ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Sumário

I - Não constitui alteração, substancial ou não substancial, dos factos descritos na acusação, para o efeito da aplicação dos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal a melhor concretização ou explicitação desses factos.
II - Não constitui alteração, substancial ou não substancial, dos factos descritos na acusação, para o efeito da aplicação dos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal a descrição que representa um minus em relação a esses factos.

Texto Integral

Processo nº 1271/20.1T9GDM.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1. No Processo Comum (Singular) nº 1271/20.1T9GDM (do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Gondomar – Juiz 2), foram submetidos a julgamento os arguidos AA, BB, CC, DD e EE, que vinham acusados pelo Ministério Público da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a) e 2, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Código Penal.
2. Realizada a audiência de julgamento, no dia 12.05.2022 foi proferida sentença (constante de fls. 414 a 428 – Refª citius 436605393) onde se decidiu nos seguintes termos (transcrição parcial):
“Parte criminal:
- Absolver os arguidos AA, CC e EE da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos artºs 143º, nº 1, 145º, nº 1, al. a), e 132º, nº 2, al. h), do Código Penal de que se encontravam acusados.
Convolando a incriminação efetuada em sede de acusação:
- Condenar o arguido BB na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros), num total de €1.200,00 (mil e duzentos euros), pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artº 143º, nº 1 do CP.
- Condenar o arguido DD na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de €8,00 (oito euros), num total de €1.600,00 (mil e seiscentos euros), pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artº 143º, nº 1 do CP.
(…)”
3. Não se conformando com o decidido na sentença, dela recorreram os arguidos BB (fls. 445 a 458 - Refª Citius 33074959) e DD (fls. 459 a 472 - Refª Citius 33074936).
Assim, tendo em atenção os respetivos recursos por esta ordem:
3.1. O arguido BB[1] finaliza a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
“I. Da Douta Sentença, ora recorrida, consta, no ponto 5.º dos factos dados como provados que, cerca das 20h00m, quando o Assistente chegava a casa e estacionava o seu veículo automóvel, o arguido BB aproximou-se dele e deu-lhe um soco na face. De seguida envolveu-se numa luta corpo-a-corpo que os fez cair a ambos, continuando no chão a atingi-lo com as mãos.
II. Contudo, a Acusação Pública imputou ao arguido, que este rodeou em semi-circulo o Assistente e, o Recorrente aproximando-se daquele, sem lhe dirigir qualquer palavra, vibrou um soco contra a sua face, no que foi secundado pelo Arguido AA que, em acto contínuo, vibrou diversos socos contra a face de FF, o qual acabaria por cair desamparado no solo.
III. Aí, encontrando-se FF estendido de costas contra o solo, as arguidas CC e EE desferiram diversos pontapés contra o tronco e as pernas de FF.
Quando já se erguia do solo, o arguido DD agarrou FF pelas costas e aplicou-lhe a denominada técnica “Golpe Mata Leão” envolvendo com um dos seus braços o pescoço de FF e puxando-o para trás, privando-o de respirar por breves momentos (…)
IV. Comparando os factos constantes da douta acusação públicas com os factos dados como provados no ponto 5.º da douta sentença, vislumbra-se que estes contêm circunstâncias contemporâneas da alegada prática da agressão física que não foram levadas a cabo no libelo acusatório.
V. Isto é, estamos perante factos novos cujo aditamento consubstancia uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação pública e que alterou a essencialidade da acção alegadamente levada a cabo pelo Recorrente, pois conferiu-lhe uma atuação alargada, mormente quanto às alegadas agressões que este terá praticado contra o Assistente e enquanto este se encontrava caído no solo.
VI. Nada impede que os factos novos, tais como o aqui evidenciados possam ser utilizados pelo tribunal e vertidos na sentença, contudo e conforme decorre do disposto no art. 358.º do C. Processo Penal, o Arguido visados pelos mesmos tem o direito de se pronunciar, querendo, quanto aos mesmos.
VII. O Tribunal recorrido introduziu, na matéria de facto dada como provada, circunstâncias especificas de como a conduta do Recorrente –alegadamente – se terá realizado, pelo que sempre teria de se considerar pela existência de uma alteração não substancial dos factos.
VIII. O Tribunal a quo, ao não dar cumprimento ao art. 358.º do C. Processo Penal, após ou no decurso da audiência, em face da alteração não substancial dos factos, mediante comunicação e concessão de praza para o Recorrente se pronunciar quanto aos mesmos, coartou os meios de defesa destes, resultantes do Princípio do Contraditório e da salvaguarda de uma defesa eficaz.
IX. Pelo que, estamos perante a nulidade de sentença, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 379.º do C. Processo Penal, o que se expressamente se argui, com as legais consequências.
Sem prescindir,
X. Entende o Recorrente que não resultou, da prova produzida em audiência de julgamento, que este tenha cometido o ilícito criminal de que veio condenado.
XI. Isto porque, como decorre da fundamentação da sentença ora recorrida, o Tribunal a quo entendeu dar primazia aos depoimentos das testemunhas da acusação – GG e HH.
XII. Contudo, entende o Recorrente que, conjugando as declarações da supra-identificadas testemunhas com as do próprio Assistente, vislumbram-se diversas incongruências e discrepâncias entres eles que, salvo melhor opinião, não deveriam ter sido suficientes para criar a convicção do douto Tribunal recorrido em face da culpabilidade do Recorrente.
XIII. Entendeu o Tribunal a quo, que a versão apresentada pelo arguido, aqui Recorrente, não mereceu acolhimento pois não permitia explicar as lesões que o Assistente apresentou, mormente a hemorragia nasal e a ferida incisocontusa que este apresentava.
XIV. Contudo, decorre da própria sentença que o Assistente terá sido agredido, num segundo momento, por um outro Arguido, com um soco na face, sendo que, tal agressão poderia ser a causadora das lesões que o Assistente apresentou e que o douto Tribunal recorrido entendeu que não permitiam suportar a versão do Recorrente.
XV. Por outro lado, para demonstrar as várias incongruências dos depoimentos das testemunhas GG e HH, atente-se no “barulho” que levou a testemunha GG a dirigir-se à janela do seu quarto e que, alegadamente o permitiu e apenas a este, visualizar a alegada agressão perpetrada pelo Recorrente.
XVI. Tal versão mostra-se completamente incompatível com a versão apresentada pela outra testemunha HH, bem como pela factualidade relatada pelo próprio Assistente.
XVII. Nesta esteira, veja-se igualmente a discrepância quanto à alegada primeira agressão sofrida pelo Assistente e provocada pelo Recorrente, pois segundo a testemunha GG, aquele foi agredido mesmo antes de ter tido tempo de estacionar nem de sair do carro, porém o próprio Assistente declarou que aquando da primeira agressão, já tinha estacionado o seu veículo e já se encontrava no exterior.
XVIII. Nos mesmos moldes, subsistem incongruências entre as declarações das testemunhas GG, HH e Assistente quanto ao número de pessoas que se acercaram deste, pois as testemunhas GG e HH referiram que apenas o Recorrente estava envolvido com o Assistente, estando os restantes arguidos afastados, quando o Assistente declarou que mal saiu do carro, viu-se de imediato rodeado em semi-circulo pelos cinco arguidos.
XIX. E, na senda da descrição dos eventos, surge nova inconsistência entre as testemunhas já referenciadas e o Assistente, pois aquelas referiram que o Assistente caiu e nesse momento o Recorrente colocou-se sobre si e continuou a agredi-lo. Contudo o Assistente em momento algum referiu que algum dos cinco arguidos se colocou sobre si e o agrediu com as mãos.
XX. Entende o Recorrente e salvo melhor opinião, que, perante as diversas discrepâncias existentes entre a prova testemunhal produzida e perante as diversas versões que foram apresentadas perante o Tribunal recorrido, este estava desprovido da certeza minimamente exigida para condenar o Recorrente pela prática de um crime de ofensas à integridade física.
XXI. Devendo em face das dúvidas que subsistiram, proceder à aplicação do Princípio do In Dubio Pro Reu e, em consequência, ter absolvido o Arguido do crime de que vinha acusado.
Daí o presente recurso.
Termos em que e nos melhores de Direito que Vossas Excelências melhor suprirão, deverá ser dado provimento ao presente Recurso e em consequência
a) Declararem nula a sentença recorrida, por violação do disposto no disposto no artigo 358.º, n.º 1 do C. Processo Penal, conjugado com o disposto no art. 379.º, n.º 1 b) do C.Processo Penal.
b) Revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que contemple as conclusões atrás deduzidas.
Decidindo deste modo, Vossas Excelências farão como sempre inteira e sã JUSTIÇA”

