INTERROGATÓRIO DE ARGUIDO
NULIDADE
CASO JULGADO FORMAL
IRRECORRIBILIDADE DO DESPACHO DE PRONÚNCIA
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I - A decisão do juiz de instrução relativa à arguição de nulidade decorrente da omissão de interrogatório da arguida em sede de inquérito produz caso julgado formal.
II – Da jurisprudência do Tribunal Constitucional pode concluir-se que a faculdade de recorrer em processo penal constitui expressão das garantias constitucionais de defesa que impõem o recurso de sentenças condenatórias ou de atos judiciais que durante o processo tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais; todavia, sempre se aceitou que a Constituição não impõe a recorribilidade de todos os despachos proferidos em processo penal.
III - Assim, o direito de recurso, como imperativo constitucional, hoje consagrado de modo expresso no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, deve continuar a entender-se no quadro das garantias de defesa – ou seja, só e quando estas garantias o exijam é que uma situação se deve considerar abrangida pelo âmbito de proteção do direito referido –, o que não compreende necessariamente a impugnação do despacho de pronúncia, ainda que este indefira nulidades de atos de inquérito.

Texto Integral

Processo 16687/22.0T8PRT.P1
Comarca do Porto
Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 9

Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO
I.1. O Ministério Público veio interpor recurso do despacho proferido em 21.02.2022 que julgou procedente a nulidade consubstanciada na omissão absoluta de interrogatório da sociedade arguida R..., S.A. prevista no artigo 120º, n.º 2, al. d) do CPP invocada por esta sociedade na sua contestação.

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I.2. Recurso da decisão (conclusões que se transcrevem parcialmente)
“1. Vem o presente recurso interposto por discordarmos do despacho do M° Juiz de 21/02/2022, que entendeu, julgar procedente a pretensão da arguida "R..., S.A.", já por esta visada na fase instrutória, declarando, agora, a nulidade do despacho de acusação e de pronúncia, proferida nos autos e que disse ter sido tempestivamente invocada nos termos e de acordo com o artigo 120° n°2 al. d) do CPP, não a submetendo a julgamento.
2. Nessa decisão, ora recorrida, que julgou a nulidade consubstanciada na omissão absoluta de interrogatório da sociedade arguida "R..., S.A." (na pessoa do representante legal), prevista no artigo 120° n°2 al. d) do CPP, tempestivamente invocada, com consequência declarando nulo o despacho de acusação e de pronuncia nos autos, que impediu esta sociedade arguida de ser submetida a julgamento, não poderia ter sido proferida nesta fase processual;
3. Por virtude desta invocada nulidade, já ter sido conhecida e decidida na fase de instrução e por despacho do M° JIC, que apreciou e decidiu esta matéria em sentido contrário, pronunciando também esta mesma arguida, sociedade "R..., S.A.".
4. Preceitua o artigo 338° do CPP que o Tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar; questão esta que não se enquadra no âmbito de tal preceito legal;
5. Porque o despacho recorrido incidiu sobre um despacho de pronúncia proferido pelo M° Juiz de Instrução e já transitado.
6. Não competindo ao Juiz do julgamento fazer a sindicância da pronúncia em fase diversa da audiência de julgamento, porquanto só após a produção de prova em julgamento pode o juiz de julgamento pronunciar-se sobre o mérito da pronúncia.
7. Caso assim não fosse o Juiz de julgamento funcionaria como uma Segunda Instância em relação ao Juiz de Instrução Criminal.
8. Nos termos do preceituado no art. 311°, n° 1, do Código de Processo Penal, o juiz do julgamento limita-se a pronunciar-se sobre nulidades e questões prévias e incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e no seu n°2 estabelece se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o juiz despacha no sentido das alíneas a) e b) desse preceito legal;
9. Devendo, tanto nos casos de pronúncia, como do despacho que recebeu a acusação, o Juiz de julgamento apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais - não arguidas em sede instrutória- que obstem ao conhecimento do mérito da causa, de acordo com o n°l do artigo 311º do CPP;
10. O que não é a situação dos autos!
11. Ora tal sindicância já não acontece relativamente ao despacho de pronúncia porque neste caso não existe, (nem faria sentido que existisse) norma expressa semelhante aos citados n°s 2 e 3 do artigo 311º do CPP;
12. Tendo existido despacho de pronúncia sobre tal matéria- ora de novo invocada em sede de contestação-, nada mais resta ao Juiz de julgamento do que proceder à realização deste ato processual, de recebimento da pronuncia e de marcação de dia para julgamento.
13. Nem se diga, conforme decidiu o M° Juiz recorrido, contra aquilo que ficou decidido pelo M° Juiz de Instrução, que a sociedade "R..., S.A.", não foi interrogada como arguida, na pessoa dos seus legais representantes, ou sequer notificada para esse efeito;
14. Conforme melhor ficou expresso na decisão do M° Juiz de Instrução, em parte aderindo à posição do MP pronunciou-se no sentido da inexistência de qualquer nulidade e de levar a julgamento a visada sociedade arguida.
15. Daí que o Juiz de julgamento teria sempre de proferir decisão de levar a julgamento a arguida sociedade não sendo licito a este Juiz e, no momento da prolação do despacho previsto no artigo 311° do CPP, apreciar nulidades já apreciadas e constantes do despacho de pronuncia;
16. Apenas apreciar questões de forma previas, incidentais ou nulidades de que deva conhecer e não foram anteriormente pela competente entidade judicial e em sede própria apreciadas.
17. Competindo ao Juiz de julgamento apreciar a factualidade constante da pronúncia, sob pena de poder funcionar como uma segunda instância dentro da primeira instancia.
18. Havendo despacho de pronuncia, nada mais resta ao Juiz do que realizar o julgamento e, oportunamente, proferir sentença/acórdão final;
(…)
20. Violou, assim, o Sr. Juiz deste recorrido Juiz9, inteiramente a decisão do Sr. Juiz de Instrução Criminal, que determinou a submissão da arguida sociedade "R..., S.A.";
21. Violando também e com a reapreciação de uma decisão de um Tribunal da mesma hierarquia, precisamente numa altura em que este Tribunal recorrido da Primeira Instancia havia já esgotado o seu poder jurisdicional!
22. Em nítida e frontal violação aos artigos 308°, 311° e 338°, todos do CPP,”.
Pugna pela revogação da decisão judicial recorrida e a sua substituição por outra que ordene a prossecução dos autos com a realização de audiência de julgamento.
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I.3. Resposta da sociedade arguida
A arguida R..., S.A. na resposta ao recurso, pugnou pela sua improcedência, concluindo (transcrição parcial):
§ 1. A R..., embora acusada pelo MP, não foi interrogada como arguida na fase de inquérito, através dos seus representantes legais, não tendo sequer tendo sido convocada para esse efeito, como a lei obrigava.
§ 2. Estando em causa um ato legalmente obrigatório (cf. artigo 272.°. n.° 1, do CPP), a omissão de interrogatório redunda em nulidade, como determina o artigo 120.°, n.° 2, alínea d), do mesmo Código, nulidade essa que foi tempestivamente invocada pela R..., em sede de instrução e, novamente, em sede de contestação, sendo a final e devidamente reconhecida no despacho recorrido.
§ 3. O MP, recorrendo a argumentos formais de preclusão, vem defender no seu recurso que, havendo despacho de pronúncia, o Tribunal recorrido estaria agora impedido de julgar procedente uma tal nulidade, sob pena de "violação" da decisão que pronunciou a R..., simultânea e inconsistentemente sugerindo que o pudesse e devesse decidir no acórdão final, após julgamento.
§ 4. Antes do julgamento há sempre lugar ao saneamento do processo, enquanto momento processual destinado ao conhecimento de nulidades e questões prévias ou incidentais que possam afetar a "apreciação do mérito da causa", na formulação dos artigos 311.°, n.° 1, e 338.°, n.° 1, do CPP.
