INSTITUIÇÃO BANCÁRIA
ENTREGA DE MONTANTES A FUNCIONÁRIO
CONSTITUIÇÃO DE DEPÓSITOS
EXTRAVIO DOS DEPÓSITOS POR FUNCIONÁRIO
RESPONSABILIDADE DO BANCO
RESPONSABILIDADE TRANSFERIDA PARA BANCO DE TRANSIÇÃO
Sumário

I – Tendo os autores, enquanto depositantes, efectuado a entrega de diversas quantias junto do balcão de uma instituição bancária, que através de um seu funcionário efectuou a sua recepção, devem ter-se por constituídos sucessivos depósitos de onde emergem para os primeiros e para a segunda as respectivas obrigações decorrentes desse negócio jurídico, entre as quais, o dever de o depositário, a final, restituir o montante entregue.
II – Com a entrega do dinheiro para efeitos de aprovisionamento da conta bancária aberta junto do banco, transfere-se para a esfera jurídica deste o risco sobre a gestão da quantia e, como tal, a responsabilidade pelo risco do seu extravio, de modo que a movimentação fraudulenta por terceiro de um depósito bancário não é oponível ao depositante.
III – A responsabilidade que advém para a instituição bancária em face de eventual desvio de montantes depositados perpetrado por um seu funcionário é uma responsabilidade contratual, logo, não é duvidosa ou incerta, devendo, no contexto da medida de resolução aplicada ao Banco Espírito Santo, S. A. pela Deliberação do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014, em conformidade com as alterações e clarificações introduzidas pelas Deliberações desta entidade de 29 de Dezembro de 2015, considerar-se transferida para o banco de transição.

Texto Integral

Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A, titular do Cartão do Cidadão n.º ……., com o NIF …….. e mulher, B, titular do Cartão do Cidadão n.º ….…, titular do NIF ………, residentes na Rua …,  3640-030 Carregal, concelho de Sernancelhe intentaram contra NOVO BANCO, S.A., com o NIF 513204016 e com o mesmo número de matrícula na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, com sede na Avenida da Liberdade, 1250-142 Lisboa e BANCO ESPÍRITO SANTO S.A.- EM LIQUIDAÇÃO, com o NIF 500 852 367 e com o mesmo número de matrícula na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, com sede na Rua … Lisboa a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, formulando os seguintes pedidos:
a) A condenação da primeira ré no pagamento aos autores da indemnização no valor de 481.207,46€ (quatrocentos e oitenta e um mil duzentos e sete euros e quarenta e seis cêntimos), a título ressarcimento de danos patrimoniais, acrescida dos juros de mora já vencidos, no valor de 55.635,49€ (cinquenta e cinco mil seiscentos e trinta e cinco euros e quarenta e nove cêntimos) e os vincendos, desde a citação, e até efectivo e integral pagamento, e a quantia de 40.000,00€ (quarenta mil euros), a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros vincendos, desde a citação, e até efectivo e integral pagamento;
Subsidiariamente,
b) A condenação da segunda ré no pagamento de idênticos valores.
Alegam, em síntese, o seguinte:
-> Os autores viveram na Suíça até 2006, onde conseguiram amealhar algum dinheiro, sendo que a partir de 1996 todas essas poupanças foram entregues, para depósito, no Banco Espírito Santo, S. A.[1], por intermédio da respectiva sucursal de Lausanne, na Suíça, balcão sito na Avenue de Montchoisi, 1006 Lausanne, onde contactavam com o funcionário AS, enquanto responsável máximo pela referida sucursal, com quem estabeleceram uma relação de confiança;
-> Por várias vezes, e desde 1996, o autor marido deslocou-se ao balcão do BES, em Lausanne, para fazer entregas de dinheiro e, algumas vezes, de cheques, ao AS, para depósito à sua ordem na instituição, sendo emitidos pelo balcão os respectivos documentos comprovativos;
-> Foram emitidos extractos globais com regularidade e entregues ao autor marido, confirmando os depósitos que detinha no Banco, sendo que o último, datado de 10 de Março de 2013, apresentava como valor global depositado o de CHF 531.336 (quinhentos e trinta e um mil trezentos e trinta e seis francos suíços), que, à data da propositura da presente acção corresponde, em Euros a 481.207,46€ (quatrocentos e oitenta e um mil duzentos e sete Euros e quarenta e seis cêntimos);
-> O autor recebia o reembolso dos juros que, entretanto, se iam vencendo;
-> A partir de Junho de 2013, o autor não conseguiu contactar o funcionário AS e veio a saber que o dinheiro que lhe entregou não fora depositado no Banco, tendo aquele embolsado as quantias, delas se apropriando;
-> Entretanto, foi decidida pelo Banco de Portugal[2] a medida de resolução do BES, tendo o autor sido informado pelo Novo Banco, S. A. que este declinava qualquer responsabilidade pela entrega aos autores das quantias depositadas;
-> Os autores não dispõem de património cujo rendimento permita fazer face às necessidades que têm, o que lhes tem causado incómodos, arrelias e muito nervosismo; tiveram insónias e perturbações do sono;
-> O comportamento ilícito do funcionário AS ocorreu no exercício das funções que lhe foram confiadas pelo BES, que deve responder, enquanto comitente, por tal acto porque praticado no lugar e no tempo dos serviços a cargo do comitido;
-> A partir de Março/Abril de 2014, quando o BES se disponibilizou para lhes devolver o dinheiro depositado, deixou de poder ser considerado resultante de fraude, pelo que tal crédito não está excluído das responsabilidades transferidas do BES, para o Novo Banco, S.A., nos termos da Deliberação do Conselho de Administração do BdP, tomada na Reunião Extraordinária de 3 de Agosto de 2014, pelas 20 horas.
O réu Novo Banco, S. A. contestou impugnando tudo quanto é alegado na petição inicial e suscitou a sua ilegitimidade passiva pela circunstância de o pedido assentar num alegado desvio de fundos operado por um ex-funcionário do BES, que nunca foi colaborador do contestante.
Argumentou ainda o Novo Banco. S. A. o seguinte (cf. Ref. Elect. 11114889):
* A alegada responsabilidade do BES não constituía passivo constituído e consolidado, registado na contabilidade, pelo que aquando da medida de resolução aplicada àquele não foi transferida para o Novo Banco, S. A., pois que se trata de contingência que ainda carece de decisão judicial sobre a imputação da responsabilidade pelos factos indicados;
* Conforme deliberações do conselho de administração do BdP, foram exceptuadas da transferência para o Novo Banco, S. A. quaisquer responsabilidades ou contingências do BES, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penas ou contra-ordenacionais, pois que apenas são transferidas as responsabilidades do BES perante terceiros que constituam passivos registados na contabilidade, o que foi esclarecido pelas deliberações “Contingências” e “Perímetro” de 29 de Dezembro de 2015.
Referiu também que, mesmo que assim se não entendesse, nunca poderia ser imputada qualquer responsabilidade ao BES ou ao Novo Banco, S. A., porquanto o ex-funcionário actuou extravasando as competências que lhe foram concedidas por aquele, para além do que tais quantias nunca foram depositadas no BES e conclui pela procedência da excepção deduzida ou, caso assim se não entenda, pela improcedência da acção e sua absolvição do pedido.
Contestou também o Banco Espírito Santo, S. A. – Em Liquidação suscitando a inutilidade da lide em face da revogação da autorização para o exercício da actividade por deliberação de 13 de Julho de 2016 do Banco Central Europeu, o que produz os efeitos da declaração de insolvência, sendo que os credores da insolvência apenas podem exercer os seus direitos no processo de insolvência, entretanto já iniciado (processo n.º 18588/16.2T8LSB da 1ª secção do Comércio da Instância Central da comarca de Lisboa), o que determina a extinção desta instância quanto ao BES, impugnando, quanto ao mais, os factos alegados, aderindo à contestação do Novo Banco, S. A. (cf. Ref. Elect. 12116226).
Foi concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as excepções deduzidas, tendo os autores pugnado pela sua improcedência (cf. Ref. Elect. 13585727).
Por requerimento de 2 de Fevereiro de 2017 os autores vieram requerer a intervenção principal provocada do Fundo de Resolução, que detém a totalidade do capital social do Novo Banco, S. A., o que foi indeferido por despacho de 30 de Junho de 2017 (cf. Ref. Elect. 13849694 e 367360832).
Procedeu-se à realização da audiência prévia no decurso da qual foi solicitada e deferida a suspensão da instância para obtenção de documentos pelos autores e foi dispensada a sua continuação (cf. Ref. Elect. 369120102).
Em 12 de Fevereiro de 2018 foi proferido despacho saneador-sentença que declarou a extinção da instância quanto ao BES por inutilidade superveniente da lide, julgou improcedente a excepção de ilegitimidade passiva e improcedente a acção, absolvendo o réu Novo Banco, S. A. dos pedidos (cf. Ref. Elect. 372762833).
Os autores interpuseram recurso de tal decisão, que foi admitido, tendo este Tribunal da Relação de Lisboa proferido, em 4 de Junho de 2020, acórdão que o julgou totalmente improcedente, mantendo a decisão recorrida (cf. Ref. Elect. 15744926).
Interpuseram os autores recurso de revista excepcional, parcialmente admitido quanto ao segmento decisório que julgou a acção improcedente relativamente ao Novo Banco, S. A. (cf. Ref. Elect. 9856444).
Em 18 de Março de 2021 o Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão que julgou procedente o recurso, anulou o saneador sentença na parte em que conheceu imediatamente do mérito da causa, ordenando o prosseguimento dos autos, com vista à produção de prova sobre a factualidade controvertida atinente à caracterização da relação contratual estabelecida entre os autores e o BES (relativa à certificação da abertura de conta, entrega de quantias no balcão da instituição de crédito originária, e circunstâncias em que decorreram as entregas de tais quantias), com a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova (cf. Ref. Elect. 9952105).
Em 22 de Novembro de 2021 foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas de prova (cf. Ref. Elect. 410540065).
Realizada a audiência de julgamento, em 31 de Agosto de 2022 foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, com o seguinte dispositivo (cf. Ref. Elect. 417462360):
“condeno o Réu Novo Banco, S.A., a pagar aos Autores, A e B, a quantia de global de €496.207,46 (quatrocentos e noventa e seis mil duzentos e sete euros e quarenta e seis cêntimos), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.”
Inconformado com esta decisão, o réu interpôs o presente recurso de apelação concluindo as respectivas alegações do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 33815320):
A. Nunca se poderia considerar que as entregas de valores que ficaram provadas corresponderam à constituição de efectivos depósitos.
B. A razão é simples de compreender e de natureza puramente jurídica: sendo o contrato de depósito bancário um contrato real quanto à constituição, não pode existir um depósito bancário sem que o valor em causa seja efectivamente entregue à instituição bancária.
C. Apenas isso justifica que um dos efeitos jurídicos do referido contrato seja a transferência da propriedade sobre o valor entregue pelo depositante ao depositário, que o Tribunal a quo reconhece plenamente, como não podia deixar de ser.
D. E do ponto de vista do equilíbrio contratual, apenas a entrega do dinheiro e a transferência da propriedade sobre o mesmo justificam a oneração da instituição depositária com a obrigação de restituir posteriormente um valor equivalente.
E. Não podemos olvidar que, conforme provado nos pontos 16 e 26 da matéria de facto, os valores entregues a AS nunca deram entrada na esfera patrimonial do BES, o que era verdade ainda no dia 03.08.2014.
F. De onde também não poderia considerar-se transferida a propriedade sobre os valores em causa para o BES nas datas das alegadas entregas.
G. Sendo, por isso, inevitável a conclusão de que, se há coisa que não aconteceu, foi a constituição de efectivos depósitos.
H. O Tribunal a quo entendeu que estava em causa uma situação de puro risco, conforme previsto no artigo 796.º do Código Civil e que devia considerar-se esse risco transferido para o BES, na qualidade de depositário, após cada uma das alegadas entregas a AS.
I. Contudo, o extravio dos valores ocorreu sem se poderem considerar entregues ao BES e sem se poder considerar transferida para este a propriedade sobre os mesmos.
J. Daqui resulta que, ao ter considerado aplicável o artigo 796.º do Código Civil à situação em apreço, o Tribunal a quo incorreu em erro na determinação da norma aplicável, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 639.º, n.º 2, alínea c), do CPC.
