PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
Sumário

I - Um juízo criminal não é materialmente competente para conhecer de um pedido de indemnização civil baseado na prática de um crime de homicídio negligente praticado no âmbito de uma relação de serviço público, como a de um médico de um hospital público.
II - O princípio da adesão não se sobrepõe às regras de separação das jurisdições dos tribunais judiciais e dos tribunais administrativos e fiscais.

Texto Integral

Proc. nº 1248/15.9T9AVR-A.P1


Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I - A assistente e demandante AA vem interpor recurso do douto despacho do Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Aveiro do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro que declarou a incompetência material desse Tribunal para conhecer do pedido de indemnização civil por ela formulado contra a arguida BB e contra o Centro Hospitalar ..., E.P.E. e absolveu estes demandados da instância cível.

Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
«1ª – O presente recurso versa sobre a matéria de direito e respetiva fundamentação da sentença proferida nos presentes autos que, nos termos e para os efeitos dos artigos 96.º, 97.º, nºs 1 e 2, 99.º, nº 1, 278º, nº 1, al. a) e 577.º, al. a), 595.º, n.º 1, e 597, n.º 1, al. c) do CPC, determinou, por despacho proferido a 3.6.2022, a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, absolvendo os demandados da instância cível.
2ª – A aqui Recorrente, notificada para o efeito, deduziu em 13 de Julho de 2020, na qualidade de assistente, pedido de indemnização civil contra os então arguidos demandados e o Hospital 1... - EPE, e aderiu ao douto libelo acusatório.
3ª – Neste pedido, a arguida demandada é demandada enquanto agente da prática do facto e o demandado Centro Hospitalar ..., enquanto comissário (entidade por conta, e ao serviço, de quem agiu a arguida demandada).
4ª – O despacho / sentença em crise decidiu verificar-se a excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria, e consequentemente, nos termos previstos nos artigos 97.º e 98.º do Código de Processo Civil , absolver os demandados da instância cível.
5ª – Ora, tal despacho sentença viola o artigo 71.º e 73.º do Código de Processo Penal que estatuem o princípio da adesão obrigatória do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal.
6ª – O pedido de indemnização civil, nos termos em que foi deduzido pela ali assistente e demandante, aqui recorrente, funda-se na prática do crime de que a arguida e demandada foi pronunciada: um crime de homicídio negligente p. e p. pelo disposto no art. 137.º nº 1 do Cód. Penal (homicídio negligente por via de intervenção da violação das legis artis).
7ª – No caso sub judice não estamos perante um caso típico de conflito de jurisdições pela simples razão de que a responsabilidade extra-contratual em questão deriva da existência de um crime e o pedido de indemnização está conexo com a verificação ou não da prática desse crime.
8ª – É esta a razão pela qual não tem sentido algum o despacho/sentença recorrido tentar abrigar-se nas considerações do Ex.mo Sr. Conselheiro António Henriques Gaspar, pois que, também ele, como não podia deixar de ser, reconhece que a jurisdição competente é encontrada com base na natureza jurídica da relação determinante, a qual é aqui, como deixámos demonstrada, a prática de um crime.
9ª – Com efeito, definindo-se a competência do Tribunal, em razão da matéria, pela natureza da relação jurídica tal como é apresentada pelo autor na petição inicial, isto é, no confronto entre o respectivo pedido e a causa de pedir, e sem esquecer, conforme fez a sentença em crise, que estamos perante um pedido de indemnização civil enxertado no processo penal, no âmbito do qual vigora o princípio da adesão, é por demais evidente que não se pode deixar de concluir pela competência do tribunal criminal para conhecer do pedido civil deduzido pela ali demandante, ora recorrente.
10ª – A causa de pedir do pedido de indemnização civil deduzido nos autos é constituída pelos mesmos factos que também são pressuposto da responsabilidade criminal e com base nos quais os arguidos vinham acusados e vem agora apenas uma arguida pronunciada.
11ª – Aliás, é este o entendimento absolutamente pacífico na nossa jurisprudência, conforme supra se exemplificou com o teor de alguns Acórdãos recentes que aqui damos por reproduzidos: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito dos autos de processo n.º 73/99.7TAVIS.C1.S1, datado de 03-12-2009 disponível em www.dgsi.pt, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito dos autos de processo n.º 89/16.0NLLSB-AG.L1-9, datado de 07-02-2019 disponível em www.dgsi.pt, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido nos autos de processo n.º 65/17.6T9FVN-A.C1, datado de 26-06-2019, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 08.05.2012, disponível em www.dgsi.pt.
12ª – No caso vertente, os factos geradores da responsabilidade civil são os mesmos que justificam a responsabilidade criminal da agora arguida demandada e do Hospital demandado, pois que o que está na base da responsabilidade criminal da agora arguida de acordo com a decisão instrutória de pronúncia é o facto de, pelo menos a arguida BB, perante um doente que tinha indicação para ser assistido no prazo máximo de 10 minutos (segundo a triagem do senhor enfermeiro que estava presente naquele episódio de urgência) não ter sido, nem assistido, nem sequer visto, não tendo pois aquela arguida ordenado qualquer exame de diagnóstico ou tratamento, nem sequer olhado para o doente para o tratar, apenas tendo o doente sido visto passadas 2 horas e 15 minutos.
13ª – Ora, na douta decisão de pronúncia, ao não ter agido como lhe era exigido, a arguida provocou, por omissão, a morte da vítima, pois quando este foi assistido já não o foi em tempo útil, tendo vindo a falecer passadas 16 horas, o que noa termos da douta decisão instrutória se deveu à violação clara das legis artis.
14ª – Tais actuações omissivas constituem a causa de pedir no pedido de indemnização civil formulado pela demandante, aqui recorrente, pelo que deverá ser revogado o despacho sentença que declarou a incompetência em razão da matéria e absolveu os demandados da instância cível, e consequentemente ser substituído por outro despacho que admita o pedido de indemnização civil enxertado no processo penal.

