante de 402.984,91€, referente a “activos líquidos”.
15-8- Também a conta de “activos fixos tangíveis” apresenta um saldo líquido de 35.267,39€, o qual se reporta a benfeitorias realizadas no espaço comercial que era ocupado pela sociedade insolvente, cujas depreciações não estavam contabilizadas nos períodos analisados pelo Administrador de Insolvência.
16-9- Não obstante a sociedade insolvente apresentar um saldo (devedor) nas contas de “depósitos à ordem” no montante de 74.653,98€, e um saldo (credor) também nas contas de “depósitos à ordem” no montante de 67.852,24€, as contas bancárias encontram-se saldadas.
17-10-Da análise da contabilidade da sociedade insolvente resulta ainda a existência de um crédito sobre a sócia CM, no montante de 212.377,70€.
18-11- Ainda da análise da contabilidade da sociedade insolvente, resulta a existência de dívidas da sociedade para com fornecedores, bancos e ao próprio Estado, em montante muito superior ao por estes oportunamente reclamado.
19-12- Desde a data da declaração de insolvência, até à data da elaboração do parecer de qualificação pelo Administrador de Insolvência, a colaboração da parte da sócia e gerente da sociedade insolvente foi praticamente nula, motivo pelo qual não se afigurou possível apurar junto da mesma esclarecimentos sobre os contornos do negócio em causa.
E, foi considerado não provado (na sequência do decidido por despacho de 25/01/2022):
Da oposição apresentada não recolheram qualquer prova, ou tiveram mesmo prova em contrário, os seguintes factos com relevância concreta para a decisão a proferir:
Antes de exercer a sua actividade no Centro Comercial Alegro, em Alfragide, a Insolvente tinha as suas instalações no Palácio SottoMayor, em Lisboa.
Desde Maio de 2004 a Outubro de 2007, a Insolvente teve a sua sede no Palácio SottoMayor.
Neste espaço de tempo, a sócia gerente da sociedade insolvente deparou-se com diversas despesas associadas à sua actividade, nomeadamente, a título de pagamento de juros, rendas e indemnizações emergentes de um processo judicial, tendo a representante legal da insolvente - aqui Requerida - procedido ao pagamento de cerca de €78.000,00 (setenta e oito mil euros).
A sócia gerente da insolvente pagou, a título pessoal, a quantia de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) devidos pelas rendas no imóvel arrendado no Palácio SottoMayor.
A sua sócia gerente procedeu ao seu pagamento.
Ao contrário das expectativas da Insolvente, a mudança no dia 08 de Outubro de 2007, das instalações da insolvente para o Centro Comercial Alegro, sito em Alfragide comportou inúmeras despesas para a mesma, designadamente a título de obras nas suas novas instalações, a sócia gerente da Insolvente efectuou um pagamento na quantia de €68.666,00 (sessenta e oito mil e seiscentos e sessenta e seis euros) – Doc. n.º 1.
A sócia gerente procedeu ainda ao pagamento das quantias que eram devidos a fornecedores, e ainda, a sócia gerente procedeu ao pagamento, no montante de €33.000,00 (trinta e três mil euros), respeitantes a rendas do imóvel da insolvente, arrendado Centro Comercial Alegro, sito em Alfragide.
Não releva por si só que o processo executivo que correu termos no 2º Juízo de Execução de Lisboa, 1ª Secção, sob o n.º 17600/11.6YYLSB, no qual constava como executados a sócia gerente da insolvente e o seu marido, tenha sido extinto, porque aqueles procederam ao pagamento da dívida exequenda, no montante de €66.685,90 (sessenta e seis mil seiscentos e oitenta e cinco euros e noventa cêntimos) - Doc. n.º 2- dado que se trata de processos distinto deste autos também quanto ao objecto.
Que tenha eventualmente como alega para fazer face a esta e demais dívidas da sociedade “CMR … Lda”, tivesse de vender a sua própria casa.
Perfazendo, como alega, o montante total de €273.351,90 (duzentos e setenta e três mil trezentos e cinquenta e um euros e noventa cêntimos) e que seja ela a credora da sociedade Insolvente e não o inverso.
Certo é que não foi, como a própria invoca, contabilizado na contabilidade da sociedade, ora Insolvente.
Admitindo a própria Requerida gerente que não tenha entregue ao Contabilista Certificado todos os documentos das dívidas da sociedade.
Também não é objecto deste incidente de qualificação não sendo essa a conduta imputada, se a sócia gerente da Insolvente realizou outros pagamentos, a título pessoal, que se encontravam em dívida, tais como, ao Instituto de Segurança Social e Autoridade Tributária e consequentemente se devido às dificuldades defrontadas não conseguiu cumprir com as suas obrigações.
Nem tão pouco e por consequência que a Autoridade Tributária aceitou o pagamento da dívida em prestações, relativa ao processo de execução fiscal n.º 3522201801183990, que a sócia gerente da Insolvente se encontrava a cumprir.
Nem que a Insolvente requereu ainda ao Serviço de Finanças de Oeiras – 2, o pagamento em prestações da dívida fiscal relativa ao processo n.º 35222018060000116361, encontrando-se aguardar resposta.
E por fim, pela mesma ordem de razão, que quanto as prestações devidas ao Instituto de Segurança Social e Autoridade Tributária a sócia gerente da Insolvente já procedeu ao pagamento de, pelo menos, €2.000,00 (dois mil euros).
A demais matéria relevaria em sede de apreciação da situação de insolvência mas também não para efeitos do incidente nesta sede processado, a saber:
- que, o estabelecimento comercial da insolvente cessou a sua actividade no dia 30 de Setembro de 2018, não tendo perspectivas de poder ter actividade rentável que lhe permita liquidar o seu passivo.
- O estabelecimento comercial em causa encontrava-se a funcionar num espaço arrendado, ao qual a insolvente pagava um valor total de aproximadamente €3.000,00 (três mil euros), que incluía a 10/104 cedência do espaço, os gastos comuns e o fundo promocional.
- que o pagamento de uma renda mensal de valor tão elevado e toda a conjuntura económica colocaram em causa a sobrevivência da Insolvente.
- o que a levou, a revogar a sua posição contratual com a Alegro Alfragide – Gestão e Exploração de Centros Comerciais, S.A., no dia 18 de Setembro de 2018 (Doc. n.º 3)”.
Da motivação da decisão de facto consta da sentença:
“A motivação do Tribunal quanto aos factos dados como provados, que integral os Temas da Prova, a convicção do Tribunal funda-se na análise critica e conjugada, á luz das regras de experiência e saber dos meios de prova produzidos em audiência e juntos aos autos, por admitidos tempestivamente.
A saber:
- nas declarações prestadas por C, Administrador da Insolvência, que, de forma espontânea credível, no essencial respondeu de forma positiva a todos os temas da prova, mormente, deu conta da apresentação á insolvência em Outubro de 2018 tendo ocorrido o trespasse no mesmo ano que abrangeu todos os bens menos um veiculo da marca BMW, sendo as facturas num total de €145.000 relativos ao negócio realizado poucas semanas antes da aprestação á insolvência, precisando que ocorreu em Setembro de 2018; do lançamento pelo Contabilista certificado das facturas mas sem reflexo no balancete de 2018 os respectivos valores, tendo-lhe enviado o balancete corrigido aquando a elaboração do relatório a que alude o art.º 155 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
Terá sido nessa sequência que notificou o adquirente para comprovar o pagamento da mesma, o que foi demostrado pala saída do valor da firma LC …Lda. Quanto a €100000 os cheques foram depositados na conta da Insolvente e de imediato debitados através de FM que á data, segundo apurou o Administrador de Insolvência, não era credor, não encontrando justificação para este movimento. Os demais €45.000 apurou-se que serviram para pagar rendas no Centro Comercial Alegro, pela actividade que a insolvente ali exercia.
Confrontado com o teor dos documentos juntos aos autos conforme consta da acta, mormente com teor de fls. 19, esclareceu em audiência que a contabilidade não reflectia a realidade pois na conta de depósitos á ordem teria de haver coincidência com a conta de caixa e de depósitos bancários. Ora a única que tinha saldo credor era do Banco Santander este reclamou o crédito. Ora com o trespasse o valor da conta estaria a zeros.
Confrontado também com o teor de fls. 16 refere que com base no balancete i seriam necessárias depreciações devido ao critério negativo, mas o trespasse deveria levar a a que constasse saldo zero, explicando em termos contabilísticos o porquê desta necessidade.
Relativamente á soma dos activos líquidos mesmo retirando os € 35.000 que seriam desconsiderados não havia saldos bancários sendo que a conta clientes estava a zero, conforme diligências que fez verificando que a conta estava saldada. Contudo não havia pagamento reflectido na conta 12. Por seu lado, o contabilista reconheceu €95.000 no inventário.
No que tange ás dividas constatou no balancete na conta empréstimos, tal como explicitado na sala, o valor de €106.894,70 e pela Banca reconhecia-se cerca de €30.000 como capital, mas não é credível, como explicou, já que, tendendo ao Balancete, nunca a gerente justificou, apesar de lhe ter sido solicitada a motivação, tendo remetido qualquer esclarecimento para o contabilista, que se limitou a cumprir indicações da gerência.
Relativamente ás contas o alegado crédito da sociedade sobre a gerente de cerca de €200.000 não encontra reflexo e embora se plasmem valores na conta 27 e cerca de €74.000 e de €67.000 na contabilidade não foi encontrado suporte. Nada constava também na conta relativa aos sócios.
Relativamente aos fornecedores ante a documentação contabilística que lhe foi exibida, documento 3 junto a fls. 14 verso e segs. e documento 5 junto a fls. 31, exemplificou com o Estado e a Segurança Social que reclamaram bem menos do que se pode constatar na Conta 24.
Que como Administrador de Insolvência, tentou falar com a gerente, mas a única colaboração efectivamente dada pela gerente foi quanto á viatura. Invocando para tanta falta de formação contabilística, o que não era necessário para explicar o destino dos €100.000. E nunca disponibilizou documentação. Tendo contactado com o contabilista V verificou a existência de erros sobre erros, os quais não lhe podem ser imputáveis àquele, mas sim á gerente da insolvente.
- no teor do depoimento de FM, por sua vez, irmão da gerente, proposta afectanda, referiu ter financiado a irmã no negócio das jóias ao longo dos anos, e que estando ela inibida de emitir cheques, foi ele a colocar o nome no cheque para levantamento. Cheque esse cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 13- doc. 2.
A gerência única não permite alijar a responsabilidade dos respectivos actos, e menos ainda para o contabilista certificado.
Em sede de oposição admite a Insolvente as dificuldades da empresa em fazer face aos encargos- Pontos 10 e segs. e 19 e segs- indicando que não tinha possibilidade de custear as rendas pelo aluguer do espaço onde funcionava o estabelecimento sendo obrigada a sair do Palácio Sottomayor em Lisboa para o Centro Comercial Alegro em Alfragide. E passando a fazê-lo a gerente, como alega, a expensas próprias.
Assim como admite, embora como tal não as denomine, as irregularidades na contabilidade- vide ponto 14, 31.”
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Da nulidade da sentença por falta de fundamentação
Defende a recorrente ser a sentença nula nos termos previstos pelo artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC uma vez que não está a mesma devidamente fundamentada de facto e de direito – não são especificados quais os factos provados e os não provados (limitando-se, na sentença, a transcrever ipsis verbis os factos já considerados assentes e os temas da prova que tinham sido enunciados).
O tribunal recorrido, aquando do despacho que admitiu o recurso, reconheceu a existência da invocada nulidade por omissão de factos não provados e respectiva motivação, que imputa a um arreliante lapso material, e decidiu rectificar a sentença, ao abrigo do disposto nos artigos 613.º, n.º 2 e 614.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Porém, de tal despacho não ficou a constar o texto a inserir e que corresponde à rectificação.
Em posterior despacho (proferido quatro dias depois), alegando impossibilidade em proceder à rectificação no texto da sentença recorrida, o mesmo tribunal fez exarar qual o teor da mesma (que reporta-se exclusivamente aos factos não provados da oposição e respectiva motivação), e, de seguida, transcreveu novamente a sentença, agora rectificada.
Cumpre apreciar.
As causas de nulidade da sentença vêm previstas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 615.º do CPC - a) não contenha a assinatura do juiz; b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, e) condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.[2]
No caso, foi invocada a previsão da al. b) – falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão -, a qual tem correspondência com o n.º 3 do artigo 607.º do CPC, segundo o qual deve o juiz “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”.
Esta nulidade, tal como as demais previstas nas als. c) a e) do mesmo número, para além de não ser de conhecimento oficioso, respeita “ao teor do ato decisório, nomeadamente ao cumprimento das normas processuais que determinam a estrutura, objeto e limites do julgamento; porém, não quanto ao mérito desse julgamento”.[3]
Veja-se que também o artigo 154.º, n.º 1 do mesmo código dispõe que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.[4]
Contudo, como tem vindo a ser decidido de forma uniforme pela nossa jurisprudência, apenas a absoluta falta de fundamentação é susceptível de integrar nulidade. Já assim não ocorrerá se a sentença, embora de forma insuficiente ou mesmo incorrecta, se mostre fundamentada (o que apenas será valorado para efeitos de uma eventual revogação ou alteração do decidido) – não configurando, igualmente, nulidade o putativo desacerto da decisão.
Da leitura da sentença recorrida, constata-se que a Mmª. Juíza a quo elencou quais os factos que considerava provados – não apenas os que já tinham sido considerados assentes em sede de saneamento, mas também os que integravam os temas da prova.
Se é certo que, quanto a estes últimos, existe total correspondência entre o que havia sido enunciado e o que veio a ser vertido na sentença, também não se poderá deixar de concluir que tais temas contêm em si factualidade concreta, nada obstando a que, como tal, a mesma fosse transposta em sede de factualidade provada.
Acresce que, em sede de motivação, aludindo expressamente aos factos provados que integram os temas da prova[5], a julgadora expôs o fundamento da sua convicção, aludindo expressamente aos meios probatórios que a sustentaram – declarações do AI e depoimento da testemunha FM, sem deixar de mencionar a documentação junta aos autos e o que pela gerente/proposta afectada foi admitido em sede de oposição ao incidente de qualificação.[6]
Encontra-se a factualidade provada descrita e motivada em moldes perceptíveis (mau grado a forma através da qual a Mmª. Juíza a quo se expressou não tenha sido a mais feliz, mostra-se compreensível qual o processo lógico pela mesma seguido na formação da sua convicção) e, ao contrário do alegado, não foi a mesma fixada por remissão (a factualidade foi transcrita na sentença)[7], tudo sem prejuízo de se reconhecer que os termos em que a motivação foi redigida não foram os mais correctos (porém, apesar de tal motivação ter consistido essencialmente no relato dos depoimentos produzidos em audiência final, a verdade é que a Mmª. Juíza a quo não deixou de os concatenar com uma análise crítica da prova documental constante dos autos e de enfatizar a credibilidade que o depoimento do AI lhe mereceu).