§ 5. Reconhecendo-se a existência de questão dessa natureza, o Tribunal não apenas pode, como está obrigado a conhecê-la antes de iniciar o julgamento, nos termos preceituados nos mencionados artigos, exatamente como o fez o Tribunal a quo.
§ 6. Ao contrário do que é sugerido pelo MP, a circunstância de ter havido instrução não põe em causa a obrigatoriedade do saneamento, desde logo em matéria de nulidades.
§7. O artigo 311.° do CPP esclarece que o âmbito do saneamento só difere consoante haja ou não instrução quanto à possibilidade de o tribunal de julgamento rejeitar a acusação (n.os 2 e 3 do referido artigo), e já não quanto ao conhecimento a nulidades e de outras questões prévias (n.° 1 do mesmo artigo).
§ 8. Declarar a existência de nulidade processual por falta de interrogatório da R... na fase de inquérito não corresponde à rejeição da acusação, muito menos significando que o Tribunal esteja por essa via a sindicar os factos constantes da pronúncia.
§ 9. Não existe qualquer efeito preclusivo que coarte o poder-dever que recai sobre o Tribunal de julgamento de conhecer de nulidades em momento prévio ao julgamento, pelo que o Tribunal a quoatuou com plena cobertura legal, conhecendo e decidindo como e quando devia sobre a nulidade processual em causa.
§ 10. O artigo 310.°, n.° 1, do CPP confirma esta conclusão ao prever, desde 2007, que a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do MP abrange também a parte em que forem apreciadas nulidades e outras questões prévias ou incidentais.
§ 11. A integração destas questões no âmbito da irrecorribilidade do despacho de pronúncia só é constitucionalmente admissível se e porque a decisão instrutória, quanto a nulidades e outras questões prévias ou incidentais, não forma caso julgado formal.
§ 12. As normas constantes dos artigos 310.°, n.° 1, 311.°, n.° 2, e 338.°, n.° 1, do CPP, se interpretadas e aplicadas conjugadamente entre si no sentido de não poderem ser apreciadas e decididas pelo Tribunal de julgamento nulidades e outras questões prévias ou incidentais que tenham sido conhecidas pela decisão instrutória, sendo a decisão instrutória irrecorrível nos termos do referido artigo 310.° n.° 1, do CPP redundam em norma materialmente inconstitucional, nomeadamente por violação da garantia de recurso consagrada no artigo 32.°, n.° 1, da Constituição (como reconhecem reiterada e pacificamente o Tribunal Constitucional, a jurisprudência dos nossos Tribunais superiores e a nossa doutrina).
§ 13. Logo, e além de tal não ser o que, sequer por aproximação, se extrai do regime legal em vigor, em nenhuma medida seria sequer constitucionalmente admissível que o Tribunal a quo estivesse impedido de tomar a decisão que tomou e no momento processual em que o fez.
§ 14. A R... foi constituída arguida em 07.07.2020 e acusada pelo MP em 01.07.2021 sem alguma vez ter sido interrogada ou notificada para o efeito durante a fase de inquérito.
§15. Os interrogatórios individualmente realizados a AA e a BB, meros trabalhadores da R..., que nunca assumiram posição de seus representantes legais, não valem como interrogatórios da R..., enquanto sujeito processual autónomo que é.
§ 16. A nulidade processual decorrente da falta de interrogatório da R..., enquanto arguida, na fase de inquérito, nos termos dos artigos 212°, n.° 1, 120.°, n.° 2, alínea d), do CPP, transmitindo-se à acusação e do MP e à decisão de pronúncia (ex vi artigo 122.°, n.° 1, do CPP), é uma realidade processual objetiva e documentada.”
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I.4. Parecer do Ministério Público
Nesta Relação o Ministério Público acompanhou a argumentação constante na motivação do recurso interposto pelo Ministério junto do tribunal recorrido.
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I.4. Resposta
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do CPP, tendo sido apresentada resposta ao parecer por parte da sociedade arguida.
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I.5. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Objecto do recurso
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
No caso dos autos, não há quaisquer vícios ou questões de conhecimento oficioso que importa conhecer por nenhuma dessas situações ocorrerem no caso sub judice.
Assim, da análise das conclusões do recorrente a única questão que importa apreciar e decidir é a de saber se o Mmo. Juiz podia ter reapreciado a nulidade prevista no artigo 120º, n.º 2, al. d) do CPP suscitada na contestação da sociedade arguida R..., S.A. por já ter sido conhecida na fase de instrução.
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II.2. Decisão recorrida (que se transcreve integralmente)
Da «Questão prévia processual: omissão de interrogatório na fase de inquérito», invocada pela sociedade arguida R..., S.A.:
Na contestação que apresentou nos autos, a sociedade arguida R..., S.A. invocou a referida questão (prévia) processual, alegando, em síntese, que nunca foi interrogada, na pessoa dos seus representantes legais, ou sequer notificada para esse efeito durante toda a fase de inquérito.
De facto, os interrogatórios realizados em 21/06/2021 a AA e BB, trabalhadores da R..., S.A, e arguidos neste processo, não valem como interrogatórios da sociedade arguida, enquanto sujeito processual autónomo que não se confunde formal, orgânica e jurídico-processualmente com aqueles arguidos individuais.
De resto, alega, aqueles arguidos foram interrogados nos autos a título nominal e individual, depois de individualmente notificados para esse efeito. Os arguidos não foram notificados para interrogatório ou prestado declarações também em nome e representação da sociedade arguida R..., S.A, sendo certo que nenhum dos dois arguidos alguma vez assumiu a posição de representante legal da R..., S.A.
Constituindo o interrogatório de arguido um acto obrigatório a realizar no inquérito (art. 212º, n° 1, do CPP), a sua omissão absoluta (no caso, a efectuar na pessoa dos representantes legais da arguida R..., S.A.) integra a nulidade prevista no art. 120°, n° 2, al. d), do CPP, que a arguida aqui invoca para os devidos efeitos.
Alegou ainda a arguida R..., S.A que a circunstância de a referida nulidade ter sido invocada em fase de instrução e ai desatendida não opera qualquer efeito preclusivo (ou qualquer sanação do vício), podendo o tribunal de julgamento conhecer de nulidades e questões prévias e incidentais mesmo no caso de ter havido instrução.
O Ministério Público pronunciou-se sobre a referida «questão prévia processual», reiterando o que já havia explanado e fundamentado em sede de Instrução (onde a questão já foi tratada) e pedindo a improcedência da excepção de nulidade invocada.
Centrando a sua alegação na possibilidade de a conduta dos arguidos BB e AA vincular a R..., S.A e, por via disso, fundamentar a responsabilidade penal desta sociedade (concluindo que aqueles arguidos actuaram em representação e no interesse da R..., S.A,), o Ministério Público refere que a arguida R..., S.A, foi interrogada como arguida na pessoa dos seus funcionários BB e AA, que os arguidos foram notificados individualmente, mas aquando dos respectivos interrogatórios intervieram por si e na qualidade de representantes legais da arguida R..., S.A, não tendo, desta feita, havido qualquer obstaculização ou diminuição dos direitos de defesa desta, representada por aqueles.
