CRIME DE AMEAÇA
REQUISITOS
Sumário

I - No Código Penal vigente são requisitos do crime de ameaça o anúncio de um mal futuro, pessoal ou patrimonial, sendo indiferente a referência ao prazo de concretização, que tal esteja na dependência do agente, na perspectiva do homem médio mitigada pelos especiais conhecimentos do agente e da vítima, e o dolo, enquanto intenção, previsão ou aceitação de que o mal anunciado é adequado a produzir temor ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação alheia.
II – Tem-se, pois, entendido que este ilícito pressupõe sempre a ameaça de um mal futuro por parte do agente para com a vítima, daí resultando a distinção entre o crime de ameaça e o crime tentado.
III – A expressão “eu acabo contigo” é consensualmente entendida pelo comum dos cidadãos, de norte a sul do nosso país, como correspondendo a uma ameaça contra a vida do visado, significando o mesmo que “eu mato-te” ou “eu tiro-te a vida”.

Texto Integral

RECURSO PENAL n.º 126/20.4GBILH.P1
Secção Criminal

Conferência

Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjuntos: Jorge Langweg
Maria Dolores Sousa

Comarca: Aveiro
Tribunal: Ílhavo/Juízo de Competência Genérica-J2
Processo: Comum Singular n.º 126/20.4GBILH
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Arguido/Recorrente: AA

Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO

a) No âmbito dos autos supra referenciados, por sentença proferida e devidamente depositada[1] a 05 de Abril de 2022, foi o arguido AA, com os demais sinais dos autos, condenado pela prática de 1 (um) crime de ameaça agravada, previsto e punível pelos arts. 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos).
b) Inconformado, o arguido AA interpôs recurso cuja motivação finalizou com as conclusões[2] que se transcrevem: (sem destaques/sublinhados)
I – O presente recurso tem como objeto a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos que condenou o recorrente como autor material de um crime de ameaça agravada previsto e punido pelos artigos 153º n.º 1 e 155º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
II – O Tribunal "a quo" considerou provado que: “Acto contínuo, o arguido, em tom sério, grave e elevado, disse à ofendida “Eu acabo contigo, não tenho medo de ti, toma cuidado”.
III – Na formação da sua convicção, o tribunal teve apenas em consideração as declarações da testemunha, BB, uma vez que a testemunha, CC, não o presenciou.
IV – Ora das declarações da testemunha BB, as quais de acordo com a ata do registo de gravação 20220324103358_4124440_2870479, resulta que esta não pronunciou o vocábulo “toma cuidado”.
V – Assim, o facto foi incorretamente julgado como provado.
VI – O Ministério Público colocou-lhe a seguinte questão: “no posto de abastecimento havia mais condutores?
Tendo a testemunha BB respondido; “que havia muita gente” - 2 minutos e 55ss. “estava a bomba cheia” - 8 minutos e 04 segundos (sublinhado nosso)
VII – O Patrono colocou a seguinte questão à testemunha BB:
“se havia muita gente no posto de abastecimento porque não indicou nenhum condutor como testemunha”?
Tendo a testemunha respondido: “não conheciam o meu irmão de lado nenhum nem a mim - 11 minutos e 10 segundos”. (sublinhado nosso).
VIII - Das declarações prestadas pela testemunha, CC; em audiência de julgamento, no dia 24 de março, e que se encontram gravadas no ficheiro nº. 20220324104741_4124440_2870479, mais concretamente a minutos:
4.26 – "mandar bitaites um para o outro";
4.37 – "já estavam fora do carro";
5.39 – "estava a dizer para a deixar"
7.06 – "respondiam um para o outro";
8.06 – "a guerrearem-se entre aspas um para o outro"
8.59 – "estavam ambos enervados, ambos alterados";
9.09 – "medo propriamente dito não me pareceu";
9.18 – "medo não, estava nervosa";
(sublinhado nosso)
VIII – Assim, o Tribunal “a quo” devia ter julgado como não provado o vocábulo “toma cuidado” - facto 4, constante da sentença ora objeto de recurso, violou entre outros o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº. 127º, bem como o disposto no artº. 355º nº.1º, ambos do CPP.
IX - Se o vocábulo “Toma cuidado” - facto 4, constante da sentença ora objeto de recurso, tivesse sido dado como não provado, o recorrente teria que ser absolvido.