Como tal, independentemente do acerto do decidido, carece de fundamento a alegação da recorrente segundo a qual desconhece quais os factos (provados) que estiveram na génese da sentença, uma vez que tais factos estão expressamente elencados e justificados.
Apenas não ficou consignado na sentença quais os factos que o tribunal considerou não provados e respectiva motivação.
Ora, a omissão de referência à factualidade não provada poderia, numa primeira leitura, consubstanciar a invocada nulidade. Com efeito, integrando tal referência o dever de fundamentação, a mesma será relevante para um processo equitativo e respeitador do contraditório, já que permite ao recorrente reagir caso não concorde com o fixado na sentença e com a convicção sustentada pelo julgador. Acresce que, só na posse de toda a factualidade (provada e não provada) poderá a sentença ser sindicada em sede de recurso, designadamente para efeitos de reapreciação da decisão referente à matéria de facto.
Porém, como já referido, a nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 615.º reporta-se à não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, ou seja, à previsão do n.º 3 do artigo 607.º.
Ora, para além de, com relação à matéria vertida nos temas da prova, nenhum facto ter ficado demonstrado, a referência no CPC à factualidade não provada consta já do n.º 4 deste último artigo – “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
Nessa medida, apenas se poderia concluir no sentido de ser a sentença nula nos moldes previstos na al. b) do n.º 1 do artigo 615.º, caso a mesma fosse ininteligível.[8]
Ora, dúvidas inexistem de ter a recorrente percepcionado o juízo valorativo levado a cabo pelo tribunal recorrido, quanto ao julgamento de facto, disso sendo demonstrativo a circunstância de a mesma, no recurso, ter impugnado a decisão referente à matéria de facto. 
Acresce que, mesmo que se concluísse pela existência de nulidade nos moldes suscitados, como se demonstrará de seguida, sempre a mesma terá sido posteriormente suprida pela Mmª. Juíza a quo, pelo que prejudicada ficou tal questão, não se podendo extrair as consequências jurídicas pretendidas pela recorrente.
Analisando a sentença recorrida, resulta da mesma estarem suficientemente especificados os fundamentos de facto e de direito em que assenta, pelo que a mesma não padece do vício que lhe é imputado (falta de fundamentação), sendo que não se inclui na previsão do artigo 615.º o chamado erro de julgamento, designadamente quando se discorda do enquadramento jurídico adoptado (erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou na interpretação desta última) ou quando possa ter ocorrido injustiça na decisão. [9]
Improcede, assim, nesta parte, a pretensão da recorrente.

Da rectificação da sentença
Sem prejuízo do que se consignou aquando da apreciação da questão atinente à nulidade, e como também aí se aludiu, no despacho que admitiu o recurso (datado de 21/01/2022), o tribunal pronunciou-se sobre a invocada nulidade da sentença, admitindo-a, no que respeita à omissão dos factos não provados – podendo ler-se nesse mesmo despacho: “cura de colmatar a dita omissão, apenas decorrente de arreliante lapso material, o que se faz pelo presente despacho e ao abrigo do disposto no art.º 613/2 e 614/1 e 2 do Código de Processo Civil. Rectifico no local próprio. Após notifique. (…)”.
Em despacho subsequente, datado do dia 25 do mesmo mês, veio o mesmo tribunal referir: “Consigna-se que na decorrência do despacho de 21 transacto e após devolução à Secção se constatou que as duas rectificações tentadas no documento correspondente à sentença Referência: 408737540 não foram registadas no sistema citius, ao que se infere atenta a impossibilidade de conversão em pdf ocorrida a partir de dia 18-1.
Termos em que segue o competente despacho para respectiva inserção no local próprio e posterior notificação, procedendo-se á alteração no documento e respectiva reprodução integral já com a aludida rectificação que se reporta em exclusivo aos factos não provados da oposição e respectiva motivação. E com o seguinte texto: (…)”, passando a elencar a factualidade da oposição que considera não provada e a inerente motivação (que não constavam da sentença).
Insurge-se a recorrente sobre o que identifica como sendo uma “alteração sofrida pela sentença”, argumentando que a invocada nulidade não poderia ser suprida através do instituto da rectificação dos erros materiais com previsão no artigo 614.º do CPC. Defende que o vício em causa (violação do dever de fundamentação) não poderia ser sanado nos moldes em que o foi por já se ter esgotado o poder jurisdicional do tribunal – artigo 613.º, n.º 1 do mesmo código.
Mais reitera a recorrente não ter igualmente o tribunal especificado “de forma clara e inequívoca, quais os factos dados como provados”.
Em despacho proferido em 09/03/2022, veio a Mmª. Juíza a quo referir ter o tribunal actuado ao abrigo do disposto no art.º 617.º, n.º 2, em conjugação com o disposto nos artigos 614.º, n.ºs 1 e 2 (que alude à rectificação de inexactidão devida a outra omissão ou lapso manifesto) e 613.º, n.º 2 (supressão de nulidade), todos do CPC.
Vejamos.
Como consta do artigo 613.º do CPC, “1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. 2 – É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.
Já segundo o n.º 1 do artigo seguinte, poderá a sentença ser corrigida (por requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz), nos casos em que: a) for omissa quanto ao nome das partes; b) for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º; ou c) contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.
Como referido por Alberto dos Reis[10], decorre do princípio da extinção do poder jurisdicional, que o juiz “não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível. Ainda que logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção que errou, não pode emendar o suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível.”. Mas, prossegue, “isso não obsta a que o juiz continue a exercer no processo o seu poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida. O juiz pode e deve resolver as questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerçam influência na sentença ou despacho que emitiu (…).
Significa isto que, mesmo que a sentença não tenha transitado em julgado, está o juiz impedido de a modificar, modificação essa que apenas poderá ocorrer por via de recurso (se admissível) ou mediante incidente de reforma ou arguição de nulidade (artigos 615.º, n.º 4 e 616.º do CPC).
Visa-se, no essencial, assegurar a estabilidade das decisões dos tribunais, evitando-se a insegurança e incerteza que, fora do quadro do regime dos recursos, resultaria da possibilidade de ser alterada a decisão.[11]
Do acabado de expor decorre não ser o enunciado princípio da intangibilidade da decisão absoluto, sendo lícito ao juiz “retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença”, nos termos dos artigos 614.º e ss.
Os erros materiais aqui em causa são os que resultam de lapsos manifestos, ostensivos – quando, pela simples leitura do texto se detecta a sua existência e se entenda o que o juiz pretendia dizer –, cuja rectificação não acarreta qualquer alteração substancial (essencial) do conteúdo da sentença (apenas explicitando ou corrigindo o que já resultava da mesma).[12]
Sendo intentado recurso, a rectificação de erros materiais ou de inexatidões só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito, “somente quanto à parte inovatória decorrente da retificação[13] – n.º 2 do artigo 614º.
Aqui chegados, dir-se-á que assiste razão à recorrente quando defende que a Mmª. Juíza a quo não poderia rectificar a sentença ao abrigo da previsão do artigo 614.º, porquanto não se está perante uma situação enquadrável no seu n.º 1, não se podendo qualificar a omissão de elencar os factos não provados como correspondendo a um erro material.
Porém, é já o caso enquadrável na previsão do n.º 2 do artigo 613.º, do qual a julgadora se socorreu.
A isto acresce que o artigo 617.º prescreve expressamente que, sendo a nulidade da sentença suscitada no âmbito de recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade desse mesmo recurso (n.º 1) e, suprindo-a, considera-se o despacho proferido como complemento e parte integrante da mesma sentença, ficando o recurso interposto a ter como objecto a nova decisão (n.º 2).
Por tal motivo, se assim suceder, pode o recorrente alargar o âmbito do recurso interposto, em conformidade com a alteração sofrida pela sentença (n.º 3).
Foi precisamente o que sucedeu na situação aqui em causa – o juiz da 1.ª instância supriu a nulidade e a recorrente, invocando expressamente o n.º 3 do artigo 617.º, veio requerer o alargamento do âmbito do recurso por si intentado para apreciação da rectificação efectuada na sentença.
O facto de, no despacho proferido pelo tribunal recorrido em 21/01/2022, se ter referido estar em causa um “lapso material” e de ter invocado o artigo 614.º, de nada releva, tanto mais que o n.º 2 do artigo 613.º prevê o suprimento de nulidades.
Por fim, há a realçar que o despacho proferido e que passou a integrar a sentença, em nada alterou o decidido (mantendo-se, no restante, a sentença inalterada).
E, se é certo que não teria o tribunal a quo que transcrever novamente a sentença (agora com a inserção da factualidade não provada e respectiva motivação), não se vislumbra que de tal procedimento resulte alguma censura, do mesmo não tendo os interesses da recorrente sido prejudicados.
Falece, pois, nesta parte, a pretensão recursória.
Da ampliação da matéria de facto
Prescreve o n.º 1 do artigo 640.º do CPC: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No concerne à especificação dos meios probatórios, acrescenta o seu n.º 2: “Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Assim, segundo Abrantes Geraldes[14], caso esteja em causa a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, impõe-se, em síntese, que o recorrente: a) indique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões); b) especifique, na motivação, os meios de prova que determinam uma decisão diferente (que constem do processo ou que nele estejam registados); c) tratando-se de prova gravada, indique com exactidão as passagens relevantes da gravação (e, se assim o entender, transcreva os excertos que julgue oportunos); e d) deixe expresso, na motivação, a decisão que entende que deverá ser proferida sobre as questões impugnadas.
Pode, ainda, o recorrente requerer à Relação a renovação da produção de certos meios de prova ou mesmo a produção de novos meios probatórios – artigo 662.º, n.º 2, als. a) e b) do CPC.[15]
Por seu turno, o recorrido, em sede de contra-alegações, deverá (se assim o entender, uma vez que a não apresentação de contra-alegações não acarreta quaisquer efeitos cominatórios) argumentar quanto ao seu modo de avaliação dos meios de prova produzidos (e, em caso de gravação, indicar igualmente as exactas passagens em que se funda ou mesmo transcrever os depoimentos na parte que lhe interessa).
Continuando a citar o mesmo Conselheiro[16], deverá ter lugar a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto – sem que, previamente, haja lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento - se se verificar: a) falta de conclusões sobre tal impugnação – artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, al. b), ambos do CPC; b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados – artigo 640.º, n.º 1, al. a); c) falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios; d) falta de indicação exacta, na motivação, das passagens de gravação em que se funda; e) falta de decisão expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.[17]  
Vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio da livre apreciação da prova – artigo 607.º, n.º 5 do CPC – “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.-, o tribunal sustenta a sua decisão (relativamente às provas produzidas), na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (força probatória plena dos documentos autênticos – artigo 371.º do CCivil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
Previamente à pronúncia quanto à concreta impugnação da matéria de facto apresentada pela recorrente (a qual respeita os requisitos previstos pelo artigo 640.º do CPC), importa realçar os seguintes aspectos:
- na reapreciação da decisão de facto, cumpre à Relação observar o que dispõe o artigo 662.º do CPC, devendo formar a sua própria convicção, o que ocorre através da avaliação de todas as provas carreadas para os autos, ou seja, em face dos meios probatórios que estão disponíveis (sem que esteja sujeita às indicações dadas pelo recorrente e pelo recorrido),
- vigora no presente incidente de qualificação da insolvência o princípio do inquisitório, pelo que a decisão pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes, se a prova produzida assim o impuser (designadamente face ao que consta do relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE e demais documentação carreada para os autos) – artigo 11.º do CIRE e artigos 411.º e 413.º do CPC ex vi artigo 17.º do CIRE,
- consigna-se que se procedeu à audição de toda a prova gravada.
Cumpre decidir.
No caso, a recorrente sustenta que:
- A quantia que foi paga pela sociedade “LC …, Lda” teve como único destino o pagamento aos credores da sociedade – ao espaço comercial onde a insolvente laborava (45.000€) e ao irmão da gerente que, “ao longo dos anos foi-lhe prestando auxílio financeiro” para “fazer face às despesas da Sociedade Insolvente” (60.000€);
- Ter a gerente liquidado, a título pessoal, dívidas da sociedade no montante total de 273.351,90€.
Porém, por reporte à prova produzida, concluiu requerendo apenas o aditamento da seguinte factualidade:
1. O produto do negócio de compra e venda, realizado entre a Sociedade Insolvente e a Sociedade LC …, LDA., foi utilizado, apenas, para a liquidação de dívidas já vencidas da Sociedade Insolvente;
2. FM, era Credor da Sociedade Insolvente;
3. A Sociedade Insolvente devia ao Credor FM a quantia de €60.000 (sessenta mil euros);
4. O cheque bancário n.º 00296751, foi entregue, em representação da Insolvente, por CM, ao seu irmão, FM para que este liquidasse a quantia que se encontrava em dívida de €60.000 (sessenta mil euros).;
5. O cheque bancário n.º 00296751, no valor de € 100.000 (cem mil euros), é um cheque bancário que, como tal, foi emitido pelo Banco Santander Totta, S.A., à ordem de FM, a mando de CM, pelo facto de a própria, tal como a Insolvente, se encontrar inibida do uso de cheques.;
bem como:
6. CM, Sócia da Insolvente viu-se obrigada a vender a casa de morada de família, para fazer face às dívidas da Insolvente.”;
7. CM, assumiu, pessoalmente, o pagamento da quantia de €68.666,00 (sessenta e oito mil e seiscentos e sessenta e seis euros), respeitantes a obras nas instalações do Centro Comercial Alegro, sito em Alfragide, onde a Insolvente laborava.;
8. CM e o seu marido assumiram, pessoalmente, enquanto Executados, o pagamento da dívida exequenda da Insolvente, no valor de €66.685,90 (sessenta e seis mil e seiscentos e oitenta e cinco euros e noventa cêntimos), no âmbito do processo executivo n.º 17600/11.6YYLSB, que correu termos no 2.º Juízo de Execução de Lisboa, 1.ª secção, que foi extinto pelo seu pagamento.
