RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA
CONDUTOR
ACÓRDÃO RECORRIDO
ACORDÃO FUNDAMENTO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PRESSUPOSTOS
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
DESPACHO DO RELATOR
Sumário


I - Condição basilar do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência é que o acórdão de que se recorre esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo STJ sobre a mesma questão fundamental de direito
II - Se o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento nada decidiram de forma oposta quanto à prova da culpa do condutor na produção do acidente e da condução com uma TAS superior à legalmente permitida, não se constitui fundamento para o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência relativamente a tal matéria.

Texto Integral




Processo n.º 2599/19.9T8GMR.G1.S1-A

Recurso Extraordinário para Uniformização de Jurisprudência

Incidente de reclamação para a conferência

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Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

O Réu AA reclama para a conferência contra o despacho do relator que indeferiu liminarmente o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência que apresentou contra o acórdão deste Supremo de 28 de abril de 2021, proferido no processo de que este é apenso.

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Está pressuposto na reclamação que o acórdão recorrido estaria em contradição com o acórdão deste Supremo de 9 de outubro de 2014, proferido no processo n.º 582711.1TBSTB.E1.S1, publicado em www.dgsi.pt.

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A decisão do relator sob reclamação apresenta a seguinte fundamentação:

«Tanto quanto se consegue inteligir do teor do requerimento, a contradição residiria no seguinte:

- O acórdão-fundamento defendeu “doutrina” (sic) no sentido de que o direito de regresso da seguradora exigia a prova por esta que o condutor deu causa ao acidente, que agiu com culpa e que conduzia com uma TAS superior à admitida legalmente;

- O acórdão recorrido defendeu “doutrina” (sic) no sentido de que à seguradora bastava provar que o condutor conduzia com uma TAS superior à legalmente permitida.

Aparentemente, a suposta contradição será identificável, pois, na questão da alegação e prova por parte da seguradora da culpa do condutor e da causação do acidente.

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O presente recurso carece de fundamento jurídico, pelo que não pode deixar de ser rejeitado liminarmente.

Como decorre claro do art. 688.º, n.º 1 do CPCivil, uma das condições para o recurso extraordinário para a uniformização de jurisprudência é que o acórdão de que se pretende recorrer esteja em contradição com outro acórdão anteriormente proferido pelo Supremo sobre a mesma questão fundamental de direito.

Conforme jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal de Justiça, uma questão fundamental de direito considera-se decidida de forma oposta quando corresponde a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito da interpretação e aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica fundamental. As decisões são divergentes se têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo - tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito - são análogas ou equiparáveis. O conflito jurisprudencial pressupõe, pois, uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto.

Acresce que a questão de direito em que assenta a alegada divergência deve assumir um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, isto é, deve integrar a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto (não sendo suficientes para o efeito considerações jurídicas marginais ou acessórias com natureza simplesmente de obiter dicta). Também não integram uma real oposição de julgados representações meramente implícitas ou pressupostas.

Portanto, só existe um conflito jurisprudencial quando os mesmos preceitos são interpretados e aplicados diversamente a enquadramentos factuais idênticos.

Ora, bastaria até ler apenas os sumários dos dois acórdão aqui em questão para ver que não é identificável a menor contradição entre eles.

Eis os sumários:

- Acórdão recorrido: “I - Exercendo a seguradora o direito de regresso, no quadro das alíneas c) e d) do n.º 1 do Decreto-Lei n.º 291/2007, compete-lhe apenas alegar e provar que satisfez a indemnização, que o acidente foi causado pelo condutor, que este conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e que abandonou o sinistrado.

II - Ao condutor demandado cabe o ónus de alegar e provar toda e qualquer objeção (impeditiva, modificativa ou extintiva) ao direito de regresso. (…)”

- Acórdão-fundamento: “I - Nos termos do art. 27.º, n.º 1, al. c), do DL n.º 291/2007, de 21-07, o sujeito passivo da ação de regresso fundada em alcoolemia é o condutor “que tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.

II - A expressão “que tenha dado causa ao acidente” restringe o destinatário do exercício do direito de regresso ao condutor culpado na eclosão do acidente e pressupõe a responsabilidade civil subjetiva fundada em culpa deste; logo, exclui-se naturalmente a responsabilidade objetiva ou pelo risco.

III - Para além da culpa, o direito de regresso exige também que o condutor “culpado” conduzisse com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.

IV - A atuação daquele é passível de um juízo de dupla ilicitude manifestada na violação de direitos subjetivos alheios (responsabilidade civil propriamente dita) e na condução com TAS superior à legalmente permitida que fundamenta também uma dupla censura ético-jurídica.

V - Não é exigível o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, ou seja, os factos em que se materializa a influência do álcool na condução e que eram relevantes na vigência do DL nº 522/85, de 31-12, na interpretação do AUJ nº 6/2002.