O Demandado Centro Hospitalar ..., E.P.E. apresentou resposta a tal motivação., pugnando pelo não provimento do recurso. Dessa resposta constam as seguintes conclusões:

«1ª O Centro Hospitalar ..., E.P.E. foi criado pelo DL 30/2011, de 02.03, sendo que, nos termos do artº 18º/1 do DL 18/2017, de 10.02, “As E.P.E., integradas no SNS são pessoas colectivas de direito público de natureza empresarial dotadas de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, nos termos do regime jurídico do sector público empresarial”.
2ª É uma pessoa colectiva de direito público e natureza empresarial, integrada no Serviço Nacional de Saúde, prestando, em conformidade, um serviço público de prestação de cuidados de saúde aos seus utentes; para cuja prossecução recorre a funcionários, agentes e trabalhadores com os quais estabelece um vinculo jurídico, nos termos do qual aqueles agem sob a sua orientação e no seu interesse; sendo através destes que se materializa, com o universo de utentes, uma relação de serviço público.
Tendo a vinculação de um hospital público, perante utentes ou terceiros, a natureza de uma relação de serviço público, a responsabilidade em que incorre assume, necessariamente, carater extracontratual.
3ª Apesar de a Recorrente alegar que “a arguida é demandada enquanto agente da prática do facto e o demandado Centro Hospitalar ..., enquanto comissário” e que “no caso sub iudice não cuidamos de culpa institucional, baseando-se o pedido na responsabilidade criminal assacada à médica em causa”, a verdade é que, sem margem para dúvida, o pedido cível por si deduzido contra o Centro Hospitalar ..., E.P.E. e a médica do seu mapa de pessoal, BB, se subsume ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, aprovado pela Lei 67/20017, de 31.12.
4ª A ora Recorrente poderia ter deduzido o seu pedido cível só contra a arguida – mas não o fez; antes, optando por efetivar um pedido de responsabilidade civil extracontratual contra o Centro Hospitalar a par com a sua trabalhadora médica, arguida no processo penal.
Um pedido de indemnização cível, ainda que deduzido em processo penal, não deixa de ser uma ação cível, com pressupostos e requisitos próprios, diferentes dos pressupostos e requisitos de uma ação penal.
5ª Não sendo o Centro Hospital arguido em tal processo, afigura-se que sempre a situação vertente será enquadrável no artº 72º/1 f) – não existindo, pois, a obrigatoriedade de o pedido cível ser deduzido no processo penal.
6ª Por outro lado, ao configurar o seu pedido da forma que o faz, deduzindo-o contra uma pessoa coletiva de direito público, a Recorrente tem de se conformar com pressupostos, requisitos e, mesmo, regime jurídico, próprios do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas e regras especificas, designadamente em termos de competência jurisdicional.
7ª A competência material para a apreciação de litígios nos quais se pretenda efetivar a responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito publico e de seus agentes/trabalhadores pertence expressa e especificamente à jurisdição administrativa, nos termos do disposto pelo artº 4º/1, alíneas f) e g) do ETAF.
8º Neste sentido, veja-se o Acórdão 011/08, de 10.09.2008, do Tribunal dos Conflitos (in www.dgsi.pt ): “De acordo com o prescrito no artº 4º nº 1 g) do E.T.A.F., aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, é a jurisdição administrativa a competente para conhecer de acção que vise efectivar a responsabilidade civil extracontratual de pessoa(s) de direito público, quer por actos de gestão pública, quer por actos de gestão privada”.
9ª É irrelevante para o caso que o pedido cível tenha a ver com o crime pelo qual a arguida se encontra acusada e que, por tal razão seja obrigatória a sua dedução no processo penal respetivo - qualquer pedido de efetivação de responsabilidade extracontratual terá na sua génese um hipotético facto ilícito, que poderá ter natureza penal ou não.
10º Inexiste qualquer razão para a Recorrente temer a possibilidade de ocorrerem julgamentos contraditórios – pois para tal existem regras relativas aos efeitos das sentenças, designadamente, as previstas pelos artigos 619º e seguintes do CPC.
11º A invocada realização mais barata do direito dos lesados à indemnização, não poderá nunca justificar o atalhar do cumprimento de normativos jurídicos que se destinam a assegurar os direitos de todos os intervenientes.»