Será, então, com relação a este conjunto de factos que a impugnação terá de ser apreciada e decidida (já que, quanto ao demais alegado, não foram indicados os meios de prova que justificariam uma diferente decisão).   
Sustenta a recorrente tal factualidade no depoimento prestado por FM em sede de audiência final (cujas passagens de gravação foram indicadas, exarando-se as mesmas por escrito) e na prova documental que foi carreada para os autos.
Na Resposta do Ministério Público defende-se a improcedência da impugnação, apenas se anuindo à alegação de não ter sido a testemunha FM quem apôs o seu nome no cheque de que foi beneficiário.
Analisemos, individualmente, cada um dos factos cujo aditamento a recorrente pretende.
No que concerne ao primeiro ponto indicado (O produto do negócio de compra e venda, realizado entre a Sociedade Insolvente e a Sociedade LC … LDA., foi utilizado, apenas, para a liquidação de dívidas já vencidas da Sociedade Insolvente) dir-se-á resultar à evidência que o mesmo encerra, em si mesmo, um juízo conclusivo, o qual teria de estar espelhado em factos concretos (nunca podendo a afirmação em causa constituir, de per si, um facto) - a decisão da matéria de facto deverá estar expurgada de afirmações genéricas e conclusivas, como resulta do n.º 4 do artigo 607.º do CPC.
Quanto aos segundo e terceiros pontos (FM, era Credor da Sociedade Insolvente; A Sociedade Insolvente devia ao Credor FM a quantia de €60.000 (sessenta mil euros), importa realçar que, para além de FM nunca ter sido identificado como sendo credor da insolvente (o que até se poderia compreender caso o mesmo tivesse sido ressarcido do putativo crédito em momento anterior ao da apresentação à insolvência), o certo é que dos elementos contabilísticos da sociedade nada consta nesse sentido, sendo que igualmente nada foi junto que o corroborasse (tais como documentos de confissão de dívida, por exemplo). Acresce que, não obstante o mesmo, aquando do seu depoimento, referir que emprestou 60.000€ à irmã em virtude dos “azares” que a mesma teria tido com o seu negócio das joias, para além de, insiste-se, nenhum comprovativo ter sido carreado para os autos que permitisse concluir nesse sentido, também não foi adiantado/concretizado em que circunstâncias tal teria sucedido (o depoimento relevou-se genérico, sem menção ao número de empréstimos, datas, razões que lhes teriam estado subjacentes, mesmo que não fosse exigível que o fizesse com inteira precisão).   
Passando agora para os quarto e quinto pontos (O cheque bancário n.º 00296751, foi entregue, em representação da Insolvente, por CM, ao seu irmão, FM para que este liquidasse a quantia que se encontrava em dívida de €60.000€; O cheque bancário n.º 00296751, no valor de €100.000 (cem mil euros), é um cheque bancário que, como tal, foi emitido pelo Banco Santander Totta, S.A., à ordem de FM, a mando de CM, pelo facto de a própria, tal como a Insolvente, se encontrar inibida do uso de cheques), também a pretensão da recorrente não poderá proceder.
Para além de constar já da sentença, no facto provado n.º 10-3 que a quantia de 100.000€ creditada na conta bancária da sociedade insolvente foi depois debitada através do referido cheque do qual foi beneficiário FM (pelo que, seria uma redundância voltar a referi-lo), como já defendemos, não foi produzida prova consistente de tal entrega ter visado liquidar alguma “dívida da sociedade” para com o mesmo (designadamente pelo valor de 60.000€).
Igualmente nenhuma prova foi produzida quanto à invocada inibição de uso de cheques pela insolvente e pela respectiva sócia gerente, restrição essa que sempre se mostraria, no caso, destituída de qualquer relevância já que, mesmo que assim sucedesse, não estaria inviabilizada a movimentação da conta bancária da sociedade (como, aliás, aqui, aconteceu).
Quanto à menção de tal cheque ter sido emitido “a mando de CM”, igualmente carece de qualquer efeito útil, porquanto, como é consabido, o cheque bancário é emitido precisamente enquanto meio de pagamento requisitado pelo cliente. No caso, como resulta da prova produzida, estamos perante um cheque bancário nominativo (como se afere pela própria leitura desse título, cuja cópia foi junta aos autos pelo banco Santander em 06/05/2019).
É certo que, em sede de motivação da decisão de facto, refere-se que FM teria afirmado ter sido o próprio a apor o seu nome no cheque (o que não corresponde à verdade, como se pode constatar pela audição do registo gravado do seu depoimento). Porém, mau grado assim se ter referido, a verdade é que não foi transposta para a factualidade provada tal menção (pelo que a mesma se revela inócua).
Sem prejuízo de assim ser, por uma razão de rigor, julgamos ser de alterar a redacção do facto n.º 10-3, quanto à autoria do preenchimento do cheque.
Mas será também de a modificar no sentido de concretizar a data na qual ocorreu o débito da conta da insolvente, porquanto resulta do extracto bancário junto com o requerimento apresentado pelo AI em 21/03/2019 (o qual não mereceu qualquer oposição), que tal débito se concretizou no dia 08/10/2018.
Assim, o facto n.º 10-3 passará a ter o seguinte teor:
No entanto, a quantia de 100.000,00€ (cem mil euros) que foi creditada na conta bancária da sociedade insolvente em 03 de Outubro de 2018, foi debitada no dia 8 do mesmo mês através de cheque bancário, emitido e preenchido pelo Banco Santander Totta, SA, com o n.º 00296751, sendo o beneficiário dessa quantia FM
Tratando, de seguida, do ponto 6.º invocado pela recorrente (CM, Sócia da Insolvente viu-se obrigada a vender a casa de morada de família, para fazer face às dívidas da Insolvente), uma vez mais, se terá de afirmar estar em causa uma alegação conclusiva e destituída de qualquer suporte, sendo que poderia a mesma ter sido facilmente comprovada, designadamente pela junção da competente escritura pública de compra e venda (nada se ter provou, não sendo suficiente o facto de a testemunha FM o ter afirmado quando ouvido em audiência final). Carece, assim, de fundamento a sua inclusão no rol dos factos provados.
Já o ponto 7 (CM, assumiu, pessoalmente, o pagamento da quantia de €68.666,00 (…), respeitantes a obras nas instalações do Centro Comercial Alegro, sito em Alfragide, onde a Insolvente laborava), embora por motivo não totalmente coincidente com o acabado de defender, também não poderá ser transposto para a matéria de facto provada.
A única “prova” produzida quanto ao pagamento de tais despesas pela proposta afectada CM consiste na emissão do documento n.º 1 que a mesma juntou com a oposição que deduziu. Contudo, correspondendo o mesmo a um simples orçamento, sem qualquer valor fiscal (orçamento n.º 17271, emitido em 15/10/2007 e com validade por 30 dias), que nunca seria susceptível de fazer prova do alegado pagamento pela sócia gerente (seja ou não a expensas da mesma), o invocado pagamento não tem qualquer reflexo na contabilidade da sociedade.
Por fim, o último ponto – n.º 8 (CM e o seu marido assumiram, pessoalmente, enquanto Executados, o pagamento da dívida exequenda da Insolvente, no valor de €66.685,90 (sessenta e seis mil e seiscentos e oitenta e cinco euros e noventa cêntimos), no âmbito do processo executivo n.º 17600/11.6YYLSB, que correu termos no 2.º Juízo de Execução de Lisboa, 1.ª secção, que foi extinto pelo seu pagamento) terá de merecer tratamento idêntico ao dado ao anterior.
Desconhece-se qual a origem deste processo executivo e, como tal, se o mesmo se reporta ou tem conexão com a sociedade insolvente.
Para além de tal processo apenas ter sido invocado pela gerente/proposta afectada em sede de oposição ao incidente de qualificação (pois, no relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, nenhuma alusão é feita a essa execução, mas unicamente aos processos de execução fiscal n.º 3522201801183990 e n.º 35222018060000116361), o único elemento probatório carreado para os autos é a declaração junta como doc. 2 à oposição e, de tal documento, nada se extrai de relevante para a matéria em discussão (para além de, feita a sua leitura, nem sequer ser possível concluir pela realização de qualquer pagamento pela gerente).[18]
Resulta, assim, do exposto, não ter sido produzida prova minimamente consistente quanto à matéria que a recorrente pretende ver aditada (o depoimento de FM não é susceptível de o corroborar e a contabilidade da insolvente, bem como os demais documentos apresentados, não espelham tal factualidade), não se vislumbrando que a 1.ª instância tenha desconsiderada a prova produzida no que se refere à factualidade impugnada, não se impondo qualquer censura à convicção da julgadora que decidiu nos moldes constantes da sentença recorrida - sendo que também esta Relação analisou a documentação carreada para os autos e procedeu à audição integral da prova gravada.
Para além de a impugnação da matéria de facto não determinar que a parte se possa substituir ao julgador, igualmente não se vislumbram razões para censurar a forma pela qual foi efectuada a indagação dos factos, sendo que a justificação adiantada para sustentar a convicção da Mmª. Juíza a quo, afigura-se-nos coerente e perceptível, estando perfeitamente consentânea com a prova produzida nos autos.
Nesta conformidade, apenas se modifica a redacção do facto provado n.º 10-3 (nos termos supra descritos), indeferindo-se, quanto ao demais, a impugnação aduzida.
Sem prejuízo do acabado de decidir, tendo por base o constante do processo, nos termos previstos pelos artigos 607.º, n.º 4, 2.ª parte, 662.º, n.º 1 e 663.º, n.º 2, todos do CPC, considerando o relatório elaborado pelo AI para efeitos do artigo 155.º do CIRE e os documentos junta aos autos (que não mereceram oposição), aditam-se os seguintes factos provados:
20. No processo de insolvência, foram reclamados créditos pelo montante global de 181.574,48€, sendo que, da lista de créditos reconhecidos consta um montante global de 156.428,14€, sendo, 2.016€ de natureza privilegiada – 1.984,66€ pela Autoridade Tributária Aduaneira – Serviço de Finanças de Lisboa 4 (IRC e IVA); e 31,34€ pelo Instituto de Segurança Social, IP – Centro Distrital de Lisboa (contribuições e juros de mora) - e os restantes 179.558,48€ de natureza comum – 2.733,90€ pela Autoridade Tributária Aduaneira – Serviço de Finanças de Lisboa 4  (1.752,26€ de IRC e IVA e 981,64€ de custas); 30.448,93€ pelo Banco BIC Português, SA (livrança); 2.527,20€ pelo Banco Santander Totta, SA (saldo devedor da conta de depósitos à ordem n.º 0003.32094815020); 700,40€ por “***, Lda” (fornecimentos); 5.046,57€ por “***, Lda” (fornecimentos); 30.063,64€ por “***, Lda” (fornecimentos); 1.161,90€ por “***, Unipessoal, Limitada” (contrato de prestação de serviços – facturas vencidas e não pagas); 687,59€ pelo Instituto de Segurança Social, IP – Centro Distrital de Lisboa (contribuições e juros de mora); 15.670,88€ por “S …, Lda” (fornecimentos); 1.752,70€ por “***, Lda” (contrato de compra e venda – facturas vencidas e não pagas); e 63.618,35€ por “***, Lda” (injunção- facturas vencidas e não pagas) - cfr. doc. junto com o requerimento do AI apresentado em 17/01/2019;
21. Da lista de créditos não reconhecidos apenas constam doze credores - “***, Lda”, “***, Unipessoal, Lda”, “***, Unipessoal, Lda.”, “***, Lda”, “*** Lda”, “***, Lda”, “***, Lda”, “***, Lda”, “***, Lda”, “***, SA”, “***, SA” e “***, Lda” - com relação aos quais não foi possível ao AI apurar a existência dos respectivos créditos.
22. O veículo automóvel apreendido para a massa insolvente foi alienado pelo preço de 2.100€ a “***, Sociedade Unipessoal Limitada” – cfr. auto de adjudicação datado de 05/07/2019, constante do Apenso de Liquidação (Apenso C);
23. Das facturas emitidas pela sociedade insolvente em nome da sociedade “LC …”, consta: a) fac. 01C/9: “Expositores”, valor total 25.674€; b) fac. n.º 01C/7: “Vários produtos conforme inv anexo”, valor total 119.326€ - cfr. doc. n.º 4 junto com o requerimento do AI apresentado em 17/01/2019;
24. Contra a sociedade insolvente foram intentados dois processos de execução fiscal – Proc. n.º 3522201801183990 (Serviços de Finanças de Oeiras 2) e Proc. n.º 35222018060000116361 (Serviços de Finanças de Oeiras 2).
25. A sociedade insolvente estava formalmente organizada de acordo com os preceitos legais (NCRF-PE) até Outubro de 2018, tendo entregue as respectivas declarações fiscais e procedido ao depósito de contas até ao ano de 2017.
26. Da análise financeira dos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, resulta o seguinte:
 (……)
27. Do exercício do ano de 2018, apenas existe o Balancete Analítico (provisório) do mês de Outubro  – cfr. doc. n.º 5 junto com o requerimento do AI apresentado em 17/01/2019, para o qual se remete e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Decidida que se encontra a impugnação da decisão da matéria de facto, passemos a conhecer das questões suscitadas pela recorrente em termos de Direito.
*
Da verificação do preenchimento dos pressupostos considerados para a qualificação da insolvência como culposa
O incidente de qualificação constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que determinaram a situação de insolvência e se as mesmas foram puramente fortuitas ou correspondem, pelo contrário, a uma actuação negligente ou fraudulenta do devedor.
O artigo 185.º do CIRE consagra, assim, dois tipos de incidentes de qualificação da insolvência - culposa ou fortuita.
Pelo AI, em cumprimento do disposto no artigo 188.º, n.º 1 do CIRE foi proposta a qualificação da insolvência da sociedade “CMR … Lda” como culposa, enquadrando-a no artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, als. d), f), h) e i) do CIRE.
Também a credora “S …, Lda” requereu a qualificação culposa da insolvência - invocando o preenchimento das previsões do artigo 186.º, n.º 2, als. a) a e), h) e i), e n.º 3, al. b) – e o Ministério Público se pronunciou no mesmo sentido – nos moldes defendidos pelo AI.