3. 2. – O arguido DD[2] finaliza a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
“I. Da Douta Sentença, ora recorrida, consta, no ponto 6.º dos factos dados como provados que, alguns momentos mais tarde, quando o ofendido se encontrava encostado a um muro ali existente, o arguido DD, dirigiu-se a si e desferiu-lhe um soco na face, tendo-se envolvido depois com ele numa luta corpo-a-corpo.
II. Contudo, a Acusação Pública imputou ao arguido que, quando o Assistente já se erguia do solo, o arguido DD agarrou FF pelas costas e aplicou-lhe a denominada técnica “Golpe Mata Leão”, envolvendo com um dos seus braços o pescoço de FF e puxando-o para trás, privando-o de respirar por breves momentos.
III. A douta sentença ora recorrida deu como não provado a supra- referida atuação do Recorrente, conforme decorre do ponto 5 dos factos não provados
IV. Comparando os factos constantes da douta acusação pública com os factos dados como provados no ponto 6.º da douta sentença, vislumbra-se que estes contêm circunstâncias contemporâneas da alegada prática da agressão física que não foram levadas a cabo no libelo acusatório.
V. Isto é, estamos perante factos novos cujo aditamento consubstancia uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação pública e que alterou a essencialidade da acção alegadamente levada a cabo pelo Recorrente, pois conferiu-lhe uma atuação alargada, mormente quanto às alegadas agressões que este terá praticado contra o Assistente e enquanto este se encontrava caído no solo.
VI. Nada impede que os factos novos, tais como o aqui evidenciados possam ser utilizados pelo tribunal e vertidos na sentença, contudo e conforme decorre do disposto no art. 358.º do C. Processo Penal, o Arguido visados pelos mesmos tem o direito de se pronunciar, querendo, quanto aos mesmos.
VII. O Tribunal recorrido introduziu, na matéria de facto dada como provada, circunstâncias especificas de como a conduta do Recorrente – alegadamente – se terá realizado, pelo que sempre teria de se considerar pela existência de uma alteração não substancial dos factos.
VIII. O Tribunal a quo, ao não dar cumprimento ao art. 358.º do C. Processo Penal, após ou no decurso da audiência, em face da alteração não substancial dos factos, mediante comunicação e concessão de praza para o Recorrente se pronunciar quanto aos mesmos, coartou os meios de defesa destes, resultantes do Princípio do Contraditório e da salvaguarda de uma defesa eficaz.
IX. Pelo que, estamos perante a nulidade de sentença, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 379.º do C. Processo Penal, o que se expressamente se argui, com as legais consequências.
Sem prescindir,
X. Entende o Recorrente que não resultou, da prova produzida em audiência de julgamento, que este tenha cometido o ilícito criminal de que veio condenado.
XI. Isto porque, como decorre da fundamentação da sentença ora recorrida, o Tribunal a quo entendeu dar primazia aos depoimentos das testemunhas da acusação – GG e HH.
XII. Contudo, entende o Recorrente que, conjugando as declarações da supra-identificadas testemunhas com as do próprio Assistente, vislumbram-se diversas incongruências e discrepâncias entres eles que, salvo melhor opinião, não deveriam ter sido suficientes para criar a convicção do douto Tribunal recorrido em face da culpabilidade do Recorrente.
XIII. No que toca à atuação do aqui Recorrente, o Assistente, tal como a douta acusação pública, apenas lhe imputa a agressão física perpetrada através da aplicação do “Golpe Mata Leão”.
XIV. Em momento algum o Assistente fez qualquer referência a que tenha sido agredido com um soco por parte do Recorrente, e não o fez tanto no primeiro como no segundo momento da contenda, até porque, as declarações do Assistente não levam a que se tenha verificado qualquer segundo momento.
XV. Pois o Assistente declarou que, após ter sido alegadamente agredido com um soco no rosto por parte do arguido BB e AA, terá caído ao solo e aí foi pontapeado, levantou-se de seguida e depois recorda-se de ir para o interior da sua habitação na companhia da sua mãe.
XVI. Mas as incongruências subsistem, tal como decorre da análise do momento de chegada do Assistente ao local dos factos, pois segundo a testemunha GG, o Assistente nem sequer teve tempo para parar o seu veículo, tendo logo sido agredido com um soco desferido pelo arguido BB.
XVII. Já o Assistente, a instâncias do Meritíssimo Juiz confirmou que, previamente à agressão do arguido BB, estacionou o seu veículo, saiu do mesmo e aí viu-se rodeado pelos cinco arguidos.
XVIII. Ora, nova discrepância se vislumbra quanto a quem estava junto ao Assistente, pois este declarou que estariam os cinco arguidos, em semi-circulo, junto a si, porém a testemunha GG verteu no seu depoimento que apenas o arguido BB se encontrava junto ao Assistente.
XIX. A trama adensa-se quando a supra-referida testemunha declarou que, quando se deslocou para o exterior, visualizou o arguido BB em cima do Assistente enquanto o agredia.
XX. Mais uma vez, tal versão é completamente antagónica com a versão do próprio Assistente que, em momento algum faz referência a que o arguido BB, ou qualquer outro dos cinco, se tenho colocado em cima de si, após este ter caído ao solo.
XXI. Entende o Recorrente, e salvo melhor opinião que, perante as diversas discrepâncias existentes entre a prova testemunhal produzida e perante as diversas versões que foram apresentadas perante o Tribunal recorrido, este estava desprovido da certeza minimamente exigida para condenar o Recorrente pela prática de um crime de ofensas à integridade física.
XXII. Devendo em face das dúvidas que subsistiram, proceder à aplicação do Princípio do In Dubio Pro Reu e, em consequência, ter absolvido o Arguido do crime de que vinha acusado.
Daí o presente recurso.
Termos em que e nos melhores de Direito que Vossas Excelências melhor suprirão, deverá ser dado provimento ao presente Recurso e em consequência
a) Declararem nula a sentença recorrida, por violação do disposto no disposto no artigo 358.º, n.º 1 do C. Processo Penal, conjugado com o disposto no art. 379.º, n.º 1 b) do C.Processo Penal.
Sem prescindir,
b) Revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que contemple as conclusões atrás deduzidas.
Decidindo deste modo, Vossas Excelências farão como sempre inteira e sã JUSTIÇA”

4. Os recursos foram admitidos por despacho proferido no dia 28.06.2022
5. O Ministério Público, junto da 1ª instância, respondeu separadamente a cada um dos recursos [Refª Citius 33074936 (relativamente ao recurso do arguido DD) e Refª Citius 33074959 (relativamente ao recurso do arguido BB)], concluindo no sentido da improcedência de cada um deles e manutenção da sentença recorrida.
6. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo também no sentido da improcedência dos recursos, não obstante também suscitar a questão da eventual nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à aplicação ou não do Regime Especial para Jovens relativamente ao arguido DD (fls. 487 a 491 - Refª Citius 16242314).
7. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal[3], o assistente respondeu manifestando a sua posição no sentido da improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida (fls. 495 e 496 - Refª Citius 350558).
8. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objeto dos recursos
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
No caso vertente, vistas as conclusões de ambos os recursos, as questões trazidas à apreciação deste tribunal pelos recorrentes, seguindo uma ordem de precedência lógica, são as seguintes:
Recurso do arguido BB:
- Nulidade da sentença (artigo 379º nº 1, al. b) do CPP, por violação do artigo 358º do CPP)
- Impugnação da matéria de facto;
- Saber se foi violado o princípio do in dubio pro reo;
- Saber se o recorrente deve ser absolvido do crime por que foi condenado.