X – Por outro lado, a prova produzida criou, na melhor das hipóteses, apenas dúvidas sobre a veracidade do facto 4 - “Toma cuidado”.
XI – Pelo que, é evidente a insuficiência probatória para a decisão da matéria de facto provada.
XII – O Tribunal ao condenar o réu, violou o princípio do “in dubio pro reo”, consagrado no n.º 2 do artº. 32º do CRP, o qual devia ter sido interpretado e aplicado no sentido da sua aplicação.
XIII – A expressão “Eu acabo contigo, não tenho medo de ti, toma cuidado” não significa o anúncio de um mal futuro, como requer o tipo de crime de ameaça, p. e p., pelo art. 155º, nº. 1, al. a), com referência aos artigos 153º e 132, todos do C.P..
XIV – São elementos constitutivos do crime de ameaça: o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal futuro, dependente da sua vontade e que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor e que esse anúncio seja adequado a provocar na pessoa a quem se dirige medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação” Ac. Da RC de 23-06-2020, Proc. 379/08.6PBVIS.C, in www.dgsi.pt.
XV - “Ameaça adequada é assim a ameaça que de acordo, com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado tendo em conta as suas caraterísticas, conhecidas pelo agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado, isto é, (…) o que é preciso é demonstrar uma intenção de causar medo ou intranquilidade ao ofendido, e que a promessa se revista de aspeto sério. Ou seja, que o agente dê a impressão de estar resolvido a praticar o facto” (Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, in Código Penal Anotado, 3ª ed., 2º vol., Editora Rei dos Livros, 2000, pag, 306).
XVI - Admitindo por mera hipótese académica como provado o vocábulo “Toma cuidado” em que assentou a sentença objeto de recurso, entendemos que não se referia a um mal futuro traduzido no cometimento de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais.
XVII - O Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão datado de 09.05.2017 – Proc. Nº. 17/16.3PTHRT.L15 - Não integra o crime de ameaça agravada dizer-se ao ofendido “Vou-te tirar a farda. Isso não vai ficar assim. Tem cuidado comigo”.
XVIII - Pugnaram os Senhores Magistrados que” o sentido da declaração/mensagem não oferece dúvidas, outros há em que o sentido não é tão óbvio, o que exige uma atividade de interpretação que terá de obedecer às regras normais da interpretação que terá de obedecer às regras normais da interpretação de qualquer declaração proferida no âmbito de uma conversa ou exposição tem de se atender às palavras proferidas, tem de se considerar a vontade presumível do declarante, manifestada nessas palavras, e tem de se atender ao sentido que qualquer destinatário retiraria daquelas palavras, colocado que estivesse na posição do real destinatário (ver acórdão da Relação de Coimbra, de 28/09/2011, processo 2489/03.PCCBR.C1, www.dgsi.pt).
XIX - No mesmo acórdão foi dito que “mesmo que tenha sido essa a intenção do arguido, entendemos que não é líquido que o seu sentido seja, apenas, o anúncio de um crime contra a vida ou a integridade física. Quer isto dizer que o facto dado como provado é de tal modo vago e impreciso que não é forçoso entende-lo, a nosso ver, nos termos em que a sentença recorrida o entendeu. E embora esteja provado que as referidas expressões eram adequadas a produzir-lhe (ao agente policial) receio, medo e inquietação, o que alcançou”, temos que o facto na forma relatada na sentença, não atinge o patamar de idoneidade adequado ao seu enquadramento típico, uma vez que não é possível considerar como seguro que a única interpretação possível, de acordo com as regras da experiência, é a de que o arguido pretendeu ameaçar a vida ou a integridade física do agente policial.”
XX - Mesmo que fique provado que o vocábulo “Toma cuidado” foi proferido, este não configura uma ação ameaçadora, a testemunha, BB, não ficou intimidada e atemorizada uma vez que a tranquilidade individual e a liberdade pessoal desta não ficaram prejudicadas.
XXI – Termos em que concluímos que os elementos do tipo de crime de ameaça agravada não se encontram preenchidos, pelo que o Tribunal “a quo” fez uma subsunção errada dos factos ao crime previsto no artigo 153º, nº. 1 e 155º, nº. 1, alínea a), ambos do Código Penal, o qual devia ter sido interpretado e aplicado no sentido da absolvição do recorrente.
c) Admitido o recurso, por despacho datado de 20/05/2022[3], respondeu o Ministério Público sufragando, sem alinhar conclusões, a sua improcedência e manutenção do decidido.
d) Neste Tribunal da Relação o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer previsto no art. 416º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, alongando-se em citações doutrinárias e jurisprudenciais sobre o recurso em matéria de facto e elementos constitutivos do crime de ameaça.
e) Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão.