Instruída e julgada a causa, o tribunal recorrido proferiu sentença pela qual veio a corroborar a posição consensualmente defendida, qualificando, assim, a insolvência como culposa, por entender que a mesma se subsume às previsões indicadas pelo AI.
Prescreve o n.º 1 do artigo 186.º que “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
São, pois, requisitos da insolvência culposa:
a) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores (tanto de direito, como de facto), nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
b) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); e
c) o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
Como recentemente referido em acórdão da Relação do Porto de 22/09/2022 (Proc. n.º 2367/16.0T8VNG-H.P1, relator Filipe Caroço), «O acórdão da Relação do Porto de 12.10.2012 é lapidar na análise da culpa, ao referir que “o que se qualifica é o comportamento do devedor na produção ou agravamento do estado de insolvência, de modo a que se averigue se existe, à luz da teoria da causalidade adequada, um nexo de causalidade entre os factos por si cometidos ou omitidos e a situação de insolvência ou o seu agravamento, e o nexo de imputação dessa situação à conduta do devedor, estabelecido a título de dolo ou culpa grave. Dolo que, enquanto conhecimento e vontade de realização do facto em causa, pode revestir-se das modalidades de directo, necessário e eventual. Culpa, (stricto sensu) quando o autor prevê como possível a produção do resultado, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação e não toma as providências necessárias para o evitar. Este é o recorte da culpa consciente, já que na culpa inconsciente se enquadram as situações em que o agente, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não chega sequer a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida. Estes os termos em que devem ser entendidas estas noções usadas pelo CIRE (artigo 186º, 1). Nada dispondo em particular sobre essa matéria, tais conceitos devem ser entendidos nos termos gerais do Direito. E, por isso, também repescada a tese da culpa em abstracto consagrada no Código Civil, apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, 2). A norma exige, no entanto, a culpa grave, traduzida em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio, observam, contraposta à culpa leve, vertida na omissão da diligência normal, e à culpa levíssima, correspondente à omissão de cuidados especiais que só as pessoas mais prudentes e escrupulosas observam». E, continua, «Quanto à determinação da pessoa afetada pela qualificação, cada agente tem uma atuação que merece ou não ser objeto de pronunciamento neste tipo de incidente, misto de civil e sancionatório, tendo-se em vista atuações e omissões pessoais, comportamentos e atos pessoais realizados à frente da empresa, venham eles de administradores ou gerentes de facto ou de administradores ou gerente de direito.».
O conceito constante do n.º 1 do artigo 186.º é depois complementado nos dois números seguintes por um conjunto de situações em que a insolvência se considera sempre culposa - n.º 2 -, ou nas quais se presume a existência de culpa grave – n.º 3.
Atendendo que, na presente instância recursória, apenas está em discussão a verificação (ou falta dela) das circunstâncias previstas nas als. d), f), h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, apenas nos cingiremos à sua análise, reportada ao caso concreto.
As circunstâncias previstas neste n.º 2 têm carácter disjuntivo, pelo que bastará a verificação de uma delas para que a insolvência seja qualificada culposa.
Rege este normativo que “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: (…) d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; (…) f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiro, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto; (…) h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º” (a referência para este n.º 2 traduz um manifesto lapso, devendo entender-se tal remissão como sendo para o n.º 3 do artigo 188.º).
Com a entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, de 11/01, a redacção da al. i) deste n.º 2 foi alterada, passando a ter o seguinte teor: “Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º[19]
Por seu turno, consta deste artigo 83.º, para o que aqui releva, que “1 - O devedor insolvente fica obrigado a: a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal; (…) c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções. (…) 3 - A recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa. 4 - O disposto nos números anteriores é aplicável aos administradores do devedor e membros do seu órgão de fiscalização, se for o caso, bem como às pessoas que tenham desempenhado esses cargos dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência. (…)”.[20]
Como refere Menezes Leitão[21], n.º 2 do artigo 186.º contém “uma presunção juris et de jure de insolvência culposa, considerando-a como tal sempre que os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham praticado actos destinados a empobrecer o património do devedor ou incumprido determinadas obrigações legais”; considerando ainda, mais adiante, que “A lei institui … no art. 186.º, n.º 2, uma presunção juris et de jure, quer da existência da culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário”.
Este n.º 2 apresenta, pois, um elenco taxativo de presunções inilidíveis (jure et de jure) de insolvência culposa, de culpa e de nexo de causalidade – cfr. artigo 350.º, n.º 2, in fine, do Código Civil.[22]
É certo que o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 570/2008, publicado no D.R., 2.ª Série, N.º 9, de 14/1/09, considerou ser “… duvidoso que na previsão do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE se instituam verdadeiras presunções … o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico -sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal de situações típicas de insolvência culposa”.
De todo o modo, quer se trate de presunção inilidível de culpa ou de factos-índice, perante a prova de determinados comportamentos dos administradores da sociedade insolvente, há que concluir que a insolvência é culposa, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre as condutas constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
Nessa medida, tratando-se de presunções inilidíveis, e como refere Maria do Rosário Epifânio[23], “quando se preencha algum dos factos elencados no n.º 2 do art.º 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato”.
Já segundo Catarina Serra[24], “Se as als. a) a g) do n.º 2 do art.º 186.º correspondem indiscutivelmente a presunções (absolutas) de insolvência culposa, as als. h) e i) do n.º 2 do art.º 186.º mais parecem ser ficções legais – dado que a factualidade descrita não é de molde a fazer presumir com segurança o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência, que é, a par da culpa, (dolo ou culpa grave), o requisito fundamental da insolvência culposa, segundo a cláusula geral do n.º 1 do art.º 186.º.”. Porém, mesmo com referência às duas últimas alíneas, não defende a ilustre Professora/Conselheira que tenha de ser provado o nexo de causalidade.
Em síntese, poder-se-á concluir que, se, por um lado, a qualificação culposa da insolvência exige sempre, como requisito, uma actuação do devedor que seja causadora da situação de insolvência ou do seu agravamento; por outro lado, verificando-se alguma das circunstâncias previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º tal requisito presume-se verificado e impõe-se a qualificação como culposa da insolvência.
Tecidas estas considerações, importa mencionar que, tal como consta da sentença recorrida, o período temporal relevante para efeitos do n.º 1 do artigo 186.º é o decorrido entre 01/11/2015 e 01/11/2018 (a sociedade devedora apresentou-se à insolvência em 31/10/2018), sem prejuízo de tal período ser extensível até ao momento de elaboração do parecer de qualificação pelo AI para efeitos da circunstância a que alude a al. i) do n.º 2 do artigo 186 (o que sucedeu em 17/01/2019).
Cumpre, então, aferir se a presente situação é subsumível às transcritas alíneas d), f), h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º.
Para tanto importa atender ao que resulta da factualidade assente:
- Em 31/10/2018, a sociedade apresentou-se à insolvência,
- Desde 30/01/2004 que se mostra nomeada como gerente da sociedade a sócia CM,
- Em 01/10/2018, a sociedade insolvente e a sociedade “LC” firmaram um “negócio”, através do qual esta adquiriu àquela “diversos objectos comercializados por aquela no âmbito da sua actividade”, tendo o referido preço sido pago pela segunda à primeira através de dois cheques bancários, com os n.ºs 7343193326 e 6259783386, nos montantes de 100.000€ e de 45.000€, respectivamente,
- Tais quantias foram efectivamente creditadas na conta com o n.º 0003.32094815020, domiciliada no Banco Santander Totta, S.A., titulada pela sociedade insolvente,
- A quantia de 100.00€ que foi creditada na conta bancária da sociedade insolvente em 03/10/2018 foi no dia 8 do mesmo mês debitada através do cheque bancário com o n.º 00296751, sendo o beneficiário dessa quantia FM,
- A contabilidade da sociedade insolvente era feita pelo Contabilista Certificado V,
- As facturas inerentes ao aludido negócio - facturas n.ºs 01C/9 e 01C/7, ambas de 01/10/2018 -, não se encontravam reflectidas nos elementos contabilísticos da sociedade insolvente, o que só aconteceu após contacto com o Contabilista Certificado da mesma,
- O pagamento de tais facturas não foi reflectido na contabilidade da insolvente,
- O AI teve conhecimento da existência do referido negócio através de consulta ao Portal “E-Factura” (Portal das Finanças), no qual as facturas se encontravam espelhadas,
- Aquando da apresentação à insolvência não foi referida a celebração do negócio da sociedade insolvente com a sociedade “LC, Lda”,
- O AI apenas apreendeu à ordem da Massa Insolvente o veículo automóvel com a matrícula ..-..-TC, da marca BMW, modelo 3 Series (346K), o qual foi alienado pelo valor de 2.100€,
- Os autos foram encerrados em 18/03/2021 por insuficiência da massa,[25]
- Na contabilidade da sociedade insolvente figurava o montante de 402.984,91€, referente a “activos líquidos”,
- Também a conta de “activos fixos tangíveis” apresentava um saldo líquido de 35.267,39€, o qual se reporta a benfeitorias realizadas no espaço comercial que era ocupado pela sociedade insolvente, cujas depreciações não estavam contabilizadas (nos períodos analisados pelo AI),
- Não obstante a sociedade insolvente apresentar um saldo (devedor) nas contas de “depósitos à ordem” no montante de 74.653,98€ e um saldo (credor) também nas contas de “depósitos à ordem” no montante de 67.852,24€, as contas bancárias encontram-se saldadas,
- Da contabilidade da sociedade insolvente resulta a existência de um crédito sobre a sócia CM, no montante de 212.377,70€,
- Da mesma contabilidade resulta a existência de dívidas para com fornecedores, bancos e Estado em montante superior ao por estes reclamado, como resulta do teor dos factos n.º 20, 21 e 26,
- Com relação ao exercício do ano de 2018, a contabilidade da sociedade insolvente apenas dispõe do balancete geral (provisório) a que se alude no facto n.º 27,
- Desde a data da declaração de insolvência até à data da elaboração do parecer de qualificação pelo AI, a colaboração da parte da sócia gerente foi praticamente nula, não tendo a mesma esclarecido quais os contornos do negócio efectuado entre a sociedade insolvente e a sociedade “LC …, Limitada”.
Na sentença recorrida, defendeu-se:
“(…) a conduta da gerente conforme descrito nos factos provados subsume-se á al. d) – disposição de bens da sociedade a favor da LC …; fez do crédito do devedor uso contrário ao interesse do mesmo já que o dinheiro saiu da sociedade para a esfera do irmão- al. f) ; a contabilidade denotava as irregularidades que se espelham na factualidade provada- al. h) e segunda parte da al. i) –falta de colaboração com o Administrador de Insolvência –todos do n.º 2 do art.º 186 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
Pelo que além de dispor dos bens da sociedade poucas semanas antes de se apresentar á insolvência, desviou dinheiro da sociedade que deveria ter sido alocado ao pagamento dos créditos dos credores, que reclamaram seus créditos, e pode concluir-se ainda que a gerente da sociedade incumpriu de forma reiterada, os deveres de apresentação à insolvência – o que só fez tardiamente após- e de colaboração até à elaboração do parecer apresentado neste incidente para com o Sr. Administrador de Insolvência, porque lhe omitiu informação.
Não tendo mantido a contabilidade organizada.
Com tais condutas criou ou agravou a situação de insolvência.
Ora, a este propósito a jurisprudência tem vindo a entender que o incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter a contabilidade organizada constitui presunção inilidível da culpa grave da insolvente nos termos do art.º 186/2/h) do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, não sendo contudo suficiente qualquer erro mas exigindo-se que se trate de irregularidade com influência na percepção que a contabilidade transmite quanto á situação patrimonial e financeira do devedor (…). Também que a obrigação de manter a contabilidade organizada integra as situações de falta de elementos contabilísticos, quando essa omissão for relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor (…).
Tendo o legislador no art.º 186 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas previsto um conjunto de presunções iuris et de iure que não admitem prova em contrario (art.º 350/2 do Código Civil) emerge da necessidade de garantir a responsabilização da gerência avaliando com critérios de razoabilidade as decisões pela mesma tomada, regra que abarca os honest mistake e a violação do dever de diligência, mas não já o dever de lealdade, como seja, por exemplo do administrador que se apropria de dinheiro da insolvente quando esta já possuía um capital negativo (…).
Como tal, é de qualificar a insolvência da sociedade como culposa e grave, nos termos dos artigos 185 e 186/2/d), f), h) e i) do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas e em consequência, determinar que a gerente seja afectada por essa qualificação nos termos do n.º 2 do art.º 189 do CIRE.  (…)
A violação do dever de colaboração por parte da gerente indicado da insolvente com o Sr. Administrador da Insolvência, teve consequências no processo de insolvência, nomeadamente, na (im)possibilidade de ressarcir os credores, ainda que parcialmente.
Estava obrigada por lei a entregar ao Sr. Administrador da Insolvência os elementos de contabilidade da insolvente e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos (nos termos do art.º 36/g) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas) e para apresentar os elementos contabilísticos da sociedade, bem como relação de todos os seus credores e de todos os bens. (…)“
Analisemos, em separado, cada uma das invocadas alíneas do artigo 186.º, n.º 2.
Nas alíneas d) e f) estão em causa comportamentos dos administradores e gerentes da insolvente que, afectando a situação patrimonial desta, implicam concomitantemente benefício para o próprio administrador/gerente que os adopta ou para terceiros.
Uma vez que o património da devedora deverá ser afecto à satisfação dos credores, visa-se com estas alíneas evitar que ocorra uma afectação ao benefício ilegítimo dos próprios administradores/gerentes ou de terceiros.
No caso, independentemente da qualificação jurídica do negócio celebrado entre a insolvente e a sociedade “LC …” (não permitindo os elementos constantes dos autos afirmar estarmos perante um contrato de trespasse[26]), dúvidas inexistem de, apenas um mês antes da apresentação à insolvência, ter a primeira transmitido para a segunda os bens a que aludem as facturas juntas aos autos e que integravam a parte mais substancial do seu património (já que apenas veio a ser posteriormente apreendido e liquidado um veículo automóvel[27]) – para além de se desconhecer qual o exacto valor desses bens, designadamente se correspondia ou não ao montante que veio a ser pago.