Recurso do arguido DD:
- Nulidade da sentença (artigo 379º nº 1, al. b) do CPP, por violação do artigo 358º do CPP)
- Impugnação da matéria de facto;
- Saber se foi violado o princípio do in dubio pro reo;
- Saber se o recorrente deve ser absolvido do crime por que foi condenado.

A essas questões acresce também a apreciação de uma outra, suscitada pelo Exmo. Procurador Geral-Adjunto no seu parecer, respeitante a uma eventual nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto à aplicação ou não do Regime Especial para Jovens em relação ao arguido DD.

2. Decisão recorrida
Definidas as questões a tratar, vejamos, desde já, o que na sentença recorrida consta quanto aos factos provados e não provados, bem como quanto à motivação da matéria de facto (transcrição):
“Factos Provados
1. Os arguidos AA e BB são tios paternos de FF.
2. A arguida CC é filha do arguido AA e prima de FF.
3. O arguido DD é filho da arguida EE que por sua vez vive em união de facto com o arguido BB.
4. No dia 14 de março de 2020, pelas 19h30m, os arguidos, por razão que não foi possível apurar com clareza, resolveram dirigir-se de automóvel à residência de FF, sita na rua ..., em ..., Gondomar.
5. Assim, cerca das 20h00m, quando FF chegava e estacionava o seu veículo automóvel, o arguido BB aproximou-se de si e deu-lhe um soco na face. De seguida, envolveu-se numa luta corpo-a-corpo que os fez cair a ambos, continuando no chão a atingi-lo com as mãos.
6. Entretanto aproximaram-se do local as testemunhas GG e HH, que conseguiram separar o arguido BB do ofendido, levando este para outro local.
7. Alguns momentos mais tarde, quando o ofendido se encontrava encostado a um muro ali existente, o arguido DD, dirigiu-se a si e desferiu-lhe um soco na face, tendo-se envolvido depois com ele numa luta corpo-a-corpo no chão.
8. Como consequência direta e necessária dessas atuações, FF sofreu:
- Face: escoriação infracentimétrica, revestida por crosta hemática, localizada na região infranasal à direita; escoriação infracentimétrica, revestida por crosta hemática, localizada na asa nasal direita; escoriação no pavilhão auricular direito, ao nível da fossa triangular; queixas dolorosas nos movimentos de abertura/fecho da boca na articulação temporomandibular direita, sem compromisso mecânico destas mobilidades ou estalido articular; lesão ulcerada esbranquiçada da mucosa interna do lábio superior; queixas dolorosas à palpação e mobilização da pirâmide nasal, sem crepitação óssea;
-Tórax: dor à palpação da grade costal à direita, sem tumefações ou crepitação óssea objetiváveis; escoriação revestida por crosta hemática com 3 por 0,7 cm de maiores dimensões, localizada no terço médio do dorso à direita da linha média;
- Membro superior direito: escoriação com 4 por 2 cm de maiores dimensões no dorso da mão, revestida por crosta serohemática, com sinais inflamatórios em redor; múltiplas escoriações milimétricas dispersas pelo dorso da mão;
- Membro superior esquerdo: escoriação linear com 1 cm de comprimento, revestida por crosta hemática, localizada no dorso da mão, próxima do bordo medial da mão;
- Membro inferior direito: múltiplas escoriações na face anterior e lateral do joelho, a maior das quais com 8 por 3 cm de maiores dimensões;
- Membro inferior esquerdo: múltiplas escoriações na superfície anterior do joelho, a maior com 4,5 por 2 cm de maiores dimensões; equimose arroxeada na face lateral do joelho com 4 por 2 cm de maiores dimensões, lesões essas que demandaram 7 dias de doença para cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral ou profissional.
9. Os arguidos BB e DD sabiam que as suas descritas condutas eram proibidas e penalmente puníveis.
10. Porém, agiram livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de atingir e molestar o corpo de FF e, desse modo, causar-lhe sofrimento físico.
Mais se provou que:
11. Quando os arguidos BB e DD agrediram o ofendido, os arguidos AA, CC e EE, encontravam-se afastados daquele alguns metros.
12. Nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais registados.
13. O arguido BB está desempregado, faz biscates da construção civil, ganha com isso entre €600,00 e €700,00 por mês, vive em união de facto, a companheira está desempregada, paga de renda de casa €450,00, está habilitado com o 7º ano de escolaridade.
14. A arguida CC é repositora de loja, ganha €325,00 por mês, é solteira, vive com os pais e irmã, está habilitada com o 12º ano de escolaridade.
15. O arguido DD é militar do exército, ganha €700,00 por mês, vive com a mãe, está habilitado com o 12º ano de escolaridade.
16. A arguida EE está desempregada, vive em união de facto, está habilitada com o 8º ano de escolaridade.
17. Os arguidos não mostraram arrependimento pelas suas apuradas condutas.
18. O percurso de vida do arguido DD tem vindo a ser orientado em função de parâmetros de convencionalidade, valorizando desde sempre as dimensões familiar e profissional como suportes basilares da sua trajetória de vida e facilitadores da sua adaptação social. Denota uma forte implicação no cumprimento e correspondência à atividade que desenvolve no Exército e investimento num projeto futuro de vir a concorrer para o corpo da GNR. A sua presente qualidade processual, face aos indicadores recolhidos, apresenta-se episódica na sua história de vida, não suscitando nos meios de referência social e de proximidade impactos de descriminação significativa.
19. O arguido AA apresenta trajetória de desenvolvimento e percurso de vida até ao presente consonante com as sua origens e contexto de inserção sociofamiliar, sem registo conhecido de indicadores de disfuncionalidade e desajustamento até à instauração do presente processo. Filho mais velho de casal de limitados recursos socioeconómicos que permaneceu emigrado na Alemanha durante 11 anos e edificou nesse decurso habitação na respetiva localidade de proveniência, completou apenas o 4º ano de escolaridade, tendo iniciado atividade laboral aos 14 anos de idade no sector da construção civil, onde sempre prosseguiu atividade, com observância de alguma precariedade comum a este sector de atividade, e constituído família própria aos 21 anos de idade. Reside com a mesma, composta pela esposa e duas filhas já maiores de idade, em habitação edificada nas traseiras da casa outrora dos pais, já falecidos, atualmente pertencente a um dos seus irmãos, pai do ofendido no presente processo, prosseguindo vivência estruturada pelo exercício laboral por conta de outrem como operário da construção civil e por vivência centrada na dinâmica intrafamiliar e no provimento das necessidades de subsistência e melhoramento de condições habitacionais, sem registo de indicadores de desajustamento ou desvio.
20. A arguida CC apresenta um percurso de vida adaptado e integrado a nível familiar e social mantendo integração no agregado familiar de origem. Profissionalmente encontra-se com ocupação laboral regular contribuindo para a economia comum agregado familiar. Expressa reconhecimento da norma legal e sentido crítico ajustado, de desvalor, face à da factualidade que lhe é imputada. Face ao exposto em caso de condenação, consideramos que a arguida reúne condições para corresponder a de uma medida a executar na comunidade orientada para a conformação da sua conduta à legalidade penal sem especiais necessidades de intervenção desta DGRSP.
21. O arguido BB mantém-se ativo profissionalmente no ramo da construção civil, em contexto informal de trabalho, subsistindo dos rendimentos do trabalho. Na esfera da conjugalidade, o arguido apresenta uma relação estruturada, sendo o cônjuge uns dos seus principais suportes de apoio.
22. O processo de desenvolvimento da arguida EE decorreu no seio de uma família com estatuto económico, social modesto, cujo processo educativo foi orientado por princípios que valorizam o trabalho como fator estruturante do projeto de vida, desenvolvido com respeito pelo outro, pelos superiores hierárquicos, com seriedade e honestidade. Abandonou a sua trajetória escolar no termo da obrigatoriedade escolar, optando por integrar o mercado de trabalho aos 16 anos de idade, iniciando
nesta fase, uma trajetória profissional sem interrupção, muito embora tenha transitado temporariamente para a área da restauração, motivada por ganhos mais elevados retornou sempre à empresa onde havia iniciado laboração, por reconhecerem a sua dedicação e competências. Constituiu família aos 18 anos de idade iniciativa que gorou os seus objetivos, pela separação decorridos 4 anos de convivência em comum, dadas as desinteligências comunicacionais observadas. Reorganizou a sua vida familiar em condições que consolidou atá ao presente. Após encerramento da Empresa B..., Lda., em 22-07-2019 não concretizou reintegração profissional no mercado de trabalho, pelo que, o seu quotidiano é gerido em função das necessidades da família e organização do espaço familiar. O seu quotidiano aparenta contornos de normalidade.