K. A norma aplicável a esse enquadramento nunca deixou de ser a prevista no artigo 800.º do Código Civil, como o Tribunal a quo chega a reconhecer.
L. Até ao momento em que o funcionário concretiza e efectiva, na esfera patrimonial da instituição financeira, o depósito dos valores que o cliente lhe entregue para o efeito – o que não chegou a suceder neste caso –, a instituição não tem qualquer obrigação de restituição de qualquer valor.
M. Se o colaborador da instituição que os clientes percepcionam como habilitado pela instituição bancária a receber esses valores nunca chega a concretizar os depósitos que lhe sejam solicitados, o que há que averiguar é se essa omissão do colaborador é, ou não, imputável ao devedor (a instituição bancária) como se tivesse sido por si praticada,
N. Com a nuance de que a instituição bancária entra nessa equação derivada do artigo 800.º do Código Civil, não como devedora de uma obrigação de restituição dos valores entregues, mas sim como devedora dos demais deveres e obrigações resultantes da relação bancária global.
O. O que passa, primeiro, por identificar se a actuação de AS que resulta da matéria de facto provada se pode considerar a de um colaborador que o BES utilizou para o cumprimento da sua obrigação de aceitar montantes para depósito.
P. O valor global reclamado pelos Recorridos nestes autos é o que decorre do alegado extracto de depósitos que corresponde ao Documento n.º 9 que acompanhou a Petição Inicial – isso resulta da própria fundamentação da Sentença recorrida quanto à prova dos pontos 8 e 9 da matéria de facto provada.
Q. Esse documento serve, também, como meio de prova das datas de início dos alegados depósitos em causa, facilmente se constatando que a data mais antiga é de 18.08.2012.
R. Nessa data, sabemos da matéria de facto provada (ponto 24) que AS já só tinha funções de prestação de serviços de assessoria como coordenador de uma rede de promotores,
S. De onde é inevitável retirar-se que, em 18.08.2012, o BES já há muito que não utilizava AS para o cumprimento da obrigação de receber montantes para depósito, falhando, assim, o preenchimento da previsão da norma prevista do artigo 800.º, n.º 1, do Código Civil.
T. Ao entender de forma diversa, o Tribunal a quo incorreu em erro de interpretação da norma aplicável, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 639.º, n.º 2, alínea b), do CPC.
U. Ao abrigo do artigo 800.º do Código Civil, o BES não deveria responder pelas omissões imputadas a AS, não se colocando, sequer, a questão de saber se uma correspondente responsabilidade ou contingência do BES teria sido transmitida ao NB em 03.08.2014.
V. Para aferir aquela que foi a intenção do BdP na sua qualidade de autoridade nacional de resolução a propósito da transferência de activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do BES para o NB, importa apenas que atentemos no que ficou estabelecido nas Deliberações “Perímetro” e “Contingências”, aprovadas em 29.12.2015.
W. Por força dessas deliberações, do texto consolidado do Anexo 2 à Deliberação de 03.08.2014, em particular da sua alínea (b), resulta que não foram transferidas para o NB “(v) quaisquer responsabilidades ou contingências, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, fiscais, penais ou contraordenacionais, com excepção das contingências fiscais activas”.
X. Na alínea (A) do Anexo 2C da Deliberação “Perímetro” lê-se que o BdP entendeu “clarificar que, nos termos da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 da deliberação de 3 de agosto, não foram transferidos do BES para o Novo Banco quaisquer passivos ou elementos extrapatrimoniais do BES que, às 20:00 horas do dia 3 de agosto de 2014, fossem contingentes ou desconhecidos (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais) independentemente (…) de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES”.
Y. Detalhando-se na sua alínea (B) que não foram transferidos para o NB os seguintes passivos do BES: “(iii) todas as indemnizações relacionadas com o incumprimento de contratos (compra e venda de activos imobiliários e outros), assinados e celebrados antes das 20h00 do dia 3 de Agosto de 2014”.
Z. Não colhe, por isso, a argumentação do Tribunal a quo no sentido da “impossibilidade de qualificação da quantia ora peticionada como contingente, na medida em que dos mesmos resulta claro que o BES teve conhecimento do caso em apreço em momento anterior à medida de resolução do Banco de Portugal, datada de 3/8/2014, pelo que seria possível reconstituir a totalidade dos depósitos reclamados pelos AA. e, consequentemente, refleti-los contabilisticamente”.
AA. Quando muito, essa constatação serviria para que os passivos aqui em discussão não pudessem ser qualificados como desconhecidos, mas nada acrescenta quanto à sua qualificação como contingentes.
BB. Até porque o BdP foi claro ao dar como exemplo de passivos contingentes as “responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente”.
CC. O Tribunal a quo acolheu uma argumentação que passa, fundamentalmente, por retirar consequências daquela que foi a decisão do BES face à alegação dos Recorridos.
DD. Ao assim decidir, o Tribunal a quo interpretou incorrectamente as normas contidas na alínea (A) e na sub-alínea (iii) da alínea (B) do Anexo 2C da Deliberação “Perímetro”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 639.º, n.º 2, alínea b), do CPC.
EE. Não é de uma fraude na relação dos Recorridos com o BES que estamos a tratar, mas de uma alegada responsabilidade decorrente da imputação ao BES de actos de um seu colaborador, actos esses que flagrante e inquestionavelmente configuraram fraude.
FF. Se a fonte do passivo do BES que os Recorridos aqui se encontram a reclamar foi uma actuação fraudulenta de um colaborador do BES, é para lá de dúvida que esse passivo ficou retido na esfera do BES, por efeito da alínea (A) do Anexo 2C da Deliberação “Perímetro”.
GG. Não se alcança, por isso, por que razão aquela afirmação do Tribunal a quo havia de ser decisiva para a decisão a proferir, quando o BdP não estabeleceu qualquer limite de aplicação dessa alínea, por exemplo, aos casos de actuações fraudulentas de clientes, tendo-se concentrado apenas na fonte fraudulenta do passivo, independentemente de o mesmo resultar de fraude do BES, dos clientes, ou de terceiro.
HH. Ao defender que os créditos reclamados pelos Recorridos foram transferidos para o NB por não resultarem de fraude na relação do BES com os Recorridos, o Tribunal a quo interpretou e aplicou incorrectamente a norma contida na alínea (A) do Anexo 2C da Deliberação "Perímetro”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 639.º, n.º 2, alínea b), do CPC.
II. Há-que não olvidar a clarificação constante do ponto (iii) da alínea (B) daquele Anexo 2C, no qual se indica expressamente que não foram transferidos para o NB passivos do BES relativos a indemnizações por incumprimento de contratos celebrados e assinados antes de 03.08.2014 às 20:00h.
JJ. Caso o entendimento do Tribunal a quo tenha sido o de que cada entrega de valores correspondeu à celebração de um contrato de depósito a prazo, todos eles anteriores a 03.08.2014, dúvidas não restam de que o Tribunal a quo incorreu em erro na determinação da norma aplicável, o que se invoca nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 639.º, n.º 2, alínea c), do CPC,
KK. Por não ter descortinado a aplicabilidade da sub-alínea (iii) da alínea (B) do Anexo 2C da Deliberação Perímetro, que devia ter determinado sempre a absolvição integral do NB dos pedidos formulados pelos Recorridos.
LL. Fossem ou não conhecidos do BES, os créditos reclamados pelos Recorridos teriam sempre natureza contingente em 03.08.2014, por não terem sido reconhecidos pelo BES até aí.
MM. Do que cuidamos aqui é de interpretar as normas e os efeitos previstos nas Deliberações do BdP que compõem a Medida de Resolução, no sentido de aferir qual o tratamento que, da perspectiva do BdP, deve ser dado aos passivos aqui em discussão.
NN. Ora, a esse respeito seria sempre de convocar os esclarecimentos prestados pelo BdP nos pontos 12) a 14) da Deliberação “Contingências”.
OO. A principal importância da concreta delimitação do perímetro da transferência de passivos do BES para o NB foi, do ponto de vista do BdP, a sua essencialidade na definição das necessidades de capital do NB.
PP. Permitir-se que essa delimitação, feita pela autoridade nacional de resolução, seja posta em causa como sucedeu nestes autos, significa imputar ao NB passivos com que o BdP não pôde contar – e que, portanto, não considerou – quando da constituição do NB e da aprovação do respectivo balanço.
QQ. Ficcionar, como fez o Tribunal a quo, a constituição de depósitos a prazo de valores que (i) não chegaram à esfera patrimonial do BES, (ii) cuja propriedade não chegou a ser transferida para este, e que (iii) nunca foram registados em associação à conta bancária dos Recorridos, é subverter a lógica que presidiu à própria Medida de Resolução.
RR. É contornar artificialmente, num exercício francamente abusivo, o âmbito das funções de autoridade nacional de resolução, que deviam caber exclusivamente ao BdP, e dos poderes que se lhe encontram legalmente cometidos.
SS. E é interpretar e aplicar erradamente as normas previstas na sub-alínea (v) da alínea b) do n.º 1 do Anexo 2 da Deliberação do BdP de 03.08.2014, na sua redacção actual, bem como na alínea (A) e na sub-alínea (iii) da alínea (B) do Anexo 2C da Deliberação “Perímetro”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 639.º, n.º 2, alínea b), do CPC.
Termina concluindo pela procedência do recurso, com a sua consequente absolvição dos pedidos.
Os autores/recorridos contra-alegaram pugnando pela manutenção da decisão recorrida (cf. Ref. Elect. 33849668).
*
II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[3], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art.º 635º, n.º 3, do CPC), contudo o respectivo objecto, assim delimitado, pode ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (cf. n.º 4 do mencionado art.º 635º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não podendo o tribunal ad quem pronunciar-se sobre questões novas - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 97.
Assim, perante as conclusões da alegação dos autores/apelantes, o objecto do presente recurso consiste na apreciação das seguintes questões:
a. Da qualificação das quantias entregues pelos autores como integradoras de depósitos na conta bancária por eles titulada junto do BES;
b. Do dever de restituição de tais quantias por parte do BES;
c. Da transmissão dessa obrigação para o Novo Banco, S. A.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Na primeira instância foram considerados provados os seguintes factos:
1. Os Autores casaram em Portugal, no regime da comunhão de adquiridos, no dia 09/17/1976.
2. No ano de 1978, o A marido emigrou para a Suíça para trabalhar na construção civil, tendo a sua esposa ido viver com o mesmo passado um ano, onde estiveram até 2006.
3. Os Autores, enquanto casal, procederam a entregas, para depósito, no Banco Espírito Santo, S.A., por intermédio da respectiva sucursal de Lausanne, na Suíça, concretamente no balcão sito na Avenue de Montchojsi, 1006 Lausanne.
4. Para o efeito contactaram, ao longo de anos, de forma preferencial com o funcionário de nome ASA, mais conhecido, por AS.
5. Que exerceu funções de responsável da sucursal do Banco Espírito Santo, S.A., em Lausanne.
6. O mesmo foi desenvolvendo com o tempo, sobretudo com o A. marido, e com outros emigrantes portugueses, uma relação de confiança, tendo conseguido fidelizar a relação bancária dos Autores com o Banco Espírito Santo, S.A..
7. Desde 1996, que o Autor marido se deslocou por várias vezes, ao balcão do Banco Espírito Santo, S.A., em Lausanne, para fazer entregas de dinheiro e, algumas vezes, de cheques, a AS, para depósito na sua conta à ordem na instituição (DO 2343 3258 0005), recebendo os respectivos juros em dinheiro ou por transferência bancária, por intermédio deste.
8. Das quantias entregues, foram emitidos documentos comprovativos e extractos com timbre do Banco Espírito Santo, S.A., e referência à sucursal de Lausanne.
9. O valor global entregue pelos Autores foi de CHF 531.336 (quinhentos e trinta e um mil trezentos e trinta e seis francos suíços), correspondentes a €481.207,46 (quatrocentos e oitenta e um mil duzentos e sete Euros e quarenta e seis cêntimos).
10. A relação de confiança e normalidade manteve-se até ao final de Junho de 2013, sentindo-se o Autor, no balcão do Banco Espírito Santo, S.A., de Lausanne, um cliente preferencial.
11. No final de Junho de 2013, o Autor marido deslocou-se novamente a Lausanne e, uma vez lá, tentou, por diversas vezes, telefonar ao AS, como fazia habitualmente.