E, se é certo que, por tal alienação, a adquirente pagou à insolvente um montante total de 145.000€ - através de dois cheques, um no valor de 100.000€ e outro no valor de 45.000€ -, quantia esta que foi efectivamente depositada na conta bancária da sociedade (em 03/10/2018), também é verdade que, para além de as facturas subjacentes a tal negócio, assim como o respectivo pagamento, não terem sido reflectidas na contabilidade da insolvente, passados uns singelos cinco dias (no dia 8 do mesmo mês) foram debitados da mesma conta 100.000€, os quais o foram em benefício do irmão da sócia gerente – FM.[28]
Ora, a quantia que foi paga à sociedade (produto da referida alienação) passou necessariamente a integrar o património da mesma (traduz um bem da insolvente), sendo que inexiste qualquer justificação para que dele se tenha disposto nos moldes descritos e que lograram comprovação (isto é, para que a sócia gerente tenha disposto de tal montante em proveito do seu irmão).
Com efeito, nenhuma prova foi efectuada quanto à existência de algum crédito de FM sobre a sociedade insolvente – o mesmo não consta da lista de credores reconhecidos e não reconhecidos, os elementos contabilísticos da sociedade nada referem nesse sentido e nenhuma outra prova foi carreada para os autos que assim permitisse afirmar. Acresce que, mesmo que se tivesse apurado a existência do invocado crédito de 60.000€ (o que, não sucedeu), sempre ficaria por esclarecer o destino dos restantes 40.000€, bem como por justificar o facto de o mesmo ter sido alegadamente pago com preferência sobre os demais créditos reclamados (alguns dos quais privilegiados), tanto mais face à relação de parentesco existente entre FM e a sócia gerente da insolvente.[29]
Atente-se que, apesar de na sentença recorrida não se ter autonomizado o tratamento a conferir aos restantes 45.000€ que foram pagos pela sociedade “LC …”, também não resulta da matéria de facto qual o destino dado aos mesmos (embora, no seu depoimento, o AI tenha referido que terão sido afectos a dívidas da insolvente, designadamente para pagamento de rendas do estabelecimento no qual a mesma laborava, a verdade é que tal pagamento não se mostra refletido no balancete – impedindo o apuramento quanto ao modo como foi concretamente gasto -, para além de que não seria admissível qualquer tratamento preferencial de determinados credores em detrimento dos demais)[30].
Seja, como for, sempre o destino (injustificado) atribuído à quantia de 100.000€ (montante bastante significativo) foi, sem margem para dúvida, prejudicial para a sociedade e para os seus credores (reduzindo as garantias patrimoniais da insolvente), tanto mais que a empresa encerrou e apresentou-se à insolvência menos de um mês depois e o processo veio a ser encerrado por insuficiência da massa insolvente.[31]
Verifica-se, assim, como aludido na sentença proferida, o preenchimento das circunstâncias previstas nas als. d) e f) do n.º 2 do artigo 186.º.
Vejamos, agora, o preenchimento da previsão da al. h) do mesmo n.º 2.
Esta alínea compreende três situações distintas: a) incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada, b) manutenção de uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade (fraude contabilística); e c) prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
O prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor releva, essencialmente, para esta terceira hipótese, na qual, apesar de existir contabilidade (não falseada), a mesma apresenta irregularidades (sendo que estas últimas poderão ser mais ou menos graves e prejudicar ou não a compreensão da situação do devedor). Na verdade, nas restantes duas hipóteses, salvo raras excepções, tal prejuízo sempre existirá (uma vez que a situação do devedor jamais poderá ser aferida pela contabilidade).
 Como sumariado no acórdão da Relação de Coimbra de 01/06/2020 (Proc. n.º 5831/18.2T8VIS-A.C1, relator Emídio Santos), “(…) «Organizar a contabilidade em termos substanciais» é organizá-la de maneira a que ela mostre fielmente a situação patrimonial e financeira da empresa e os resultados da mesma”.[32]
Também a Relação de Guimarães, no seu acórdão de 10/09/2020 (Proferido no âmbito do Proc. n.º 1373/17.T8CHV.G1, relator Heitor Gonçalves), sumariou: “(…) 3. A contabilidade organizada é um regime fiscal obrigatório para as empresas constituída em sociedades comerciais, que «deve reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes» (cfr. artigo 17º, n.º 3, alínea b), do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas), e cuja execução, segundo o n.º 2 do artigo 123º do mesmo código, exige que «todos os lançamentos devam estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário», e que «as operações sejam registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras». (…) 4. Como refere Luís Brito Correia, «chama-se contabilidade à compilação, registo, análise e apresentação de informações, em termos monetários, sobre operações patrimoniais» (Direito Comercial, I-257), devendo a sua elaboração ser orientada segundo os princípios de clareza e de verdade, por isso implica o arquivo em pastas próprias, por ordem cronológica, de todos os documentos relativos a actos com expressão patrimonial (v.g. compras e vendas, entradas e saídas de caixa e operações bancárias), de molde a permitir às autoridades públicas a verificação da regularidade tributária e o conhecimento pelos sócios da situação patrimonial da empresa, e servindo também «para verificar a regularidade da actuação do comerciante, nomeadamente em caso de falência, tendo em vista o interesse público» (cfr. obra citadas, p. 253).
Já ao nível da doutrina, escreve Pires Cardoso[33], “a contabilidade, através da escrituração, revela ao comerciante a sua situação económica e financeira em determinado momento, os resultados – lucros e perdas de cada exercício. E assim como lhe releva os erros da sua actuação em certos aspectos do seu comércio, permitindo-lhe modificá-la, também lhe mostra os benefícios trazidos pela sua orientação em outros aspectos, animando-o a continuá-la. (…) Mas além disto, a escrituração mercantil é também uma garantia para quem contrata com os comerciantes, pois nela muitas vezes se fundam reclamações das pessoas que se sentem lesadas, e é nos seus lançamentos que vai buscar-se a prova para fazer valer em juízo ou fora dele, essas mesmas reclamações. (…) Mais ainda: A escrituração é também obrigatória no interesse geral do público porque demonstra a maneira de negociar do comerciante, o seu procedimento honesto ou a sua má-fé nas transacções, sobretudo nos casos de falência em que se tem que reconstituir a sua vida mercantil, para averiguar se houve negligência, fraude ou culpa”.
Como ficou provado, na contabilidade da insolvente figurava o montante de 402.984,91€ a título de “activos líquidos” (computo dos montantes contabilizados sob as rubricas total ativo não corrente e total ativo corrente – quadro do facto n.º 26), o que não tem correspondência com a realidade.
Está contabilizado o montante líquido de 35.267,39€ enquanto “activos fixos tangíveis”[34], reportado a benfeitorias realizadas no espaço comercial ocupado pela insolvente – sem que, no entanto, entre 2015 e 2018, tenham sido contabilizadas as competentes depreciações – vide no quadro a que se reporta o facto n.º 26, sob a rúbrica “total ativo não corrente” – tal montante é mencionado com referência aos anos de 2015 e 2016, sendo já de 35.442,01€ no ano de 2017 e de 35.531,76€ no balancete de 2018. Acresce que, tendo o estabelecimento sido encerrado (na própria petição inicial de apresentação à insolvência se refere que o foi a 30/09/2018) e depois despojado de todo o seu recheio em virtude do negócio ocorrido com a sociedade “LC”, nunca em Outubro de 2018 poderia surgir o montante de 35.531,76€ na referida rúbrica.
Não obstante a sociedade insolvente apresentar, na conta 12 - “depósitos à ordem” - um saldo (devedor) de 74.653,98€ e um saldo (credor) de 67.852,24€ - cfr. balancete junto aos autos -, o certo é que as contas bancárias da insolvente encontravam-se todas saldadas (nenhum saldo bancário tendo sido apreendido para a massa insolvente). Acresce que, como foi referido pelo AI, inexiste qualquer conta que apresente um saldo devedor de 6.801,74€ - cfr. quadro a que se reporta o facto n.º 26 (rubrica caixa e depósitos bancários).
Da contabilidade da sociedade insolvente resulta a existência de um crédito sobre a sócia CM, no montante de 212.377,70€ (cfr. quadro do facto 26 – rúbrica sócios; e balancete – conta 27.8.8.001 e 27.8.8.003), que, para além de não assentar em qualquer suporte documental, a própria, em sede de oposição ao incidente, veio negar.
Da mesma contabilidade resulta a existência de dívidas para com fornecedores, bancos e Estado em montante superior ao por estes reclamado, como resulta da conjugação do constante dos factos n.º 20, 21 e 26.
A título de exemplo, veja-se que, no quadro do facto n.º 26, como dívidas ao Estado, em 2018, é indicado um montante global de 37.050,17€[35], como dívidas a fornecedores e outros credores o montante global de 248.710,12€ e como dívidas reportadas a financiamento de curto prazo (CP) o montante global de 131.578,26€ (valores estes que em nada se aproximam dos que foram reclamados no processo e que não têm qualquer suporte justificativo).
Refira-se, ainda, que, pela proposta afectada, na sua oposição, é expressamente referido que nem todas as despesas eram documentadas e contabilizadas (como realçado na sentença recorrida em sede de motivação da decisão da matéria de facto), o que reiterou nos pontos 62 e 66 das alegações de recurso.
Note-se que uma análise mais atenta ao balancete de Outubro de 2018 permite, ainda, extrair as seguintes conclusões: a venda dos bens da sociedade pelo montante de 145.000€ teria obrigatoriamente de estar reflectida na conta 71 (vendas), o que não sucede. Acresce que, da conta 32 (mercadorias), que corresponde ao inventário da sociedade, resulta um montante de 95.161,34€ (o que não poderia existir). E, constata-se igualmente que, na conta 27 (outras contas a receber e a pagar), sob os itens 27.8.8.2 (credores diversos) e 27.8.8.2.003 (CM), foi consignado um saldo credor de 49.838,66€, como que correspondendo a um abatimento à “dívida” da sócia gerente (a putativa dívida de 212.377,70€).  A conjugação de tais elementos indicia, assim, que o pagamento dos 145.000€ terá sido “encapotado” em tais rubricas (95.161,34€+49.838,66€=145.000€), sem qualquer suporte ou correspondência com a realidade.
O acabado de expor traduz, sem margem para diferente interpretação, um conjunto de omissões e irregularidades que assumem extrema relevância, traduzindo um incumprimento que se terá de ter por substancial, desde logo por prejudicar a cabal compreensão da verdadeira situação da sociedade insolvente, não traduzindo a sua realidade económica (patrimonial e financeira) – não lançamento de todas as operações e transacções efectuadas, como sucedeu com a omissão do negócio efectuado com a sociedade “LC” (sendo que, mesmo após a sua transposição para a contabilidade, o montante que por tal sociedade foi pago surge no balancete geral como correspondendo a um crédito ainda por receber); ou a menção a dívidas da sociedade que não vieram a ter qualquer correspondência com os créditos reclamados; entre outras situações.
Não obstante a insolvente denotar, aparentemente, ser possuidora de uma contabilidade organizada de acordo com os preceitos legais (NCRF-PE) – tendo, inclusive, ocorrido entrega das declarações ficais e depósitos de contas até 2017 -,  o certo é que a mesma não reflectia a realidade patrimonial e financeira da empresa (mostrando-se violadora das regras de transparência e autenticidade que a essa contabilidade deverão estar subjacentes), sendo inquestionável que as irregularidades cometidas pela insolvente prejudicaram, de forma relevante, a compreensão dessa mesma realidade.
Como se defendeu no acórdão da Relação de Guimarães de 29/06/2010 (Proc. n.º 1965/07.7TBFAF-A.G1, relatora Rosa Tching), “Ainda que a inclusão, na contabilidade da sociedade insolvente, de um saldo devedor sem existência física, por si só, não seja suficiente para configurar um caso de contabilidade fictícia, tal irregularidade não deixa de traduzir a criação de uma situação patrimonial ilusória, com prejuízo relevante para todos quantos estão interessados e têm o direito de conhecer o estado de saúde económico-financeiro da sociedade devedora e, por isso, de integrar a previsão da alínea h) do n.º 1 do artigo 186.º.”.
As descritas omissões e irregularidades constituem factos objectivos que obstam à percepção da realidade económica da devedora e sempre terão, pelo menos, agravado a situação de insolvência da mesma (agravamento esse que sempre se presumiria).
Encontra-se, pois, verificada a previsão desta alínea.
Resta, por fim, aferir do preenchimento da al. i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
Como decorre do que já anteriormente se consignou quanto a esta alínea, na mesma está em causa o grave incumprimento de deveres legais ou, como Catarina Serra lhes chama, deveres de conduta processual.[36]
No acórdão da Relação do Porto de 11/03/2021 (Proc. n.º 918/13.0TYVNG-D.P1, relator Aristides Rodrigues de Almeida), aludindo-se a esta alínea, pode ler-se: “Do que se trata é de uma opção legislativa de impor aos gerentes de facto e de direito comportamentos marcados pela honestidade, lealdade, lisura e boa fé que contribuam para evitar ou reduzir as situações de insolvência ou, ao menos, verificada esta, contribuam para não obstaculizar o prosseguimento das finalidades do próprio processo de insolvência. Verificadas essas situações, o legislador entendeu penalizar os seus agentes com as consequências próprias da insolvência culposa, associando à sua ocorrência a qualificação da insolvência com essa natureza, ainda que o comportamento não tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento.”
A previsão da al. i) incide, pois, sobre formas de incumprimento que produzem ou podem produzir “efeitos de ocultação” sobre a real situação patrimonial e financeira do devedor, com todos os riscos que tal coenvolve, dificultando ainda uma actuação célere e eficaz do AI. Acresce que a falta ao dever de colaboração pode não resultar de um simples alheamento do processo, de desinteresse ou negligência, mas antes da intenção deliberada de não concorrer para o conhecimento de factos anteriores ao início do processo de insolvência que levariam à qualificação da insolvência como culposa, à luz de qualquer das restantes previsões – neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 70/2012 e o acórdão da Relação de Coimbra de 06/07/2016 (Proc. n.º 682/15.9T8FND-A.C1, relator Fonte Ramos).
O preenchimento desta circunstância fática apenas não se verificará na eventualidade de a proposta afectada provar não a ter praticado (seja por acção, seja por omissão), prova essa que, no caso, não ocorreu.