Do pedido de indemnização civil apresentado por FF:
23. A conduta dos arguidos BB e DD provocou dores físicas ao demandante civil.
24. Que ficou envergonhado por isso ter acontecido em local público e por os seus agressores serem seus familiares.
Do pedido de indemnização civil apresentado por Centro Hospitalar ..., EPE:
25. Na sequência das agressões contra si perpetradas pelos arguidos BB e DD, o ofendido foi assistido no dia 14.3.2020, tendo o custo dessa assistência sido de €189,57.
Factos não provados
1. Os arguidos dirigiram-se a casa do assistente com o intuito preordenado de o molestar no seu corpo.
2. Quando o assistente saiu do seu automóvel, os arguidos rodearam-no em semicírculo.
3. Quando o arguido BB desferiu um soco na face do assistente, o arguido AA secundou-o, desferindo também ele vários socos na face daquele.
4. Quando o assistente estava caído no solo, estendido de costas, as arguidas CC e EE desferiram diversos pontapés contra o tronco e as pernas de FF.
5. O arguido DD agarrou FF pelas costas e aplicou-lhe o denominado golpe de “mata leão”, envolvendo com um dos seus braços o pescoço de FF e puxando-o para trás, privando-o de respirar por breves momentos.
6. Depois disso, o arguido BB vibrou novos socos contra a sua face.
7. Os arguidos atuaram em conjugação de esforços e sintonia de vontades de acordo com um plano previamente delineado e valendo-se para tanto da sua superioridade numérica em relação àquele.
Do pedido de indemnização civil:
8. O demandante passou a ter medo de sair à rua.
9. Começou a ter pesadelos e suores frios.
10. Teve necessidade de recorrer a ajuda psiquiátrica.
3. MOTIVAÇÃO
Como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, p. 111, a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão.
A convicção do Tribunal assentou, assim, nas declarações dos arguidos, nos depoimentos das testemunhas, nos documentos e perícias juntos aos autos, tudo caldeado pelas regras da experiência.
Isto visto, façamos uma enunciação breve dos meios de prova analisados para, depois, procedermos ao seu exame crítico.
Prova por declarações dos arguidos:
BB
CC
DD
Pese embora tivessem prestado declarações de forma assertiva, as mesmas foram em grande extensão pouco objetivas e inverosímeis, cedendo, como a seguir se verá, perante outros meios de prova mais consistentes e fidedignos.
AA
EE
Optaram por não prestar declarações.
Prova por declarações do assistente:
Depôs de forma espontânea e assertiva. Porém, em algumas passagens, tendeu para a especulação.
Prova testemunhal:
GG, dá-se bem com todos.
Depôs de forma isenta e credível, arrogando-se razão de ciência de todo o episódio.
II, mulher da testemunha anterior, sendo a sua proximidade em relação aos envolvidos semelhante à do seu marido.
Depôs de forma isenta e credível. Quando veio à rua já tinham terminado os confrontos físicos.
JJ, mãe do assistente.
Depôs de forma espontânea e assertiva, tendendo para o excesso quando se referiu às consequências no estado de espírito do seu filho das agressões que sofreu. Quanto à sua razão de ciência, tendo sido avisada pelo seu marido do que estava a acontecer, veio à rua, mas já tinham terminado os confrontos físicos.
HH, padrasto do ofendido.
Depôs de forma isenta e credível. Quando veio à janela estava o arguido BB a agredir o seu enteado. Desceu à via pública logo de seguida, tendo assistido a tudo quanto se passou a partir daí.
KK, LL, MM e NN.
Não assistiram ao sucedido. Abonaram o porte dos arguidos.
Prova pericial:
- Exame de avaliação médico-legal de fls. 40 a 44, elaborado após observação do ofendido no dia 17.3.2020, ou seja, 3 dias após as agressões. Os peritos médicos descrevem as lesões observadas e admitem a compatibilidade entre o traumatismo e o dano.
Prova documental:
- Elementos clínicos de fls. 4 e 5, que dão nota de o ofendido ter dado entrada nos serviços de urgência do Hospital ..., pelas 21h14m do dia 14.3.2022, aí vindo narradas as lesões que apresentava e o tratamento que lhe foi dispensado.
- Certidões de nascimento de fls. 11 e 12 e 258 a 264. Demonstram, em parte, o parentesco referido nos primeiros três parágrafos da acusação.
- CRC de fls. 266 a 270 para conhecimento dos antecedentes criminais dos arguidos.
- Fatura de fls. 302 para demonstração do custo da assistência prestada ao arguido.
- Relatórios sociais de fls.276 e ss. para conhecimento das condições de vida dos arguidos.
Vejamos, então o que resulta do exame crítico dos meios de prova que nos são oferecidos pelos autos.
Tendo presente que as declarações dos arguidos e do assistente, por terem todos interesse direto no que aqui possa decidir-se e por se encontrarem desavindos desde o episódio de que ora tratamos, teriam de ser analisadas com acrescidas cautelas, conferiremos, até como critério metodológico, maior credibilidade aos elementos de natureza clínica e pericial, porque despidos de paixões e expendidos por quem não tem qualquer relação com os factos em discussão e com as pessoas que neles possam ter intervindo, passando depois à prova produzida em juízo, analisando-a do exterior para o interior, isto é, partindo das pessoas mais afastadas do círculo próximo dos envolvidos para terminar nestes.
Isto posto, há, desde logo, uma realidade à qual não podemos escapar: no mesmo dia dos factos ora em análise, o ofendido foi assistido nos serviços de urgência do Hospital ..., apresentando ao exame objetivo vestígios de hemorragia nasal (epistaxis), lesão incisocontusa no interior do lábio superior, dor no hemitorax direito, parte posterior, escoriações nos joelhos e no dorso da mão direita. Observado três dias mais tarde no Instituo de Medicina Legal, foram atestadas pelos senhores peritos as lesões melhor descritas no respetivo relatório, nomeadamente ao nível da face, do tórax e dos membros superiores e inferiores.
Ou seja, na sequência da refrega havida- e que houve um confronto físico foi unanimemente referido- o ofendido ficou naquele estado físico.
Por isso, qualquer depoimento que negue ou mitigue esta evidência, terá de ser desconsiderado porque não verdadeiro.
Para além disso, teremos de ter em conta não haver notícia que qualquer dos arguidos tenha saído daquele evento com lesões: nem estes o referiram (mesmo os arguidos BB e DD, que admitiram a existência de contacto físico, o declararam de forma inequívoca), nem há elementos de natureza clínica que o demonstrem.
Destarte, pode também concluir-se que o que quer que seja que tenha acontecido e qualquer que tenha sido a cronologia fina e o modo de intervenção de cada um, foi o ofendido quem levou a pior.
Aqui chegados, vejamos quais as pessoas que tinham razão de ciência direta e que são, para além dos arguidos e do assistente, bem-entendido, as testemunhas GG e HH (as testemunhas II e JJ, pese embora tenham assomado ao local imediatamente, já não assistiram aos confrontos físicos).
Considerando o critério acima referido, demos primazia ao que deflui do depoimento da testemunha GG, porque equidistante dos interesses em confronto e só depois ao da testemunha HH, padrasto do ofendido e, por isso, de si existencialmente próximo.
Disse que, mal o ofendido pôs a cabeça de fora do carro, logo o arguido BB lhe desferiu um soco, tendo-se colocado em cima dele a seguir. Já por aqui, ficaria afastada a tese apresentada por este e também pelo arguido DD, de acordo com a qual o assistente desferiu uma bofetada à arguida EE, tendo sido a atuação destes um ato de defesa (ou retaliação?) em relação a essa agressão. Continuou dizendo que o padrasto do ofendido interveio, separando o arguido BB do seu enteado e puxando este à parte. Nessa altura apareceu o arguido DD e deu um soco ao ofendido. As outras pessoas (a esposa do BB, mais uma rapariga e um senhor que não sabe quem são estavam “um bocadinho mais distanciados” (sic) a insultar, mas não a agredir. Estimou que estivessem a 20 ou 30 passos do sítio onde se encontrava o assistente.
Passemos, agora, ao depoimento da testemunha HH. Disse que quando ouviu um barulho veio à janela e já viu o arguido BB em cima do ofendido a dar-lhe murros. Veio, então, para o exterior e tirou-o de cima do ofendido. Estava à parte a falar com este quando apareceu o arguido DD e lhe deu um murro. Os demais arguidos estavam à parte a ver e a insultar.