VI - A “desconsideração” do nexo de causalidade no art. 27º do DL nº 291/2007 deve ser compreendida perspetivando o direito de regresso da seguradora como de natureza contratual e não extracontratual; quer dizer, a previsão legal do direito de regresso integra o chamado estatuto legal imperativo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

VII - O risco assumido pela seguradora em tal contrato não cobre, nem poderia cobrir, os perigos acrescidos que a condução sob a influência do álcool envolve, porque, sendo proibida a condução com TAS igual ou superior a certo limite e sendo mesmo sancionada penalmente tal conduta quando atingir um limite superior (art.s. 81.º, n.ºs 1 e 2, do CEst e 292.º do CP), tal assunção de risco pela seguradora seria nulo, por contrariar normas legais imperativas (art. 280.º, n.º 1, do CC).

VIII - Aquela condução (com TAS superior à legalmente permitida) funcionará, assim, como uma condição ou pressuposto do direito de regresso (independentemente da sua relação causal com o acidente) e não da responsabilidade civil; logo, a seguradora não tem que demonstrar que foi por causa da alcoolemia e da influência da mesma nas respetivas capacidades psico-motoras que o condutor praticou este ou aquele erro na condução e, com isso, deu causa ao acidente, bastando-lhe demonstrar que, nesse momento, ele acusava uma concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei.”

Como se vê destes sumários, ambos os acórdãos entendem que a seguradora tem de provar a culpa do condutor na produção (causação) do acidente e a condução com uma TAS superior à legalmente permitida. Portanto, não apenas não existe qualquer contradição entre a “doutrina” (sic) dos acórdãos, como essa “doutrina” é até totalmente coincidente.

Acresce dizer que pese embora esta identidade que se surpreende nos acórdãos no que respeita ás condições exigíveis para o exercício procedente do direito de regresso por parte da seguradora, os acórdãos foram chamados a pronunciar-se sobre questões totalmente diferentes, razão pela qual nunca se poderia registar por natureza uma qualquer intersecção contraditória entre eles.

O acórdão recorrido pronunciou-se (no que para aqui interessa), e para além de questões de direito probatório (item “Alteração da matéria de facto”), acerca das consequências para o direito de regresso do não convencimento do responsável em anterior ação judicial e da sua não intervenção em transação anteriormente realizada (item “Inadmissibilidade do exercício do direito de regresso”).

O acórdão recorrido não se pronunciou - nem por aí passou a respetiva ratio decidendi - sobre a culpa (“culpa subjetiva”, sic) do condutor na produção do acidente, ainda que esteja nele implícito (aí onde se menciona que compete à seguradora alegar e provar que o acidente foi causado pelo condutor) que recai sobre a seguradora a alegação e prova dessa culpa e da causa do acidente radicar na pessoa do condutor.

O acórdão-fundamento foi chamado a pronunciar-se acerca de assunto muito diferente: como nele consta expressamente exarado, o que foi submetido á sua apreciação era (unicamente) a questão de saber se o direito de regresso da seguradora implicava a prova do nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente, ou se bastava a prova da TAS no momento do acidente. Embora o acórdão-fundamento faça alusão á culpa (e à ilicitude), a respetiva ratio decidendi não passou (nem tinha, pois, que passar) por essas questões.

Vê-se assim, e com toda a clareza, que os acórdãos em causa não decidiram, nem podiam ter decidido, qualquer questão fundamental de direito de forma oposta, nomeadamente a nível da produção culposa do acidente.

E assim sendo, como é, não há fundamento para o presente recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência. Nada há a uniformizar pois que não estamos perante decisões que tenham interpretado e aplicado o mesmo direito de modo contraditório.»

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Este ponto de vista do despacho sob reclamação apresenta-se inteiramente correto, pelo que não poderá deixar de ser mantido.

Efetivamente, condição basilar do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência é que o acórdão de que se recorre esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo Supremo sobre a mesma questão fundamental de direito.

Ora, exatamente como se aponta no despacho sob reclamação, bastaria ler os sumários do acórdão recorrido e do acórdão-fundamento para ver que não é identificável a menor contradição entre eles.

Eis (de novo) os sumários:

- Acórdão recorrido: “I - Exercendo a seguradora o direito de regresso, no quadro das alíneas c) e d) do n.º 1 do Decreto-Lei n.º 291/2007, compete-lhe apenas alegar e provar que satisfez a indemnização, que o acidente foi causado pelo condutor, que este conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e que abandonou o sinistrado.

II - Ao condutor demandado cabe o ónus de alegar e provar toda e qualquer objeção (impeditiva, modificativa ou extintiva) ao direito de regresso. (…)”

- Acórdão-fundamento: “I - Nos termos do art. 27.º, n.º 1, al. c), do DL n.º 291/2007, de 21-07, o sujeito passivo da ação de regresso fundada em alcoolemia é o condutor “que tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.