Para além de, aquando da apresentação à insolvência, não ter sido efectuada qualquer referência à celebração do negócio entre a insolvente e a sociedade “LC” e, consequentemente, se ter omitido o pagamento que pela segunda foi efectuado (o que foi já apreciado anteriormente), importa realçar que a sócia gerente, aqui recorrente, não prestou ao AI quaisquer esclarecimentos referentes a tal negócio (como resulta da factualidade provada).[37]
Atente-se que, em momento algum da oposição, e mesmo em sede de recurso, é contrariado que o AI solicitou os referidos esclarecimentos (o tratamento a dar a esta matéria seria, com efeito, distinto, caso tal alegação tivesse sido trazida aos autos).[38]
A postura da única sócia e gerente quanto ao esclarecimento dos contornos que envolveram o negócio celebrado foi sempre a mesma, assumindo uma posição, não apenas de inércia, mas também de desauxílio (omissão de prestar as necessárias informações e às quais lhe incumbia satisfazer), sendo que, inclusive, aquando da apresentação à insolvência da sociedade, nenhuma menção se efectuou quanto a esse negócio. Na sentença defendeu-se, e bem, estarmos perante um incumprimento com carácter reiterado e, na verdade, não se poderá falar em qualquer acto isolado de incumprimento. Apenas existiu colaboração da sócia gerente/proposta afectada para efeitos da entrega do veículo automóvel que foi apreendido para a massa insolvente.
Acrescente-se que, ao contrário do defendido pela recorrente, a prestação de tais esclarecimentos – origem/contornos do negócio e destino dado ao montante do produto da venda -, não exigiam que a proposta afectada fosse dotada de especiais conhecimentos, designadamente contabilísticos (bastava ter informado qual o negócio levado a cabo entre as sociedades e qual o destino do montante que foi pago). Nem sequer se pode a sócia gerente alhear de tal obrigação, sob a alegação de a mesma incumbir ao contabilista certificado da insolvente, já que este último apenas tem conhecimento do que a mesma lhe transmite, sendo lamentável que tente transferir para o mesmo uma responsabilidade que é da mesma.
Tal omissão de colaboração  assume, aliás, maior gravidade por se tratar de património relevante da insolvente (apenas foi apreendido um veículo automóvel e o processo foi encerrado por insuficiência da massa insolvente), já que está em causa uma quantia monetária elevada, mais ainda face ao montante dos créditos reclamados (foram reconhecidos pelo AI créditos no montante global de 156.428,14€), dessa forma agravando, sem dúvida, não apenas o apuramento do circunstancialismo de facto que conduziu à declaração de insolvência, como a própria insolvência (desde logo face à perda do montante pecuniário correspondente ao produto da venda que devia ter integrado e permanecido no património da sociedade devedora, por forma a ser destinado aos fins da insolvência, nomeadamente ao ressarcimento dos credores da sociedade).
Sobre a circunstância prevista na al. i) do n.º 2 do artigo 186.º já de pronunciou o Tribunal Constitucional, pronúncia essa a que alude o acórdão desta Relação de Lisboa de 18/04/2013 (Proc. n.º 1027/10.0TYLSB-A.L1-2, relator Jorge Leal) e aqui se reproduz por traduzir uma súmula da mesma: “A qualificação da insolvência como culposa, em termos imperativos e inilidíveis, no caso de reiterada falta de colaboração por parte do administrador após o decretamento da insolvência, foi alvo de apreciação pelo Tribunal Constitucional, que não lhe encontrou vícios de desconformidade com a Constituição, nomeadamente à luz dos princípios da igualdade e da proporcionalidade (cfr. acórdão do TC nº 70/2012, de 08.02.2012, consultável no sítio do TC na internet). Após realçar que “insolvência culposa” é uma categoria normativa, a que corresponde um regime próprio, que genericamente se pode caracterizar como punitivo e dissuasor de práticas violadoras de deveres funcionais dos administradores, pelo que há que ajuizar se as formas de incumprimento previstas na alínea i) merecem ou não ser sancionadas com as medidas que têm essa qualificação por pressuposto, ou, dito de outro modo, se elas, para esse efeito, podem ser tratadas como insolvência culposa, sem desconformidade com os princípios da igualdade e da proporcionalidade, o Tribunal Constitucional realçou que no caso da alínea i) está em causa um comportamento posterior ao início do processo de insolvência, acrescentando, no entanto, que “do ponto de vista valorativamente relevante, e no plano funcional dos interesses a tutelar, não há diferença substancial entre prevenir atos geradores da situação de insolvência, caracterizadamente censuráveis e ilícitos (e puni-los, uma vez praticados) e, após essa situação estar criada, prevenir e punir omissões que, para além de dificultarem ou obstaculizarem o regular andamento do processo, podem conduzir a um agravamento da insolvência.” Segundo o TC, “a falta aos deveres de apresentação e de colaboração pode não resultar de um simples alheamento do processo, de desinteresse ou negligência, mas antes da intenção deliberada de não concorrer para o conhecimento de factos anteriores ao início do processo de insolvência que levariam à qualificação da insolvência como culposa, à luz de qualquer das restantes previsões”. “Nessa medida”, acrescenta o TC, “essa norma apresenta uma relevante conexão de sentido com as restantes do n.º 2 do artigo 186.º, posicionando-se, se assim se pode dizer, como “norma de salvaguarda” da efetividade aplicativa daquele regime – o que justificará a sua integração sistemática no preceito.” No que diz respeito ao princípio da proporcionalidade, expende o TC que “tendo-se gerado uma situação de insolvência, já de si lesiva dos interesses creditórios e do comércio jurídico, em geral, é elementar dever dos administradores adotarem uma conduta leal e cooperante, por padrões de exigência qualificada, por forma a darem a sua contribuição (quase sempre indispensável, na fase inicial) para o normal desenrolar dos processos de resolução normativamente previstos e para minorar ou não agravar a afetação daqueles interesses. O incumprimento desse dever expõe-se a um juízo de intenso desvalor, tanto mais que a norma só é aplicável em caso de reiteração dessa conduta, sendo que a recusa de prestação de informações ou de colaboração que não revista forma reiterada “é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa”, nos termos do artigo 83.º, n.º 3, do CIRE.”
Verificada está, uma vez mais, a circunstância qualificadora prevista nesta alínea.
Consequentemente, subscrevemos o entendimento do tribunal a quo quando decidiu pela qualificação culposa da insolvência, nos termos previstos pelo artigo 186.º, n.º 1 e n.º 2, als. d), f), h) e i) do CIRE.
Dos pressupostos de afectação da sócia gerente da insolvente – período de inibição e indemnização aos credores
Tratando-se de insolvência culposa, cabe ao juiz determinar as pessoas que são atingidas pelos seus efeitos – artigo 189.º, n.º 2, al. a), do CIRE.
No caso, o tribunal a quo declarou apenas afectada CM, única sócia e gerente da insolvente – cfr., também, artigo 6.º, n.º 1, al. a) do CIRE.
E, como consequência dessa qualificação, decidiu, ainda:
- declarar a inibição da afetada pelo período de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa – al. c) do n.º 2 (que prevê que o período de inibição pode ser fixado entre 2 e 10 anos),[39]
- condenar a mesma afectada a indemnizar os credores da devedora no montante dos créditos não satisfeitos até às forças do respectivo património – al. e) do n.º 2.
Segundo Carvalho Fernandes e João Labareda[40], aludindo à inibição prevista na al. c), “Revela-se aqui uma atitude de desconfiança quanto à atuação, na área económica, em relação a quem, pelo seu comportamento, com dolo ou culpa grave, de algum modo contribuiu para a insolvência.”
Por tal motivo, como escreve Maria do Rosário Epifânio[41], na decisão, o juiz “deverá ter em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência ou o seu agravamento – a gravidade do comportamento poderá ser aferida em função do preenchimento do n.º 2 ou do n.º 3”.
Também Alexandre Soveral Martins[42] assim o entende – defendendo que, com relação à duração concreta do período de inibição, será a mesma encontrada “tendo em conta vários aspetos relativos à atuação: por exemplo, se há dolo ou culpa grave, se criou ou agravou a situação de insolvência, se foi solitária ou não, se havia autonomia decisória, quais as consequências e sua gravidade.”   
O fundamento material da inibição do insolvente que incorreu em insolvência culposa parece ser a defesa geral da credibilidade do comércio, servindo para afastar deste último os agentes que incorreram em comportamentos censuráveis e cuja actividade pode gerar a desconfiança nos demais agentes e perturbar a actividade comercial. O interesse público do normal funcionamento da economia e do mercado concorrencial justifica, com efeito, a rejeição de comportamentos que, além de serem lesivos dos direitos particulares dos credores, são igualmente prejudiciais para a sã concorrência e para o normal funcionamento do mercado. Daí que o fim último da inibição não seja sancionar o insolvente, mas estabelecer um período de tempo que possa ser dissuasor de comportamentos idênticos, seja do insolvente seja dos demais agentes que ficam prevenidos para as consequências de uma actuação similar – nesse sentido, acórdão da Relação do Porto de 07/12/2016 (Proc. n.º 262/15.9T8AMT-D.P1, relator Aristides Rodrigues de Almeida).
Quanto a esta inibição, a recorrente limita-se a alegar que a sua conduta não assume a gravidade necessária à aplicação daquela, considerando, ainda, ser o seu período manifestamente excessivo. Entende que não se justifica a inibição ou, se assim se não entender, que a mesma deverá ser reduzida para dois anos.
Assim não entendemos.
Face ao que já se referiu quanto à verificação das circunstâncias previstas no artigo 186.º, n.º 1 e n.º 2, als. d), f), h) e i), que nos dispensamos de repetir, associado ao facto de a recorrente ser a única sócia e gerente da sociedade (só a ela competindo gerir o negócio e os destinos da empresa insolvente, razão pela qual era gerente de facto e de direito), e de nada ter a mesma carreado para os autos que pudesse infirmar a decisão tomada quanto à sua responsabilização e afectação pela qualificação (revelando-se a sua conduta, pelo menos, reveladora de culpa grave), subscrevemos o decidido pela 1.ª instância, mantendo-se a inibição nos moldes em que foi fixada.
Resta apreciar o decidido quanto à obrigação de indemnizar prevista na al. e).
Com o previsto nesta alínea, visa-se dissuadir o agente da prática de condutas dolosas ou gravemente culposas que sejam susceptíveis de criar ou agravar a situação de insolvência nas circunstâncias previstas no artigo 186.º, assumindo, como tal, embora não exclusivamente, uma componente sancionatória.[43]
Segundo Carvalho Fernandes e João Labareda, “a condenação segundo o n.º, al. e) constitui um imperativo do tribunal. Se for declarada a culpa, o juiz não tem a faculdade de excluir a responsabilidade do culpado.[44]
No caso, a recorrente insurge-se contra a condenação de que foi alvo, defendendo nas conclusões de recurso que apresentou:
XLVI. No que concerne à indemnização pela Recorrente aos credores da Insolvente, nos termos do art.º 189.º, n.º 2, al. e), o Tribunal a quo condenou-a no pagamento de indemnização, no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património.
XLVII. Estamos em crer que tal indemnização reveste um valor consideravelmente excessivo e não tem em consideração todo o esforço pessoal e financeiro que a Recorrente investiu na Sociedade Insolvente,
XLVIII. A Recorrente encontra-se assolada por sentimentos de tristeza, angústia, mágoa e frustração, pois que, com 62 anos, após uma vida inteira a trabalhar, vê-se sem nada, pois que contraiu empréstimos, endividou-se, viu-se obrigada a vendar a casa de morada de família, tudo na tentativa de reverter a situação financeiramente fragilizada da Insolvente.
XLIX. Face ao exposto, não poderia ter sido a Recorrente condenada no pagamento de qualquer indemnização aos Credores.”
Desde já se dirá que a pretensão de a recorrente se eximir ao pagamento de qualquer indemnização é de todo destituída de fundamento.
Para além de se ter provado factualidade integrante das circunstâncias anteriormente elencadas e que correspondem às als. d), f), h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º, e verificados que estão os requisitos do seu n.º 1 (o que determina a qualificação da insolvência como culposa) - nada tendo a recorrente logrado provar em sentido contrário -, também não se apurou que a sócia gerente tenha, no período relevante, encetado qualquer esforço tendente a evitar a insolvência. Pelo contrário, com a sua actuação culposa, a mesma contribuiu para a situação insolvencial da empresa da qual era a única sócia e gerente, impedindo o ressarcimento dos credores da devedora (desde logo por ter disposto, nos moldes já descritos, do património mais significativo da insolvente – para não dizer mesmo, do único património com valor – e só depois ter ocorrido a apresentação à insolvência).
Inexiste, pois, fundamento/justificação para que a mesma não seja alvo de condenação nos termos decorrentes da previsão do artigo 189.º, n.º 2, al. e).
Contudo, a recorrente invoca ainda que a indemnização em que foi condenada “reveste um valor consideravelmente excessivo e não tem em consideração todo o esforço pessoal e financeiro” que aquela investiu na sociedade insolvente.
Será assim?
À data da prolação da decisão recorrida, resultava da al. e) do n.º 2 do artigo 189.º que, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve condenar as pessoas afectadas “a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios” (sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados). Foi esse o sentido da decisão da 1.ª instância.
Já o n.º 4 do mesmo 189.º estatui que “Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença”. 
Com a entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, de 11/01, a redacção da al. e) foi alterada, sendo a expressão “no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios” sido substituída por “até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respectivos patrimónios.
O cálculo do montante indemnizatório é, pois, distinto nas duas redacções, já que, na actual, prevê-se expressamente que o mesmo possa ficar aquém do montante dos créditos não satisfeitos e que a condenação deverá considerar as forças dos patrimónios dos propostos afectados.
Não obstante assim ser, previamente à Lei n.º 9/2022, e por forma a compatibilizar o que resultava da então redacção da al. e) do n.º 2 com o disposto no n.º 4, já a jurisprudência vinha entendendo que aquela alínea devia ser interpretada como estipulando apenas um limite máximo para a indemnização a fixar (como se mostra actualmente consignado).