Ora, estes dois depoimentos, como pode ver-se, apresentam-se em sintonia.
Provindo o primeiro deles de alguém que consideramos independente e, por isso, aceitamos como verdadeiro, o segundo, por estar em linha com este, afigura-se-nos, por isso, igualmente credível.
Serão estes dois depoimentos e bem assim os elementos clínicos a que nos referimos acima os meios de prova que nos guiarão na tarefa de reconstituir o evento aqui em análise.
Fica assim, e já para início de discussão, demonstrado que os arguidos BB e DD agrediram o ofendido sem que existisse qualquer motivo prévio, nomeadamente sem ter havido qualquer agressão deste à arguida EE. De resto, sabendo-se que a agressão do arguido DD sobreveio num segundo momento e quando o confronto se encontrava já, aparentemente, sanado, nunca a sua atuação poderia considerar-se ter como escopo defender a sua mãe.
Passemos, agora, às declarações dos arguidos e do assistente (em breve síntese).
Os arguidos AA e EE não quiseram prestar declarações.
O arguido BB referiu que o ofendido chegou “todo exaltado e partiu para a agressão” (sic) à arguida EE. Nessa altura interveio para os separar e caíram ambos.
A arguida CC referiu que quando o ofendido chegou só os arguidos BB e EE estavam fora do carro. Depois, só se apercebeu de algum aparato, dizendo que ninguém fez nada, que ninguém se estava a agredir.
O arguido DD referiu que o ofendido chegou e fez uma travagem brusca, saiu e “veio logo numa de confusão” (sic). No meio da confusão deu um estalo à mãe. Dirigiu-se ao ofendido e ao padrasto e agarrou-os para evitar mais agressões. Aquele, ao tentar soltar-se, fez com que caíssem os dois.
O assistente, por seu turno, disse que, quando ainda estava a estacionar, foi abordado pelo arguido BB que lhe deu vários murros. Quando saiu do carro, os outros arguidos formaram um semicírculo. O arguido AA agrediu-o também com socos. Caiu ao chão e “perdeu um bocado a consciência” (sic). Então o semicírculo fechou-se e continuaram a agredi-lo com pontapés. Sentiu que eram mais do que duas pessoas, por se ter apercebido que eram mais do que quatro pernas que o pontapeavam. Quando deu conta tinha o arguido DD a fazer-lhe um mata-leão. Recobrou a “perfeita consciência” (sic) já em casa.
Ora, as declarações dos arguidos, para além de contrariadas pelos dois depoimentos que nos servem de pivot em termos probatórios, ofendem também o que resulta dos elementos clínicos e periciais que logo no início enunciamos.
Se tomássemos em consideração apenas o que disseram os arguidos BB e DD (o depoimento da arguida CC é do domínio da fantasia ao referir nem sequer ter havido agressões- as lesões do ofendido resultaram de quê, então?), isto é, que se agarraram e caíram ao chão, o ofendido nunca teria, pelo menos, a hemorragia nasal e a ferida incisocontusa no interior do lábio. Este tipo de lesão é típico dos murros no rosto e não de agarrões e queda.
São, por isso, declarações em o mínimo de credibilidade, pelo que não pode o tribunal atender às mesmas para reconstituir o sucedido.
As declarações do ofendido também não podem ser aceites de forma irrestrita porque, por um lado, forma algo dramatizadas e assentes, em grande parte, em presunções; por outro, porque desconformes em algumas passagens com as regras da experiência.
De ciência certa e sem mediação referiu ter sido agredido com socos pelos arguidos BB e AA e com um mata-leão pelo arguido DD. Quanto ao mais, presumiu ter sido agredido também pelas duas arguidas do sexo feminino por as mesmas se encontrarem próximas e sentir que eram mais que duas pessoas a pontapeá-lo. Salvo o devido respeito, se alguém não vê de onde provêm os pontapés, atentas as regras da biomecânica, poderia afirmar apenas ser mais do que uma pessoa a pontapeá-lo, porque, eventualmente, a cadência dos pontapés não permitir que uma só pessoa os pudesse desferir àquele ritmo. Quanto ao mais, trata-se de pura especulação.
Assim, não tendo qualquer das duas testemunhas de cujos depoimentos nos vimos recorrentemente socorrendo, referido terem as arguidas intervindo de algum modo no corpo do ofendido, terá de considerar-se não provada a sua intervenção na refrega.
Quanto às agressões perpetradas pelo arguido AA, foi o ofendido o único a referir-se a esse facto.
Ora, aqui chegados há que fazer notar que, conforme vem referido no resumo do episódio de urgência acima assinalado, o assistente encontrava-se etilizado. Esse facto, de resto, foi também referido pela generalidade das pessoas que com ele tiveram contacto no episódio referido na acusação. Sendo sobejamente conhecidos os efeitos do álcool no sistema nervoso central, não podemos abandonar-nos de forma cega à sua memória.
Para além disso, o arguido referiu que, a determinado momento, perdeu a consciência plena, só a tendo recuperado inteiramente quando já estava em casa. Não obstante, porém, permitiu-se narrar factos que teriam ocorrido nesse intervalo.
Ora, mais uma vez se remetendo para o teor dos depoimentos daquelas duas testemunhas (onde até se conta o seu padrasto, pessoa que, por lhe ser próxima, podia querer ajudá-lo mais do que permitisse o dever de verdade), nem o arguido AA o agrediu, nem o arguido DD lhe fez um mata-leão. Aliás, neste ponto, ainda que pudessem não ficar marcas físicas evidentes, teria o arguido de apresentar, pelo menos, dor à palpação nessa parte do corpo. Ora, em nenhum dos instrumentos de natureza clínica que referimos acima, vem referida essa circunstância.
Por isso, também aqui teremos que dar preferência aos dois depoimentos que consideramos de confiança e ao que deflui dos registos clínicos e exame de avaliação do dano corporal.
Desse modo, fica indemonstrada qualquer intervenção do arguido AA e que o arguido DD tenha feito um mata-leão.
Também não se considerou provada a existência de um plano prévio gizado por todos para agredirem o ofendido.
Desde logo, por haver três pessoas que, de todo, agrediram ou tomaram parte de qualquer modo na agressão.
Depois, porque os dois agressores, como vimos, não o fizeram em sintonia de esforços, antes parecendo que cada um obedeceu a um estímulo completamente autónomo do outro.
Tratando-se de um facto do foro interno, não nos é possível, por isso, das ações materiais efetivamente levadas a cabo, detetar essa mancomunação.
Quanto aos factos do pedido de indemnização civil, há que referir que, não se desvalorizando as agressões sofridas pelo ofendido e a aflição que o mesmo deve ter sentido, o seu depoimento foi, nesta parte, um exercício de sobrevitimização.
Isto porque, não podemos desligar-nos dos factos tal qual eles foram: o arguido apanhou socos de duas pessoas, socos esses que lhe determinaram, sem menoscabo para o seu padecimento, apenas sete dias para cura.
Deteta-se, por remissão para as regras da experiência, uma certa assimetria entre o mal que lhe foi feito e as consequências que o mesmo disse ter sofrido. Note-se que o mesmo disse inclusivamente que ficou sem poder conduzir, o que não resulta minimamente do tipo e extensão das lesões que sofreu.
Como tal, tirando aqueles danos que podemos considerar conaturais às agressões sofridas e às circunstâncias em que as mesmas se deram- nomeadamente as dores, a vergonha e um certo desgosto por os autores das agressões serem seus familiares- os demais não podiam bastar-se com meras alusões genéricas ou proclamações tautológicas, ainda que secundadas pelos depoimentos da mãe e do padrasto.
De resto, assoma absolutamente inverosímil que o demandante, como referiu no seu petitório, tivesse ficado com receio de sair à rua, já que, tendo atividade profissional, não há notícia que a tenha interrompido, de onde se vê que o arguido continuou a fazer a sua vida normalmente.
Ou seja, quando as regras da experiência não consentem determinadas asserções, será preciso mais do que meras proclamações desasadas de factos concretos em que se traduzam, espera-se exemplos específicos e não meras generalidades como, a título de exemplo: “fiquei mais desconfiado, passei a ser inseguro”, “ficou depressivo, não conseguia fazer nada”, etc.
Quanto às consultas de psiquiatria, haveriam de ser demonstradas por documento ou declaração médica, para que o tribunal pudesse aferir quando começaram e se na sua génese estiveram os factos aqui em causa. Não tendo sido junta qualquer prova dessa estirpe, foram esses factos considerados não provados.
Assim se explica, pois, o modo como se formou a convicção do julgador. “