12. Nessa sequência ligou para a “Sucursal”, sendo que o funcionário Leonel Pinto Ramos o informou de que AS se havia reformado.
13. Tendo-lhe solicitado a remessa do último extracto.
14. O Autor marido remeteu, via fax, a partir de Portugal, o último extracto que o casal detinha, com data de 10 de Março de 2013.
15. Após, o referido funcionário comunicou-lhe que o dinheiro que entregou a AS não havia dado entrada no Banco.
16. Apercebendo-se, então, o Autor, que, em vez de constituir o depósito bancário, o AS, embolsou a quantia referida em 9..
17. O Autor remeteu ao BES os documentos de que dispunha e comprovativos das entregas efectuadas.
18. Nessa sequência, foi o Autor marido contactado para reunir com o departamento jurídico do Banco, na respectiva sede, em Lisboa, a fim de se encontrar uma solução para o caso.
19. Em resultado dessas reuniões, em Março/Abril de 2014, foi proposta ao Autor marido a entrega da quantia CHF 265.334,45, tendo este, porém, informado o Banco Espírito Santo, S.A., de que não achava justo perder, desta forma, cerca de metade dos depósitos que havia efectuado.
20. Após a medida de resolução do Banco Espírito Santo, S.A., as conversas passaram a decorrer entre o A. marido e o departamento jurídico do Novo Banco, S.A..
21. Em 16 de Setembro de 2014, foi o A. marido informado pelo Novo Banco, S.A., de que o seu assunto estava agendado para ser apresentado em breve aos órgãos competentes do Novo Banco.
22. Todavia, em 27 de Outubro de 2014, o Autor marido foi informado de que o Novo Banco, S.A. declinava qualquer responsabilidade.
23. A situação supra referida causou aos Autores incómodos, arrelias e muito nervosismo, tendo sofrido de insónias e perturbações no sono e sentindo-se revoltados.
24. AS foi funcionário do BES, tendo exercido funções de gerente na Sucursal de Lausanne do BES (de 94 a Junho de 2003, data em que a Sucursal foi extinta); responsável do escritório de representação (de 2003 a 2008, data em que se reformou); prestou serviços de assessoria como coordenador de uma rede de promotores (de 2008 até Junho de 2013).
25. AS nunca foi funcionário do R. Novo Banco.
26. O valor referido em 9. não constava dos sistemas do BES e respectiva contabilidade aquando da medida de resolução.
27. O BES efectuou uma auditoria/inspecção à situação em apreço nos autos e a outras similares à conduta de AS na qualidade de ex-colaborador da Sucursal e Escritório de Representação devido a um conjunto de reclamações apresentadas por clientes do Banco pertencentes à comunidade portuguesa, sendo que nessa sequência foi elaborado o Relatório de Inspecção n.º 17/2013.
28. Por deliberação do Banco de Portugal, datada de 3 de Agosto de 2014, foi aplicada uma medida de resolução ao BES e constituído o Réu Novo Banco, como banco de transição.
*
O Tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos:
1. Que AS tenha falecido.
2. Que uma das filhas se encontra desempregada precisando de ajuda financeira dos Autores.
*
3.2. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Conforme decorre do relatório supra, os autores alegam o estabelecimento de uma relação bancária com o BES, mediante a abertura de conta junto da sucursal desta instituição bancária em Lausanne, Suíça, na vigência da qual procederam à entrega de valores, em dinheiro e cheques, para depósito na sua conta à ordem, entregas que efectuaram a um ex-funcionário daquele banco, AS, vindo a constatar, em Junho de 2013, que este embolsou tais quantias em vez de as depositar, pelo que pretendem obter a restituição desses valores alegando que tal obrigação se transmitiu do BES para o Novo Banco, S. A., por força da medida de resolução que foi aplicada ao primeiro, com a criação do segundo, enquanto banco de transição.
A 1ª Instância considerou que, perante os factos provados, está demonstrada a existência de uma relação bancária entre o autor marido e o BES e, bem assim, que por força das entregas de dinheiro e cheques para depósito na conta DO 2343 3258 0005, por intermédio de funcionário do BES, foi celebrado um contrato de depósito bancário, pelo que a solução do litígio deve ser encontrada no âmbito da responsabilidade contratual, tendo o depositário assumido o risco atenta a transferência da propriedade da coisa com a entrega dos valores; mais considerou, em face da medida de resolução e das deliberações do conselho de administração do BdP, que o crédito reclamado nestes autos não era contingente, porquanto o BES teve conhecimento da situação em momento anterior à medida de resolução, sendo possível reconstituir a totalidade dos depósitos e reflecti-los contabilisticamente, concluindo:
“Demostrada a existência do contrato bancário acima referido, deverá o mesmo ser considerado elegível para pagamento, não podendo ser subsumido à cláusula de exclusão ínsita no anexo 2, al. b), ponto (v), da medida de resolução do Banco de Portugal acima citada, não só por não ser contingente, como acima ficou expressamente esclarecido, como por não ter existido qualquer fraude no âmbito da relação contratual estabelecida entre o Autor marido e o BES.
Assim sendo, temos de concluir que a quantia peticionada pelos Autores não pode ser considerada um passivo excluído ou não transferido para a instituição de transição, razão pela qual deve o Réu Novo Banco ser responsabilizado pela mesma, na qualidade de sucessor nos direitos e obrigações da instituição de crédito originária, na qual se encontrava depositado, na conta bancária titulada pelo Autor marido, tal quantia, a qual se cifra em €481.207,46 (quatrocentos e oitenta e um mil duzentos e sete Euros e quarenta e seis cêntimos).
Face à causa de pedir complexa alegada pelos Autores, consideramos que a vertente da responsabilidade civil contratual resolve a ação, ficando precludida a análise da vertente da responsabilidade objetiva ou pelo risco inscrita no art.º 500.º do CC.
Deste modo, a presente ação deverá proceder neste particular, devendo o Réu Novo Banco ser condenado no pagamento aos Autores da quantia peticionada, acrescida dos juros moratórios, nos termos do art.ºs 805.º, n.º 3, 806.º e 559.º, do Código Civil, terá o Autor direito a receber os juros, contados desde a data da citação, à taxa de juro de 4% (Portaria 291/2003, de 8 de abril), até integral pagamento.”
O réu/apelante insurge-se contra o assim decidido, pela seguinte ordem de razões:
- As entregas de valores não corresponderam à constituição de efectivos depósitos, pois que sendo este um contrato real quoad constitutionem não pode existir sem que o valor em causa seja efectivamente entregue à instituição bancária, sabendo-se que os valores entregues a AS nunca entraram na esfera patrimonial do BES, não tendo ocorrido a transferência de propriedade, não sendo aplicável o disposto no art.º 796º do Código Civil;
- O início da entrega dos valores em causa reporta-se a 18 de Agosto de 2012 altura em que AS já só tinha funções de prestação de serviços de assessoria como coordenador de uma rede de promotores, pelo que não tinha funções de recebimento de montantes para depósito, não sendo, assim, aplicável a norma do art.º 800º, n.º 1 do Código Civil, pelo que o comportamento daquele não é imputável ao BES e, como tal, não podia existir transmissão de responsabilidade para o Novo Banco, S. A.;
- Ainda que assim se não entenda, por força da medida de resolução e das deliberações do BdP, não foram transferidos para o Novo Banco, S. A. quaisquer passivos contingentes ou desconhecidos ou indemnizações relacionadas com o incumprimento de contratos assinados antes das 20 horas do dia 3 de Agosto de 2014 ou passivos resultantes de fraude;
- Os actos do ex-funcionário configuram fraude e é disso que se trata e não de uma fraude na relação dos recorridos com o BES, pelo que o crédito ficou retido na esfera deste banco;
- E se de incumprimento contratual se tratasse, ou seja, de uma obrigação de restituição do capital depositado, também tal responsabilidade não foi transferida para o Novo Banco, S. A.;
- Não tem aplicação no caso a norma do art.º 145º-O, n.º 6 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras[4], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, por não se tratar de qualquer situação jurídica passiva que se pudesse considerar associada a qualquer elemento do activo transferido do BES para o Novo Banco, S. A., nem se mostra afectado o sinalagma contratual.
A apreciação das questões colocadas no presente recurso passa necessariamente pela integração/qualificação jurídica das quantias entregues pelos autores a AS referidas nos pontos 3. a 9. da matéria de facto provada, pela aferição ou identificação de um dever de restituição ou de indemnização que recaia (ou recaísse) sobre o BES e, por fim, pela qualificação do crédito dos autores como contingente ou desconhecido para efeitos da sua não inclusão no âmbito da transmissão de activos, passivos e elementos extrapatrimoniais do BES para o Novo Banco, S. A. por força da aplicação da medida de resolução de que o primeiro foi alvo e das subsequentes deliberações do conselho de administração do BdP.
Antes de se avançar, e embora tal não conste da matéria de facto apurada, importa ter presente o texto das deliberações em referência enquanto actos normativos regulamentares que cumpre interpretar.
Assim, importa ter em consideração o seguinte:
I - No dia 3 de Agosto de 2014 o Banco de Portugal proferiu a seguinte deliberação[5]:
“Ponto Um
Constituição do Novo Banco, SA
É constituído o Novo Banco, SA, ao abrigo do nº 5 do artigo 145º -G do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, cujos Estatutos constam do Anexo 1 à presente deliberação.
Ponto Dois
Transferência para o Novo Banco, SA, de activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banco Espírito Santo, SA
São transferidos para o Novo Banco, SA, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 145º - H do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, conjugado com o artigo 17º - A da Lei Orgânica do Banco de Portugal, os activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banco Espírito Santo, SA, que constam dos Anexos 2 e 2A à presente deliberação.
Ponto Três
Designação de uma entidade independente para avaliação dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão transferidos para o Novo Banco, SA
Considerando o disposto no n.º 4 do artigo 145.º-H do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, o Conselho de Administração designa a sociedade PricewaterhouseCoopers & Associados - Sociedade de Revisores de Contas, Lda. (PwC SROC), para, no prazo de 120 dias, proceder à avaliação dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão transferidos para o Novo Banco, SA.”
II. - No Anexo 2 à deliberação referida em I foram enunciados os activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banco Espírito Santo objecto de transferência para o Novo Banco, SA dele constando o seguinte:
(a) Todos os activos, licenças e direitos, incluindo direitos de propriedade do BES serão transferidos na sua totalidade para o Novo Banco, SA com excepção dos seguintes: […]
(b) As responsabilidades do BES perante terceiros que constituam passivos ou elementos extrapatrimoniais deste serão transferidos na sua totalidade para o Novo Banco, SA, com excepção dos seguintes (“Passivos Excluídos”): […]
(v) Quaisquer responsabilidades ou contingências decorrentes de dolo, fraude violações de disposições regulatórias, penais ou contra-ordenacionais;
(vi) Quaisquer responsabilidades ou contingências do BES relativas a emissões de acções ou dívida subordinada;
(vii) Quaisquer responsabilidades ou contingências relativas a comercialização, intermediação financeira e distribuição de instrumentos de dívida emitidos por entidades que integram o universo do Grupo Espírito Santo.
No que concerne às responsabilidades do BES que não serão objecto de transferência, estes permanecerão na esfera jurídica do BES.
[…]
Após a transferência prevista nas alíneas anteriores, o Banco de Portugal pode a todo o tempo transferir ou retransmitir, entre o BES e o Novo banco, SA, activos, passivos, elementos patrimoniais e activos sob gestão, nos termos do artigo 145º-H, número 5. […]
Os activos, passivos e elementos extrapatrimoniais são transferidos pelo respectivo valor contabilístico, sendo os activos ajustados em conformidade com os valores constantes do Anexo 2A, por forma a assegurar uma valorização conservadora, a confirmar na auditoria prevista no Ponto Três.
Em função desta valorização, apuram-se necessidades de capital para o Novo Banco, SA de 4900 milhões de euros.