Nesse sentido, vejam-se, entre outros, os acórdãos Relação do Porto de 11/03/2021 (já citado) - no qual se pode ler: “Na interpretação que se nos afigura mais conforme ao texto da lei, à natureza da responsabilidade ali prevista e ao princípio da proporcionalidade, a responsabilidade dos administradores não corresponde necessariamente ao montante dos créditos que as forças da massa insolvente não permitirão satisfazer. Esse é apenas o limite da obrigação de indemnizar: os credores não poderão exigir do afectado pela qualificação uma indemnização superior à parte do valor do crédito reclamado e verificado na insolvência que não seja satisfeito pelo produto da massa. (…) deve entender-se que a medida da condenação deve reflectir a gravidade da conduta que determinou a qualificação da insolvência como culposa, ponderando a culpa do afectado à luz do princípio da proporcionalidade. Segundo esse critério, a indemnização deve corresponder ao montante dos danos causados pelo comportamento do afectado que conduziu à qualificação da insolvência” – e de 29/06/2017 (Proc. n.º 2603/15.0T8STS-A.P1, relator Filipe Caroço) – “(…) III – A al. e) do nº 2 do art.º 189º do CIRE deve ser interpretada em termos hábeis quando conjugada com o subsequente nº 4: a indemnização não pode ultrapassar a diferença entre o valor dos créditos reconhecidos e o que é pago aos credores pelas forças da massa insolvente, e também não pode ser desproporcional relativamente à gravidade da situação prejudicial criada pelo afetado na insolvência, aproximando-se do valor dos danos efetivamente causados, sem esquecer que tem também natureza sancionatória.” -, bem como da Relação de Guimarães de 28/03/2019 (Proc. n.º 1266/17.2T8GMR-B.G1, relatora Raquel Baptista Tavares) – “(…) III - Da conjugação do disposto na alínea e) do nº 2 do artigo 189º do CIRE com o teor do n.º 4 do mesmo preceito deve concluir-se que a indemnização aí prevista, e em que deve ser condenado o afetado pela qualificação, terá como limite máximo a diferença entre o valor dos créditos reconhecidos e o que é pago aos credores pela massa insolvente, mas deverá aproximar-se, de forma a salvaguardar a necessária relação de adequação e proporcionalidade, do montante dos danos causados com o comportamento daquele que conduziu à qualificação da insolvência como culposa, sem esquecer também que tem também natureza sancionatória”.
Vejam-se, ainda, os acórdãos do STJ de 22/06/2021 (Proc. n.º 439/14.7T8OLH-J.E1.S1, relator Barateiro Martins), em cujo sumário se consignou” (…) o caso de indemnização consagrada no art.º 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE, será atendendo e apreciando as circunstâncias do caso (tudo o que está provado no processo: o que levou à qualificação e o que o afetado alegou e provou em sua “defesa”) que o juiz pode/deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afetadas. IV - E entre as circunstâncias com relevo para apreciar a proporcionalidade ou desproporcionalidade da indemnização a fixar encontram-se os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afetada (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência): mais estes (os elementos respeitantes à gravidade da ilicitude) que aqueles (os elementos respeitantes ao grau de culpa), uma vez que, estando em causa uma insolvência culposa, o fator/grau de culpa da pessoa afetada não terá grande relevância como limitação do dever de indemnizar, sendo o fator/proporção em que o comportamento da pessoa afetada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização. V - Não perdendo o juiz de vista, na fixação das indemnizações, que a responsabilidade consagrada no art.º 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE (sobre as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa) tem uma função/cariz misto, ou seja, sem prejuízo da sua função/cariz ressarcitório, tem também uma dimensão punitiva ou sancionatória (da pessoa afetada/culpada na insolvência), pelo que a observância do princípio da proporcionalidade não exige que a indemnização a impor tenha que ser avaliada como justa, razoável e proporcionada, mas sim e apenas, num controlo mais lasso, que a indemnização a impor não seja avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável. (…)” – e de 06/09/2022 (Proc. n.º 291/18.0T8PRG-C.G2.S1, relator José Rainho) – “(…) V - A indemnização devida aos credores a cargo do afetado pela insolvência culposa deverá, em princípio e tendencialmente, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir..
Já no acórdão da Relação do Porto de 29/09/2022 (a que já aludimos), pode ler-se: “Pese embora a aparente rigidez da norma da al. e) do art.º 189º, tem sido entendido na jurisprudência e na doutrina, designadamente na sequência do acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/2015 (DR 115/2015, Série-II) dever fazer-se uma interpretação que salvaguarde precisamente o princípio da proporcionalidade. Conjugando o teor das al.s a) e) do n.º 2 e o n.º 4 do art.º 189º, deve considerar-se acolhido no texto legal o entendimento de que na fixação do montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afetado, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa. Extrai-se daquele acórdão do TC: «Esses efeitos jurídicos são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do n.º 2 do artigo 189.º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar todas essas medidas. Não obstante, a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189.º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas colectivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal». Este entendimento não passou despercebido ao legislador que, pela Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro, alterou aquela norma da al. e) (…)”
Também ao nível da doutrina, a questão era já debatida.[45]
Segundo Nuno Manuel Pinto Oliveira[46], a al. e) do n.º 2 do artigo 189.º contém o regime regra, aplicável caso a pessoa afectada nada alegue ou prove sobre a proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência (presume-se que o dano corresponde ao montante dos créditos não satisfeitos, sendo esse o valor máximo a fixar em termos indemnizatórios), enquanto o n.º 4 do artigo 189.º do CIRE contém a excepção, permitindo que a pessoa afetada demonstre a inexistência de proporcionalidade entre o facto e o dano (ou seja, caso a mesma demonstre que o seu comportamento causou um dano inferior, dessa forma logrando ilidir a referida presunção). Concluindo este Professor: “Caso o administrador não alegue ou não prove que o seu comportamento não causou nenhum dano, ou que o seu comportamento causou um dano de montante inferior ao montante dos créditos não satisfeitos, aplicar-se-á (deverá aplicar-se) a alínea e) do n.º 2. O juiz deve condená-lo a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos [n.º 2, alínea e)]. Caso o administrador alegue e prove que o seu comportamento não causou nenhum dano, ou que o seu comportamento causou um dano de montante inferior ao montante dos créditos não satisfeitos, aplicar-se-á (deverá aplicar-se) o n.º 4. O Juiz deverá “fixar o valor das indemnizações devidas” (n.º 4, 1ª alternativa) ou, no caso de tal não ser possível, por não dispor o tribunal dos elementos necessários, “[fixar] os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efectuar em liquidação de sentença” (n.º 4, 2ª alterativa). O administrador deverá ser condenado a indemnizar os credores na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência, e só na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência”.
No caso em recurso, foi o processo de insolvência encerrado por insuficiência da massa insolvente, sendo que, em sede de liquidação (já finda), se obteve apenas a quantia de 2.100€ (referente à venda do único bem apreendido - um veículo automóvel).
Os créditos reclamados e reconhecidos pelo AI (constantes da lista a que alude o artigo 129.º do CIRE) ascendem ao montante global de 156.428,14€, créditos esses que não foram ressarcidos (nem sequer parcialmente).
Ficou provado que a empresa devedora recebeu, pela alienação dos restantes bens que existiam antes de se apresentar à insolvência, o montante de 145.000€ (sendo que não contabilizou o produto desta venda), dos quais 100.000€ a aqui única sócia e gerente/afectada dispôs em benefício ilegítimo de terceiro (seu irmão).
Não se apurou o concreto destino dos restantes 45.000€ mas mesmo que tal quantia se tenha destinado ao pagamento de dívidas da insolvente, sempre isso traduziria uma afectação indocumentada e não contabilizada (por isso ilícita e, no mínimo, grave). Aliás, tal pagamento sempre configuraria uma violação do princípio da igualdade que deve imperar com relação a todos os credores.
A isto acresce que a contabilidade da empresa denotava irregularidades graves, de todo desfasadas da realidade patrimonial e financeira da empresa, sendo que não se poderá deixar de realçar que a aqui afectada era a única sócia e gerente, razão pela qual era só ela quem decidia todas as questões atinentes à insolvente (o que agrava consideravelmente a sua culpa).
 Ao contrário do defendido pela recorrente na motivação do recurso, não se pode dizer que sempre a mesma tenha pautado a sua actuação por critérios de boa fé (aliás, mesmo após a declaração da insolvência, a afectada não prestou a necessária colaboração, levando, inclusive, a que a qualificação como culposa da insolvência o tenha sido também ao abrigo do disposto na al. i) do n.º 2 do artigo 186.º).
Por tais motivos, estando já quantificado o passivo não coberto pelos bens da massa insolvente - o qual corresponde integralmente ao montante dos créditos reconhecidos – e, não obstante ter sido possível apurar que a recorrente causou aos credores um prejuízo concreto de 145.000€ (verba à qual a mesma deu destino contrária aos interesses da insolvência e respectivos credores), julgamos não ser de fixar a indemnização devida aos credores apenas no correspondente a este segundo montante.
Pelo contrário, é nosso entendimento não se revelar, de todo, excessiva ou desproporcional fixar tal indemnização no correspondente ao exacto montante do passivo reconhecido e não satisfeito, não se impondo a sua redução, uma vez que toda a conduta da sócia gerente/afectada não justifica, nem merece, que assim se proceda (refira-se que, não fora a “descoberta” pelo AI das facturas no portal das finanças e nem sequer se teria apurado a celebração do referido negócio e o destino dado a, pelo menos, parte do preço pago pelos bens da empresa).
Aliás, como resulta das alegações de recurso, se, por um lado, a recorrente invoca que o montante indemnizatório fixado se mostra excessivo, por outro lado, não concretiza qual o que reputaria adequado. Mais se dirá que o recurso nem sequer tem por base o computo do dano que a sua conduta causou, mas antes o putativo bom e diligente comportamento da mesma tendente a evitar a insolvência (o qual, diga-se, não logrou provar).
Por tal motivo, também nesta parte, terá o recurso de improceder.
***
IV - DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o presente recurso improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas do presente recurso pela recorrente/afectada, sem prejuízo do apoio judiciário de que a mesma beneficia – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

Lisboa, 22 de Novembro de 2022
Renata Linhares de Castro
Nuno Magalhães Teixeira
Rosário Gonçalves
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[1] Iniciando-se tais alegações nos seguintes moldes:  “CM, Requerida e melhor identificada nos autos de qualificação de insolvência supra indicados, notificada da Douta Sentença ali proferida, a qual qualificou como culposa a insolvência da Sociedade “CMR … Lda”, e, em consequência julgou afetada por tal qualificação a sua sócia gerente, CM , ora Recorrente, declarando-a inibida pelo período de quatro anos e seis meses, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, tendo condenado a mesma, ainda, a indemnizar os credores da Devedora no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património, vem interpor RECURSO DE APELAÇÃO, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos: (…)”, sublinhado nosso.
[2] Enumeração taxativa e que se reporta a vícios formais da sentença ou a vícios relativos à extensão ou limites (negativo e positivo) do poder jurisdicional, vícios estes que não contendem com o mérito da decisão. A existência de algum desses vícios acarreta a anulação da decisão (ao contrário dos vícios materiais, os quais traduzem erro de julgamento e determinam a revogação da decisão).
[3] RUI PINTO, “Os Meios Reclamatórios Comuns na Decisão Civil (artigos 613.º a 617.º do CPC)”, Revista Julgar online, Maio de 2020, pág. 10.
[4] O dever de fundamentação tem, aliás, consagração constitucional – cfr. artigo 205.º do CRP.
[5] Por evidente lapso de escrita, na sentença escreveu-se “integral os Temas da Prova”, sendo inquestionável que o que se pretendia escrever era “integram os Temas da Prova”.
[6] Em termos de fundamentação da matéria de facto, impõe-se ao juiz que particularize os meios de prova utilizados que formaram a sua convicção (com vista à demonstração, ou não, dos factos), indique a relevância atribuída a cada um desses meios de prova e proceda à sua valoração, desse modo explicitando não só a respetiva decisão («o que» decidiu), mas também quais os motivos que a determinaram («o porquê» de ter decidido assim) – nesse sentido, veja-se o acórdão da Relação de Guimarães de 18/01/2018 (Proc. n.º 187/14.5T8PTL.G1, relatora Maria João Matos), disponível para consulta in www.dgsi.pt, como todos os demais que vierem a ser citados.
[7] Como referem ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/PIRES DE SOUSA, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2020, 2.ª edição, reimpressão, pág. 743, “A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa, técnica bem diversa de uma que continue a apostar na mera transcrição de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados, como os que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória (e do anterior questionário). Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, se inscreverem nos temas da prova factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos, a qual deve ser convertida num relato natural da realidade apurada.”.
[8]O importante é que, na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção. (…) Tanto na enunciação dos factos provados como dos não provados, dentro dos temas da prova que foram enunciados ou que porventura foram adicionados posteriormente, o juiz deve assinalar cada um dos factos essenciais que foram alegados no processo por cada uma das partes, de forma a cobrir todas as soluções plausíveis da questão ou questões de direito e evitar que, em sede de recurso de apelação, seja sentida a necessidade de anulação da audiência final para ampliação da matéria de facto (art.º 662º, nº2, al. c), in fine)”, in ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/PIRES DE SOUSA, obra citada, pág. 743.
[9] ANTUNES VARELA, in Manual de Processo Civil, pág. 686.
[10] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1984, págs. 126/127.
[11] Nesse sentido, vejam-se AMÂNCIO FERREIRA, in Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, 8.ª edição, pág. 45, e ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/PIRES DE SOUSA, obra citada, pág. 760.
[12] Como referido no acórdão da Relação do Porto de 07/12/2018 (Proc. n.º 9549/15.0T8VNG-C.P1, relator Augusto de Carvalho), “pode proceder-se à correção da sentença, oficiosamente ou a requerimento, desde que a mesma não implique uma modificação essencial, invadindo o conteúdo do julgamento.”
[13] Cfr. RUI PINTO, obra citada, pág. 9.
No mesmo sentido, CARDONA FERREIRA, in Guia dos Recursos em Processo Civil. Coimbra Editora, 2014, 6.ª Edição, revista e actualizad a, pág. 68: “temos por seguro que, nesta hipótese, o alcance lógico do n.º 2 do artigo 614.º implica que as partes disponham de prazo suplementar (…) para alegarem só quanto à retificação se o não tiverem feito, antecipadamente, nas alegações de recurso, se não deviam contar com a hipótese de correção”.
[14] In Recursos em Processo Civil, Almedina, 6.ª edição actualizada, 2020, págs. 196-198.
[15] Na reapreciação da matéria de facto, por força do disposto no n.º 1 do artigo 662.º do CPC, a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão.
[16] Obra citada (Recursos …), págs. 199-200.