O Ministério Público junto desta instância emitiu o seguinte parecer:
«A questão em discussão resume-se à da competência ou incompetência material do tribunal recorrido para conhecer do pedido cível nele formulado pela assistente contra a arguida e o CH..., onde a mesma exercia como médica à data dos factos sob julgamento e que determinaram fosse pronunciada pela prática de um crime.
Na primeira instância, a juíza a quo considerou a questão controvertida alheia aos interesses cuja representação e defesa incumbe ao MP, não lhe tendo sido dado oportunidade para sobre ela se pronunciar, tal qual foi concedida à demandante e às demandadas.
A nenhuma destas pessoas ou entidades incumbe ao MP representar em juízo, nem estão presentes outros interesses difusos ou coletivos, da comunidade ou do Estado, que lhe cumpra representar e/ou defender, salvo o bom funcionamento do sistema de justiça e a defesa da legalidade sempre na órbitra da sua atuação.
Ainda assim, considerando esse remoto, mas não insignificante interesse a que a atuação do MP não é nem pode ser indiferente, face ao seu estatuto constitucional e legal e ao disposto nas disposições conjugadas dos artigos 36º, n.º 1, a contrario, e 53º, n.º 1, do CPP, afigura-se que não lhe está subtraída a emissão de parecer no presente recurso, nos termos do artigo 416º do CPP, o que concretiza nos seguintes termos:
Pese embora as ´sábias considerações desenvolvidas por António Henriques Gaspar na anotação ao artigo 71º do CPP, in Código de Processo Penal Comentado, de António Henriques Gaspar e outros, 3ª Edição Revista, Almedina, 2021, acerca da não vigência do princípio da adesão obrigatória do pedido cível à ação criminal quando a competência para apreciar e decidir o facto ilícito subjacente ao pedido indemnizatório que extravase ao simples prática de um crime seja de outra jurisdição, v. g., da administrativa e fiscal, porque aquele princípio só vale quando a competência cível pertença a tribunais da ordem judiciária comum, é dizer a juízos/tribunais cíveis, afigura-se que, no caso em apreço, pelas razões constantes da motivação e conclusões do recurso da assistente, alinhadas com a jurisprudência maioritária, esse princípio é aplicável e, por conseguinte, deve o pedido cível formulado ser conhecido no processo penal onde foi deduzido.
Acresce que, sendo como seria, o eventual conflito negativo que pudesse vir a instalar-se neste caso, de jurisdição e não de competência, também não é aqui aplicável a tese segundo a qual não há recurso das decisões dos tribunais judiciais que decretem a sua incompetência material e/ou territorial, porque o eventual dissídio delas decorrente será resolvido pela suscitação do incidente de resolução do correspondente conflito, nos termos dos artigos 32º e ss. do CPP.
Termos em que, se emite parecer no sentido da procedência do recurso.»

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso (como é orientação uniforme da jurisprudência, são estas conclusões que delimitam o objeto do recurso) a de saber se deve, ou não, ser declarada a incompetência material do Tribunal recorrido para conhecer do pedido de indemnização civil formulado pela recorrente.

III – É o seguinte o teor do douto despacho recorrido:

«Em 13.07.2020, a assistente veio deduzir pedido de indemnização civil contra a arguida BB e o Centro Hospitalar ..., sendo aquela uma médica que exercia à data dos factos profissão nesta instituição (a demandante também deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido CC, mas este não foi pronunciado pelo crime que lhe é imputado na acusação e o Juiz de Instrução Criminal determinou o arquivamento do processo quanto ao mesmo – ficando por isso prejudicada a apreciação do pedido de indemnização civil quanto a esse demandado).
Está em causa a indemnização por danos resultantes da morte de uma pessoa, decorrente de atos praticados por uma médica, no exercício das suas funções profissionais, numa instituição pública de saúde (que integra o Serviço Nacional de Saúde). O pedido de indemnização é dirigido contra essa médica e a instituição pública de saúde onde a mesma exercia funções à data dos factos.
Foi concedida oportunidade à demandante e aos demandados BB e CH... para se pronunciarem sobre a competência material dos tribunais administrativos e fiscais para apreciar tal pedido, por estar em causa a responsabilidade civil extracontratual do Estado, demais entidades públicas, seus agentes e trabalhadores – cf. o artigo 1.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, e o artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
O CH... veio pronunciar-se no sentido de a competência material para apreciar o pedido de indemnização civil que a assistente deduziu contra a arguida BB e o CH... pertencer à jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
A assistente veio pronunciar-se no sentido de a competência material ser dos Tribunais Judiciais Comuns.
A demandada BB nada disse.
Cumpre apreciar.
É a Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) que determina quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais – cf. o artigo 65.º do Código de Processo Civil e o n.º 2 do artigo 40.º da LOSJ.
São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional – cf. o artigo 64.º do Código de Processo Civil e o n.º 1 do artigo 40.º da LOSJ.
Mais refere a LOSJ que aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais (cf. o n.º 1 do artigo 144.º) e, de acordo com o artigo 4.º, n.º 1, alíneas f, g) e h) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro), compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, e dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público – sendo esse o caso, face ao disposto no artigo 1.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.
A eventual responsabilização dos demandados pelos danos emergentes dos factos descritos na acusação não pode deixar de se qualificar como um litígio emergente de relações jurídicas administrativas, face a tais preceitos legais, e os tribunais competentes para apreciar tal litígio são os tribunais administrativos – cf. , entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no processo n.º 3871/2008-2, em 09.10.2008, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n.º 08/08, em 30.10.2008, e o acórdão do Tribunal dos Conflitos proferido no processo n.º 020/09, em 04.11.2009 (disponíveis para consulta no sítio de Internet www.dgsi.pt).
Como refere António Henriques Gaspar (Código de Processo Penal Comentado, 3.ª edição revista, Almedina, 2021, págs. 216 e 217):
A norma do artigo 71.º, consagrando o princípio da adesão, tem natureza processual e não constitui, consequentemente, uma norma de competência e muito menos de jurisdição; a adesão não pode sobrepor-se às regras imperativas de jurisdição, e o princípio só tem aplicação uma vez resolvida a questão da jurisdição, que tem assento constitucional: os tribunais comuns em matéria civil e criminal (tribunais judiciais) “exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” – artigo 211.º, n.º 1, da CRP; e aos tribunais administrativos compete o julgamento de “ações” que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais – artigo 212.º, n.º 3, da CRP.