III - Por deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 11 de Agosto de 2014[6], destinada à clarificação e ajustamento do perímetro dos activos, passivos, elementos patrimoniais e activos sob gestão do Banco Espírito Santo, SA transferidos para o Novo Banco, SA, foi rectificado o Anexo 2 à deliberação de 3 de Agosto de 2014, na sequência do que, para além da alteração da numeração de alguns parágrafos, alíneas e introdução de novas alíneas, as subalíneas (v), (vi) e (vii) da alínea (b) ficaram com a seguinte redacção:
(v) Quaisquer responsabilidades ou contingências, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contra-ordenacionais;
(vi) Quaisquer responsabilidades ou contingências do BES relativas a acções, instrumentos ou contratos de que resultem créditos subordinados perante o BES;
(vii) Quaisquer obrigações, garantias, responsabilidades ou contingências assumidas na comercialização, intermediação financeira e distribuição de instrumentos de dívida emitidos por entidades que integram o Grupo Espírito Santo, sem prejuízo de eventuais créditos não subordinados resultantes de estipulações contratuais anteriores a 30 de Junho de 2014, documentalmente comprovadas nos arquivos do BES, em termos que permitam o controlo e fiscalização das decisões tomadas.”
IV - No dia 29 de Dezembro de 2015[7], em sessão ordinária do Conselho de Administração do Banco de Portugal, (…) foi adoptada a seguinte deliberação (deliberação contingências) relativa ao ponto da agenda “Clarificação e retransmissão de responsabilidades e contingências definidas como passivos excluídos nas subalíneas (v) a (vii) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 à Deliberação do Banco de Portugal de 3 de agosto de 2014 (20 horas), na redacção que lhe foi dada pela Deliberação do Banco de Portugal de 11 de agosto de 2014 (17 horas)”:
DELIBERAÇÃO
Nos termos do n.º 1 do artigo 146.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro (RGICSF), a presente deliberação é considerada urgente, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo do artigo 124.º do Código do Procedimento Administrativo, não havendo lugar a audiência prévia dos interessados.
Enquadramento
1. A deliberação do Banco de Portugal de 3 de agosto de 2014 (20:00 horas), com as clarificações e ajustamentos introduzidos pela deliberação de 11 de agosto de 2014 (17:00 horas) - doravante a “Deliberação de 3 de agosto”, para efeitos dos considerandos seguintes - que determinou a constituição do Novo Banco, S.A. (“Novo Banco”), determinou igualmente a transferência de um conjunto de activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banco Espírito Santo, S.A. (“Banco Espírito Santo” ou “BES”) para o Novo Banco, descritos no Anexo 2 da mesma Deliberação de 3 de agosto.
2. O RGICSF estabelece, em conformidade com a legislação europeia na matéria, que os accionistas e credores da instituição objecto de resolução devem assumir os prejuízos da referida instituição.
3. Um dos princípios do RGICSF impõe que os recursos do fundo de resolução não sejam utilizados para assumir directamente os prejuízos da instituição de crédito objecto de resolução.
4. O Banco de Portugal dispõe de um poder legalmente conferido que pode ser exercido a todo o tempo antes da revogação da autorização do BES para o exercício da actividade ou da venda do Novo Banco, para determinar transferências adicionais de activos e passivos entre o Novo Banco e o BES (o “Poder de Retransmissão”). O Poder de Retransmissão encontra-se previsto no Capítulo III (Resolução) do Título VIII do RGICSF, tendo ficado expressamente estabelecido no número 2 do Anexo 2 da Deliberação de 3 de agosto.
Fundamentos para a clarificação e para o exercício do Poder de Retransmissão
5. A versão original da Deliberação de 3 de agosto, publicada em 3 de agosto de 2014, dispunha o seguinte na alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2:
“As responsabilidades do BES perante terceiros, que constituam passivos ou elementos extrapatrimoniais, serão integralmente transferidas para o Novo Banco SA, com excepção das seguintes (Passivos Excluídos)…
(v) Quaisquer responsabilidades ou contingências decorrentes de dolo, fraude e violação de disposições regulatórias, penais ou contra-ordenacionais.”
6. A versão alterada da Deliberação de 3 de agosto, publicada em 11 de agosto de 2014, dispunha o seguinte na alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2: “As responsabilidades do BES perante terceiros, que constituam passivos ou elementos extrapatrimoniais, serão integralmente transferidas para o Novo Banco SA, com excepção das seguintes (Passivos Excluídos)…
(v) Quaisquer responsabilidades ou contingências, nomeadamente as decorrentes de fraude ou violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais.”
7. O Banco de Portugal considerou ser proporcional e de interesse público não transferir para o banco de transição as responsabilidades contingentes ou desconhecidas do BES (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES nos termos da subalínea (v) a (vii) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 da Deliberação de 3 de agosto, uma vez que a certeza relativamente às responsabilidades do banco de transição é essencial para garantir a continuidade das funções críticas desempenhadas pelo Novo Banco e que anteriormente tinham sido desempenhadas pelo BES.
8. A legitimidade processual do BES tem vindo a ser questionada ou enjeitada em processos judiciais em que este é parte, com base na alegada transferência para o Novo Banco das responsabilidades que se discutem naqueles processos, em que o BES era réu a 3 de agosto de 2014 e que respeitam a factos anteriores à aplicação da medida de resolução ao BES e por efeito da aplicação desta.
9. Importa clarificar que o Banco de Portugal, enquanto autoridade pública de resolução, decidiu e considera que todas as responsabilidades contingentes e desconhecidas do BES (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES, estão abrangidas pelas subalíneas (v) a (vii) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 da Deliberação, não tendo sido, portanto, transferidas para o Novo Banco.
10. Alguns tribunais solicitaram ao Banco de Portugal que este lhes comunicasse o seu entendimento, enquanto entidade de resolução, sobre a não transferência de responsabilidades e contingências do BES para o Novo Banco, ao abrigo das subalíneas (v) a (vii) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 da deliberação de 3 de agosto.
11. Esses pedidos não foram efectuados na maior parte dos processos pendentes em tribunal, que se relacionam com responsabilidades ou contingências não transferidas para o Novo Banco.
12. Se o número de processos pendentes nos tribunais judiciais e a diferente orientação nas decisões até hoje tomadas conduzirem a que, de modo significativo, não venha a ser reconhecida adequadamente a selecção efectuada pelo Banco de Portugal (enquanto autoridade pública de resolução) dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão transferidos do BES para o Novo Banco (decisão sobre o «perímetro de transferência»), pode ficar comprometida a execução e a eficácia da medida de resolução aplicada ao BES, a qual, entre outros critérios, se baseou num critério de certeza quanto ao perímetro de transferência.
13. Foi esse critério de certeza que permitiu calcular as necessidades de capital da instituição de transição, o Novo Banco, e foi com base nesse cálculo que o Fundo de Resolução realizou o capital da instituição de transição.
14. Caso viessem a materializar-se na esfera jurídica do Novo Banco responsabilidades e contingências por força de sentenças judiciais, o Novo Banco seria chamado a assumir obrigações que de modo algum lhe deveriam caber e cuja satisfação não foi pura e simplesmente tida em consideração no montante do capital com que aquele banco de transição foi inicialmente dotado.
15. Este risco pode materializar-se ainda antes do trânsito em julgado das decisões judiciais se, de acordo com as regras contabilísticas, for entendido que, não obstante a decisão do Banco de Portugal, aquela materialização é provável.
16. Nos termos da lei, a decisão do Banco de Portugal sobre o perímetro de transferência só pode ser alterada através dos meios processuais previstos na legislação do contencioso administrativo, de acordo com o artigo 145.º-AR do RGICSF (correspondente ao artigo 145.º-N do RGICSF, em vigor à data de aplicação da medida de resolução ao BES).
17. Questionar o referido perímetro de transferência fora do contencioso administrativo constitui um desvio à competência dos tribunais administrativos, legalmente estabelecida, e impede que o Banco de Portugal exerça a prerrogativa que a lei lhe confere de afastar, por motivo de interesse público, a execução de sentenças desfavoráveis, iniciando-se de imediato o procedimento tendente à fixação da indemnização de acordo com os trâmites definidos no Código do Processo nos Tribunais Administrativos.
18. Decisões de tribunais judiciais que, directa ou indirectamente, ponham em causa o perímetro de transferência neutralizam este mecanismo contencioso (e compensatório), legalmente previsto, de impugnação das decisões do Banco de Portugal, enquanto autoridade pública de resolução, e comprometem a execução e a eficácia da medida de resolução.
19. Tem a presente deliberação o seguinte objectivo:
a. Clarificar o tratamento das responsabilidades contingentes e desconhecidas do BES (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente da sua natureza (fiscal, laboral, civil ou outra) e de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES, nos termos da subalínea (v) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 da Deliberação de 3 de agosto;
b. Se e na medida em que quaisquer responsabilidades contingentes e desconhecidas ou incertas do BES à data de 3 de agosto (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES e que devessem ter permanecido na sua esfera jurídica nos termos da Deliberação de 3 de agosto, sejam atribuídas ao Novo Banco, proceder à sua retransmissão, mediante o exercício do Poder de Retransmissão, das referidas responsabilidades contingentes e desconhecidas (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais) para o BES; e
c. Determinar que, de acordo com o disposto no n.º 7 do artigo 145.º-P e nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 145.º-G do RGICSF, o BES e o Novo Banco tomem as medidas previstas nesta deliberação por forma a conferir-lhe eficácia plena.
20. Face ao exposto e de forma a garantir a continuidade das funções essenciais desempenhadas pelo Novo Banco, encontram-se reunidos os pressupostos para o exercício do Poder de Retransmissão, conforme previsto nesta deliberação, exercício que se afigura extremamente necessário, urgente e inadiável.
O Conselho de Administração do Banco de Portugal, ao abrigo da competência conferida pelo RGICSF para seleccionar os activos e passivos a transferir para o banco de transição, delibera o seguinte:
A) Clarificar que, nos termos da alínea (b) do número 1 do Anexo 2 da deliberação de 3 de agosto, não foram transferidos do BES para o Novo Banco quaisquer passivos ou elementos extrapatrimoniais do BES que, às 20:00 horas do dia 3 de agosto de 2014, fossem contingentes ou desconhecidos (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente da sua natureza (fiscal, laboral, civil ou outra) e de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES;
B) Em particular, desde já se clarifica não terem sido transferidos do BES para o Novo Banco os seguintes passivos do BES:
(i) Todos os créditos relativos a acções preferenciais emitidas por sociedades-veículo estabelecidas pelo BES e vendidas pelo BES;
(ii) Todos os créditos, indemnizações e despesas relacionados com activos imobiliários que foram transferidos para o Novo Banco;
(iii) Todas as indemnizações relacionadas com o incumprimento de contratos (compra e venda de activos imobiliários e outros), assinados e celebrados antes das 20h00 do dia 3 de agosto de 2014;
(iv) Todas as indemnizações relacionadas com contratos de seguro de vida, em que a seguradora era o BES – Companhia de Seguros de Vida, S.A.;
(v) Todos os créditos e indemnizações relacionados com a alegada anulação de determinadas cláusulas de contratos de mútuo, em que o BES era o mutuante;
(vi) Todas as indemnizações e créditos resultantes de anulação de operações realizadas pelo BES enquanto prestador de serviços financeiros e de investimento; e
(vii) Qualquer responsabilidade que seja objecto de qualquer dos processos descritos no Anexo I.
C) Na medida em que, não obstante as clarificações acima efectuadas, se verifique terem sido efectivamente transferidos para o Novo Banco quaisquer passivos do BES que, nos termos de qualquer daquelas alíneas e da Deliberação de 3 de agosto, devessem ter permanecido na sua esfera jurídica, serão os referidos passivos retransmitidos do Novo Banco para o BES, com efeitos às 20 horas do dia 3 de agosto de 2014;
D) O Conselho de Administração do BES e o Conselho de Administração do Novo Banco praticarão todos os actos necessários à implementação e eficácia das clarificações e retransmissões previstos na presente deliberação. Em particular e de acordo com o disposto no n.º 7 do artigo 145.º-P e nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 145.º-G do RGICSF, o Novo Banco e o BES devem:
(a) Adoptar as medidas de execução necessárias à adequada aplicação da medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal ao BES, bem como de todas as decisões do Banco de Portugal que a complementam, alteram ou clarificam, incluindo a presente deliberação;
(b) Praticar todos os actos, sejam estes de natureza procedimental ou processual, nos processos em que sejam parte de modo a dar adequada execução às decisões do Banco de Portugal referidas em (a), incluindo aqueles que sejam necessários para reverter actos anteriores que tenham praticado contrários aquelas decisões;
(c) Para efeito de cumprimento do disposto na alínea (b), requerer a imediata junção da presente deliberação aos autos em que sejam parte;
(d) Adequar os seus registos contabilísticos ao disposto nas decisões do Banco de Portugal referidas em (a); e
(e) Abster-se de qualquer conduta que possa pôr em causa as decisões do Banco de Portugal referidas em (a).