3. Apreciação dos recursos
Atendendo a que as questões suscitadas pelos recorrentes são de idêntica índole e que os argumentos invocados em sustentação das mesmas, na generalidade, também são idênticos, por uma questão de lógica e precedência processual e sobretudo para evitar indesejadas repetições de argumentos que são comuns às questões também comuns, iremos apreciar as questões pela ordem de parâmetros de grandeza já supra indicada (sendo que, caso necessário, de amiúde, serão apreciadas as especificações de cada recorrente dentro desses parâmetros).

1ª Questão: - Nulidade da sentença (artigo 379º nº 1, al. b) do CPP, por violação do artigo 358º do CPP)
Por reporte a esta questão, alega o arguido/recorrente BB que não consta da acusação pública, nem tão pouco da factualidade vertida no pedido de indeminização civil deduzido pelo Assistente, que o aqui Recorrente se tenha envolvido numa luta corpo-a-corpo que os fez cair e aí, continuou a atingir o Assistente com as mãos -ponto 5 da matéria dada como provada.
(…). Tal factualidade apenas foi alcançada pelo tribunal a quo por força das declarações prestadas em audiência de julgamento pelas testemunhas GG e HH.
(…) Assim, e salvo melhor opinião, viu-se o Recorrente confrontado com uma alteração dos factos constantes da acusação vertidos na douta sentença que ora se recorre.
Nessa decorrência, considera este recorrente que ao não ter sido dado cumprimento ao art.358.º CPP pelo Tribunal Recorrido após ou no decurso da audiência, e ao estarmos perante inequívoca alteração não substancial dos factos não comunicada ao Arguido (que resulta um imperativo do princípio do contraditório e da salvaguarda de uma defesa eficaz) é, pois, manifesto que a sentença recorrida padece de nulidade nos termos do art.379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o que expressamente se argui, com as legais consequências.

Por sua vez, neste mesmo âmbito da invocada nulidade da sentença alega o arguido/recorrente DD que não consta da acusação pública, nem tão pouco da factualidade vertida no pedido de indeminização civil deduzido pelo Assistente, que o aqui Recorrente, após o Assistente se ter encostado a um muro existente, dirigindo-se a este, lhe tenha desferido um soco na face.
(…) Bem como não consta da acusação pública que, o Recorrente se tenha envolvido com o Assistente numa luta corpo-a-corpo, após o alegado soco que lhe terá desferido, bem como em qualquer outro momento.
(…) Como se vislumbra da factualidade vertida na acusação pública, a intervenção do Recorrente na contenda, pautou-se por ter alegado agarrado o Assistente quando este se erguia do solo, tendo-lhe aplicado a denominada técnica “Golpe Mata Leão”, privando-o de respirar por breves momentos.
(…) Factualidade esta, que atenta a prova produzida em audiência de julgamento, foi dado como não provada – ponto 5 dos factos não provados.
(…) O único facto que levou à condenação do Recorrente – soco desferido no rosto do Assistente, após este se encontrar encostado a um muro, foi alcançada pelo tribunal a quo por força das declarações prestadas em audiência de julgamento das testemunhas GG e HH.
(…) Assim, e salvo melhor opinião, viu-se o Recorrente confrontado com uma alteração dos factos constantes da acusação e posteriormente vertidos na douta sentença que ora se recorre.
Nessa decorrência, considera este mesmo recorrente que ao não ter sido dado cumprimento ao art.358.º CPP pelo Tribunal Recorrido após ou no decurso da audiência, e ao estarmos perante inequívoca alteração não substancial dos factos não comunicada ao Arguido (que resulta um imperativo do princípio do contraditório e da salvaguarda de uma defesa eficaz) é, pois, manifesto que a sentença recorrida padece de nulidade nos termos do art.379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o que expressamente se argui, com as legais consequências.

Desde já adiantando, pese embora alguns dos factos em causa não constassem da acusação, não assiste razão aos recorrentes para o almejo da pretendida nulidade da sentença.
Vejamos o que dispõem os arts 379º nº 1, al. b) e 358º, ambos do Código de Processo Penal.