Apreciando:
A) Para a apreciação da «questão prévia processual» em análise, importa ter em consideração os seguintes factos e incidências processuais, suportados por elementos probatórios constantes dos autos:
a) A R..., S.A. é uma sociedade anónima cujo objecto inclui, entre outras, a actividade de produção e comércio, incluindo importação e exportação, de produtos alimentares e de consumo doméstico (Certidão Permanente da sociedade, consultada em 19/07/2019, junta a fls. 655a 673 dos autos);
b) O Conselho de Administração da sociedade, para o triénio 2019/2021, é constituído pelos seguintes membros: CC (Presidente), DD (Vogal) e EE (Vogal) (Certidão Permanente da sociedade, consultada em 19/07/2019, junta a fls. 655 a 673 dos autos);
c) No dia 07/07/2020, em cumprimento de um mandado de busca e apreensão, foi efectuada busca às instalações da sociedade R..., S.A, na Rua ..., Lisboa, estando presentes na diligência, e assinado o respectivo auto, FF, na qualidade de contabilista certificada da sociedade alvo de busca, GG, na qualidade de advogado da sociedade, e EE, na qualidade de administrador da sociedade. Nessa altura, a sociedade R..., S.A foi constituída arguida, tendo o respectivo termo sido assinado, na parte respeitante ao «arguido» por EE e na parte respeitante ao «defensor» por GG (documentos de fls. 5400 a 5405 dos autos);
d) Em 04/06/2021, foi proferido o seguinte despacho nos autos (fls. 9593 e 9594 dos autos):
"Convoque para interrogatório no dia 16-06-2021, informando que, querendo, pode vir acompanhado de Advogado, ou não o fazendo, ser-lhe-á nomeado defensor (art. 64° n° 1 al. b) do C.P.P.):
AA, TIR a fls. 5146, para as 16:30h;
HH, TIR a fls. 5412, para as 13:30h; (...)".
e) Em 04/06/2021, foi enviada notificação (por via postal simples com prova de depósito) ao arguido BB, na qualidade de arguido, para comparecer nos Serviços do Ministério Público do DIAP Regional do Porto, no dia 16/06/2021, às 13h30m, a fim de se proceder a interrogatório no âmbito dos presentes autos (documento de fl. 9629 dos autos);
f) Em 04/06/2021, foi enviada notificação (por via postal simples com prova de depósito) ao arguido AA, na qualidade de arguido, para comparecer nos Serviços do Ministério Público do DLAP Regional do Porto, no dia 16/06/2021, às 15h30m, a fim de se proceder a interrogatório no âmbito dos presentes autos (documento de fl. 9632 dos autos);
g) Em 04/06/2021, foi enviada notificação ao Sr. Dr. II, na qualidade de Mandatários dos referidos arguidos, comunicando-lhe a realização de interrogatórios dos mesmos (documento de fl. 9633 dos autos);
h) Por despacho proferido em 08/06/2021, os interrogatórios dos referidos arguidos foram marcados para 15/06/2021, tendo sido emitida carta precatória para interrogatório, através de videoconferência, e seguindo-se nova notificação dos arguidos e do Defensor (documento de fls. 9642 e 9643 e 9695 e 9697 a 9699 dos autos);
i) Após comunicação de impedimento pelos arguidos para a data agendada e designação de nova data (21/06/2021) para a diligência (fls. 9759 e 9760, 9763, 9768 e 9769, 9828 a 9830, 9833 e 9834 dos autos), os interrogatórios dos arguidos vieram a ser realizados no dia 21/06/2021 (fls. 9835 a 9842 dos autos);
j) No "auto de comparência", de fl. 9835 dos autos (cujo teor aqui é dado como reproduzido), consta, além do mais, o seguinte;
- "(...) esteve hoje presente nesta Secretaria do Ministério Público - 8" Secção do DIAP de Lisboa, pelas 9:40, o arguido abaixo devidamente identificado, a fim de ser interrogado nessa qualidade no âmbito da Carta Precatória (...) emanada dos autos de inquérito n° 12/19.0FAPRT.";
- "IDENTIFICAÇÃO DO(A) INTERROGADO(A):
Nome: AA
(...)
Profissão: "Exportador"
(...)".
k) No "auto de Interrogatório de arguido por sistema de videoconferência", de fls. 9836 a 9838 dos autos (cujo teor aqui é dado como reproduzido), consta, além do mais, o seguinte:
"Chamar-se: AA
(...)
Existem indícios de que pelo menos entre Maio de 2018 e Outubro de 2019, o arguido AA, por si e no interesse da sociedade R..., S.A., acedeu participar num esquema criminoso que lhe foi proposto por JJ e que consistiu na venda, no mercado português, de bebidas e outros produtos alimentares sem liquidação de IVA, através da montagem de um intrincado e complexo circuito documental de vendas e transportes intracomunitários fictícios.
O arguido AA, assim actuou bem sabendo que as mercadorias que através da R... vendeu às sociedades dominadas por JJ, foram alvo de um esquema de fraude e retornaram ao mercado nacional sendo aqui revendidas a preço inferior àquele pelo qual haviam sido compradas ao R..., S.A
AA actuou violando os seus deveres funcionais, com vista a obter, para si e para a sociedade R..., um enriquecimento ilegítimo à custa do prejuízo do erário público português e bem sabendo que, desta forma, permitia às sociedades dominadas por Ali a venda de mercadoria com quebra de preço causando distorção da concorrência, prejudicando os demais operadores económicos portugueses.
(...)
Pelo arguido foi dito que desejava prestar declarações (...).".
I) No "auto de comparência", de fls. 9839 dos autos (cujo teor aqui é dado como reproduzido), consta, além do mais, o seguinte:
- "(...) esteve hoje presente nesta Secretaria do Ministério Público - 8a Secção do DIAP de Lisboa, pelas 10:49, o arguido abaixo devidamente identificado, a fim de ser interrogado nessa qualidade no âmbito da Carta Precatória (...) emanada dos autos de inquérito n° 12/19.0FAPRT.";
- "IDENTIFICAÇÃO DO (A) INTERROGADO(A):
Nome: BB
(...)
Profissão: Gestor
(...)".
m) No "auto de interrogatório de arguido por sistema de videoconferência", de fls. 9840 a 9842 dos autos (cujo teor aqui é dado como reproduzido), consta, além do mais, o seguinte:
"Chamar-se: BB
(...)
Existem indícios de que pelo menos entre Maio de 2018 e Outubro de 2019, o arguido BB, por si e no interesse da sociedade R..., S.A., acedeu participar num esquema criminoso que lhe foi proposto por JJ e que consistiu na venda, no mercado português, de bebidas e outros produtos alimentares sem liquidação de IVA, através da montagem de um intrincado e complexo circuito documental de vendas e transportes intracomunitários fictícios.
O arguido BB, assim actuou bem sabendo que as mercadorias que através da R... vendeu às sociedades dominadas por JJ, foram alvo de um esquema de fraude e retornaram ao mercado nacional sendo aqui revendidas a preço inferior àquele pelo qual haviam sido compradas ao R..., S.A
BB actuou violando os seus deveres funcionais, com vista a obter, para si e para a sociedade R..., um enriquecimento ilegítimo à custa do prejuízo do erário público português e bem sabendo que, desta forma, permitia às sociedades dominadas por Ali a venda de mercadoria com quebra de preço causando distorção da concorrência, prejudicando os demais operadores económicos portugueses.
(...)
Pelo arguido foi dito que desejava prestar declarações (...).".
B) A «questão prévia processual» em análise foi invocada pela arguida R..., S.A no requerimento de abertura de instrução e foi objecto de análise e decisão em sede de instrução (cfr. decisão instrutória proferida em 05/11/2021).
Assim, importa saber se o tribunal de julgamento pode ou não, deve ou não, conhecer, aqui e agora, da questão sobre a qual já recaiu decisão judicial, em sede de instrução.
A solução não se afigura difícil, face ao quadro legal aplicável (o art. 310°, n° 1, do CPP, estabelece a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais (norma cuja conformidade constitucional já foi várias vezes afirmada pelo Tribunal Constitucional)).
Em suma, a decisão instrutória, na parte em que julgou improcedente a «questão prévia processual» / nulidade (de inquérito) arguida no requerimento de abertura de instrução, não faz caso julgado sobre a questão, dela havendo que conhecer pelo tribunal de julgamento, uma vez que foi suscitada pela arguida R..., S.A na sua contestação.