E) Aprovar a acta da presente deliberação em minuta, com vista à sua execução imediata, nos termos do nº 4 e para os efeitos do n.º 6 do artigo 34.º do Código do Procedimento Administrativo.”
V - No dia 29 de Dezembro de 2015[8], em sessão ordinária do Conselho de Administração do Banco de Portugal, foi adoptada a seguinte deliberação (deliberação perímetro) relativa ao ponto da agenda “Transferências, retransmissões e alterações e clarificações ao Anexo 2 da deliberação de 3 de Agosto de 2014 (20.00h):
DELIBERAÇÃO
Nos termos do n.º 1 do artigo 146.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro (RGICSF), a presente deliberação é considerada urgente, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo do artigo 124.º do Código do Procedimento Administrativo, não havendo lugar a audiência prévia dos interessados. Esta dispensa é igualmente justificada à luz do disposto nas alíneas c) e d) do artigo 124.º do Código do Procedimento Administrativo.
Enquadramento
1. A deliberação do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014 (20:00h), com as clarificações e ajustamentos introduzidos pela deliberação de 11 de Agosto de 2014 (17:00 horas) - doravante a “Deliberação de 3 de Agosto” para efeitos dos considerandos seguintes – que determinou a constituição do Novo Banco, S.A. (“Novo Banco”), determinou igualmente a transferência de um conjunto de activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banco Espírito Santo, S.A. (“Banco Espírito Santo” ou “BES”) para o Novo Banco, descritos no Anexo 2 à mesma Deliberação de 3 de Agosto.
2. Após 3 de Agosto, e à medida que tem vindo a ser disponibilizada informação adicional, o Banco de Portugal, na qualidade de autoridade de resolução, tem vindo a aprofundar o conhecimento da situação financeira do conjunto de activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Novo Banco.
3. O RGICSF estabelece, em conformidade com a legislação europeia na matéria, que os accionistas e credores de uma instituição objecto de medida de resolução devem suportar os prejuízos dessa mesma instituição.
4. Um dos princípios do RGICSF impõe que os recursos do fundo de resolução não sejam utilizados para assumir directamente os prejuízos da instituição de crédito objecto de resolução.
5. O Banco de Portugal dispõe de um poder legalmente estabelecido que poderá ser exercido a todo o tempo antes da revogação da autorização do BES para exercício da actividade ou da venda do Novo Banco, para determinar transferências adicionais de activos e passivos entre o Novo Banco e o BES (o “Poder de Retransmissão”). O Poder de Retransmissão encontra-se previsto no Capítulo III (Resolução) do Título VIII do RGICSF, tendo ficado expressamente previsto no número 2 do anexo 2 da Deliberação de 3 de Agosto.
6. São necessárias clarificações adicionais quanto aos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão transferidos do BES para o Novo Banco e alterar o Anexo 2 da Deliberação de 3 de Agosto para reflectir estas clarificações.
7. É desejável clarificar que quaisquer contingências fiscais passivas, quer presentes ou futuras, resultantes de dívidas fiscais, constituídas ou por constituir, relativas a factos tributários anteriores a 3 de Agosto de 2014 deverão permanecer na esfera jurídica do BES.
8. Sem prejuízo das deliberações do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 22 de Dezembro de 2014, de 11 Fevereiro de 2015 e de 15 de Setembro de 2015, todas relativas à «Responsabilidade Oak Finance» (tal como definida na deliberação de 15 de Setembro de 2015), o Banco de Portugal deve adicionalmente determinar que, por se tratar de uma responsabilidade de natureza equiparável a obrigações, dirigida a, e subscrita por, investidor(es) qualificado(s), tal responsabilidade (bem como todas as responsabilidades com esta conexas) deve permanecer na esfera jurídica do BES, pelo que na eventualidade de, por decisão transitada em julgado, se determinar que a Responsabilidade Oak Finance não se encontra abrangida pela subsubalínea (c) da subalínea (i) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 da Deliberação de 3 de Agosto ou se determinar que essa responsabilidade pertence ao Novo Banco, tal responsabilidade (bem como todas as responsabilidades com esta conexas) é retransmitida para o BES.
9. Na medida em que, e não obstante as clarificações e alterações constantes desta deliberação, um activo ou passivo tenha sido transferido para o Novo Banco que devesse ter permanecido na esfera jurídica do BES, ou tenha permanecido na esfera jurídica do BES, mas que devesse ter sido transferido para o Novo Banco, o Poder de Retransmissão é exercido para conferir eficácia às clarificações e alterações constantes desta deliberação.
10. Considerando que, desde a aplicação da medida de resolução ao BES e também na presente data foram tomadas pelo Conselho de Administração do Banco de Portugal várias deliberações que produziram efeitos na selecção de activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão transferidos para o Novo Banco, a qual estava originalmente expressa no Anexo 2 da Deliberação de 3 de Agosto, revela-se oportuno e adequado proceder-se a um esforço de consolidação, actualizando o referido Anexo 2 às mencionadas deliberações.
O Conselho de Administração do Banco de Portugal, ao abrigo da competência conferida pelo RGICSF para seleccionar os activos e passivos a transferir para o banco de transição e do disposto no n.º 2 do Anexo 2 da Deliberação de 3 de agosto, delibera o seguinte:
A) A subalínea (vii) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 passa a ter a seguinte redacção:
“Quaisquer obrigações, garantias, responsabilidades ou contingências assumidas na comercialização, intermediação financeira, processo de contratação e distribuição de instrumentos financeiros emitidos por quaisquer entidades, sem prejuízo de eventuais créditos não subordinados, cuja posição devedora não seja excluída por alguma das subalíneas anteriores, designadamente as subalíneas (iii) e (v), que (a) fossem exigíveis à data da medida de resolução em virtude de o respectivo prazo já se ter vencido ou, sendo os créditos condicionais, em virtude de a condição (desde que apenas desta dependesse o respectivo vencimento) já se ter verificado, e cumulativamente (b) resultassem de estipulações contratuais (negócios jurídicos bilaterais) anteriores a 30 de Junho de 2014, que tenham cumprido as regras para a expressão da vontade e vinculação contratual do BES e cuja existência se possa comprovar documentalmente nos arquivos do BES, em termos que permitam o controlo e fiscalização das decisões tomadas.”
B) A alínea (d) do n.º 1 do Anexo 2 passa a ter a seguinte redacção:
“São transferidos na sua totalidade para o Novo Banco SA todos os restantes elementos extrapatrimoniais do BES, com excepção dos relativos ao Banco Espírito Santo Angola SA, ao Espírito Santo Bank (Miami), ao Aman Bank (Líbia) e dos relativos às entidades cujas responsabilidades perante o BES não foram transferidas nos termos da subalínea (v) da alínea (a) do n.º 1 e, com efeitos a partir de 29 de Dezembro de 2015, ao BES Finance, Limited;”
C) É aditado um n.º 10, com a seguinte redacção:
“Transferem-se ainda para o Novo Banco quaisquer créditos já constituídos ou por constituir reportados a factos tributários anteriores a 3 de Agosto de 2014, independentemente de estarem ou não registados na contabilidade do BES.”
D) A Administração do BES deve, para efeitos de cumprimento de quaisquer formalidades que se julguem necessárias, exercer as suas competências, praticar os actos e tomar as iniciativas adequadas para garantir as transferências de valores a receber e créditos para o Novo Banco decorrentes das contingências fiscais activas, actualmente identificadas ou futuras, resultantes de créditos fiscais já constituídos ou por constituir, reportados a factos tributários anteriores a 3 de agosto de 2014, independentemente de se encontrarem ou não registadas na contabilidade.
E) É aditado um novo n.º 11, com a seguinte redacção:
“O disposto nas subalíneas (v) a (vii) da alínea (b) do n.º 1 do presente Anexo devem ser interpretadas à luz das clarificações constantes do Anexo 2C”.
F) É aditado um novo Anexo 2C à deliberação de 3 de Agosto, com a redacção constante da deliberação relativa à “Clarificação e retransmissão de responsabilidades e contingências definidas como passivos excluídos nas subalíneas (v) a (vii) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 à Deliberação do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014 (20 horas), na redacção que lhe foi dada pela Deliberação do Banco de Portugal de 11 de Agosto de 2014 (17 horas)”, adoptada pelo Conselho de Administração do Banco de Portugal na presente data;
G) Sem prejuízo das deliberações do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 22 de Dezembro de 2014, de 11 Fevereiro de 2015 e de 15 de Setembro de 2015, todas relativas à «Responsabilidade Oak Finance» (tal como definida na deliberação de 15 de Setembro de 2015), o Banco de Portugal determina adicionalmente que, por se tratar de uma responsabilidade de natureza equiparável a obrigações, dirigida a, e subscrita por, investidor(es) qualificado(s), tal responsabilidade (bem como todas as responsabilidades com esta conexas) deve permanecer na esfera jurídica do BES, pelo que na eventualidade de, por decisão transitada em julgado, se determinar que a Responsabilidade Oak Finance não se encontra abrangida pela subsubalínea (c) da subalínea (i) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 da Deliberação de 3 de agosto ou se determinar que essa responsabilidade pertence ao Novo Banco, tal responsabilidade (bem como todas as responsabilidades com esta conexas) é retransmitida para o BES;
H) É aditada uma subalínea (ix) à alínea (b) ao n.º 1 do Anexo 2, com a seguinte redacção: “A Responsabilidade Oak Finance”.
I) Na medida em que qualquer activo, passivo ou elemento extrapatrimonial que, nos termos de qualquer das alíneas anteriores, devesse ser transferido para o Novo Banco, mas que, de facto, tenha permanecido na esfera jurídica no BES, são, pela presente, os referidos activos, passivos ou elementos extrapatrimoniais transferidos do BES para o Novo Banco, com efeitos a 3 de Agosto de 2014 (20.00h);
J) Na medida em que qualquer activo, passivo ou elemento extrapatrimonial que, nos termos de qualquer uma das alíneas anteriores, devesse ter permanecido na esfera jurídica do BES mas que foram, de facto, transferidos para o Novo Banco, são, pela presente, os referidos activos, passivos ou elementos extrapatrimoniais retransmitidos do Novo Banco para o BES, com efeitos a 3 de Agosto de 2014 (20.00h);
K) O Conselho de Administração do BES e o Conselho de Administração do Novo Banco devem tomar todas as medidas necessárias à execução eficaz das clarificações, ajustamentos, transferências e retransmissões previstos na presente deliberação.
L) É anexada à presente deliberação uma versão revista e consolidada do Anexo 2 da Deliberação de 3 de Agosto de 2014, a qual incorpora:
a. As clarificações e alterações constantes da presente deliberação;
b. As deliberações do Conselho de Administração do Banco de Portugal, adoptadas na presente data, relativas à “Retransmissão de obrigações não subordinadas do Novo Banco, S.A., para o Banco Espírito Santo, S.A.” e à “Retransmissão das acções representativas da totalidade do capital social do BES Finance, Limited do Novo Banco, S.A., para o Banco Espírito Santo, S.A.”;
c. As deliberações do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 22 de Dezembro de 2014, de 11 Fevereiro de 2015 e 15 de Setembro de 2015, todas relativas à Responsabilidade Oak Finance, e de 13 de Maio de 2015, relativa a eventuais obrigações contraídas e garantias prestadas perante terceiros pelo BES, relacionadas com a comercialização de instrumentos de dívida do GES;
d. O Anexo 2 da Deliberação de 3 de agosto será alterado e rectificado de modo a revestir a forma estabelecida no anexo da presente deliberação, incluindo o aditamento dos Anexos 2B e 2C.
M) Aprovar a acta da presente deliberação em minuta, com vista à sua execução imediata, nos termos do nº 4 e para os efeitos do n.º 6 do artigo 34.º do Código do Procedimento Administrativo.”