Artigo 379.º
Nulidade da sentença
1 - É nula a sentença:
a) (…)
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
Artigo 358.º
Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia
1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
Teçamos algumas considerações, ainda que muito telegráficas, acerca da alteração substancial e não substancial dos factos.
Como é sabido, o processo penal português tem estrutura acusatória (cfr. artigo 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa), sendo o seu objeto delimitado pela acusação ou pela pronúncia, quando a houver. São os factos descritos nessa peça processual que delimitam o thema decidendum, daí resultando para o arguido a garantia de que, ressalvadas as exceções previstas na lei e dentro dos condicionalismos por esta fixados, não poderá ser julgado e condenado por outros factos que não aqueles de que tomou prévio conhecimento.
Vejamos então os regimes legais da alteração substancial e da alteração não substancial de factos:
Quanto à alteração substancial de factos rege o art. 1º, al. f), do CPP, que define como “«alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
A alteração substancial dos factos é, pois, uma alteração dos “factos”, do pedaço da vida que consta da acusação ou da pronúncia. Dessa alteração dos “factos “resulta a imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
A alteração não substancial dos factos, representando embora uma modificação dos “factos” que constam da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Quer na situação de alteração não substancial dos factos, quer na de alteração substancial dos factos, o arguido tem o “direito a ser ouvido”, no sentido de lhe dever ser dada oportunidade efetiva de discutir e tomar posição sobre decisões relativas a essas questões, particularmente as tomadas contra ele.
Com efeito, a propósito da alteração não substancial de factos, estabelece o nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal: “Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa” (sublinhado nosso).
Esta última norma é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (cfr. o nº 3 do mesmo artigo 358º). Na verdade, qualquer que seja a qualificação jurídica que se faça dos factos trazidos a julgamento, ela jamais implicará uma alteração substancial, na medida em que o objeto do processo se mantém. A propósito do tema, escreve Frederico Isasca (in “Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português”, pág. 107), citando Carnelutti: “se o juiz entende que a qualificação dos factos feita pela acusação é errada, ao corrigi-la não modifica os factos mas apenas a sua valoração”, acrescentando logo de seguida que “entender o contrário seria confundir vinculação temática com qualificação jurídica”.
Por isso, da alteração substancial ou não dos factos, se distingue a alteração da qualificação jurídica dos factos, a que alude o art. 358.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Por fim, importa aqui consignar, repetindo, que o art. 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, estatui designadamente que, é nula a sentença:
« b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º.» (sublinhado nosso).
Segundo parecem dar a entender os recorrentes o tribunal a quo procedeu a uma alteração dos factos da acusação sem que tivesse dado cumprimento ao disposto no artigo 358º nº 1 do Código de Processo Penal. E para demonstrarem essa alteração os recorrentes trazem à colação os factos dados como provados sob os pontos 4 a 7 em contraponto com os factos constantes dos § 4º a 8º da acusação.
Todavia, salvo o devido respeito por opinião contrária, existe um elevado grau de identidade naturalística entre os factos que constavam da acusação e os factos que foram dados como provados na sentença recorrida, sendo ainda certo que se mantém o mesmo contexto espácio-temporal que já emergia da acusação.
Afora da factualidade que veio a ser dada como não provada, a diferença de factualidade dada como provada na sentença recorrida, relativamente à acusação, como passaremos a ver (por comparação entre a acusação e a sentença) está apenas numa melhor explicitação ou pormenorização dos factos que, tendo por base o que constava da acusação, foram uns dados como provados, passando outros para o elenco dos não provados.
Ademais, importa também ter em atenção de que qualquer um dos arguidos/recorrentes vinha acusado da prática, em co-autoria material com mais outros três arguidos (a saber: os arguidos AA, CC e EE, sendo que estes vieram a ser absolvidos), e na forma consumada, de um crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a) e 2, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Código Penal, sendo que na sentença recorrida cada um dos ora recorrentes, após convolação da incriminação que constava da acusação, veio a ser condenado pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º nº 1 do Código Penal.
E dando aqui por reproduzidos os factos dados como provados na sentença recorrida (para não tornar demasiado extenso o presente aresto) importa agora fazer a sua comparação com os que constavam da acusação.
Ora, na acusação, aos cinco arguidos (ou seja, aos ora recorrentes e, bem assim, aos outros três arguidos mencionados no antecedente parágrafo) eram imputados os seguintes factos (transcrição integral):
“Os arguidos AA e BB são tios paternos de FF.
A arguida CC é filha do arguido AA e prima de FF.
O arguido DD é filho da arguida EE que por sua vez vive em união de facto com o arguido BB.
No dia 14 de Março de 2020, pelas 19,30 horas, os arguidos, por motivo não concretamente apurado mas de acordo com um plano entre todos gizado e delineado, dirigiram-se à residência de FF, sita na rua ..., em ..., Gondomar, fazendo-se transportar num veículo automóvel de marca e matrícula desconhecida, com o intuito de o molestar no seu corpo.
Assim, cerca das 20,00 horas, os arguidos, apeados, surpreenderam, naquela via pública, FF quando este terminava de estacionar o veículo automóvel com a matrícula ..-GM-.., em que seguia.
Acto contínuo, após o rodearem em semi-círculo, o arguido BB aproximou-se de FF e, sem lhe dirigir qualquer palavra, vibrou um soco contra a sua face no que foi secundado pelo arguido AA que, em acto contínuo, vibrou diversos socos contra a face de FF, o qual acabaria por cair desamparado no solo.
Aí, encontrando-se FF estendido de costas contra o solo, as arguidas CC e EE desferiram diversos pontapés contra o tronco e as pernas de FF.
Quando já se erguia do solo, o arguido DD agarrou FF pelas costas e aplicou-lhe a denominada técnica “Golpe Mata Leão” envolvendo com um dos seus braços o pescoço de FF e puxando-o para trás, privando-o de respirar por breves momentos, vindo nesse instante o arguido BB a vibrar novos socos contra a sua face.
Como consequência direta e necessária de tal atuação decorrente da Acão conjunta dos arguidos, FF sofreu:
- Face: escoriação infracentimétrica, revestida por crosta hemática, localizada na região infranasal à direita; escoriação infracentimétrica, revestida por crosta hemática, localizada na asa nasal direita; escoriação no pavilhão auricular direito, ao nível da fossa triangular; queixas dolorosas nos movimentos de abertura/fecho da boca na articulação temporomandibular direita, sem compromisso mecânico destas mobilidades ou estalido articular; lesão ulcerada esbranquiçada da mucosa interna do lábio superior; queixas dolorosas à palpação e mobilização da pirâmide nasal, sem crepitação óssea;
-Tórax: dor à palpação da grade costal à direita, sem tumefações ou crepitação óssea objetiváveis; escoriação revestida por crosta hemática com 3 por 0,7 cm de maiores dimensões, localizada no terço médio do dorso à direita da linha média ;
- Membro superior direito: escoriação com 4 por 2 cm de maiores dimensões no dorso da mão, revestida por crosta serohemática, com sinais inflamatórios em redor; múltiplas escoriações milimétricas dispersas pelo dorso da mão;
- Membro superior esquerdo: escoriação linear com 1 cm de comprimento, revestida por crosta hemática, localizada no dorso da mão, próxima do bordo medial da mão;
- Membro inferior direito: múltiplas escoriações na face anterior e lateral do joelho, a maior das quais com 8 por 3 cm de maiores dimensões;
- Membro inferior esquerdo: múltiplas escoriações na superfície anterior do joelho, a maior com 4,5 por 2 cm de maiores dimensões; equimose arroxeada na face lateral do joelho com 4 por 2 cm de maiores dimensões, lesões essas que demandaram 7 dias de doença para cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral ou profissional.
Todos os arguidos sabiam que as suas descritas condutas eram proibidas e penalmente puníveis.
Porém e, não obstante tal saber, todos os arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente, em conjugação de esforços e sintonia de vontades de acordo com um plano previamente delineado entre todos, com o propósito de atingir e molestar o corpo de FF valendo-se para tanto da sua superioridade numérica em relação àquele e, desse modo, causar-lhe sofrimento físico, como aliás viriam a lograr alcançar.”
Por outro lado, e também com interesse para a questão, importa ainda referir que na sentença recorrida, entre outros, foram dados como não provados os seguintes factos:
Factos não provados
1. Os arguidos dirigiram-se a casa do assistente com o intuito preordenado de o molestar no seu corpo.
2. Quando o assistente saiu do seu automóvel, os arguidos rodearam-no em semicírculo.
3. Quando o arguido BB desferiu um soco na face do assistente, o arguido AA secundou-o, desferindo também ele vários socos na face daquele.
4. Quando o assistente estava caído no solo, estendido de costas, as arguidas CC e EE desferiram diversos pontapés contra o tronco e as pernas de FF.
5. O arguido DD agarrou FF pelas costas e aplicou-lhe o denominado golpe de “mata leão”, envolvendo com um dos seus braços o pescoço de FF e puxando-o para trás, privando-o de respirar por breves momentos.
6. Depois disso, o arguido BB vibrou novos socos contra a sua face.
7. Os arguidos atuaram em conjugação de esforços e sintonia de vontades de acordo com um plano previamente delineado e valendo-se para tanto da sua superioridade numérica em relação àquele.