Nos casos em que a relação jurídica que emerge de uma determinada conjugação factual assume uma formatação própria definida na lei – a forma jurídica que enquadra os atos que ofendem os direitos do lesado, praticados por agentes públicos, em instituição pública, no âmbito de uma relação de serviço público, e no exercício das respetivas funções – a responsabilidade por danos decorrentes de tais factos e a defeituosa prestação consta atualmente do regime aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.
A circunstância de os atos ou omissões que ocorram no exercício de funções no âmbito de uma relação de serviço público, praticados por agentes administrativos, integrarem eventualmente um crime, não modifica a natureza da relação legalmente formatada quanto aos pressupostos da responsabilidade civil; o regime de responsabilidade civil decorrente de facto ilícito, que também constitua crime, é independente do regime e das consequências penais, sendo regulado pela lei civil: a indemnização por perdas e danos emergente de crime é regulada pela lei civil como dispõe o artigo 129.º do Código Penal.
Mas “regulada pela lei civil” significa, no contexto e na economia da norma, regulada nos termos, condições, pressupostos, fontes, consequências, efeitos, imputação e responsáveis, pelos campos normativos não penais que dispuserem especificamente sobre o tipo, espécie e forma de responsabilidade civil que estiver em causa como fonte da obrigação de indemnizar; nos casos em que a relação jurídica tenha formatação legal imperativa e seja regulada pelas disposições específicas da responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas – que são para este efeito a “lei civil” a que se refere o artigo 129.º do Código Penal – a natureza da relação determina, nos termos constitucionais, a jurisdição competente para o julgamento.
Quando a lei defere exclusivamente ao Estado (ou a um estabelecimento público que constitua uma pessoa coletiva de direito público) a responsabilidade perante os lesados, constituindo-o no lado passivo da relação qualificada como relação jurídica administrativa, os tribunais administrativos são competentes, como decorre das imposições constitucionais sobre a jurisdição dos tribunais.
Deste modo, toda a ação em que se discuta a responsabilidade civil emergente de ato praticado no âmbito de relações jurídicas administrativas, mesmo que o facto, isoladamente considerado, possa integrar a prática de um crime (v.g. em caso de ação ou omissão negligente de agente administrativo no exercício de funções), sendo da competência (rectius, jurisdição) dos tribunais administrativos, não pode aderir ao processo penal; a autonomia material e processual do facto penal e a independência dos pressupostos da indemnização de perdas e danos “emergente de um crime (artigo 129.º do Código Penal) têm como necessária consequência que, no caso de “relações jurídicas administrativas”, o pedido de indemnização civil não possa aderir ao processo penal. A adesão pressupõe, como resulta também da própria letra dos artigos 71.º, 72.º, n.º 1, e 82.º, que o tribunal competente para o julgamento em separado seja o “tribunal civil”; a natureza da relação jurídica determina a jurisdição, e a jurisdição só permitirá a adesão ao processo penal se não for de “áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (artigo 211.º, n.º 3, da CRP)”.
Pelos fundamentos legais, jurisprudenciais e doutrinais expostos, declaro este Tribunal materialmente incompetente para apreciar o pedido de indemnização civil deduzido nos autos (face à competência dos tribunais administrativos e fiscais), não funcionando relativamente ao mesmo o princípio da adesão previsto no artigo 71.º do Código de Processo Penal.
Consequentemente, nos termos previstos nas normas acima mencionadas e nos artigos 97.º e 98.º do Código de Processo Civil, absolvo os demandados da instância cível.
Fixo à instância cível o valor de €85.000,00 (cf. o n.º 1 do artigo 296.º, os n.ºs 1 e 2 do artigo 297.º, e os n.ºs 1 e 2 do artigo 306.º do Código de Processo Civil).
Custas a cargo da demandante, nos termos previstos no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.»