VI - Por deliberação de 29/12/2015[9], denominada “retransmissão” o BdP determinou o seguinte:
“A) Todos os direitos e responsabilidades do Novo Banco decorrentes de dívida não subordinada enumerados no Anexo I desta deliberação (excluindo os detidos pelo Novo Banco), juntamente com todos os passivos, contingências e elementos extrapatrimoniais, na medida em que estejam relacionados com os referidos instrumentos de dívida incluindo (i) a emissão, comercialização e venda dos mesmos, e (ii) decorrentes de documentos contratuais ou outros instrumentos, celebrados ou emitidos pelo banco e com conexão com esses instrumentos, incluindo documentos de programa ou subscrição, ou quaisquer outros actos do banco praticados em relação a esses instrumentos, em data anterior, simultânea ou posterior à data das respectivas emissões são, pela presente, retransmitidos do Novo Banco para o BES, com efeitos a partir da data da presente deliberação.
B) O Conselho de Administração do BES e o Conselho de Administração do Novo Banco devem praticar os actos necessários à execução eficaz das retransmissões previstas na presente deliberação.
C) A retransmissão ora determinada não pretende conferir a quaisquer contrapartes e terceiros quaisquer novo direitos nem permitir o exercício de quaisquer direitos que, na ausência da referida retransmissão, não existissem nem pudessem ser exercidos relativamente aos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Novo Banco, do BES ou os assim transferidos do Novo Banco para o BES, incluindo quaisquer direitos de cessação, resolução ou direitos de determinar reembolsos antecipados, convenções de compensação ou netting/compensação, ou resultar em (i) qualquer incumprimento, (ii) alteração de condições, direitos ou obrigações, ou (iii) sujeitar a aprovação, (iv) direito a accionar garantias, (v) direito de efectuar retenções ou netting/compensação entre quaisquer pagamentos ou créditos decorrentes dos referidos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão (…).”
Encontrando-se o BES em situação de grave insuficiência de liquidez e colocado numa situação de risco sério e grave de incumprimento a curto prazo das suas obrigações, deliberou o conselho de administração do BdP a aplicação da mencionada medida de resolução, por esta se revelar imperativa e inadiável enquanto medida de defesa dos depositantes e para evitar uma ameaça à segurança dos fundos depositados (cf. Considerandos 5., 7. e 8. da Deliberação do BdP de 3 de Agosto de 2014), tendo então ali consignado que a constituição do novo banco permitiria aos seus depositantes (do primitivo BES) “manter um relacionamento estável com a sua instituição e a continuidade do acesso aos serviços por ele prestados” (cf. ponto 12 da Deliberação).
Nos termos da alínea (b) do Anexo II da Deliberação, “as responsabilidades do BES perante terceiros que constituam passivos ou elementos extrapatrimoniais deste serão transferidos na sua totalidade para o Novo Banco, SA, com excepção dos seguintes ("Passivos Excluídos")”, onde se incluem, na subalínea (v) “quaisquer responsabilidades ou contingências decorrentes de dolo, fraude, violações de disposições regulatórias, penais ou contra-ordenacionais”.
Com a Deliberação do BdP de 11 de Agosto de 2014 a subalínea (v) passou a ter a seguinte redacção: “Quaisquer responsabilidades ou contingências, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contra-ordenacionais”.
Na Deliberação “Contingências” de 29 de Dezembro de 2015, que visou a “Clarificação e retransmissão de responsabilidades e contingências definidas como passivos excluídos nas subalíneas (v) a (vii) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 à Deliberação do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014 (20 horas), na redacção que lhe foi dada pela Deliberação do Banco de Portugal de 11 de agosto de 2014 (17 horas)”, o conselho de administração do BdP, ao abrigo da sua competência para seleccionar os activos e passivos a transferir para o banco de transição (cf. art.º 145º-G do RGICSF, na redacção vigente à data[10], deliberou “Clarificar que, nos termos da alínea (b) do número 1 do Anexo 2 da deliberação de 3 de agosto, não foram transferidos do BES para o Novo Banco quaisquer passivos ou elementos extrapatrimoniais do BES que, às 20:00 horas do dia 3 de agosto de 2014, fossem contingentes ou desconhecidos (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente da sua natureza (fiscal, laboral, civil ou outra) e de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES
Como esclarece José M. Gonçalves Machado, in A Medida de Resolução do “BES” e a confiança dos depositantes: um caso de hoje, uma lição para o futuro, pág. 472, nota 101[11], a expressão “passivo contingente” é usada, em sentido técnico, para obrigações ou responsabilidade que não satisfaçam os critérios de reconhecimento: (i) uma entidade tenha uma obrigação presente (legal ou construtiva) como resultado de um acontecimento passado; (ii) seja provável que um exfluxo de recursos que incorporem benefícios económicos será necessário para liquidar a obrigação; e (ii) possa ser feita uma estimativa fiável da quantia da obrigação.
Com efeito, a designação de “Passivo contingente” correspondente ao respectivo conceito contabilístico que, como tal, se encontra fixado nas Normas Internacionais de Contabilidade (International Accounting Standards, com a sigla IAS) recebidas pelo Regulamento (CE) n.º 1126/2008, da Comissão, que adopta determinadas normas internacionais de contabilidade nos termos do Regulamento (CE) nº 1606/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, e sucessivamente alterado até à redação atual dada pelo Regulamento (UE) n.º 2020/551 da Comissão de 21 de abril de 2020.
Em Portugal, o Sistema de Normalização Contabilística (SNC) que foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de Julho, “na linha da modernização contabilística ocorrida na EU” (cf. respectivo preâmbulo) estabeleceu como relevantes as regras da Norma contabilística e de relato financeiro 21, surgindo a definição de passivo contingente sem alterações significativas daquela prevista e apresentada pela norma IAS 37.
Em concreto, tal definição consta da norma IAS 37 - Provisões, Passivos Contingentes e Activos Contingentes, cujo objectivo é o de assegurar que sejam aplicados critérios de reconhecimento e bases de mensuração apropriados a provisões, passivos contingentes e ativos contingentes e que seja divulgada informação suficiente nas notas de modo a permitir aos utentes compreender a sua natureza, tempestividade e quantia.
Nas Definições enunciadas na norma IAS 37[12] detecta-se o seguinte:
“Um passivo é uma obrigação presente da entidade proveniente de acontecimentos passados, cuja liquidação se espera que resulte num exfluxo de recursos da entidade que incorporam benefícios económicos.
Um acontecimento que cria obrigações é um acontecimento que cria uma obrigação legal ou construtiva que faça com que uma entidade não tenha nenhuma alternativa realista senão liquidar essa obrigação.
Uma obrigação legal é uma obrigação que deriva de:
a) um contrato (por meio de termos explícitos ou implícitos);
b) legislação; ou
c) outra operação da lei.
Uma obrigação construtiva é uma obrigação que decorre das ações de uma entidade em que:
a) por via de um modelo estabelecido de práticas passadas, de políticas publicadas ou de uma declaração corrente suficientemente específica, a entidade tenha indicado a outras partes que aceitará certas responsabilidades; e
b) em consequência, a entidade tenha criado uma expectativa válida nessas outras partes de que cumprirá com essas responsabilidades.
Um passivo contingente é:
a) uma possível obrigação que resulta de acontecimentos passados e cuja existência será confirmada apenas pela ocorrência ou não de um ou mais acontecimentos futuros incertos não totalmente sob controlo da entidade; ou
b) uma obrigação presente que resulta de acontecimentos passados, mas que não é reconhecida porque:
i) não é provável que um exfluxo de recursos que incorporam benefícios económicos seja exigido para liquidar a obrigação, ou
ii) a quantia da obrigação não pode ser mensurada com suficiente fiabilidade.”
Sustenta o réu/apelante que, enquanto sucessor do BES, não tem qualquer responsabilidade pelo pagamento das quantias reclamadas pelos autores/recorridos, porquanto, por um lado, não estão configurados nos autos quaisquer depósitos que fossem susceptíveis de transmissão para o Novo Banco, S. A. e, ainda que assim não fosse, sempre estaria em causa uma responsabilidade decorrente de fraude cometida pelo ex-funcionário do BES, expressamente excluída do perímetro da transferência de activos, passivos e elementos extrapatrimoniais, tal como definido pela Deliberação do BdP.
Impõe-se, como tal, aferir da natureza do crédito peticionado nos autos e se este deve ser tomado como contingente ou desconhecido e, por via disso, deve ser considerado como não tendo sido objecto de transmissão para o apelante.
António Menezes Cordeiro define a abertura de conta como “um contrato celebrado entre o banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos relativos a diversas práticas bancárias”, sendo esse o negócio que marca o início de uma relação bancária complexa e duradoura – cf. Manual de Direito Bancário, Coimbra, 1998, pág. 447.
A abertura de conta pressupõe elementos característicos da conta corrente, em que as partes assumem a obrigação de manter uma determinada relação de negócios, sob a forma contabilística duma conta corrente, existindo, para o efeito, um contrato base que permite diversos movimentos, um acordo no sentido de levar as posições a uma conta corrente, em sentido contabilístico; um acordo de compensação; e um acordo de reconhecimento do saldo.
Distinta da conta corrente bancária é a abertura de conta (contrato nuclear do Direito bancário que origina a relação duradoura e integra diversos elementos, como o depósito bancário) e o depósito bancário, como depósito especial, celebrado com um banqueiro e sujeito a regras próprias.
Neste contexto, “a conta de depósito à ordem espelha as operações correntes a que dá suporte, pelo registo e contabilização de entradas (créditos) e saídas (débitos) de fundos e posição do saldo respectivo a todo o momento […] embora socialmente típica, a conta corrente bancária constitui modalidade atípica da conta corrente ordinária prevista e regulada no Código Comercial (art.ºs 344º a 350º), com regime próprio, nomeadamente na compensação gradual ou sucessiva de créditos recíprocos e não apenas no encerramento da conta (art.º 350º do Código Comercial) e na exigibilidade/disponibilidade do saldo diário e não apenas do saldo final resultante da liquidação da conta (art.º 344º do Código Comercial), com a consequência de esse saldo positivo resultante a cada momento das compensações sucessivas estar constantemente à disposição do titular da conta mediante levantamentos ou meios de pagamentos legais (cheque, cartão de crédito ou débito, débito directo iniciado pelo credor beneficiário, transferência, etc) e constituir um bem patrimonial disponível, empenhável, arrestável e penhorável, conquanto imprescritível.” – cf. Calvão da Silva, Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Dezembro de 2013 (Conta corrente bancária: operação não autorizada e responsabilidade civil), Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 144º, N.º 3991, pág. 306.
Assim, associado ao contrato de abertura de conta bancária, pode surgir um conjunto de operações bancárias a envolver o banco e os respectivos clientes, como é o caso do depósito à ordem ou a prazo.
Diz-se que o depósito bancário é um depósito irregular a que se aplicam, em princípio, as regras do mútuo na medida em que sejam compatíveis com a função específica do depósito e as normas do depósito, que não colidam com a sua especificidade, mas tendo sempre presente que o depositante goza do direito de crédito à restituição do saldo existente a cada momento – cf. art.ºs 1205º (“Diz-se irregular o depósito que tem por objecto coisas fungíveis”, sendo o dinheiro coisa fungível, substituível ou subrogável) e 1206º (“Consideram-se aplicáveis ao depósito irregular, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo.”) do Código Civil.
Assim, o depositante “empresta” ao banco dinheiro, ficando este obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade mais os juros, se devidos (art.º 1142º do C. Civil); as coisas mutuadas tornam-se propriedade do mutuário pelo facto da entrega, o que confere ao depósito bancário o cariz de contrato real quoad constitutionem, sendo simultaneamente um contrato obrigacional quoad effectum, pois que o depositante goza do direito de crédito à restituição de outro tanto (art.º 1144º do C. Civil), ou seja, “o depositante troca a titularidade da soma depositada por um direito de crédito à restituição de outro tanto” - cf. Calvão da Silva, op. cit., pág. 312.
Os factos apurados permitem constatar que os autores procederam à abertura de uma conta junto do balcão do BES, em Lausanne, Suíça, a conta DO 2343 3258 0005, iniciando, desse modo, uma relação bancária duradoura, no contexto da qual as partes assumiram deveres recíprocos atinentes às práticas bancárias que passariam a ter lugar – cf. refere António Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 478, o depósito bancário é uma operação que surge sempre associada a uma abertura de conta, de modo que, em regra, o banqueiro já deu o seu assentimento genérico, restando-lhe aceitar as diversas manifestações da sua concretização.