Ou seja, da comparação entre os supra referidos factos da acusação com os factos dados como provados na sentença recorrida - e não se devendo esquecer que todos os cinco arguidos tinham sido acusados da prática, em co-autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a) e 2, por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, alínea h), ambos do Código Penal - constata-se:
- que os factos dados como provados representam um “minus” em relação aos da acusação (repare-se que, de entre os factos constante dos §§ 4 a 11 do libelo acusatório também havia alusão a pontapés contra o tronco e pernas do ofendido e a golpe de “mata leão”, tudo isso no âmbito da atuação conjunta, concertada e volitivamente assumida por parte dos cinco, então acusados, arguidos) e os factos dados como provados nos pontos 4. a 11., conjugados com os supra mencionados factos não provados;
- que o acrescento na parte final do provado facto 5. apenas pode ser visto, e não mais do que isso, como uma melhor concretização/explicitação do que naquele contexto se passou entre arguido BB e o ofendido e sem qualquer relevo quer para efeitos de aferição de culpabilidade quer para efeitos de dosimetria da sanção;
- que o descrito no ponto 7. dos factos dados como provados ainda se insere perfeitamente naquele mesmo “pedaço da vida” de agressões físicas perpetradas sobre o assistente (segundo a acusação cometidas em comunhão de esforços e intentos por vários arguidos e pelas quais, por via dessa co-autoria, o recorrente DD também fora submetido a julgamento), e apenas podem ser vistos como uma melhor concretização/explicitação do que naquele contexto – segundo momento - se passou entre arguido DD e ofendido (sendo certo que também o imputado golpe de “mapa leão” já se traduzia numa forma de agressão física sobre o mesmo ofendido).
Ora, na parte em que os factos dados como provados representam um “minus” em relação aos que constavam da acusação, não estamos, sequer, perante alteração não substancial de factos. Com efeito, quando a essa questão podemos citar, a título de exemplo, o Acórdão do STJ de 03/04/1991 (in CJ Ano XVI, Tomo II, pág. 17) que diz expressamente: “Não há alteração, substancial ou não, dos factos da acusação ou da pronúncia, para efeitos do artigo 358º do Código de Processo Penal, quando os factos considerados provados representam um minus relativamente àqueles”. E no mesmo sentido, o mesmo STJ, no seu acórdão de 12/11/2003 (proc. 1216/03-3ª SASTJ, nº 75, 93), volta a dizer: “Não há alteração, substancial ou não, dos factos da acusação, quando os factos provados representam um minus relativamente àqueles, não sendo sequer necessária, nestes casos, a comunicação a que alude o artigo 358º do Código de Processo Penal”.
E neste mesmo sentido também se pronunciam, entre outros, o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no "Comentário do Código de Processo Penal", Univ. Católica Editora, 4ª Edição, 2011, a páginas 930 e o Cons. Maia Gonçalves, no “Código de Processo Penal anotado”, Almedina, 17ª Edição, 2009, pág. 815.
Por outro lado, como tivemos oportunidade de dizer, os pequenos acrescentos ou menções constantes nos demais factos dados como provados e postos em crise por cada um dos recorrentes, apenas servem para concretizar/contextualizar/explicitar/precisar os termos da ação típica neles constante, sendo que dos mesmos não se descortina o necessário “relevo para a decisão da causa” (exigido no nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal) para que se impusesse a comunicação a que alude tal preceito legal. São, pois, acrescentos ou pormenores que, em si mesmos, não assumem relevo para a decisão da causa, mas que apenas servem para esclarecer/pormenorizar/concretizar/enquadrar os demais factos da ação típica em que se inserem.
E quanto a esta questão tem interesse trazer à colação o Acórdão desta Relação de Coimbra, de 23.05.2012 (in www.dgsi.pt, relator Jorge Jacob) quando a dado passo refere: “Se o tribunal da condenação dá como assentes factos que já constavam da acusação ainda que conferindo-lhes um encadeamento diverso, desde que este lhes não retire a identidade naturalística, não ocorre qualquer alteração relevante da matéria de facto, pelo que nem sequer se torna necessário proceder à comunicação pressuposta pela alteração não substancial. Do mesmo modo, se o tribunal descreve os mesmos factos por outras palavras, ou confere maior pormenor ao relato apenas para precisar os termos da acção mas sem acrescentar nada de novo à descrição da acção típica relevante, não ocorre alteração substancial ou não substancial da matéria de facto. A bitola para se aferir da relevância da alteração fáctica será sempre a identidade do objecto do processo e o fair trial pressuposto por um processo penal justo, que não são afectados quando nada de novo se acrescenta à descrição da acção típica.
Sufragamos por inteiro as pertinentes palavras do Exmo. Procurador Geral-Adjunto quando, em jeito de síntese, a dado passo do seu parecer refere:
“Na verdade, para além de as alterações terem resultado das alegações da defesa, rectius, das declarações dos próprios arguidos em audiência de julgamento, o que vem dar ao mesmo, combinadas com os depoimentos valorados e considerados na formação da convicção do tribunal, o que desde logo dispensava a pretendida comunicação, conforme resulta expressamente do n.º 2 do artigo 358º do CPP, elas não modificaram a posição processual de nenhum dos recorrentes quanto à essência dos factos que lhes eram imputados na acusação, salvo na medida em que se traduziram num claro benefício para ambos, sem postergação das respetivas garantias de defesa.
Pois, mantendo-se todas as circunstâncias de tempo e lugar da respetiva atuação, apenas se modificou a forma de imputação, de coautoria, atuação conjunta, pensada e pré ordenada à agressão do ofendido, acompanhados por mais três pessoas, em autoria singular e paralela, de que resultou igualmente a desqualificação do crime agravado que lhes era imputado, em crimes de ofensa à integridade física simples, pelos quais viriam a ser condenados.
Acresce que a sentença, não modificou a essência da imputação ofensora da integridade física do ofendido constante da acusação, antes se limitando a especificar o concreto modo de execução e concretização dessa ofensa, que deixou de ser conjunta e passou a ser individual, e se traduziu no desferimento de murros e quedas conjuntas de cada recorrente com aquele, em lugar do desferimento de pontapés e murros por várias pessoas enquanto o ofendido estava caído no solo e da sua imobilização com aplicação do golpe conhecido por “mata-leão”, respetivamente.
Ou seja, meras precisões do modo de atuação dos arguidos sem modificação essencial do ilícito que lhes era imputado, salvo na sua desgraduação, em seu benefício, portanto, também decorrente da sua própria defesa ensaiada durante a audiência de discussão e julgamento.
Tais modificações, por conseguinte, além de não substanciais e de mera qualificação jurídica favorável aos recorrentes, não obriga à sua prévia comunicação e concessão de prazo para preparação de defesa, como tem sido considerado pela doutrina e pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, em nenhuma nulidade, portanto, incorrendo a sentença escrutinada neste particular aspeto.”
Lê-se também em Código de Processo Penal Comentado por Conselheiros do S.T.J., Almedina, 2014, (comentário do Juiz Conselheiro Oliveira Mendes em anotação ao art 358º do CPP), pág. 1128 e 1129: «(…) atenta a ratio do instituto, vem-se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido – artigo 32.º, n.º1, da Constituição da República – o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica dos factos e a conceder-lhe prazo para a preparação da defesa. Por isso, se considera que a alteração resultante da imputação de um crime simples ou “menos agravado”, quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender-se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou “menos agravado”, ou seja, defendeu-se em relação a todos os elementos de facto e normativos pelos quais vai ser julgado – a jurisprudência do Supremo Tribunal tem-se orientado, de forma pacífica, neste preciso sentido, como se vê, entre outros, dos acórdãos de 02.07.17, 03.11.12, 04.03.10, 06.04.06, 06.05.10, 06.06.14 e 07.10.31, proferidos nos Processos n.ºs 3158/02, 1216/03, 4024/03, 658/0, 1290/06, 1415/06 e 3271/07.
O mesmo sucede quando a alteração resulta na imputação de um crime menos grave do que o da acusação ou da pronúncia em consequência da redução da matéria de facto na sentença, quando esta redução não constituir, obviamente, uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, ou seja, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação – neste sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 91.04.03, publicado na CJ, XVI, II, 17 e o acórdão do Tribunal Constitucional de 94.04.17, proferido no Processo n.º 254/95. Tal acontece, ainda, face a alteração decorrente da requalificação da participação do agente de coautoria para autoria (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.11.09, publicado na CJ (STJ), XIII, III, 205), bem como perante alteração resultante da requalificação da culpa do agente de dolo direto para dolo eventual (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 72/05).» (sombreados nossos)
Assim, independentemente do juízo que se faça sobre a valoração da prova, a alteração em causa verificou-se depois de decorrida a fase da produção de prova e resultou de o tribunal ter considerado não provados os factos integrantes da coautoria, restando, por redução da matéria de facto, as autorias singulares e paralelas de cada um dos recorrentes que, na linha da posição que defendemos e temos vindo a citar, não traduz alteração relevante que devesse ser previamente comunicada aos arguidos e ora recorrentes nos termos do art 358º nº 1 do CPP, razão por que não se verifica a invocada nulidade.
Destarte, e sem necessidade de mais considerações, por não se verificar a apontada nulidade a que se reporta o artigo 379º nº 1 b) do Código de Processo Penal, improcedem ambos os recursos quanto a este aspeto.

(…)
III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos BB e DD e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos arguidos/recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, quanto a cada um deles, em 3 (três) UC´s (arts. 513º nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal e 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, conjugado este com a Tabela III anexa a tal Regulamento).
*
Porto, 23 de Novembro de 2022
(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente - artigo 94º, n.º 2, do CPP – sendo que as assinaturas do presente acórdão foram apostas eletronicamente e encontram-se certificadas)
Luís Coimbra
Raúl Esteves
Amélia Catarino
___________
[1] Doravante, e apenas por facilidade de exposição, podendo também ser designado apenas por BB.
[2] Doravante, e apenas por facilidade de exposição, podendo ser designado por DD.
[3] Diploma a que se reportarão as demais disposições citadas sem menção de origem ou apenas com a sigla CPP.