IV
- Cumpre decidir
A questão que importa decidir é a de saber se deve, ou não, ser declarada a incompetência material do Tribunal recorrido para conhecer do pedido de indemnização civil formulado pela recorrente.
Está em causa um pedido de indemnização por danos resultantes da morte de uma pessoa, decorrente de atos praticados por uma médica, no exercício das suas funções profissionais, numa instituição pública de saúde (que integra o Serviço Nacional de Saúde). O pedido de indemnização é dirigido contra essa médica e a instituição pública de saúde onde a mesma exercia funções à data dos factos.
O despacho recorrido considera que o Tribunal é materialmente incompetente para conhecer de tal pedido, baseando-se nas razões seguintes.
É a Lei da Organização do Sistema Judiciário (aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) que determina quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais – cf. o artigo 65.º do Código de Processo Civil e o n.º 2 do artigo 40.º dessa Lei. São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional – cf. o artigo 64.º do Código de Processo Civil e o n.º 1 do artigo 40.º dessa Lei. Estatui tal Lei que aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais (cf. o n.º 1 do artigo 144.º) e, de acordo com o artigo 4.º, n.º 1, alíneas f, g) e h) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro), compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, e dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público. E é isso que se verifica no caso em apreço, face ao disposto no artigo 1.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.
Assim, a eventual responsabilização dos demandados pelos danos emergentes dos factos descritos na acusação não pode deixar de se qualificar como um litígio emergente de relações jurídicas administrativas, face a tais preceitos legais, e os tribunais competentes para apreciar tal litígio são os tribunais administrativos
Invoca o despacho recorrido a lição de António Henriques Gaspar (in Código de Processo Penal Comentado, 3.ª edição revista, Almedina, 2021, págs. 216 e 217), para quem a norma do artigo 71.º do Código de Processo Penal, que consagra o princípio da adesão, tem natureza processual e não constitui, consequentemente, uma norma de competência e muito menos de jurisdição; a adesão não pode sobrepor-se às regras imperativas de jurisdição, e o princípio só tem aplicação uma vez resolvida a questão da jurisdição, que tem assento constitucional: os tribunais comuns em matéria civil e criminal (tribunais judiciais) «exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais» – artigo 211.º, n.º 1, da Constituição; e aos tribunais administrativos compete o julgamento de “ações” que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais – artigo 212.º, n.º 3, também da Constituição. O facto de a responsabilidade civil em causa decorrer de um facto que constitui crime não pode afastar tais normas constitucionais de separação de jurisdições. A adesão pressupõe, como resulta também da própria letra dos artigos 71.º, 72.º, n.º 1, e 82.º do Código de Processo Penal, que o tribunal competente para o julgamento em separado seja o “tribunal civil”; a natureza da relação jurídica determina a jurisdição, e a jurisdição só permitirá a adesão ao processo penal se não for de «áreas não atribuídas a outras ordens judiciais» (artigo 211.º, n.º 3, da Constituição).
Invoca o despacho recorrido diversos acórdãos que afirmam a competência dos tribunais administrativos para apreciar a responsabilidade civil decorrente de atos médicos praticados em hospitais públicos, mas sem que neles se tenha suscitado a questão específica da vigência do princípio da adesão (estavam em causa ações deduzidas em separado de eventual processo criminal)