II - A expressão “que tenha dado causa ao acidente” restringe o destinatário do exercício do direito de regresso ao condutor culpado na eclosão do acidente e pressupõe a responsabilidade civil subjetiva fundada em culpa deste; logo, exclui-se naturalmente a responsabilidade objetiva ou pelo risco.

III - Para além da culpa, o direito de regresso exige também que o condutor “culpado” conduzisse com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.

IV - A atuação daquele é passível de um juízo de dupla ilicitude manifestada na violação de direitos subjetivos alheios (responsabilidade civil propriamente dita) e na condução com TAS superior à legalmente permitida que fundamenta também uma dupla censura ético-jurídica.

V - Não é exigível o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, ou seja, os factos em que se materializa a influência do álcool na condução e que eram relevantes na vigência do DL nº 522/85, de 31-12, na interpretação do AUJ nº 6/2002.

VI - A “desconsideração” do nexo de causalidade no art. 27º do DL nº 291/2007 deve ser compreendida perspetivando o direito de regresso da seguradora como de natureza contratual e não extracontratual; quer dizer, a previsão legal do direito de regresso integra o chamado estatuto legal imperativo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

VII - O risco assumido pela seguradora em tal contrato não cobre, nem poderia cobrir, os perigos acrescidos que a condução sob a influência do álcool envolve, porque, sendo proibida a condução com TAS igual ou superior a certo limite e sendo mesmo sancionada penalmente tal conduta quando atingir um limite superior (art.s. 81.º, n.ºs 1 e 2, do CEst e 292.º do CP), tal assunção de risco pela seguradora seria nulo, por contrariar normas legais imperativas (art. 280.º, n.º 1, do CC).

VIII - Aquela condução (com TAS superior à legalmente permitida) funcionará, assim, como uma condição ou pressuposto do direito de regresso (independentemente da sua relação causal com o acidente) e não da responsabilidade civil; logo, a seguradora não tem que demonstrar que foi por causa da alcoolemia e da influência da mesma nas respetivas capacidades psico-motoras que o condutor praticou este ou aquele erro na condução e, com isso, deu causa ao acidente, bastando-lhe demonstrar que, nesse momento, ele acusava uma concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei.”

Como se vê, ambos os acórdãos entendem que a seguradora tem de provar a culpa do condutor na produção do acidente e a condução com uma TAS superior à legalmente permitida. Portanto, não apenas não existe qualquer contradição entre os acórdãos quanto a tal matéria, como são até coincidentes.

Acresce dizer que, pese embora esta identidade que se surpreende nos acórdãos no que respeita ás condições exigíveis para o exercício procedente do direito de regresso por parte da seguradora, os acórdãos foram chamados a pronunciar-se sobre questões totalmente diferentes, razão pela qual nunca se poderia registar por natureza uma qualquer intersecção contraditória entre eles.

O acórdão recorrido pronunciou-se (no que para aqui interessa), e para além de questões de direito probatório (item “Alteração da matéria de facto”), acerca das consequências para o direito de regresso do não convencimento do responsável em anterior ação judicial e da sua não intervenção em transação anteriormente realizada (item “Inadmissibilidade do exercício do direito de regresso”).

O acórdão recorrido não se pronunciou - nem por aí passou a respetiva ratio decidendi - sobre a culpa do condutor na produção do acidente, ainda que esteja nele implícito (aí onde se menciona que compete à seguradora alegar e provar que o acidente foi causado pelo condutor) que recai sobre a seguradora a alegação e prova dessa culpa e da causa do acidente radicar na pessoa do condutor.

O acórdão-fundamento foi chamado a pronunciar-se acerca de assunto muito diferente: como nele consta expressamente exarado, o que foi submetido á sua apreciação era (unicamente) a questão de saber se o direito de regresso da seguradora implicava a prova do nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente, ou se bastava a prova da TAS no momento do acidente. Embora o acórdão-fundamento faça alusão á culpa (e à ilicitude), a respetiva ratio decidendi não passou (nem tinha, pois, que passar) por essas questões.

Conclui-se assim, como concluiu o despacho sob reclamação, que os acórdãos em causa não decidiram, nem podiam ter decidido (atento o seu objeto), qualquer questão fundamental de direito de forma oposta, nomeadamente a nível da produção culposa do acidente.

E assim sendo, como é, não há fundamento para o presente recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência. Nada há a uniformizar pois que não estamos perante decisões que tenham interpretado e aplicado o mesmo direito de modo contraditório.

O que significa que improcede a reclamação.

Dado que a reclamação nada mais contém de útil e pertinente à questão decidenda, que é a da admissibilidade do recurso, nada mais há a acrescentar ao que fica dito.

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Decisão

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a reclamação, sendo mantido o despacho reclamado de rejeição do recurso.

Regime de custas

O Reclamante é condenado nas custas da reclamação. Taxa de justiça: 3 Uc’s.

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Lisboa, 21 de junho de 2022

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.