C) A sociedade arguida R..., S.A alega que nunca foi interrogada, na pessoa dos seus representantes legais, ou sequer notificada para esse efeito durante toda a fase de inquérito, alegando também que, constituindo o interrogatório de arguido um acto obrigatório a realizar no inquérito (art. 212°, n° 1, do CPP), a sua omissão absoluta (no caso, a efectuar na pessoa dos representantes legais da arguida R..., S.A) integra a nulidade prevista no art. 120°, n° 2, al. d), do CPP, que a arguida invoca para os devidos efeitos.
O Ministério Público alega refere que a arguida R..., S.A foi interrogada como arguida na pessoa dos seus funcionários BB e AA, que os arguidos foram notificados individualmente, mas aquando dos respectivos interrogatórios intervieram por si e na qualidade de representantes legais da arguida R..., S.A, não tendo, desta feita, havido qualquer obstaculização ou diminuição dos direitos de defesa desta, representada por aqueles.
No despacho que recebeu a pronúncia e procedeu à marcação de datas para o julgamento (despacho de 17/12/2021) foi abordada a questão da representação das sociedades comerciais arguida, servindo a fundamentação de tal decisão, ao menos em parte, para a «questão processual prévia» agora em análise.
Estabelecendo a lei penal (quer o Código Penal, quer vária legislação avulsa) que as pessoas colectivas (e entidades equiparadas) são susceptíveis de responsabilidade penal, logo se coloca a questão da representação de tais entidades no âmbito de um processo penal que lhes diga respeito (i.e., em que figure como arguida).
A pessoa colectiva arguida, enquanto sujeito processual, tem de estar representada no processo por uma pessoa singular, por um "rosto visível", uma "cara", por ser esta a via do exercício de alguns dos direitos que passa a gozar e do cumprimento de alguns dos deveres que sobre si passam a recair (direitos e deveres de intervenção pessoal), a partir do momento em que é constituída arguida.
O representante da pessoa colectiva no processo é quem supre a falta de aparência física da pessoa colectiva, quem humaniza a sua presença nas intervenções processuais (não sendo tal representante, ele próprio, um sujeito processual [pois sujeito processual é a própria pessoa colectiva], mas mero participante processual).
Não referindo a lei processual penal, de modo expresso e com carácter geral (embora, no direito penal secundário, existam algumas normas sobre esta matéria), a forma como a pessoa colectiva arguida deve estar representada em juízo, importa recorrer ao direito (processual) civil e/ou comercial, como direito subsidiário, concluindo-se que as pessoas colectivas são representadas em juízo por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem.
Admite-se, contudo, conforme foi referido no despacho acima mencionado, que o representante da pessoa colectiva no processo penal não seja, necessariamente, o representante legal (director, gerente ou administrador), acolhendo-se a figura do administrador de facto da sociedade, com progressivo apagamento da distinção entre os administradores "legais" e os administradores de facto das sociedades, pois o que interessa é a identificação da realidade decisória substancial no plano da administração. Contudo, importa sublinhar que, nestes casos, o afastamento da representação da pessoa colectiva pelo representante legal ter de ser motivado (em função da demonstração de uma realidade que configura um desvio, na actuação da pessoa colectiva, face ao que decorreria da lei, dos estatutos ou do pacto social), o que manifestamente não sucede no caso dos autos face à sociedade arguida R..., S.A (o Ministério Público não alegou qualquer situação deste género quanto à sociedade R..., S.A, o mesmo não sucedendo quanto a outras sociedades arguidas).
Admite-se também a solução legislativa de a representação da pessoa colectiva arguida ser feita por pessoa singular designada pela primeira (i.e., a pessoa colectiva deve ser representada pelo representante legal no momento em que é constituída arguida, mas, a partir desse momento, tem o direito de designar um representante, para o efeito de a representar no processo enquanto arguida).
Sublinhe-se ainda que a representação da pessoa colectiva no decurso do processo não se confunde com os pressupostos legais de imputação de um crime à pessoa colectiva.
No caso dos autos, a sociedade arguida R..., S.A., sociedade comercial anónima, possui representantes legais (Conselho de Administração, constituído pelos seguintes membros: CC (Presidente), DD (Vogal) e EE (Vogal)).
A constituição como arguida da sociedade R..., S.A foi feita na pessoa de EE (que assinou o termo de constituição de arguida na respeitante ao «arguido»), que é administrador da referida sociedade.
Quer dizer, os também arguidos AA e BB não são representantes legais da sociedade arguida R..., S.A e, portanto, não se aceita que a arguida R..., S.A tenha sido interrogada nos autos (em inquérito) como arguida na pessoa dos "seus funcionários BB e AA" (cfr. posição do Ministério Público), por faltar a estes, manifestamente, poderes de representação legal da referida sociedade.
Igualmente se não aceita, ao contrário do alegado pelo Ministério Público, que os também arguidos AA e BB, apesar de notificados individualmente, intervieram, nos respectivos interrogatórios, por si e na qualidade de representantes legais da arguida R..., S.A (ainda que se conclua que esta representação legal não se verifica na pessoa daqueles arguidos).
De facto, conforme resulta dos factos e incidências processuais acima elencados, e foi referido pela arguida R..., S.A na sua contestação, os também arguidos BB e AA foram interrogados individualmente, depois de individualmente notificados para o efeito (de facto, quer nos despachos que determinaram a convocação destes arguidos para interrogatório, quer nas notificações enviadas a estes arguidos, quer nas notificações enviadas ao Defensor destes arguidos, quer nos autos de comparência destes arguidos, elaborados no processo, quer nos autos de interrogatório dos arguidos, que constam do processo, não existe qualquer menção à qualidade de representantes (legais) destes arguidos em relação à sociedade arguida R..., S.A; a única menção da ligação destes arguidos à sociedade R..., S.A surge nos factos que constituem a indiciação [factos que lhe são concretamente imputados], mas, ainda aí, surge apenas a menção de que os arguidos terão actuado, "por si e no interesse da sociedade R..., S.A.", o que, manifestamente, não é suficiente para sustentar a atribuição a estes arguidos da qualidade de "representantes legais da arguida R..., S.A" nos interrogatórios realizados nos autos; a titulo de comparação, refira-se que do interrogatório do arguido KK, realizado em 14/06/2021, é expressamente referido pela Entidade que preside ao mesmo, logo no início, que o arguido está a ser ouvido por si e na qualidade de legal representante da sociedade «L...», sendo certo que igual procedimento não foi de todo adoptado nos interrogatórios dos arguidos BB e AA [em relação à arguida R..., S.A]).
Em suma, a arguida R..., S.A na pessoa dos seus representantes legais, não foi interrogada como arguida, ou sequer notificada para esse efeito, na fase de inquérito dos presentes autos.
Sendo obrigatório interrogar como arguido a pessoa determinada contra a qual corra inquérito e em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime (art. 272°, n° 1, do CPP), e integrando a omissão absoluta de interrogatório a nulidade prevista no art. 120°, n° 2, al. d), do CPP, importa concluir pela verificação, no caso dos autos, em relação à arguida R..., S.A, da apontada nulidade.
A apontada nulidade é uma nulidade relativa ou dependente de arguição, estabelecendo o art. 120°, n° 3, al. c), do CPP, que a arguição deve ocorrer até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.
No caso dos autos, como já foi referido, a arguida R..., S.A arguiu a apontada nulidade no requerimento de abertura de instrução (e reafirmou tal arguição na contestação apresentada nos autos, em face do indeferimento da mesma na decisão instrutória), concluindo-se, assim, que a nulidade foi atempadamente invocada pela arguida R..., S.A.
Passando agora às consequências da apontada nulidade (omissão absoluta de interrogatório da sociedade arguida R..., S.A), resulta evidente que a verificação de tal nulidade acarreta a nulidade do despacho de acusação e, em consequência, do despacho de pronúncia, no que respeita à arguida R..., S.A.