Nesse contexto, os autores procederam a entregas, para depósito, no BES, por intermédio de um balcão a este pertencente, sito na Avenue de Montchojsi, 1006 Lausanne, o que faziam contactando para tanto, ao longo dos anos e de forma preferencial, o funcionário de nome AS, que exerceu funções de responsável dessa sucursal e com quem aqueles, assim como outros emigrantes portugueses, estabeleceram uma relação de confiança, que se manteve até ao final de Junho de 2013.
Assim, desde 1996, o autor marido deslocou-se por várias vezes ao referido balcão para fazer entregas de dinheiro e, algumas vezes, de cheques, a AS, para depósito na sua conta à ordem na instituição (DO 2343 3258 0005), recebendo os respectivos juros em dinheiro ou por transferência bancária, por intermédio deste, tendo sido emitidos documentos comprovativos e extractos com timbre do BES e referência à sucursal de Lausanne.
Deste elenco factual é possível concluir que entre os autores e o BES se estabeleceu uma relação contratual emergente da abertura da conta supra mencionada, sendo que, subsequentemente a tal acto, procederam aqueles à entrega de diversas quantias, no balcão do BES, para provisionamento da referida conta, o que fizeram por diversas vezes, sendo que lhes foram remetidos extractos, aparentemente certificados pelo BES, dando conta a cada momento das quantias existentes/depositadas, pelo que se deve ter por demonstrada, ao contrário do propugnado pelo recorrente, a existência de contrato de depósito bancário, prolongado no tempo.
Na verdade, é seguro afirmar-se que a relação se estabeleceu entre os autores e o BES, ainda que para a recepção das quantias que haveriam de provisionar a conta este se tenha socorrido do então seu trabalhador AS.
Como disso se dá conta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-01-2021, processo n.º 17878/16.9T8LSB.L2.S1[13] - não se vislumbrando razões para de tal dissentir -, há que atentar que no art.º 115º, n.º 3 do Código do Trabalho se estatui, a propósito da determinação da actividade do trabalhador, que “Quando a natureza da actividade envolver a prática de negócios jurídicos, considera-se que o contrato de trabalho concede ao trabalhador os necessários poderes, salvo se a lei exigir instrumento especial.”.
Como é evidente, no âmbito da actividade bancária, caracterizada pela diversidade de operações com a permanência de balcões abertos ao público, onde os clientes se dirigem para a prática de actos bancários, existe um quadro de organização empresarial relevante e complexo, de tal modo que os trabalhadores, por força do contrato de trabalho, assumem poderes representativos, de modo automático, enquanto solução que tem como finalidade evitar que o trabalhador tenha de invocar que age em nome do empregador ou, em alternativa, a necessidade de ratificação pelo empregador dos actos praticados pelo trabalhador – cf. Menezes Leitão, Código do Trabalho anotado, Almedina, Coimbra, 2004 apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-01-2021 supra referido.
Além disso, nos termos do art.º 800º, n.º 1 do Código Civil “o devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor”, o que Vaz Serra explicitou referindo que o “devedor que se aproveita de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento seu para o cumprimento. Com tais auxiliares alargam-se as possibilidades do devedor, o qual, assim como tira daí benefícios, deve suportar os prejuízos inerentes à utilização deles.” – apud Pires Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II 3ª Edição Revista e Actualizada, pág. 57; Ana Prata, Código Civil Anotado, Volume I, 2ª Edição Revista e Actualizada, Ana Prata (Coord.), pág. 1032 sublinha a relevância da responsabilidade obrigacional objectiva consagrada neste normativo “no mercado em que operam sobretudo sujeitos colectivos, organizados as mais das vezes empresarialmente, pelo que os contratos se concluem ou entre pessoas coletivas ou entre pessoas singulares e colectivas. E, quando assim é, aquelas cumprem – ou não – quase inevitavelmente através de terceiros, seus empregados, seja qual for a relação contratual que os ligue.”
A responsabilidade consagrada neste normativo legal tem carácter objectivo, ou seja, o devedor, independentemente de culpa, deve indemnizar o credor pelos danos por este sofridos em virtude do comportamento dos auxiliares a que recorra para realizar o cumprimento ou por causa da conduta dos seus representantes.
Assim, o devedor que executa os actos materiais de adimplemento com auxílio de terceiros que com ele colaboram, sejam estes praticados de forma negligente, dolosa ou até de carácter criminal, responde pelos danos que estes causam ao credor, como se tivesse sido ele próprio, devedor, a cumprir, desde que tenham lugar no exercício de funções destinadas a esse cumprimento ou com ele intimamente relacionados e, como tal, sujeitos a orientação, fiscalização ou vigilância daquele – cf. José Alberto González, Código Civil Anotado, Volume II, pág. 615; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-01-2007, processo n.º 06A4412.
Porque o cumprimento abrange, para além da prestação principal, os deveres laterais de conduta, onde se incluem os deveres de protecção, o devedor que tiver a obrigação de guardar e preservar a coisa, responde também pelo facto dos auxiliares a quem ela foi entregue – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-02-2009, processo n.º 510/06.6TBSEI.C1.
O âmbito de aplicação do art.º 800º, n.º 1 do Código Civil desenha-se, pois, no contexto da responsabilidade contratual, pressupondo uma relação obrigacional específica entre credor e devedor, referindo, porém, Ana Prata, que é irrelevante a relação existente entre o devedor e o terceiro, bastando que a sua intervenção possa ser, directa ou indirectamente, atribuída a iniciativa do devedor, ou seja, é necessário e suficiente que o devedor tenha feito intervir o terceiro no cumprimento, sendo irrelevante se o fez no contexto de uma relação contratual, de uma relação de cortesia ou, até, de uma relação indirecta que permita presumir o assentimento para aquela intervenção – cf. op. cit., pág. 1035.
Conforme decorre do desenho factual supra referido, na situação sub judice, tem de aceitar-se, ao contrário do que o apelante pretende sustentar, que os autores contrataram com o BES, instituição bancária onde o funcionário AS trabalhava, e não, com é evidente, com este.
E esta afirmação não é refutada pelo esgrimir do conteúdo do documento n.º 9 junto com a petição inicial, que constitui o último extracto – ou documento que aparentava ser extracto bancário emitido pelo BES – que data de Março de 2013, data em que o referido funcionário já não ocupava o cargo de gerente do balcão de Lausanne, quer porque aquele funcionário continuava a ser um agente utilizado pelo BES - ainda que, eventualmente, não para receber depósitos (o que, porém, nem sequer está demonstrado posto que não foram concretizadas as funções de coordenador que aquele desempenhava) – utilizando carimbos desta entidade (a que teria acesso precisamente por força das funções que exercia), quer pela circunstância de no ponto 9. não se indicarem, em concreto, as datas das entregas que originaram o montante aí mencionado, sendo certo que no ponto 7. se referem entregas desde 1996, quer ainda porque o autor marido se deslocava ao balcão do BES em Lausanne, ou seja, ao estabelecimento cujas instalações eram providenciadas pelo BES e onde mantinha os seus trabalhadores para prestarem os serviços bancários que oferecia aos seus clientes, o que significa que era perante o BES que os actos eram praticados e era a este que aquele entregava o seu dinheiro.
É, pois, seguro que foi no contexto da vinculação da actuação do aludido funcionário ao banco onde trabalhava, ao abrigo do contrato de trabalho que com este mantinha, aceitando e realizando as operações de depósito ao balcão, que os autores procederam não só à abertura de conta, como, posteriormente, efectuaram a entrega de quantias para provisioná-la, pelo que a relação estabelecida entre os autores e o BES, ainda que com recurso àquele funcionário, foi regular e validamente constituída, devendo considerar-se existentes os concretos depósitos efectuados – cf. neste sentido, por referência a uma situação factual similar, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-01-2011, processo n.º 51/05.9TBMIR.C1, CJ (STJ) 2011, Tomo I, 93, onde se conclui que tendo um funcionário de uma entidade que capta poupanças e presta serviços financeiros recebido quantias, nas instalações de tal entidade, destinadas a aplicações financeiras, é a entidade em causa civilmente responsável pelo reembolso de tais quantias; ainda que o funcionário tenha utilizado em proveito próprio as quantias recebidas.
Demonstrada, assim, a existência de contrato de depósito bancário, prolongado no tempo, entre os autores e o BES, há que aferir da responsabilidade pela restituição dos montantes em causa.
Em consonância com o atrás expendido, exigindo a constituição do depósito bancário, enquanto contrato real (quoad constitutionem), a entrega de dinheiro, com a inerente transferência da respectiva propriedade para o banco/depositário, há que reconhecer que as entregas efectuadas ao ex-funcionário junto do balcão do BES em Lausanne foram efectuadas a esta entidade, pelo que aquela entrega material de dinheiro perfectibilizou o contrato de depósito bancário, o que implicou a transferência da propriedade das quantias depositadas do depositante para o depositário pelo tempo que durasse o negócio jurídico, ficando este último obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade e aquele, na titularidade de um direito de crédito sobre o valor equivalente à quantia depositada e aos frutos (juros remuneratórios) que tenham sido estipulados - cf. art.ºs 1144º, 1142º e 1145º do Código Civil; António Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 472, refere que o dever de restituição opera ex contractu.
Em face disto, há que retirar as devidas consequências da completude de tal contrato, em sentido idêntico ao que se consignou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-01-2021, processo n.º 17878/16.9T8LSB.L2.S1, já acima mencionado:
“A realização do negócio tipificado como depósito bancário, significa para o depositante abrir mão desse valor, em troca de um crédito de soma equivalente, e transferir o domínio e gestão desse montante para o depositário, fornecendo-lhe em contrapartida o seu crédito o direito de, no momento em que por força do contrato a restituição seja exigível, obter o reembolso acordado (cf. Antunes Varela, in Depósito Bancário, Revista da Banca”, n.º 21, Janeiro/Março, 1992, p. 47, citado no ac. STJ de 14-07-2016 no proc. 8507/12.0T BVNG.P1.S1, in dgsi.pt.
A transferência da propriedade da coisa concretamente recebida impõe, sempre que o risco pelo destino da coisa depositada corra por conta do depositário - art.º 796.º, n.º 1, do CC - excepto se for devido a causa imputável ao depositante pelo que, o risco assumido pelo banco depositário só não subsistirá quando houver culpa relevante do depositante, que se sobreponha ou anule a responsabilidade daquele. E isto tem a consequência de durante esse interregno, «a movimentação fraudulenta por terceiro de um depósito bancário não é oponível ao depositante, que a ela foi alheio, independentemente de culpa do banco depositário nessa movimentação» - ac. do STJ de 8-03-2012 p. 500/08.4TDDP.G1.S1 in dgsi.pt.
É por todas estas razões que o ac. STJ de 30-4-2019 antes citado, e que contempla um caso igual ao destes autos (e em que o funcionário que realiza o contrato de depósito é o mesmo) sustenta que “ (…) se o depositário não pode opor ao depositante o desvio ou dissipação que, nesse interregno, um seu funcionário tenha feito do montante (total ou parcial) que o segundo lhe entregara, também não pode a sua responsabilidade pela quantia que lhe foi entregue, comprovadamente, ser reputada de duvidosa ou incerta, i. é, de apenas possível, mas não necessária.
Nesse sentido, a responsabilidade da DD SA perante os seus clientes e ora AA pela restituição das quantias (e respectivos frutos) que estes haviam depositado no seu banco, na data em que foi adoptada a medida da sua resolução, não poderia ser considerada como “discutível, duvidosa ou contestável” e, por isso, contingente ou desconhecida.”. Em igual nos firmamos quando, tendo aceite que o contrato de depósito bancário foi celebrado entre os autores e a própria instituição bancária, concluímos que esse depósito existe e, existindo, não pode ser havido como contingente ou desconhecido.”
E acrescenta-se, em tal aresto, apreciando situação idêntica à dos presentes autos, a propósito da transmissão para o Novo Banco, S. A. do crédito aqui peticionado por força da Deliberação do conselho de administração do BdP, o seguinte:
“[…] o comunicado do Banco de Portugal de 13.08.2014 […] é claro e expresso quando refere que “A medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal garante a segurança dos depósitos que tinham sido constituídos junto do BES Deste modo, não foram afetados quaisquer direitos legais ou contratuais dos depositantes. Os depósitos são integralmente transferidos para o NB. O saldo dos depósitos permanece intacto e disponível para ser movimentado, sem qualquer restrição”.