Considera, por seu turno, a recorrente que o Tribunal recorrido não deixa de ser materialmente competente para conhecer do pedido que formula, ainda que esteja em causa a responsabilidade civil extra-contratual de uma instituição pública. Decisivo é que o facto gerador dessa responsabilidade (a causa de pedir em que se baseia tal pedido) configure um crime (como se verifica no caso em apreço). Não há motivo para excluir nesta situação a vigência do princípio da adesão, que rege a responsabilidade civil conexa com a criminal.
Invoca o recorrente jurisprudência que se pronuncia nesse sentido: o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito dos autos de processo n.º 73/99.7TAVIS.C1.S1, datado de 03-12-2009, relatado por Isabel Pais Martins; o acórdão da Relação de Lisboa, proferido no âmbito dos autos de processo n.º 89/16.0NLLSB-AG.L1-9, datado de 07-02-2019, relatado por Maria do Carmo Ferreira,; o acórdão da Relação de Guimarães, proferido no âmbito dos autos de processo n.º 179/16.0T9VNF.G1, datado de 09-11-2020, relatado por Cândida Martinho (todos publicados in www.dgsi,pt); o acórdão da Relação de Lisboa, proferido no âmbito dos autos de processo n.º 0028539, datado de 24-10-2002, relatado por Silveira Ventura (cujo sumário também está publicado in www.dgsi,pt) e o Acórdão da Relação de Guimarães de 25/6/2007 (publicado in C.J. 2007, tomo III, p. 297).
É certo que poderá dizer-se que a ratio que justifica o princípio da adesão (as exigências de economia processual também numa perspetiva de proteção da vítima, e a salvaguarda do prestígio da instituição judicial evitando o risco de decisões contraditórias) tem plena aplicação nestes casos de responsabilidade civil decorrente da prática de um crime praticado no exercício de uma função pública.
Mas estender a vigência desse princípio para além das regras legais e constitucionais de separação de jurisdições (entre a dos tribunais comuns e a dos tribunais administrativos), como bem salienta António Henriques Gaspar, ultrapassa o direito constituído e situa-se (mais do que no plano da interpretação das normas vigentes) já no plano da política legislativa e do direito a constituir.
Também é, neste aspeto, relevante, como também salienta António Henriques Gaspar, a referência aos “tribunais civis” (não a quaisquer outros tribunais) que consta dos artigos 71.º, 72.º, n.º 1, e 82.º do Código de Processo Penal, como os tribunais a quem caberá conhecer em separado, nas situações aí previstas. dos pedidos de indemnização civil decorrentes da prática de crimes. Ou seja, não está aí prevista a situação em que o conhecimento em separado dos pedidos de indemnização civil decorrentes da prática de crimes caiba a tribunais administrativos (como se verifica no caso em apreço).
Afigura-se-nos, pois, que o Tribunal recorrido não é materialmente competente para conhecer do pedido de indemnização civil formulado pelo recorrente.
O despacho recorrido não é, assim, merecedor de reparo. Deve ser negado provimento ao recurso.

A demandante e recorrente deverá ser condenada em custas (artigos 523.º do Código de Processo Penal, 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).

V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo o despacho recorrido.

Condeno a demandante em três (3) U,C,s de taxa de justiça.

Notifique.

Porto, 23 de novembro de 2022

(processado em computador e revisto pelo signatário)

Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
Castela Rio