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II - FUNDAMENTAÇÃO

1. É consabido que, para além das matérias de conhecimento oficioso [v.g. nulidades insanáveis, da sentença ou vícios do art. 410º n.º 2, do citado diploma legal], são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [v. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 2ª ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt].
Deste modo, na hipótese sub judicio, vista a síntese recursiva, as questões suscitadas que cumpre apreciar são as seguintes:
i) Erros de julgamento da matéria de facto
ii) Errónea subsunção dos factos ao crime de ameaça
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2. A fundamentação de facto realizada pelo tribunal a quo, no que ao caso interessa, é a seguinte: (transcrição)
A) Factos Provados
1. O arguido AA e a ofendida BB são irmãos entre si e, à data dos factos que infra se descreverão, tinham algumas quezílias relacionadas com partilhas de bens.
2. No dia 15 de Fevereiro de 2020, pelas 14h30, no posto de abastecimento de combustível “X...”, sito na Avenida ..., na Gafanha da Nazaré, o arguido apercebeu-se que a ofendida se encontrava na fila para abastecimento de combustível, no interior do seu veículo automóvel.
3. De imediato, o arguido saiu do seu veículo e dirigiu-se ao veículo da ofendida, batendo com as mãos com força no vidro da porta do condutor, onde esta se encontrava sentada
4. Acto contínuo, o arguido, em tom sério, grave e elevado, disse à ofendida “Eu acabo contigo, não tenho medo de ti, toma cuidado!”
5. De seguida, o arguido abandonou o local.
6. Com a conduta descrita, o arguido AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de provocar medo e inquietação na ofendida BB, sua irmã, de modo a fazê-la temer pela sua vida e integridade física, o que logrou conseguir, porquanto esta ficou com receio de que aquele viesse a concretizar os seus intentos, através de actos que não especificou, mas que poderiam causar-lhe a morte.
7. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, não se abstendo, contudo, de a praticar.
8. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
9. O arguido é motorista internacional, aufere rendimento mensal de cerca de € 1000,00, vive sozinho, num local de anexos, tem um filho menor de 9 anos, contribuindo para o sustento do mesmo com o valor mensal de € 150,00, tem por habilitações literárias o 9.º ano de escolaridade.
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B) Factos Não Provados
Decorrem como não provados os seguintes factos:
- que na fila de abastecimento, a ofendida se encontrava no veículo à frente daquele onde estava o próprio arguido;
- que na situação descrita em 4., o arguido tenha dito Eu acabo com a tua raça.
- que o arguido continuou a bater no vidro, tendo a ofendida trancado as portas do automóvel e mantido o vidro fechado.
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C) Motivação
A resposta dada à matéria de facto dos autos resultou do cotejo de todos os meios de prova produzidos e carreados em sede da audiência de julgamento e conjugados à luz das regras da experiência comum, designadamente os documentos que constam dos autos e da prova testemunhal produzida.
Nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente.
O arguido AA prestou declarações, tendo negado a prática dos factos de que vem acusado. Referiu que, na data, local e hora da ocorrência (que assume como as constantes da acusação), tendo verificado que a sua irmã, ora ofendida, BB, se encontrava na via/estrada, em fila para a mesma bomba de gasolina, onde se encontrava, saiu do carro e se dirigiu ao carro da mesma, apenas batendo no vidro do lado do condutor para esta o baixar e de molde a tirar satisfações com a mesma por esta ter dito à sua filha que ele “era um chulo”. Mais admitiu que se encontram desavindos por questões relacionadas com partilhas dos bens dos pais, “porquanto ela o quer tirar de uns anexos onde sempre viveu”.
Nega qualquer ameaça proferida e refere que a irmã lhe respondeu, de dentro do carro, sem sair do mesmo, com insultos e que talvez também lhe tenha chamado “alguns nomes”. Admite que, no dia da ocorrência – que não nega ser o indicado na acusação – se encontrava muito nervoso.