Como se escreve no ac. do STJ de 30/04/2019, antes citado, também no processo agora em decisão “da matéria de facto assente extrai-se, sim, que um determinado indivíduo, na qualidade de funcionário da DD, não entregou totalmente à sua efectiva proprietária os fundos que os AA haviam entregado a esta, para o que falsificou documentação atinente aos mesmos. (…) a existência de abertura de conta e da efetuação de depósitos encontra evidência formal documental, expressa nos documentos (…), onde consta claramente identificado o montante de depósitos efetuados e a conta a que respeitam, assim como o banco depositário e a identidade do depositante». A eventual responsabilidade civil ou penal do aludido funcionário perante a sua entidade patronal pelos actos cometidos ao serviço desta e com os quais inverteu o título dessa detenção e consumou a apropriação ilegítima de tais fundos, é matéria distinta e que não contende, pelo que antes deixámos esclarecido, com a consideração de que os fundos propriedade os AA, com a sua entrega, se transferiram para a entidade bancária e não para o funcionário. E de novo, com a mesma decisão, “perante essa matéria, discutível ou contingente será a concreta medida da responsabilidade extracontratual do aludido funcionário perante a sua própria entidade patronal gerada numa relação a que são estranhos os AA e a pretensão que nos autos formulam. Não era contingente, antes emerge como não duvidosa nem contestável, a responsabilidade contratual de tal sociedade em que essa pretensão foi assente pela obrigação a que a mesma, perante os AA, se encontrava adstrita nos apontados termos.
Com efeito, a causa de pedir dos AA não é o conjunto dos actos ilícitos e culposos do funcionário da DD SA, mas antes a qualidade de potencial sucessora universal da recorrente na responsabilidade contratual de tal sociedade, transmitida pela medida de resolução bancária a que foi sujeita.
E a essa relação contratual, com a inerente responsabilidade, são alheias ponderações atinentes ao modo como a DD SA tinha estruturado a sua própria actividade empresarial, designadamente quanto à distribuição e organização dos respectivos serviços de apoio (…)”.
Em conclusão, não é a circunstância formal e contabilística de os contratos de depósito bancário efectivamente celebrados com o BES não encontrarem reporte no registo administrativo documental da entidade bancária que os coloca na lista de inexistentes, desconhecidos ou contingentes porquanto, uma vez provada a sua celebração é essa demonstração que determina a sua elegibilidade para pagamento, fazendo com que os mesmos não caibam nas “responsabilidades ou contingências decorrentes de dolo ou fraude” porque a responsabilidade em que se situa a relação entre autores e o BES é a contratual e não a extracontratual.
Perante a demonstrada factualidade e analisando a deliberação inicial do BdP de 3/8/2014 (que conformou a medida de resolução que incidiu sobre aquela instituição de crédito) e suas sucessivas clarificações e rectificações, operadas pelas deliberações de 11/8/2014 e 29/12/2015, dúvidas não restam de que a obrigação aqui accionada não foi considerada passivo excluído ou não transferido para a instituição de transição que, nessa medida, deve ser tida por responsável pelas quantias depositadas na conta titulada pelos AA na instituição de crédito originária, como sucessora nos direitos e obrigações desta.”
Não se vislumbram fundamentos para divergir deste entendimento, pela seguinte ordem de razões:
- As quantias entregues pelos autores foram-no junto do balcão do BES, em Lausanne, ainda que com a intervenção do então funcionário daquela instituição bancária, pelo que se têm por entregues à própria instituição, o que invalida os argumentos do recorrente no sentido de que o depósito se não constituiu porque o dinheiro não teria sido entregue ao BES;
- Concluindo-se pela efectiva constituição de um contrato de depósito bancário, a entrega das quantias a esse título importou a transferência da propriedade para o banco depositário que, como tal, findo o negócio jurídico, deve proceder à sua restituição, pelo que corre por sua conta o risco do desaparecimento da coisa que deve restituir (cf. art.º 796º, n.º 1 do Código Civil) – cf. António Menezes Cordeio, op. cit., pág. 479 – “O risco do que possa suceder na conta do cliente, quando não haja culpa deste, cabe ao banqueiro”;
- O crédito dos autores advêm de quantias depositadas na conta à ordem de que eram titulares junto do BES, desde 1996 até 2013, ou seja, antes da aplicação da medida de resolução, e que ali não ingressaram pelo facto de o então funcionário AS delas não ter dado entrada, embolsando-as (cf. pontos 15. e 16.) o que configura uma situação de responsabilidade contratual do BES, por violação das obrigações decorrentes do contrato de depósito bancário, pelo que à data da aplicação da medida de resolução, tais créditos, à luz das deliberações adoptadas pelo BdP, não podem ser considerados contingentes nem desconhecidos;
- O próprio BES propôs-se assumir essa responsabilidade, ainda que mediante a entrega de um valor inferior à totalidade das quantias depositadas (cf. ponto 19.), o que significa que o banco reconhecia a existência do dever de restituição que sobre si recaía, desde logo porque o desvio das quantias perpetrado pelo funcionário ocorreu em momento posterior à constituição do depósito (concretizada com a entrega das quantias), não lhe podendo ser oposto, daí que não se esteja perante um «passivo desconhecido» para efeitos da alínea (b) do Anexo 2 da Deliberação de 3 de Agosto, com as alterações e esclarecimentos introduzidos pelas Deliberações de 11 de Agosto de 2014 e de 29 de Dezembro de 2015 (“Contingências” e “Perímetro”), sendo, de facto, um passivo conhecido do BES;
- Por outro lado, não releva, por si só, a circunstância de o valor peticionado não constar dos sistemas do BES e da respectiva contabilidade aquando da aplicação da medida de resolução (cf. ponto 26.), porquanto, conforme resulta do Considerando 9. da Deliberação “Contingências”, o BdP clarificou, precisamente, que não seriam transferidas as responsabilidades contingentes ou desconhecidas do BES, independentemente de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES, pelo que o elemento essencial é discernir se se está perante responsabilidades contingentes, ou seja, uma responsabilidade que não reúna os critérios de reconhecimento acima mencionados;
- No Ponto 17 da IAS 37 supra mencionada esclarece-se que “[u]um acontecimento passado que conduza a uma obrigação presente é chamado um acontecimento que cria obrigações. Para um evento ser um acontecimento que cria obrigações, é necessário que a empresa não tenha nenhuma alternativa realista senão liquidar a obrigação criada pelo acontecimento. Este é o caso somente: (a) quando a liquidação da obrigação possa ser imposta legalmente; ou (b) no caso de uma obrigação construtiva, quando o evento (que pode ser uma ação da empresa) crie expectativas válidas em terceiros de que a empresa cumprirá a obrigação”. Ora, o BdP não quis excluir do perímetro de transferência as obrigações e garantias que dizem respeito ao BES ou créditos sobre entidades que integrava o Grupo BES, conforme refere José M. Gonçalves Machado[14], daí que estando em causa valores pertencentes a um depositante, estes têm de se considerar salvaguardados e a responsabilidade da respectiva restituição transmitida para a nova entidade, ou seja, o Novo Banco, S. A., desde logo porque, como refere aquele autor:
“A aplicação de uma medida de resolução bancária deve obedecer, na afetação das situações concretas, aos seguintes princípios: proporcionalidade e da adequação, tendo em conta o risco de incumprimento por parte da instituição financeira e a gravidade das consequências (cf. artigo 139.º, n.º 2); os acionistas da instituição de crédito objeto de resolução suportam prioritariamente os prejuízos da instituição em causa; os credores da instituição de crédito objecto de resolução suportam de seguida, e em condições equitativas, os prejuízos da instituição em causa, de acordo com a graduação dos seus créditos; nenhum acionista ou credor da instituição de crédito objeto de resolução pode suportar um prejuízo superior ao que suportaria caso essa instituição tivesse entrado em liquidação (no creditor worse off principle); os depositantes não suportam prejuízos relativamente aos depósitos garantidos pelo Fundo de Garantia de Depósitos (“FGD”) (artigo 145.º-D34).
A aplicação destes princípios ao caso concreto deve ser orientada, por sua vez, pelos seguintes objetivos: (i) assegurar a continuidade da prestação dos serviços financeiros essenciais para a economia; (ii) prevenir a ocorrência de consequências graves para a estabilidade financeira, nomeadamente prevenindo o contágio entre entidades, incluindo às infraestruturas de mercado, e mantendo a disciplina no mercado; (iii) salvaguardar os interesses dos contribuintes e do erário público, minimizando o recurso a apoio financeiro público extraordinário; (iv) proteger os depositantes cujos depósitos sejam garantidos pelo FGD e os investidores cujos créditos sejam cobertos pelo SII; (v) proteger os fundos e os ativos detidos pelas instituições de crédito em nome e por conta dos seus clientes e a prestação dos serviços de investimento relacionados (artigo 145.º-C, n.º 1 e 240).”
Donde, o apelante deve ser tido como responsável pelas quantias depositadas na conta titulada pelos autores na instituição bancária originária, como sucessor nos direitos e obrigações desta (cf. art.º 145º-H, n.º 9 do RGICSF, na redacção do Decreto-Lei n.º 114-A/2014, de 1 de Agosto);
- Por fim, provada a constituição dos depósitos e afirmada a obrigação de restituição, o crédito peticionado tem de ser tido como elegível para pagamento, porque não pode ser qualificado como responsabilidade ou contingência decorrentes de dolo ou fraude, estando antes em causa uma responsabilidade contratual emergente da relação estabelecida entre os autores e o BES, que não pode ser integrada no enunciado da alínea B) do Anexo 2C da Deliberação, designadamente, para ser tida como indemnização relacionada com incumprimento de contratos referida na subalínea (iii) da alínea B) – como pretende o apelante – pois que não se trata de qualquer indemnização mas apenas do cumprimento da obrigação de restituição que recai sobre o depositário, para além do que não está em causa contrato de compra e venda de activos imobiliários ou similares a que aí se alude.
Acompanha-se, assim, o entendimento que, em situação similar, tem sido seguido pela jurisprudência, de que são exemplo os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30-04-2019, processo n.º 17566/16.6T8LSB.L1.S2, do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-05-2020, processo n.º 17878/16.9T8LSB.L2-2 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-11-2021, processo n.º 2010/19.5T8BRG.G1.
Pelas razões expendidas, improcede a presente apelação, impondo-se a confirmação da decisão recorrida, que se mantém inalterada.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art.º 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art.º 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
O apelante decai na sua pretensão recursória, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante.
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Lisboa, 22 de Novembro de 2022
Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Alexandra Castro Rocha
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[1] Adiante designado pelo acrónimo BES.
[2] Adiante designado pela sigla BdP.
[3] Adiante designado pela sigla CPC.
[4] Adiante designado pela sigla RGICSF.
[5] Acessível em
https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexo3_deliberacao_3ago2014_medida_resolucao.pdf.
[6] Acessível em
https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexo1-deliberacao_11-o8-2014_-_clarificacao_do_perimetro.pdf.
[7] Acessível em
https://www.bportugal.pt/sites/default/files/deliberacao20151229d.pdf.
[8] Acessível em
https://www.bportugal.pt/sites/default/files/deliberacao20151229c.pdf.
[9] Acessível em
https://www.bportugal.pt/sites/default/files/deliberacao20151229b.pdf.
[10] Introduzida pelo Decreto-Lei n.º 31-A/2012, de 10 de Fevereiro.
[11] In RDS IX (2017), 2, 429-480 acessível em
http://www.revistadedireitodassociedades.pt/files/RDS%202017-02%20(429-480)%20-%20Doutrina%20-%20Jos%C3%A9%20M.%20Gon%C3%A7alves%20Machado%20-%20A%20Medida%20de%20Resolu%C3%A7%C3%A3o%20do%20BES%20e%20a%20confian%C3%A7a%20dos%20depositantes_um%20caso%20hoje%2C%20uma%20li%C3%A7%C3%A3o%20para%20o%20futuro.pdf.
[12] Acessível em
https://www.oroc.pt/Uploads/normativo_tecnico/contabilidade/IAS/IAS%2037.pdf.
[13] Acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[14] Op. cit., pág. 458.