Decisão:
Em face do atrás exposto, julga-se procedente a nulidade consubstanciada na omissão absoluta de interrogatório da sociedade arguida R..., S.A. (na pessoa do representante legal), prevista no art. 120°, n° 2, al. d), do CPP), tempestivamente invocada nos autos por esta sociedade e, em consequência, declara-se nulo o despacho de acusação e. por dependência e afectação, o despacho de pronúncia, proferidos nos autos, no que respeita à identificada sociedade arguida (não sendo tal sociedade sujeita ao julgamento marcado no âmbito dos presentes autos).
Notifique.”
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II.3. Apreciação do Recurso
§1. Com interesse para a apreciação da questão enunciada importa ter presente os seguintes elementos factuais e ocorrências processuais que constam dos autos:
a) A arguida R..., S.A. depois de ter sido notificada da acusação deduzida pelo MºPº requereu abertura de instrução invocando, como questão prévia, a omissão de interrogatório através dos seus representantes legais durante a fase de inquérito, arguiu a nulidade prevista no artigo 120º, n.º 2, al. d) do CPP.
No seu requerimento de abertura de instrução alega ainda que “sem embargo, a invocação da apontada nulidade não impede que, considerada na presente sede a defesa da R... no seu conjunto, e constatada (como seguramente será) a existência de argumentos substanciais e de mérito que impõem, de forma clara, uma decisão substancial de não pronúncia, seja essa a decisão final e não uma decisão meramente formal/processual tomada no final da fase de instrução em curso”.
Termina requerendo que “seja proferido despacho de não pronúncia quanto à R... relativamente a todos os crimes e à contraordenação de que vem acusada”.
b) O Ministério Público pronunciou-se sobre a questão prévia suscitada pela arguida R..., S.A. nos seguintes termos:
“A arguida R..., S.A. foi interrogada como arguida na pessoa dos seus funcionários BB e AA, conforme se demonstra no auto de fls. 9836 a 9838 e 9840 a 9842 (29º volume).
Tais arguidos foram interrogados por si e na qualidade de representantes da arguida R..., S.A., não tendo, desta feita, havido qualquer obstaculização ou diminuição dos direitos de defesa desta, representada por aqueles.
Como infra melhor se descreverá, tais arguidos, à data dos factos e do seu interrogatório assumiam as posições de representantes da sociedade R..., S.A pelas suas posições de liderança, de autoridade e direcção, não tendo havido, desta feita, qualquer preterição de diligências obrigatórias em inquérito, o que, a existirem, o que não se concedem, sempre seriam sanáveis.
a) Da qualidade dos arguidos BB e AA e da invocada "incapacidade de vinculação penal da empresa" invocada pela R..., S.A.. quer à luz do critério de imputação geral previsto no art. 11° n° 2 al a) do C.P. "em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nele ocupem uma posição de liderança" quer do critério específico do art. 7o do RGIT "actuação dos órgãos ou representantes, em nome e no interesse colectivo".
Quanto ao critério geral, prescrito no art. 11° n° 2 al. a) do C.P., urge desde logo esclarecer que, nos termos do disposto no n° 4 do art. 11°do C.P., "lidera" quem possui poderes de autoridade para o exercício do controlo de uma qualquer actividade.
Indubitavelmente que os administradores, os directores, os empresários, os gestores, entre outros, como quadros médios e superiores de sociedades, assumem posições de comando, direcção, condução, chefia, ou seja possuem conteúdos funcionais de autoridade em maior ou menor grau, consoante a sua posição empresarial.
A questão da invocada "incapacidade de vinculação da empresa", conforme apelidada pelos ora requerentes não pode, como pretendem estes, servir para descartar a responsabilidade da sociedade, o que seria facilmente alcançável "mediante a atribuição de poderes de administração a pessoas que não sejam titulares do respectivo órgão ou delegação ou incumbência especial por parte dos titulares do órgão da sociedade"'.
Recorde-se que, in casu, AA, à data da prática dos factos, assumia a função de Director e BB, ambos do Departamento de Exportação da R..., ou seja ambos detinham poder de acção e de autoridade no Departamento das exportações.
Nas sociedades complexas e de grande estrutura, como é o caso da R..., S.A., existe descentralização, designadamente por sectores ou áreas industriais e/ou comerciais, conferindo-se a cada um dos sectores uma autonomia, poder decisório e um grau de confiança aos indivíduos a quem são atribuídas determinadas funções, que lhes permitem decidir com autonomia e exercer um controlo ou vigilância sobre determinadas pessoas dentro da organização.
Das intercepções telefónicas e do depoimento das testemunhas LL, MM, NN e OO, entre outros, resulta que todas as vendas para exportação da sociedade R... são autorizadas pelo Director de Departamento e geridas pelo seu gestor, ou seja AA e BB, respectivamente.
Mais evidencia a acusação que os arguidos AA e BB, de forma autónoma e em representação da R..., S.A., negociaram com Ali e a sua organização, todos os negócios efectuados por estes com a R..., quer através de reuniões nas instalações da R..., quer através de contactos telefónicos. Foram tais funcionários que, em nome e representação da R..., estabeleceram as condições negociais com Ali.
E, sem pretensões de enunciações exaustivas, patenteia ainda a acusação, a este propósito que, BB e AA, com vista à realização das transacções da R..., S.A., deram ordens aos funcionários da R..., designadamente para serem retiradas todas as etiquetas, autocolantes ou selos com vista a impedir a rastreabilidade das mercadorias, ordenaram a aquisição de mercadoria com vista à satisfação das encomendas das sociedades geridas por Ali aos gestores das diversas lojas da R..., para tanto exercendo poderes de direcção e determinação, perante os seus colaboradores, no interesse e em representação da R..., S.A..
Fizeram-no no âmbito e dentro do seu conteúdo funcional exercendo a sua autoridade e competência para tais factos, ou seja vinculando e exteriorizando a vontade da R..., S.A.
Com efeito, como bem refere o Prof. Doutor Paulo Pinto de Albuquerque, in " A responsabilidade criminal das pessoas colectivas ou equiparadas" disponível nas fontes abertas da internet, " (...) O critério de imputação da responsabilidade criminal às pessoas colectivas e equiparadas é duplo: ou reside no cometimento da infracção criminal em nome e no interesse da pessoa colectiva por uma pessoa singular colocada em posição de liderança na pessoa colectiva ou equiparada, sendo esta posição de liderança baseada na sua pertença a um órgão da pessoa colectiva competente para tomar decisões em nome desta ou a um órgão da pessoa colectiva competente para fiscalizar aquelas decisões ou ainda na atribuição de poderes de representação pela pessoa colectiva àquela pessoa singular" como acontece nestes autos " ou reside no cometimento da infracção criminal em nome e no interesse da pessoa colectiva por qualquer pessoa singular que ocupe uma posição subordinada na pessoa colectiva ou equiparada e o cometimento do crime se tenha tornado possível em virtude de uma violação pelas pessoas que ocupam uma posição de liderança dos seus deveres de controlo e supervisão sobre os respectivos subordinados."
Quanto ao critério específico previsto no direito criminal das infracções tributárias ( Lei 15/2001 ) no art. 7° do RGIT, mais restrito porque consagra o princípio da responsabilidade das pessoas colectivas de acordo com o critério de imputação segundo o qual existe responsabilidade da pessoa colectiva aquando da prática de actos pelos órgãos ou representantes em nome e no interesse da pessoa colectiva, diremos igualmente que, a acusação é generosa na demonstração fáctica dos poderes de representação de HH e AA e da actuação destes em nome da R..., S.A.
Efectivamente, conforme já supra ficou exposto, "AA e BB em representação da R..., S.A. negociaram com Ali e a sua organização todos os negócios efectuados por estes, quer através de reuniões nas instalações da R..., quer através de contactos telefónico. "
A representação consiste "em ser realizado um negócio em nome de outrem para na esfera desse outrem se produzirem os seus efeitos "ou seja" os efeitos de um acto jurídico são imputados a outra pessoa que por obra da lei é considerado autor jurídico do acto (representado)".
Ora, AA e BB, actuaram no desempenho das suas funções, no âmbito das suas competências e exercendo o poder que detinham na sociedade R....