Por seu turno, ouvida a ofendida, BB, irmã do arguido, a mesma prestou declarações que se mostraram sérias e, no essencial, espontâneas, tendo descrito com pormenor e de forma circunstanciada os factos constantes da acusação, descrevendo as expressões proferidas pelo arguido no dia e hora em causa nos autos, merecendo, por tal, credibilidade.
Temos que a mesma assumiu a relação tensa por força de desavenças decorrentes das partilhas e não escondeu a estupefacção e mágoa pelo ocorrido em espaço público mas no seu discurso não evidenciou qualquer postura de raiva ou intuito de vingança face ao arguido.
Sendo certo que não confirmou ipsis verbis a expressão constante da acusação, a por si referida é de igual teor e tal dissonância surge normal, salvo melhor entendimento, em face da descrição de um evento dinâmico, de cadência rápida e com conduta agressiva, do ponto de vista verbal, dirigida pelo seu irmão.
Tratam-se de expressões que pela sua literalidade, expressividade e contundência são particularmente adequadas a causar medo e receio.
Temos que as declarações prestadas pela testemunha CC não foram de molde a corroborar a específica ocorrência em discussão, desde o início da mesma, na medida em que tendo ocorrido algo na via de acesso à bomba (onde quer o arguido, quer a ofendida referem ter ocorrido o encontro inicial entre ambos) para tal local não detinha visibilidade. Mas o descrito quanto ao assistido em momento imediatamente subsequente reforça as declarações prestadas pela ofendida. Referindo a existência de um bate boca entre o arguido e a ofendida junto à Bomba de gasolina, o qual observou desde o interior da mesma e com a distância insonorizada, referiu perceber que a ofendida “pedia para o arguido a deixar e este proferia palavrões, dos quais apenas recorda cabra” Ora, em primeiro lugar, como referimos supra, a ocorrência em discussão aconteceu na via de acesso à Bomba, conforme assumido quer pelo arguido, quer pela ofendida, pelo que para tal local inexistia visibilidade da testemunha inquirida, pelo que a mesma não faltou à verdade a este Tribunal ao referir nada ter ouvido com teor ameaçatório. No entanto, o por esta assistido, demonstra um estado de espirito e actuação do arguido consentâneo com o seu comportamento anterior, em face da demonstrada alteração comportamental do mesmo, em espaço público.
No que concerne aos antecedentes criminais do arguido teve o tribunal em consideração e valoração o teor do certificado criminal do arguido juntos aos autos, do qual nada consta.
Os factos relativos à condição económica e pessoal do arguido tiveram por base as declarações prestadas pelo arguido, não contrariadas por qualquer demais meio de prova produzido nos autos.
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Quanto aos factos dados como não provados, a sua resposta deveu-se à sua oposição e contradição com factualidade dada como provada, pelas razões vindas de expor, já que o arguido trabalhava na empresa e acedia ao cobre na área de produção e não no armazém (onde o mesmo estava guardado), sendo que o mesmo estava autorizado a permanecer na empresa por ser o seu local de trabalho. Já no que respeita ao destino que o arguido ia dar ao cobre que tinha na mala do carro quando foi interceptado, não foi feita prova suficiente, nem directa, nem indirectamente, de que o arguido fosse, naquele momento, para a sucata de DD.
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3. Apreciação do mérito
3.1 Dos erros de julgamento
Enquadrando brevemente a questão importa recordar que a matéria de facto, incluída no âmbito de conhecimento deste Tribunal ad quem, por força da previsão do art. 428º, do Cód. Proc. Penal, pode ser sindicada por duas vias distintas:
- A requerimento ou oficiosamente, por intermédio dos vícios que se evidenciem do texto da própria decisão, nos termos do disposto no art. 410º n.º 2, do Cód. Proc. Penal; ou
- A requerimento do interessado e mediante prévio cumprimento dos específicos requisitos previstos no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo diploma, através de impugnação.
No primeiro caso mencionado [vícios decisórios] a apreciação restringe-se às desarmonias evidenciadas no texto da decisão, por si ou em conjugação com as regras de experiência - tal como exarado pelo julgador e não por referência ao teor que o interessado tenha por mais adequado - e sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem, ainda que juntos aos autos ou produzidos em audiência de julgamento (v.g. documentos, declarações e depoimentos gravados), e que patenteiem qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto, contradição insanável (da fundamentação ou entre esta e a decisão) ou erro notório na apreciação da prova.