[17] Nesta matéria, vejam-se, entre outros, os acórdãos do STJ de 19/02/2015 (Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator Tomé Gomes) - “(…) enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.”; de 21/04/2016 (Proc. n.º 449/10.0TTVFR.P2.S1, relatora Ana Luísa Geraldes) – no qual se defende que, “servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso”; ou de 29/10/2015 (Proc. n.º 233/09.4TBVNC.G1.S1, relator Lopes do Rego) – aqui se defendendo que, caso a falta de indicação exacta das passagens da gravação não dificulte, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, nem o exame pelo Tribunal da Relação, a rejeição do recurso com tal fundamento constituirá solução excessivamente formal e sem justificação razoável; mais se referindo que o ónus imposto ao recorrente na al. c) do nº 1 do artigo 640.º do CPC exige que se especifique qual a resposta que havia de ser dada em concreto a cada um dos diversos pontos da matéria de facto controvertida e impugnados.
Refira-se, ainda, ser entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do STJ, que o recorrente não cumpre o ónus de especificação imposto no artigo 640.º, n.º 1, al b), do CPC, quando procede a uma mera indicação genérica da prova que, na sua perspectiva, justifica uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal de 1.ª Instância, em relação a um conjunto de factos, sem especificar quais as provas produzidas quanto a cada um dos factos que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, fazendo a apreciação crítica das mesmas – cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 20/12/2017 (Proc. n.º 299/13.2TTVRL.G1.S2, relator Ribeiro Cardoso) e de 05/09/2018 (Proc. n.º 15787/15.8T8PRT.P1.S2, relator Gonçalves Rocha).
[18] A Declaração, datada de 24/07/2013, tem o seguinte teor: “Teresa (…), Advogada, (…), na qualidade de mandatária da Jardins Sottomayor – Imobiliária e Turismo, SA e Cogein SL – Sucursal em Portugal, no processo a correr termos no 2.º Juízo de Execução de Lisboa, 1.ª Secção, sob o n.º 17600/11.6YYLSB, em que são executados CM e J, declara, para os devidos efeitos, que recebeu de X, (…) e seu marido Y (…), o cheque emitido pela Caixa Geral de Depósitos, com o número (…), no valor de €66.685,90 (…), para pagamento da quantia exequenda no processo acima identificado, incluindo honorários e despesas do agente de execução, ficando, assim, extinta a dívida dos mencionados CM (…) e J (…)” (sublinhado da nossa autoria).
[19] A lei entrou em vigor em 11/04/2022, sendo imediatamente aplicável aos processos que se encontrem pendentes – cfr. regime transitório previsto no artigo 10.º, n.º 1.
[20] Conforme referem CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2015, 3ª edição, pág. 681, para que o disposto no n.º 3 do artigo 83.º não entre “em conflito com a al. i) do n.º 2 do art.º 186.º, tem de se entender que o poder de livre apreciação, que o n.º 3 do art.º 83.º atribui ao juiz, não se aplica quando o incumprimento dos deveres de apresentação e de colaboração seja «reiterado». Neste caso, uma vez apurada a reiteração – e só quanto à verificação desta o juiz tem liberdade de decisão -, a insolvência é sempre qualificada de culposa”. No mesmo sentido, veja-se CATARINA SERRA, que, aludindo à expressão “de forma reiterada”, diz que a mesma “transforma o incumprimento que está na base da presunção absoluta num incumprimento qualificado, portanto, diferente daquele que é descrito na norma do art.º 83.º, n.º 3.” – Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2021, 2.ª edição, pág. 146.
[21] In Direito da Insolvência, 3.ª edição, págs. 284/285.
[22] Cfr. CARVALHO FERNANDES, A Qualificação da Insolvência, Themis, Edição Especial, 2005, pág. 81 e ss.; CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, obra citada, pág. 680; e, entre outros, o acórdão do STJ de 15/02/2018 (Proc. n.º 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1, relator José Rainho) e o acórdão da Relação de Lisboa de 11/06/2019 (Proc. n.º 2278/17.1T8BRR-B.L1-1, relatora Maria do Rosário Gonçalves).
[23] In Manual de Direito de Insolvência, 7.ª edição, 2020, pág. 155.
Na mesma obra, a fls. 151, refere esta autora: “Para auxiliar o intérprete, o art.º 186º, depois de definir a insolvência culposa (no seu nº 1), prevê dois conjuntos de presunções : O nº 2 contém um elenco de presunções juris et de jure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular ; por seu turno, o nº 3 prevê um elenco de presunções iuris tantum de culpa grave dos administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular. A opção por esta técnica jurídica justifica-se pela necessidade de garantir uma maior “eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências”, para além disso favorece a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamentos.
[24] Obra citada, pág. 301.
[25] Consta do dispositivo da decisão de encerramento: “1 – Declaro encerrado, por insuficiência da massa insolvente, o presente processo no qual foi declarada a insolvência de “CMR … Lda”, já identificada nos autos. (…) 9- Prossegue o incidente de qualificação com carácter limitado - art.º 232/5 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.”.
[26] Sendo que também o documento junto pela sócia gerente com a respectiva oposição (doc. n.º 3, datado de 18/09/2018 e intitulado “acordo de revogação contratual”) mereceu impugnação por parte do AI e da credora “S … Lda” (por esta última, inclusive quanto à sua genuinidade).
[27] Veículo este que, segundo mencionado no relatório do AI (artigo 155.º do CIRE) também não se encontrava “refletido quer na contabilidade, quer no cadastro do imobilizado da sociedade insolvente”.
[28] As facturas referentes a este negócio (que apenas chegaram ao conhecimento do AI por consulta no portal das finanças E-Factura) só foram lançadas na contabilidade após o AI ter interpelado o contabilista certificado, passando, então, a ficar reflectidas na conta 21 – conta clientes (como resulta do balancete junto aos autos após interpelação do AI). Já o pagamento efectuado ficou por contabilizar, sendo que no balancete surge como sendo um crédito da insolvente (conta 21 – conta clientes), quando deveria constar da conta 12 (depósitos à ordem).
[29] Veja-se que, a existir, sempre tal crédito seria considerado subordinado – artigos 47.º, n.º 4, al. b), 48.º, al. a), e 49.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, al. d), todos do CIRE.
[30] Do extracto bancário da insolvente, junto com o requerimento do AI apresentado em 21/03/2019, resulta que, em 11/10/2018, foi efectuada uma transferência no montante de 33.657,88€ para “ALEGRO A. – G.E.E.D.”, sigla que, muito provavelmente, corresponderá a “Alegro Alfragide – Gestão e Exploração de Centros Comerciais, SA”, ou seja, que se reportará à loja da insolvente (loja essa a que o AI e a proposta afectada aludem nas suas peças processuais). Porém, para além de nenhuma prova ter sido efectuada nesse sentido (a qual não seria difícil de obter), sempre ficaria por apurar o destino da diferença entre as duas verbas (45.000€-33.657,88€=11.342,12€).
[31] Como refere o AI, no seu requerimento (artigos 50.º, 51.º, 52.º e 53.º), “a sociedade insolvente cessou a sua atividade, esvaziando-se de praticamente todos os seus bens ou, pelo menos, os de maior valor -, e, em seguida, apresentou-se à insolvência com uma amostra”, sendo que, em 01/10/2018 (data do negócio, como resulta das facturas), “a sociedade já era devedora perante diversos credores, e não conseguia cumprir com as suas obrigações” No entanto, após ter transferido o seu património para outra sociedade, “ao invés de integrar o produto desse negócio nas contas da sociedade insolvente, afectou-o ao património pessoal de terceiros”, o que “impossibilitou os credores de satisfazerem os seus créditos através do produto da venda daqueles bens” .
[32] Veja-se, igualmente, o acórdão da Relação de Lisboa de 11/12/2019 (Proc. n.º 167/09.2TYLSB-C.L1, relator Rijo Ferreira), cujo sumário se passa transcrever: “I. A contabilidade das empresas, através da escrituração, assume particular importância na medida em que, através das demonstrações geradas pela correlação dos respectivos dados, permite avaliar em cada momento a situação patrimonial e financeira da empresa e o seu comportamento negocial, quer por parte do empresário, quer por parte daqueles que se relacionam com a empresa, quer por parte do público em geral. II. Para que o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada possa ser fundamento de qualificação da insolvência como culposa, nos termos da al. h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, ele tem de ser ‘em termos substanciais”. III. O incumprimento deve considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental” IV. E porque para o efeito em causa o que releva não é tanto a contabilidade enquanto registo dos fluxos financeiros e operações comerciais, mas antes enquanto evidenciação do comportamento negocial do empresário, a violação da obrigação de manter a contabilidade organizada só pode ser tida em termos substanciais quando dessa omissão resulte não ser possível indicar com segurança a causa da insolvência e os seus responsáveis”.
[33] In Noções de Direito Comercial, pág. 114, como citado nos acórdãos da Relação de Lisboa de 23/11/2021 (Proc. n.º 1921/14.9TBFUN-G.1, relatora Manuela Espadaneira Lopes, subscrito pela aqui relatora na qualidade de 2.ª Adjunta, o qual não se encontra publicado), da Relação do Porto de 27/02/2014 (Proc. n.º 1595/10.6TBAMT.A.P2, relator Leonel Serôdio) e da Relação de Guimarães de 12/01/2017 (Proc. n.º 2253/15.0T8GMR-A.G1, relator José Cravo).
[34] Como referem ANTÓNIO RIBEIRO GAMEIRO, NUNO MOITA DA COSTA e LILIANA MARQUES PIMENTEL, in Manual de Contabilidade para Juristas, Almedina, 2019, pág. 296, reportando-se à conta 43 (Ativos Fixos Tangíveis), “Esta conta integra os elementos tangíveis, móveis ou imóveis, que a entidade utiliza na sua atividade económica, que não se destinem a ser vendidos ou transformados, com carácter de permanência superior a um ano. Deve incluir também as benfeitorias e as grandes reparações que sejam de acrescer ao custo daqueles itens.”. Os mesmos autores, a fls. 301, aludindo às depreciações acumuladas (43.8), esclarecem, ainda: “Destina-se a registar, a crédito, as depreciações efetuadas ao longo da vida útil dos itens do ativo fixo fungível, desde o início do seu uso até à sua extinção. (…) O que são as depreciações? Tendo presente que a utilidade dos bens do ativo fixo tangível e intangível não se esgota no ano de aquisição ou produção, antes se repartindo por vários períodos de tempo de acordo com a sua capacidade económica e produtiva. A este período de tempo chama-se vida útil ou vida económica. Porém, os bens ao serem utilizados no período de vida útil, vão perdendo valor. Assim, depreciar (ou amortizar) consiste um registar de forma sistemática a perda de valor de um ativo fixo, ou seja, em repartir o seu custo pelos períodos económicos abrangidos pela sua vida útil.
[35] Do balancete de Outubro de 2018, consta uma dívida a título de IVA no valor de 27.532,60€ (conta 24.3.6) e uma dívida por contribuições à Segurança Social no valor de 5.994,45€ (conta 24.5) - montantes muito superiores aos reclamados.
[36] Obra citada, pág. 145.
[37] Do depoimento do AI em sede de audiência final, resulta que os únicos esclarecimentos que alcançou foram prestados pelo contabilista da empresa, o qual terá referido que se limitava a lançar na contabilidade os documentos que lhe eram entregues pela sócia gerente.
[38] Já no relatório elaborado pelo AI (artigo 155.º do CIRE), o mesmo referia uma “total ausência de colaboração por parte da sócia e gerente da sociedade insolvente – CM -, a qual em momento algum contatou o Administrador Judicial, ou respondeu às suas várias chamadas telefónicas e pedidos de contacto.
Na conclusão XLI do recurso, apenas se refere, em termos genéricos, que a sócia gerente sempre “colaborou com o Sr. Administrador, na medida do que lhe era possível, com as limitações inerentes aos seus conhecimentos, para esclarecimento de questões várias, assim como para a entrega do que lhe foi sendo solicitado”, remetendo para o contabilista certificado da insolvente o ónus de tal obrigação (conclusão XLII).
[39] Nesta parte, escreveu-se na sentença recorrida: “Já no que tange à medida também prevista da inibição para o exercício do comércio e ocupação, em geral de cargos sociais, ponderando os factos apurados, nomeadamente ter-se apurado mais do que um tipo de conduta subsumível ao disposto no art. 186/2 e 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e dado que os actos praticados revelam uma actuação ao arrepio das elementares regras de gestão empresarial, denotando desrespeito por deveres essenciais dos titulares dos órgãos sociais de administração de uma sociedade, o Tribunal entende-se adequado fixar, quanto à proposta afectada o período de inibição em 4 quatro anos e seis meses.
[40] Obra citada, pág. 695.
[41] Obra citada, págs. 160/161.
[42] In Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. I, Almedina, 2022, 4.ª edição revista e actualizada, pág. 582.
[43] Como referido no já citado acórdão da Relação do Porto de 11/03/2021, esta condenação tem a natureza de sanção civil, tendente a responsabilizar os administradores pelos danos que sejam consequência adequada da actuação que conduz à qualificação culposa (“responsabilidade específica dos administradores perante os credores sociais”). Trata-se, na verdade, de uma previsão que vem reforçar a responsabilidade genérica dos administradores, já prevista nos artigos 64.º, n.º 1, al. b) – “Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar (…) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores” - e 78.º, cujo n.º 1 dispõe que “Os gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos“ -, ambos do CSComerciais.
[44] Obra citada, pág. 697.
[45] ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, obra citada, pág. 594, nota 123, pese embora aludindo a casos em que exista mais do que um afectado pela qualificação, resume algumas posições nos seguintes termos: “Nuno Pinto Oliveira, (…) escrevia (…) que «o administrador deverá ser condenado a indemnizar os credores na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência, e só na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência». Catarina Serra (…) também entendia que se deveria atender à «proporção em que o comportamento das pessoas afetadas contribuiu para a insolvência». (…) J. M. Coutinho de Abreu (…) defendia que o juiz teria de fixar o valor da indemnização devida por cada afetado tendo em conta […] eventualmente, o grau de culpa de cada um deles».
O mesmo Professor, a fls. 597, referindo-se aos afectados pela qualificação, escreve: “Não são responsáveis por dívidas de terceiros por terem causado essas dívidas, mas por terem causado ou agravado a situação de insolvência do devedor. Este regime pode ser bastante gravoso para os afetados. A desproporção que possa gerar (entre o grau de culpa na não satisfação dos créditos e a responsabilidade por essa não satisfação) não pode ser de tal ordem que conduza a um juízo de inconstitucionalidade.”.
[46] In Responsabilidade Civil dos Administradores – entre direito civil, direito das sociedades e direito da insolvência, Coimbra Editora, 2015, págs. 217 e 224/225.