Todas as transacções intracomunitárias, descritas nos autos, com intervenção dos arguidos BB e AA, foram efectuadas em nome e no interesse da arguida sociedade R..., S.A., cumprindo o objecto social desta e os seus objectivos comerciais.
Em suma, em representação e no interesse da R..., S.A. "
c) Em sede de instrução foram inquiridas as testemunhas arroladas pela arguida R..., S.A. no seu requerimento de abertura de instrução invocando.
d) Na decisão instrutória o Mmo Juiz de instrução pronunciou, entre outros, a sociedade arguida R..., SA. pela prática dois crimes e da contraordenação imputados na acusação (dois crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104º do RGIT, um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º do CP, um crime de corrupção passiva no sector privado p. e p. pelo 8º, n.ºs 1 e 2 da Lei 20/2008, de 21.04 e uma contraordenação por venda com prejuízo, p. e p. pelos artigos 5º e 9º, n.º 1, al. a) do DL 166/2013, de 27.12) e julgou a nulidade suscitada no seu requerimento de abertura de instrução improcedente nos seguintes moldes:
Concorda-se com a avaliação e alegação do MºPº quanto aos fundamentos invocados.
A remissão supra operada para a douta promoção do MºPº é o no quadro admitido pelo próprio Tribunal Constitucional (vide Ac. de TC de 30.07.2003, proferido no Pº 485/03, publicado no DR de II Série de 09.04.2004 e pela própria Relação de Lisboa, vide Ac. TRL de 13.10.2004, proferido no Pº 5558/04-3).
Tal remissão é feita não por falta de avaliação e ponderação própria da questão mas por simples economia processual.
Consequentemente, não se reconhece existir qualquer nulidade.”
e) Remetidos os autos para julgamento o Mmo. Juiz designou data para julgamento e determinou a notificação dos arguidos para contestarem.
f) Na sua contestação a sociedade arguida R..., SA. invocando, como questão prévia, a omissão de interrogatório através dos seus representantes legais durante a fase de inquérito, arguiu a nulidade prevista no artigo 120º, n.º 2, al. d) do CPP.
Na sua contestação alega ainda que “a invocação da apontada nulidade não impede que, considerada na presente sede a defesa da R... no seu conjunto, e constatada (como seguramente será) a existência de argumentos substanciais e de mérito que impõem, de forma clara, uma decisão substancial de absolvição, seja essa a decisão final - e não uma decisão meramente formal/processual - tomada no final da fase de julgamento”.
Termina requerendo que “deve a decisão instrutória de pronúncia quanto à arguida R..., S.A. ser julgada totalmente improcedente, por não provada, sendo a mesma absolvida in totum das imputações criminais (e contraordenacional) que lhe são dirigidas”.
g) Na sequência da contestação da arguida R..., SA. foi proferida a decisão recorrida supra transcrita.
h) Por despacho proferido em 16.07.2022, transitado em julgado, determinou-se a separação de processos quanto à arguida R..., SA.
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§2. O M.P. sustenta que o Mmo Juiz de julgamento não podia apreciar de novo a nulidade já apreciada pelo Mmo. Juiz de instrução por violar o princípio do caso julgado.
Invoca como normas violadas os artigos 308º, 311º e 338º, todos do C.P.P..
Vejamos.
No caso vertente, a arguida R..., S.A. depois de ter sido notificada da acusação deduzida pelo MºPº requereu abertura de instrução invocando, como questão prévia, a omissão de interrogatório através dos seus representantes legais durante a fase de inquérito, arguindo a nulidade prevista no artigo 120º, n.º 2, al. d) do CPP.
Na decisão instrutória o Mmo Juiz de instrução pronunciou, entre outros, a sociedade arguida R..., SA. pelos crimes e pela contraordenação de que vinha acusada e julgou improcedente a nulidade suscitada no seu requerimento de abertura de instrução.
Remetidos os autos para julgamento, na sua contestação, a arguida R..., SA. invocando de novo, como questão prévia, a omissão de interrogatório através dos seus representantes legais durante a fase de inquérito, arguiu a nulidade prevista no artigo 120º, n.º 2, al. d) do CPP, tendo o Mmo. Juiz julgado procedente a invocada nulidade.
O art.º 310º do Código de Processo Penal preceitua que:
1. A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.° ou do n.° 4 do artigo 285.°, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
Sobre a questão de se considerar constitucionalmente admissível a irrecorribilidade do despacho que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação e aprecia nulidades e outras questões prévias ou incidentais transcrevemos na parte relevante o Ac. do TC n.º 482/2014 de 25.06.2014 (acessível em www.dgsi.pt):
“O Tribunal Constitucional, em jurisprudência constante, tem considerado constitucionalmente admissível, por não configurar uma restrição desproporcionada do direito ao recurso em processo penal, que o legislador, em benefício da celeridade processual, determine a irrecorribilidade do despacho que pronúncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação, bem como a irrecorribilidade da decisão instrutória na parte em que decide questões prévias ou incidentais àquele despacho (de pronúncia).”
Posto isto, cumpre saber se, à luz dos princípios do Estado de direito democrático e da segurança jurídica, se deve considerar-se que forma caso julgado no processo (caso julgado formal) a decisão do juiz de instrução que aprecie a arguição de uma nulidade suscitada pelo arguido.
A este propósito, transcrevemos o seguinte excerto do supracitado acórdão do TC n.º 482/2014:
“Ora, a questão da formação de caso julgado pela decisão instrutória de pronúncia não é pacífica, na jurisprudência do Tribunal Constitucional. A questão tem sido debatida a propósito da própria admissão do recurso de constitucionalidade, em face, designadamente, da provisoriedade da decisão instrutória.
Por um lado, no Acórdão n.º 95/2009, pode ler-se:
«o artigo 311º, nº 1, do Código de Processo Penal aponta, de facto, no sentido de a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público não constituir decisão final, também na parte em que aprecie nulidades e outras questões prévias ou incidentais. Neste preceito sobre o saneamento do processo na fase de julgamento permite-se, sem qualquer limitação, que o presidente do tribunal se pronuncie sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. Já no artigo 338º, nº 1, em audiência de julgamento, o tribunal só pode conhecer e decidir das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar; e no artigo 368º, nº 1, no momento de elaborar a da sentença, o tribunal só pode começar por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão. Numa palavra: os poderes de cognição do tribunal de julgamento em matéria de questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa estão limitados apenas quando a lei o determine expressamente».
Esta jurisprudência surge na linha do decidido, anteriormente, no Acórdão n.º 387/2008 e viria a ser secundada no Acórdão n.º 430/2010.
No entanto, esta orientação não tem recolhido um acolhimento pacífico na jurisprudência do Tribunal Constitucional, especialmente quanto à questão da elevação a pressuposto genérico dos recursos de fiscalização concreta da exigência de definitividade ou não provisoriedade da decisão recorrida (cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 92/87, 267/91, 240/94, 151/85, 400/97, 664/97, 466/95, 221/2000, 369/2002). Tem-se decidido, maioritariamente, que não é possível recorrer para o Tribunal Constitucional de decisões meramente precárias que serão necessariamente “consumidas” por uma ulterior decisão, o que tem sido aplicado, designadamente, ao conhecimento de recursos de constitucionalidade de decisões proferidas em sede de procedimentos cautelares. Todavia, a extensão irrestrita desta às decisões proferidas no processo penal, nas fases preliminares ao julgamento, não pode deixar de suscitar maiores reservas, desde logo, em face dos princípios constitucionais convocáveis no seu âmbito de apreciação.
Como observado por Lopes do Rego, merece alguma reserva «a doutrina restritiva fixada no Acórdão n.º 387/2008 (…): na verdade, não resultando expressamente das normas que regem o processo constitucional a exigência de que a decisão jurisdicional recorrida seja “definitiva”, consideramos que a inadmissibilidade de acesso ao Tribunal Constitucional deveria depender da estrita “inutilidade” da decisão que se viesse a proferir em tal recurso – parecendo-nos que a apreciação de questões normativas, constantes do despacho de pronúncia, ligadas às “questões prévias” ou ao enquadramento jurídico dos factos imputados ao arguido, embora “antecipada” relativamente à decisão final, não se poderá propriamente perspetivar como desprovida de utilidade, por deixar assente, em termos de caso julgado formal, as questões de inconstitucionalidade normativa que aí viessem a ser decididas» (v. LOPES DO REGO, ob. cit., p. 25). Em especial, no que concerne às exceções com reflexo na própria subsistência da pretensão punitiva do Estado (amnistia ou prescrição do procedimento criminal), tem surgido discussão na doutrina, face à formulação do artigo 310.º, sobre em que medida se forma ou não caso julgado formal sobre a decisão que, na fase de pronúncia, as dirima (neste sentido, v. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário ao Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direito do Homem, em anotação ao artigo 310.º).
Na verdade, inevitável será considerar que a jurisprudência constitucional restritiva acima assinalada, que negou conhecimento de norma que prevê a irrecorribilidade da decisão instrutória com base na sua natureza provisória, não foi a seguida nos Acórdãos a que temos vindo a fazer referência nesta decisão, que conheceram da conformidade constitucional da norma contida no artigo 310.º, n.º 1, do CPP, quer na parte referente à pronúncia, quer na respeitante às nulidades e outras questões prévias decididas na decisão instrutória.
Mais impressiva ainda para a questão agora em apreciação, será a circunstância de o Tribunal Constitucional ter tido, recentemente, ocasião de julgar uma norma que implicava o reconhecimento expresso da verificação de caso julgado da decisão instrutória de pronúncia.
No Acórdão n.º 520/2011, o Tribunal decidiu:
«Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 286.º, 288.º, 308.º, 310.º, n.º 1, 311.º e 313.º, n.º 4, do mesmo Código, quanto interpretadas tais disposições legais no sentido de que, tendo sido proferido despacho de pronúncia, na sequência de instrução, seguido de despacho emitido ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal, está vedado ao Tribunal Colectivo, na fase introdutória da audiência de julgamento, declarar extinto o procedimento criminal e, em consequência, determinar o arquivamento dos autos, por falta de relevância criminal dos factos imputados aos arguidos».
Vale a pena recordar o cerne da fundamentação do assim decidido:
«(…) o que se proíbe é que o juiz de julgamento, nessa fase, possa sequer efetuar uma tal avaliação, devendo apenas decidir pela condenação ou absolvição do Réu, após realizada a produção de prova e alegações, e fixados os factos que se provaram na audiência de julgamento.
Esta limitação dos poderes do juiz de julgamento tem como fundamento um reconhecimento da autoridade do caso julgado formal. Tendo já sido decidido pelo juiz de instrução criminal, por decisão transitada em julgado proferida nesse processo, que o arguido deve ser submetido a julgamento pelos factos constantes do despacho de pronúncia, entende-se que o juiz do julgamento não pode reponderar a relevância criminal dos factos imputados ao arguido, com a finalidade de emitir um segundo juízo sobre a necessidade de realização da audiência de julgamento.
A autoridade do caso julgado formal, que torna as decisões judiciais, transitadas em julgado, proferidas ao longo do processo, insuscetíveis de serem modificadas na mesma instância, tem como fundamento a disciplina da tramitação processual. Seria caótico e dificilmente atingiria os seus objetivos o processo cujas decisões interlocutórias não se fixassem com o seu trânsito, permitindo sempre uma reapreciação pelo mesmo tribunal, nomeadamente quando, pelos mais variados motivos, se verificasse uma alteração do juiz titular do processo».
De acordo com a doutrina expendida neste aresto, a decisão instrutória forma caso julgado formal, limitando, nessa medida, os poderes do juiz de julgamento quanto à submissão do arguido a julgamento pelos factos (e crimes) descritos na pronúncia.
De resto, só o reconhecimento da atribuição de autoridade de caso julgado formal às decisões proferidas pelo juiz de instrução permite compreender a ressalva introduzida no n.º 2 do artigo 310.º do CPP, pela revisão operada em 2007, ao passar a acautelar expressamente a possibilidade de o juiz de julgamento excluir provas proibidas, apesar da irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciou o arguido pelos factos constantes da acusação, mesmo na parte respeitante à decisão de nulidades e outras questões prévias ou incidentais (artigo 310.º, n.º 1 do CPP). Na verdade, aquele normativo mais não faz do que ressalvar do caso julgado formal da decisão instrutória a decisão do juiz de julgamento relativa à exclusão de provas proibidas. Se o caso julgado formal não se verificasse, não seria preciso consagrar expressamente esta exceção.
Ora, se se reconhece a intangibilidade do caso julgado formado pela decisão do juiz de instrução que decide o objeto do julgamento a realizar por outro juiz, por maioria de razão, não poderá deixar de se reconhecer a vinculação no processo (caso julgado) das decisões proferidas pelo juiz de instrução cujo conteúdo se apresenta como, material e formalmente, autonomizado da decisão instrutória (cujo escopo se esgota na definição do objeto do futuro julgamento).
Só o reconhecimento de autoridade de caso julgado formal às decisões do juiz de instrução cumpre o «“direito à instrução” da competência de uma entidade imparcial e independente titular do poder soberano de administração da justiça», direito também ele reconhecido na jurisprudência do Tribunal Constitucional (v. Acórdão n.º 527/2003).
Aliás, cumpre notar que a apreciação da competência material do Tribunal de Instrução Criminal onde teve lugar a instrução não faz parte do saneamento oficioso do processo, no momento previsto no artigo 311.º do CPP, já que a apreciação que então é pedida ao juiz (de julgamento) é que verifique se a acusação (ou pronúncia) proferida nos autos reúne todos os requisitos para abertura de uma nova fase do processo, em que terá lugar o julgamento. Os vícios que o juiz de julgamento é chamado a controlar são aqueles que impedem o prosseguimento dos autos (“nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa de que possa desde logo conhecer” – artigo 311.º, n.º 1). Trata-se, assim, de uma apreciação que se projeta no futuro dos autos, não no seu passado.
Respeitando a mesma lógica, o artigo 338.º, n.º 1 do CPP dispõe que, no início do julgamento, o tribunal conhece e decide «das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar» (destacado nosso).”.
São considerações que se subscrevem integralmente e que encontram, no caso presente, plena pertinência e aplicação.
Assim, a decisão do juiz de instrução relativa à arguição de nulidade decorrente da omissão de interrogatório da arguida R..., S.A. em sede de inquérito produz de facto caso julgado formal (no mesmo sentido, veja-se o Ac. do TRL de 05.05.2022, citado no parecer do Ministério Público desta Relação, subscrito como adjunta pela relatora do presente acórdão).
E, atento o caso julgado formal resultante da decisão anteriormente proferida pelo juiz de instrução, ao Mmo. Juiz de julgamento estava, pois, vedada a apreciação da mesma questão suscitada pela arguida R..., S.A. na sua contestação.
Por fim, afastada a revisibilidade pelo juiz de julgamento da decisão proferida pelo juiz de instrução que conheceu da arguição da nulidade de omissão de interrogatório em sede de inquérito, coloca-se a questão de saber se será constitucionalmente aceitável que essa decisão não seja sindicável por nenhuma outra instância, designadamente de grau superior.
No supra citado acórdão do TC n.º 482/2014, pertinente para a questão ora suscitada, escreveu-se:
“A Constituição garante a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos» (artigo 20.º, n.º 1) afirmando, em matéria penal, que «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso» (artigo 32.º, n.º 1).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional não retira daquelas normas a regra de que há de ser assegurado o recurso quanto a todas as decisões proferidas em processo penal, reconhecendo, porém, inequivocamente a garantia do recurso no que respeita às decisões penais condenatórias e às decisões de privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais.