Já a segunda hipótese [erros de julgamento] abrange a análise da prova produzida em audiência, embora balizada pelos pontos questionados pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelo aludido normativo. Tal especificação há-de ter por referência o consignado na acta, nos termos do art. 364º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, e ser instruída com indicação das concretas passagens da gravação em que se apoia a pretensão ou a respectiva transcrição, de harmonia com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça firmada no Acórdão n.º 3/2012, de 8/3/2012, publicado no DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012, e das provas que devem ser renovadas.
Quer dizer o erro de julgamento da matéria de facto está associado à apreciação da prova em julgamento e sua valoração, de harmonia com o princípio da livre apreciação e respectivo limite consagrado no art. 127º, do Cód. Proc. Penal, ocorrendo quando o tribunal dá como provado facto relativamente ao qual não foi feita prova ou, pelo menos, prova bastante ou considera não provada matéria objecto de prova suficiente e segura.
Já as patologias do mencionado art. 410º, n.º 2, são vícios decisórios, de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei[4].
In casu, o recorrente AA manifesta a sua discordância relativamente à expressão “toma cuidado” constante do ponto 4 dos factos provados afirmando que o tribunal a quo baseou a sua convicção exclusivamente no depoimento da testemunha BB mas que esta nunca pronunciou tais palavras.
Todavia, contraditoriamente, alude depois à violação do disposto no art. 355º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e do princípio in dubio pro reo.
Ora, se a controvérsia se centra na ausência de prova sobre determinado facto, é manifesto que não se coloca a questão da valoração de provas alheias ao processo e muito menos a da insuficiência probatória que obviamente pressuporia a existência de alguma prova ainda que escassa ou contraditória para o fim em vista.
Neste conspecto e sendo certo que da motivação da convicção exarada na decisão recorrida se extrai que a expressão constante no ponto 4 dos factos provados assenta, realmente, apenas no depoimento da ofendida BB, já que o arguido negou tal factualidade e a testemunha restante, CC, apenas assistiu ao momento subsequente dos acontecimentos, é inquestionável que assiste razão ao recorrente já que ouvida a gravação disponibilizada – cuja deficiente qualidade (ruídos contínuos e inaudibilidade de grande parte das perguntas formuladas pelo Ministério Público) é incompreensível no actual estado de desenvolvimento dos meios tecnológicos – é patente que a ofendida BB nunca pronunciou tal frase nem outra de conteúdo semelhante.
Consequentemente, por inexistência de prova e demonstrado erro de julgamento, tem que eliminar-se a parte final do ponto 4 dos factos provados, cujo teor passará a ser o seguinte:
«4. Acto contínuo, o arguido, em tom sério, grave, e elevado, disse à ofendida “Eu acabo contigo, não tenho medo de ti”».
E passará a constar dos factos não provados que «o arguido na circunstância referida em 4 dos factos provados disse à ofendida “toma cuidado”».
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3.2 Da subsunção jurídica
Á pretensão da alteração da matéria de facto associou o arguido AA a da respectiva absolvição, sufragando que sem a expressão controvertida não haveria acção ameaçadora, adiantando ainda que a ofendida BB também não ficou intimidada.
E, acrescenta que tal conclusão seria válida mesmo que se mantivesse como provada a sindicada expressão, por não ser líquido o seu sentido.
Vejamos.
Dispõe o art. 153º, n.º 1, do Cód. Penal, que: “1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”, pena esta agravada para prisão até 2 anos ou multa até 240 dias quando a ameaça se reporta a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, por força da previsão do art. 155º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal.
Sendo tipificada como um crime de perigo abstracto no Código Penal de 1886 e, subsequentemente, como de resultado (v.g. no Cód. Penal de 1982), esta infracção está consagrada actualmente numa versão intermédia.
Assim, no Código Penal vigente são requisitos do crime de ameaça:
● Anúncio de um mal [pessoal ou patrimonial];
● Mal futuro [sendo indiferente a referência ao prazo de concretização];
● Mal esteja na dependência do agente [na perspectiva do homem médio mitigada pelos especiais conhecimentos do agente e da vítima]; e
● Dolo [intenção, previsão ou aceitação de que o mal anunciado é adequado a produzir temor ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação alheia].