Logo no Acórdão n.º 31/87, o Tribunal Constitucional admitiu «(…) que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos atos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido». Assim, o Tribunal Constitucional considera que a «salvaguarda desse direito de defesa impõe seguramente que se consagre a faculdade de recorrer da sentença condenatória», como, aliás, também decorre do artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aprovado para ratificação pela Lei n.º 29/78, de 12 de junho, que estabelece que «Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei». Para além disso, o direito de defesa em causa também impõe, «que a lei preveja o recurso dos atos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido». Certo é que não se impõe «que se possibilite o recurso de todo e qualquer ato do juiz».
No mesmo sentido se formou uma constante orientação jurisprudencial, que pode ser comprovada pelos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 178/88, 265/94, 610/96, 216/99, 471/2000, 30/2001 e 463/2002.
Como mais uma vez sublinhado, no recente Acórdão n.º 7/2014, quanto «ao direito de recurso que a Constituição expressamente integra no estatuto jusconstitucional do arguido em processo penal (artigo 32.º, n.º 1, da CRP), o Tribunal Constitucional tem sustentado, em jurisprudência constante, que um tal direito, sendo um meio de garantia de defesa do arguido, se dirige primacialmente a assegurar que este possa ver reapreciada, pelo menos num grau de recurso, a decisão que o condena pela prática de um crime e todas as outras decisões que, não sendo condenatórias, restrinjam ou comprimam ao longo do processo os seus direitos fundamentais», no entanto, fica de fora do «âmbito da respetiva tutela constitucional a possibilidade de sindicar perante um tribunal superior todo e qualquer despacho do juiz proferido em processo penal, o que naturalmente decorre da necessidade de compatibilizar os fins do processo penal – que, como é sabido, visa a responsabilização criminal de quem atenta contra bens jurídicos penalmente tutelados – com as garantias de defesa do arguido, que, até ao trânsito em julgado da condenação, se presume inocente (artigo 32.º, n.º 2, da CRP).– cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs, 259/88, 118/90, 332/91, 189/92,)».
Em suma, da jurisprudência do Tribunal Constitucional pode concluir-se que a faculdade de recorrer em processo penal constitui expressão das garantias constitucionais de defesa que impõem o recurso de sentenças condenatórias ou de atos judiciais que durante o processo tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais. Todavia, sempre se aceitou que a Constituição não impõe a recorribilidade de todos os despachos proferidos em processo penal. Não o impunha antes, nem impõe já depois da revisão de 1997, onde o segmento aditado ao artigo 32.º, n.º 1, explícita, afinal, o que a jurisprudência do Tribunal Constitucional já entendia estar compreendido nas «garantias de defesa em processo penal» (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 300/98).
Assim, o direito de recurso, como imperativo constitucional, hoje consagrado de modo expresso no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, deve continuar a entender-se no quadro das garantias de defesa – ou seja, só e quando estas garantias o exijam é que uma situação se deve considerar abrangida pelo âmbito de proteção do direito referido –, o que, pelas apontadas razões, não compreende necessariamente a impugnação do despacho de pronúncia (veja-se também neste sentido o já citado Acórdão n.º 30/2001).”
E, mais à frente podemos ler:
“Ora, para além da irrecorribilidade da pronúncia, também a questão da inadmissibilidade do recurso da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos mesmos factos da acusação, decorrente da norma do n.º 1 do artigo 310.º do CPP, quando indefira nulidades de atos do inquérito, por aquele suscitadas, tem sido objeto de uma jurisprudência constante do Tribunal Constitucional (v., entre outros, acórdãos n.ºs266/98, 216/99, 387/99, 30/2001, 463/2002, 481/2003, 79/2005 e 460/2008; considerando já a mais recente redação do artigo 310.º, n.º 1 do CPP, v., entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs51/2010, 477/2011, 146/2012 e 265/2012).
Sem prejuízo de algumas declarações de voto discordantes, o Tribunal sempre entendeu que a ausência de recurso da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, mesmo na parte em que se apreciem e indefiram nulidades do inquérito, não viola as garantias de defesa. Está, portanto, «perfeitamente sedimentado na jurisprudência do Tribunal Constitucional que a norma constante do artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal não padece de inconstitucionalidade, não ofendendo o artigo 32.º, n.º 1 da Constituição», como referido no Acórdão n.º 30/2001.” (sublinhado da nossa autoria).
Revertendo para o caso concreto, estamos perante uma nulidade sanável – omissão de interrogatório na fase de inquérito por a arguida entender que as pessoas que foram inquiridas não eram os seus legais representantes – prevista no artigo 120º, n.º 2, al. d) do CPP, dependente de arguição até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito (artigo 120º, n.º 3, al. c) do CPP).
Como se escreveu no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal (Tomo I, 2021, pág. 1259):
“Na verdade, destinando-se o inquérito a legitimar a acusação e a instrução a comprovar judicialmente essa legitimidade (ac. TC 124/90), compreende-se que uma vez terminadas essas funções preliminares também os vícios aí cometidos percam relevância. Eles não têm qualquer influência sobre a bondade do resultado final. O arguido pode, por não os ter invocado quando devia, ser injustamente submetido a julgamento, mas aí tem, de novo, todas as garantias de defesa (art. 32º/1 CRP). Os actos inválidos praticados durante o inquérito ou a instrução não afectam, em regra, a bondade do resultado final”.
Daqui decorre que a arguida R..., S.A., caso não tivesse invocado a dita nulidade no prazo previsto no citado artigo 120º, n.º 3 do CPP, a nulidade ficaria sanada e, como tal, estava de todo impedida de a suscitar na fase de julgamento.
No caso vertente, a decisão do Mmo. Juiz de instrução que julgou improcedente a invocada nulidade de omissão de interrogatório não teve como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais da arguida.
A arguida R..., S.A. no seu requerimento de abertura de instrução veio invocar a nulidade em causa, argumentando que não pôde esclarecer o que lhe vem imputado na acusação.
Sucede que, a mesma teve de facto a possibilidade de esclarecer tudo o que pretendeu no seu requerimento de abertura de instrução, arrolando inclusivamente meios de prova, que foram produzidos em fase de instrução. Isto significa que a arguida pôde dar plena exequibilidade ao seu direito de defesa.
Aliás, a arguida termina o seu requerimento de abertura de instrução alegando que “sem embargo, a invocação da apontada nulidade não impede que, considerada na presente sede a defesa da R... no seu conjunto, e constatada (como seguramente será) a existência de argumentos substanciais e de mérito que impõem, de forma clara, uma decisão substancial de não pronúncia, seja essa a decisão final e não uma decisão meramente formal/processual tomada no final da fase de instrução em curso” e termina requerendo que “seja proferido despacho de não pronúncia quanto à R... relativamente a todos os crimes e à contraordenação de que vem acusada”.
Acresce que, tendo sido pronunciada, a arguida voltou a ter possibilidade de exercer de forma plena o seu direito de defesa na fase subsequente – de julgamento – (designadamente, apresentando a respectiva contestação e arrolando meios de prova).
Não estamos de facto perante uma situação em que a improcedência da dita nulidade afectou/comprimiu irremediavelmente os direitos de defesa da arguida.
Como tal, atenta a natureza da nulidade aqui em causa, consideramos ser constitucionalmente aceitável que a decisão do Mmo. Juiz de instrução que julgou improcedente a nulidade invocada pela arguida R..., S.A. não seja sindicável por nenhuma outra instância.
Por todo o exposto, procede, pois, o recurso.
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III- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que aprecie a eventual admissibilidade dos meios de prova arrolados na contestação da arguida R..., S.A., prosseguindo os autos para julgamento.
Sem custas.
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Porto, 23.11.2011
Maria do Rosário Martins
Lígia Trovão
Pedro Menezes [(com declaração que se segue) “Acompanho a decisão.”]