Tem-se, pois, entendido que este ilícito pressupõe sempre a ameaça de um mal futuro por parte do agente para com a vítima, daí resultando a distinção entre o crime de ameaça e o crime tentado.
O recorrente limitou-se a afirmar que a frase proferida e dada como provada não significa o anúncio de um mal futuro mas não só não esclarece as razões de tal entendimento como, logo de seguida, se debruça sobre pressuposto diverso (a indeterminação do bem jurídico visado), não se percebendo exactamente qual a exacta censura que dirige à decisão recorrida.
Ora, o contributo essencial a ponderar no âmbito da acção ameaçadora não é, ao contrário do que parece ser a tese do recorrente, o vocábulo “toma cuidado”, mas antes a expressão “eu acabo contigo”, consensualmente entendida pelo comum dos cidadãos, de norte a sul do nosso país, como correspondendo a uma ameaça contra a vida do visado[5], pelo que, a circunstância daquelas outras palavras não terem resultado provadas é irrelevante para o fim em vista já que o bem jurídico visado está perfeitamente determinado, não havendo qualquer semelhança com o caso da jurisprudência citada[6].
Por outro lado, pese embora o tempo verbal escolhido (presente do indicativo), o contexto que rodeou a ocorrência também desmente o arguido quanto ao facto de não se tratar do anúncio de mal futuro, já que para além da ofendida se encontrar resguardada no interior de um veículo automóvel e aquele não ser portador de instrumento que lhe permitisse concretizar imediatamente o mal anunciado, acresce que o mesmo abandonou o local logo após proferir as referidas palavras pelo que o mal teria que ser necessariamente diferido no tempo.
Sustentou ainda o recorrente que a subsunção jurídica ao crime de ameaça seria inviável porquanto a ofendida BB não ficou intimidada.
Pois bem.
Recorde-se que o arguido apenas cumpriu o ónus de impugnação especificada imposto pelo art. 412º, n.ºs 3 e 4, do Cód. Proc. Penal, relativamente ao ponto 4 dos factos provados.
Assim, tendo ficado incólume a matéria do ponto 6 onde, entre o mais, consta que o arguido agiu com intenção de provocar medo e inquietação na ofendida BB, sua irmã, de modo a fazê-la temer pela sua vida, o que logrou conseguir, é óbvio que tal tese se apresenta como manifestamente infundada sendo ainda certo que mesmo que assim não fosse, considerando as desavenças entre ambos, sempre as palavras proferidas teriam que ser consideradas como adequadas a causar inquietação à visada, circunstância que, como já anteriormente se esclareceu, seria suficiente para a responsabilização criminal pela infracção imputada.
Neste conspecto, nenhum efeito útil é possível extrair da alteração da matéria de facto sindicada pelo arguido e supra referida.
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III - DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto conceder parcial provimento ao recurso do arguido AA e alterar o ponto 4 dos factos provados nos moldes supra referidos mas manter, quanto ao mais, a decisão recorrida.
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Sem custas - art. 513º, a contrario, do Cód. Proc. Penal.
Notifique.
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[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, n.º 2, do CPP[7]]
Porto, 02 de Novembro de 2022
Maria Deolinda Dionísio
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
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[1] Depósito visualizado no Citius (ref.ª 121182216) já que não consta do processo físico apesar de ser essencial para verificar a tempestividade do recurso da sentença por ser esse o acto que dá início ao prazo respectivo.
[2] O recurso não tem efectivamente conclusões já que, sob tal epígrafe, não é feito qualquer resumo das razões do pedido - v. art. 412º, n.º 1, parte final, do C.P.P. - mas antes se repetem quase integralmente as alegações antecedentes com pequenas divergências de pormenor como sejam a numeração e formatação. Todavia, sendo perceptíveis as questões formuladas entendeu-se desnecessário formular o convite admitido pelo art. 417º, n.º 3, do citado diploma legal.
[3] Mais uma vez visualizado no Citius (entre o mais para se verificar o efeito atribuído ao recurso - art. 417º, n.º 7, al. a), do Cód. Proc. Penal) já que também não instruiu o processo físico.
[4] Cfr. Maria João Antunes, in “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Janeiro-Março de 1994, pág. 121.
[5] Significa o mesmo que “eu mato-te” ou “eu tiro-te a vida”.
[6] Aí a expressão proferida era “vou-te tirar a farda. Isso não vai ficar assim. Tem cuidado comigo.”.
[7] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora.