EMBARGO DE OBRA NOVA
SERVIDÃO DE VISTAS
USUCAPIÃO
ABANDONO DE FILHO
Sumário


I. Na servidão de vistas não se exerce a servidão através do disfrute das vistas, mas antes através da manutenção da obra – janela, terraço, etc - em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho.
II. O proprietário do prédio serviente, não fica inibido de levantar neste qualquer edifício ou construção.
III. Fica, contudo, sujeito a deixar um intervalo de 1,5 m, mas somente defronte das janelas/terraço, etc, podendo no restante espaço os dois prédios ser até encostados um ao outro.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório.

P. C. e mulher A. C., residentes no Lgº …, Bloco … Vila Real iniciaram este procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo extra-judicial de obra nova contra T. N., residente na Rua …, Vila Real, peticionando que seja considerado ratificado judicialmente o embargo de obra nova efectuado directamente pelos requerentes no passado dia 2 de Dezembro de 2021.
Para tanto alegam, em suma, o seguinte: os requerentes são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano sito na Rua …, nº. …, cidade de Vila Real, descrito na C.R.P. de Vila Real sob o nº. ... do Livro B…, fls. 180v e inscrito na respectiva matriz predial urbana da freguesia de Vila Real sob o artigo ...; o mencionado prédio veio à posse dos requerentes em 1976 na sequência de contrato de compra e venda celebrado entre o requerente marido e M. G. e outros, estes na qualidade de vendedores, tendo registado o prédio em seu nome e exercido desde então os actos de posse do proprietário; na qualidade de acto materializadores da invocada posse alegam que levaram a cabo obras no ano de 1985, pagaram o IMI à Fazenda Nacional e arrendaram a parte superior a terceiros; mais alegam que do seu imóvel faz parte um compartimento, localizado no seu alçado posterior (sul) que, constituindo até 2005 uma varanda, estes decidiram então fechar, dotando-a de uma estrutura em PVC e com janelas (de correr) sobrepostas ao parapeito da varanda, para evitar que as águas pluviais acabassem por se infiltrar para os andares inferiores; tal varanda era dotada de um parapeito, sendo que remontava, tanto quanto foi possível aos requerentes apurar, à data da primitiva construção do prédio, ou seja há mais de cem anos a esta parte, deitando ainda directamente tal varanda para o prédio do requerido, cujo telhado, nesse concreto local, ficava a nível do soalho do 2º andar da casa dos requerentes; prolongava-se a varanda da casa dos requerentes numa extensão de 4,71 metros ao longo da confinância com o urbano do requerido, tendo o respectivo parapeito a altura de 90cm; na medida em que a situação já se prolonga há cerca de 40 anos, consideram assim que se encontra constituída uma servidão de vistas, constituída por usucapião, em benefício do prédio dos requerentes, numa extensão de 4,70 metros, ao longo de toda a extensão da varanda da casa dos requerentes, na parte em que a mesma se encontra em contiguidade física com o prédio do requerido; referem ainda que o requerido tem vindo a proceder à reconstrução e ampliação do seu prédio urbano, o qual confronta com o dos requerentes, construindo um segundo andar, que obstaculiza a servidão de vistas reclamada pelos requerentes e desrespeita o interstício legal de 1,50m com que o seu prédio se encontra onerado; os requentes interpelaram o requerido, por intermédio do seu mandatário judicial, para se absterem de continuarem com a obra, não tendo o mesmo aceitado; consequentemente, no dia 02/12/2021,pelas 15,30h, procederam os requerentes, através do seu mandatário e na presença de testemunhas ao embargo extra-judicial da obra; pretendem agora a ratificação judicial da mesma; terminam formulando o pedido acima enunciado.
O requerido apresentou contestação, tendo alegado, em suma, o seguinte: o requerido é dono e legítimo possuidor do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Real sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana sob o nº … da freguesia e concelho de Vila Real; o prédio foi adquirido pelo requerido por escritura datada de 10/09/2018; já na qualidade de proprietário, requereu ao Município de Vila Real a legalização da obra de reconstrução do aludido prédio, no âmbito do proc n.º 236/19, tendo a referida autarquia emitido o alvará de licenciamento n.º 10/21; alega não reconhecer a constituição de uma servidão de vistas em relação ao requerente, em virtude de o seu imóvel se encontrar descrito como prédio em propriedade total, com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, como casa de pedra e taipa de rés-do-chão, primeiro e segundo andares, com um pátio; considera que as fachadas e o telhado dos prédios se encontram na mesma altura e que a alegada varanda corresponde a uma ampliação do prédio original, na medida em que este possuía um comprimento inferior ao prédio do requerido, antes das obras; considera que os requerentes se aproveitaram da demolição parcial do prédio do requerido para efectuar a renovação do seu prédio, lançando mão do subterfúgio da servidão de vistas; os prédios objecto da presente lide não se encontram fisicamente separados entre si; terminam peticionando a condenação dos requerentes em multa e indemnização, a fixar pelo Tribunal, decorrente de litigância de má-fé.
Foi requerida e admitida a intervenção principal provocada de I. N., mulher do requerido.
Os requerentes exerceram o contraditório e peticionaram a absolvição do pedido de condenação enquanto litigantes de má-fé.
Por requerimento dirigido aos autos, os requerentes peticionaram ainda a reposição da obra na situação em que se encontrava aquando do embargo extra-judicial, ao abrigo do disposto no art 402º do Cód de Proc Civil.
Os requeridos peticionaram absolvição do solicitado.

*
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“IV. Dispositivo
Termos em que o Tribunal decide:
a) Não-ratificar o embargo de obra nova realizado pelos requerentes;
b) Não condenar os requerentes enquanto litigantes de má-fé;
*
Custas a cargo dos requeridos (art 539º, n.º 1 do Cód de Proc Civil).
*
Registe e notifique.”.
Por despacho de 26.04.2022, foi rectificada a decisão no que a custas respeita, ficando estas a cargo dos requerentes.
*
Após recurso interposto pelos requerentes, veio este Tribunal da Relação a julgar o mesmo parcialmente procedente no que respeita à impugnação da matéria de facto, mais anulando parcialmente a sentença recorrida, tendo em vista a ampliação da matéria de facto, nos termos expostos, sendo que a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não está viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto com o fim de evitar contradições, ficando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.

Nessa sequência foi proferida nova decisão, com o seguinte dispositivo:
“IV. Dispositivo
Termos em que o Tribunal decide:
a) Ratificar judicialmente o embargo de obra nova realizado pelos requerentes;
b) Condenar os requeridos a repor a obra na situação em que se encontrava aquando do embargo extra-judicial referido no ponto 16), ao abrigo do disposto no art 402º do Cód de Proc Civil.
c) Não condenar os requerentes enquanto litigantes de má-fé;
*
Custas a cargo dos requeridos (art 539º, n.º 1 do Cód de Proc Civil).
*
Registe e notifique.”.
*
Inconformados com a decisão, os requeridos dela interpuseram recurso e formularam a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):
“Conclusões
17º
Com base no que fora supra mencionado, conclui-se que:
a) O Tribunal “a quo” ao proferir sua segunda decisão não considerou os termos do n.º 2, do artigo 1565º, do Código Civil, por forma a prosseguir a satisfação do duplo interesse em causa do proprietário do prédio dominante e do proprietário do prédio serviente.
b) Como se verifica na fotografia apresentada no item IV, do artigo 13º, da presente, a varanda/janelas do prédio dominante está construída/instaladas numa grande extensão de área, por isto, existe entrada de muita luz e ar, e, estando a obra do prédio serviente aprovada pela Câmara Municipal de Vila Real – cfr. Doc. 05 da oposição (alvará de obras de construção) – o Juízo de 1ª Instância deveria ter observado o agravamento da onerosidade da servidão.
c) A nosso ver, o interesse da servidão de vista em causa, nada mais é que puro egoísmo do proprietário do prédio dominante, visto não haver qualquer prejuízo para seu imóvel em manter as obras do prédio dominado nos precisos termos do projeto de obra aprovado.
d) Desta forma, o nobre julgador de 1ª Instância deveria atender às necessidades normais e previsíveis do prédio dominante e com o menor prejuízo para o prédio serviente.
e) A questão tratada nos autos não envolve apenas uma janela, a qual fosse vedada colocaria em causa toda a entrada de luz e ar do prédio dominante, mas no caso em concreto, o mesmo possui diversas janelas para se servir das vistas, como prova a fotografia “colada” no item IV, do artigo 13º, do objeto deste recurso.
f) Posto isto, a falta do aproveitamento desta servidão em nada prejudica o prédio dominante, com base nos seguintes princípios fundamentais: a satisfação das necessidades normais e previsíveis do prédio dominante e o menor prejuízo para o prédio serviente.
g) Através das próprias fotografias constantes dos autos, está mais que provado que os apelados/requerentes não têm qualquer necessidade de usufruir da servidão em causa, contudo, mantendo-se a servidão, os apelantes/requeridos terão um enorme prejuízo ao demolir a parede, ao perder a área da habitação e com a desvalorização monetária de seu imóvel.
h) Outra questão a solucionar é a contradição existente na sentença recorrida, entre a fundamentação de direito sobre a ratificação judicial do embargo e a decisão.
i) Na Fundamentação de Direito – item III, alínea b) - o Tribunal “a quo” menciona que o pedido de ratificação judicial tem que improceder, e na decisão - alínea a), IV. Dispositivo – o Tribunal já ratifica judicialmente os embargos, o que gera uma ambiguidade na sentença recorrida.
j) Por fim, sem prescindir do que anteriormente se conclui, caso esta Colenda Corte de Justiça entenda pela manutenção da ratificação judicial dos embargo, é imprescindível alterar a decisão recorrida que condena os apelantes a repor a obra na situação que se encontrava aquando do embargo extra-judicial referido no ponto 16) da mesma.
k) O Tribunal de 1ª Instância com esta decisão desconsidera completamente os preceitos adotados pelos artigos 1360º, n.º 1 e 1362º, n.º 2, ambos do Código Civil.
L) Com base na lei acima mencionada, hipoteticamente, sendo reconhecido a ratificação judicial do embargo, os apelantes/requeridos devem apenas ser condenados na demolição a parede que afeta o direito de servidão de vista, a fim de manter o intervalo de 1,5m na dimensão da varanda/janelas, a fim de salvaguardar a função e conteúdo daquele direito.
Pedidos
18º
Ante o exposto, invocando os suplementos jurídicos, sábios e justos dos eminentes Desembargadores, esperam os apelantes que este Egrégio Tribunal da Relação dê total provimento ao recurso, julgando procedente a apelação interposta, e, em consequência, seja a decisão recorrida substituída por outra que não ratifique judicialmente o embargo apresentado pelos recorridos.
Outrossim, caso o entendimento desta Corte de Justiça seja pela ratificação judicial do embargo, sejam os apelantes/requeridos apenas condenados a reporem o direito de servidão de vistas, afetado pela construção da parede no prédio serviente, apenas implicando a sua demolição para manter o intervalo de 1,5m na dimensão da varanda/janelas, a fim de salvaguardar a função e conteúdo daquele direito.
Por ser de direito e de JUSTIÇA!”.
*
Contra-alegaram os requerentes, terminando com a seguinte conclusão:
“CONCLUINDO:
Porque nenhuma censura merece a Sentença recorrida, uma vez que nela foi operada a adequada subsunção legal, face à factualidade dada como provada, deverá ser denegado provimento à apelação, mantendo-se a Sentença recorrida nos seus precisos termos. Assim decidindo, far-se-á, uma vez mais, a costumada e devida Justiça.”.
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Questões a decidir.

O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC) ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado.

Nesta medida, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são as seguintes:
1. Saber se a decisão proferida é conforme ao disposto pelo art. 1565º nº 2 do Código Civil;
2. Conhecer da invocada contradição existente na sentença recorrida, entre a fundamentação de direito sobre a ratificação judicial do embargo e a decisão.
3. Conhecer da requerida alteração da decisão, no sentido de os apelantes serem condenados apenas na demolição da parede que afecta o direito de servidão de vista, a fim de manter o intervalo de 1,5m na dimensão da varanda/janelas.
*
III. Fundamentação de facto.

Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:
“1. Encontra-se registado a favor dos requerentes a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio urbano composto de casa de alvenaria de pedra e betão, coberto a telha, composto de cave, r/c e 1º andar, sito na Rua ..., n.º …, Vila Real, inscrito na matriz predial urbana de Vila Real sob o artigo ... e descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Real sob o n.º ....
2. O prédio referido em 1) veio à posse dos requerentes na sequência de contrato de compra e venda celebrado no ano de 1976 entre o requerente marido (na qualidade de comprador) e M. G. e outros, na qualidade de vendedores.
3. Encontra-se registado a favor dos requeridos o prédio urbano em propriedade total, com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, descrito como casa de pedra e taipa de rés-do-chão, primeiro andar frente e trás e segundo andares, com um pátio e alemeda, sito na Rua ..., n.º .., inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Vila Real sob o artigo … e descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Real sob o n.º .../19921016.
4. O prédio referenciado em 3) foi adquirido pelo requerido mediante escritura pública datada de 10/12/2018.
5. O requerido requereu à Câmara Municipal de Vila Real a legalização da obra de reconstrução do prédio referido em 3), no âmbito do proc n.º 236/19, tendo em 20/10/2020 a referida autarquia emitido o alvará de licenciamento sob o n.º 10/21.
6. Do 2º andar do urbano dos requerentes faz parte, para além de outros, uma varanda, localizada no seu alçado posterior (sul), que data da primitiva construção do prédio e foi objecto de obras de remodelação em 1983.
7. A varanda referida em 6) era dotada de um parapeito (parede de tijolo, revestida a cimento), a contar do sobrado e em toda a sua extensão.
8. Do lado nascente, deitava diretamente tal varanda para o prédio do requerido.
9. Em 2008, os requerentes decidiram fechar a dita varanda, dotando-a de uma estrutura em PVC e com janelas (de correr) sobrepostas ao parapeito da varanda.
10. A varanda referida em 6) confinava directamente com o prédio do vizinho.
11. O requerido tem vindo a fazer obras no prédio referido em 3), tendo levantado um pilar em betão armado, a cerca de 70cm da varanda/janela do prédio dos requerentes.
12. Na semana de 29-30/11/2021, o requerido sobrepôs a tal pilar, a cofragem de uma futura viga também em cimento armado.
13. As obras referidas em 11) e 12) estão a menos de 1,50m do prédio referido em 1).
14. Os requerentes, por intermédio do seu mandatário judicial, interpelaram o requerido, através de carta registada com A/R, datada de 18/11/2021, para se abster de levantar qualquer construção em desrespeito da servidão de vistas que consideram beneficiar o seu prédio.
15. Os requeridos responderam por carta datada de 25/11/2021, através do seu Advogado, dizendo não aceitar as pretensões do recorrente, pretendendo dar continuidade à obra.
16. No dia 02/12/2021, pelas 15,30h, procederam os requerentes, através do seu mandatário e, na presença das testemunhas P. L. e A. F. ao embargo extra-judicial da obra, notificando verbalmente o dono da obra (requerido) para suspender imediatamente as obras, parando a sua construção, no que tange à parte do edifício contíguo à varanda/janelas do prédio dos requerentes.
17. Os requeridos continuaram com a obra, tendo terminado a parede que obstaculiza a vida da varanda referida em 6).
18. O parapeito da varanda tem a altura aproximada de 90cm.
19. As janelas que se sobrepõem ao parapeito têm as dimensões aproximadas de 60cm de largura (cada folha) e 90cm de altura, localizando-se o peitoril a aproximadamente 90cm do sobrado”.
20. O prédio referido em 4) era, na parte em que o mesmo confina com a varanda da casa dos requerentes, apenas dotado de r/c e andar.”
21. O telhado do prédio dos requeridos, na confinância com a varanda e janelas da casa dos requerentes ficava a nível do soalho do 2º andar da casa dos requerentes
22. Os requerentes realizaram obras de reconstrução do prédio referido em 1) no ano de 1985.
23. Os requerentes:
a. vocacionaram a cave e o r/c do prédio referido em 1) a comércio, ali explorando o seu filho um mini-mercado;
b. cederam a fruição do uso do 1º e 2º andares a terceiros, mediante arrendamento, pagando ainda o IMI devido à Fazenda Nacional.
24. Os requerentes têm vindo a fazer uso da varanda referida em 6) pelo menos desde 1983 e posteriormente das janelas referidas em 9) para ter vistas sobre os prédios vizinhos, em particular sobre o do requerido, como ainda para se apoiarem e debruçarem o tronco e a cabeça sobre o respetivo parapeito.”.
*
Foram dados como não provados os seguintes factos:
“25. Que a varanda se prolongasse numa extensão de 4,71m.
26. Que o prédio dos requerentes referido em 1) tivesse comprimento inferior do prédio dos requeridos referido em 3).”.
*
IV. Do objecto do recurso.

1. Delimitadas que estão, sob o n.º II as questões a decidir, é o momento de as apreciar.
Como se disse já no anterior acórdão proferido nestes autos, os requerentes invocam a seu favor a constituição de uma servidão de vistas, por usucapião.
Nos termos do disposto no artigo 1305º do Cód. Civil, “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, nos limites da lei e das restrições por ela impostas”.
Uma dessas limitações ou restrições ao direito de propriedade é a servidão, na medida em que, inibindo o dono do prédio onerado de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão, restringe o gozo efectivo do direito de propriedade pelo aludido dono.
Para garantir o gozo pleno do direito de propriedade sobre um prédio, prescreve o art. 1360º, nº 1, do Cód. Civil, que o proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio, igual restrição se aplicando, nomeadamente às varandas e terraços, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela (nº 2 do citado artigo).
Contudo, a existência de (no que para o caso interessa), varandas ou terraços em contravenção do disposto no supra referido normativo, pode importar, nos termos gerais a constituição de servidão de vistas por usucapião (art. 1362º, nº 1).
Assim, a constituição da aludida servidão pressupõe não só a existência no prédio alegadamente dominante das ditas varandas ou terraços, como a manutenção da posse do direito em causa por certo lapso de tempo, só esta facultando ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação - arts. 1251º, 1287º, 1302º e 1316º do Cód. Civil.
Nesta medida, apenas depois de decorrido esse lapso de tempo e de, nessa medida, se ter constituído tal servidão, é que ao proprietário vizinho só será permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras em causa – varandas ou terraços – o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras (art. 1362º, nº 2).
Invocam os apelantes que a decisão proferida não é conforme ao disposto pelo art. 1565º nº 2 do Cód. Civil.
Para tal alegam que o Tribunal “a quo” não considerou os termos do n.º 2, do artigo 1565º do Cód. Civil, por forma a prosseguir a satisfação do duplo interesse em causa do proprietário do prédio dominante e do proprietário do prédio serviente, uma vez que a varanda/janelas do prédio dominante está construída/instalada numa grande extensão de área, por isto, existe entrada de muita luz e ar, e, estando a obra do prédio serviente aprovada pela Câmara Municipal de Vila Real, deveria ter sido tido em conta o agravamento da onerosidade da servidão.
A tal acresce que os apelados/requerentes não têm qualquer necessidade de usufruir da servidão em causa, contudo, mantendo-se a servidão, os apelantes/requeridos terão um enorme prejuízo ao demolir a parede, ao perder a área da habitação e com a desvalorização monetária de seu imóvel.

Vejamos.
A servidão tem por objecto utilidades susceptíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante (artigo 1544º Cód. Civil), compreendendo tudo o que é necessário para o seu uso e conservação e, em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente (artigo 1565º Cód. Civil).
Como se afirmou no Acórdão desta Relação de Guimarães de 07.12.2006, relatado pela então Desembargadora Rosa Tching, disponível em www.dgsi.pt, tendo em conta o disposto nos artigos 1360º, 1363º e 1364º do Cód. Civil janelas são aberturas mais ou menos amplas, com pelo menos mais de 15 cm numa das suas dimensões, onde, no dizer tradicional, cabe uma cabeça humana, munidas de sistemas que podem abrir-se e fechar-se, permitindo a entrada de ar e luz, e ainda o debruçamento das pessoas nos seus parapeitos e gozo de vistas, sendo ainda possível, através delas, sacudir-se o pó de tapetes, verter líquidos e arremessar objectos, devassando, portanto o prédio vizinho, se circunstâncias ou regulamentos especiais a tal não obstarem.
Por outro lado, como referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado, vol. III) “O objecto da restrição” correspondente à servidão de vistas “não é propriamente a vista sobre o prédio vizinho, mas a existência da porta, da janela, da varanda, do terraço, do eirado ou de obra semelhante, que deite sobre o prédio nas condições previstas no artigo 1360º. Não se exerce a servidão com o facto de se disfrutarem as vistas sobre o prédio, mas mantendo-se a obra em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho (sublinhado nosso)”.
Ou ainda Manuel Henrique Mesquita (Direitos Reais, Coimbra, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, pág.154, nota (1)), “O que importa, para a constituição da servidão” de vistas por usucapião é a existência das obras e não a sua efectiva utilização pelo proprietário, pois se trata de uma servidão contínua que, como tal, se exerce independentemente de facto do homem”.
Temos assim que a constituição da servidão por usucapião é independente de o seu proprietário ter ou não gozado as vistas que por meio delas pode disfrutar. Temos também que na servidão de vistas não se exerce a servidão através do disfrute das vistas mas através da manutenção da obra – janela, terraço, etc - em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho.
Ora, no caso dos autos, os apelantes/requeridos não colocam em causa que tenha sido constituída em benefício do prédio dos apelados /requerentes (prédio dominante) uma servidão de vistas sobre o seu prédio (prédio serviente).
Nesta medida, vedado lhes estava a construção do seu imóvel que obsta ao exercício de tal direito de servidão.
E não se diga, como os apelantes, que estando a varanda/janelas do prédio dominante construída/instalada numa grande extensão de área, permite a entrada de muita luz e ar, e, estando a obra do prédio serviente aprovada pela Câmara Municipal de Vila Real, deveria ter sido tido em conta o agravamento da onerosidade da servidão. E que mantendo-se a servidão, os apelantes/requeridos terão um enorme prejuízo ao demolir a parede, ao perder a área da habitação e com a desvalorização monetária de seu imóvel.
É que, apenas a si podem imputar os apelantes qualquer prejuízo que advenha da obra que resolveram construir, não considerando a servidão de vistas que há tantos anos existe no local a favor dos apelados/requerentes. De facto, foram os apelantes que solicitaram a aprovação pela Câmara Municipal de Vila Real da obra no seu prédio, requerendo que a mesma fosse realizada, sem considerar a existente servidão de vistas. Como foram também os apelantes quem decidiu construir a parede em causa, apesar do tentado embargo extrajudicial da obra, que não respeitaram.
Improcede assim a primeira questão a decidir.
Mais invocam os apelantes que existe uma contradição na sentença recorrida, entre a fundamentação de direito sobre a ratificação judicial do embargo e a decisão.
Para tal alegam que na Fundamentação de Direito – item III, alínea b) - o Tribunal “a quo” menciona que o pedido de ratificação judicial tem que improceder, e na decisão - alínea a), IV. Dispositivo – o Tribunal já ratifica judicialmente os embargos.
Como se refere no Acórdão desta Relação de Guimarães de 27.06.2019, relatado por Cristina Cerdeira, disponível em www.dgsi.ptconstitui afirmação corrente a de que a decisão judicial constitui um verdadeiro ato jurídico a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos – pelo que as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial são igualmente válidas para a interpretação de uma sentença (artº. 295º do Código Civil). Compreende-se, por isso, que a jurisprudência venha maioritariamente defendendo que a decisão judicial há-de valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, ainda que menos perfeitamente – artºs 236º, nº 1 e 238º, nº 1 do Código Civil (neste sentido vide, entre outros, acórdãos do STJ de 5/11/2009, Rel. Oliveira Rocha, proc. nº. 4800/05.TBAMD-A, de 3/02/2011, Rel. Lopes do Rego, proc. nº 190-A/1999, de 26/04/2012, Rel. Maria do Prazeres Beleza, proc. nº 289/10.7TBPTB e de 20/03/2014, Rel. Fernandes do Vale, proc. nº 392/10.3TBBRG; acórdãos da RC de 22/03/2011, proc. nº 243/06.3TBFND-B e de 15/01/2013, proc. nº 1500/03.6TBGRD-B, todos acessíveis em www.dgsi.pt).”
Temos assim que a interpretação a dar ao excerto constante da sentença na alínea a), do Dispositivo (onde se refere “o Tribunal já ratifica judicialmente os embargos”) tem de ter em consideração as observações que constam da fundamentação da sentença.
Referem os apelantes que nessa fundamentação o Tribunal a quo menciona que o pedido de ratificação judicial tem que improceder.

Contudo, não é apenas isso que é dito, tendo ficado a constar da decisão apelada, e quanto a essa matéria, o seguinte:
“b) sobre a ratificação judicial do embargo;
Nos termos do disposto no art 397º, n.º 1 e n.º 2 do Cód de Proc Civil, aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo, pode requerer, dentro de 30 dias a contar do conhecimento do facto, que a obra, trabalho ou serviço seja mandado suspender imediatamente; o interessado pode também fazer diretamente o embargo por via extrajudicial, notificando verbalmente, perante duas testemunhas, o dono da obra, ou, na sua falta, o encarregado ou quem o substituir para a não continuar, devendo peticionar a ratificação judicial no prazo de cinco dias.
In casu, os requerentes pretendem proceder à ratificação judicial do embargo extra-judicial (art 397º, n.º 1 e n.º 3 do Cód de Proc Civil).
Em primeiro lugar, vimos que, pelo exposto no parágrafo anterior, os requerentes adquiriram uma servidão de vistas por usucapião sobre o prédio vizinho (arts.1360º e 1362º do Cód Civil).
Em segundo lugar, mais resulta dos factos provados que os requeridos construíram uma obra sem respeitar o intervalo de 1,5 metros imposta por lei (pontos 10 a 13).
Em terceiro lugar, resulta ainda dos factos provados que os requerentes notificaram extra-judicialmente os requeridos para pararem com a obra (pontos 14 a 17).
Termos em que o pedido de ratificação judicial tem que improceder.”.
Da leitura do acima transcrito, resulta manifestamente que foi cometido um lapso quando se afirmou que o pedido de ratificação judicial tem que improceder. Tal é o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, pode deduzir do conteúdo da sentença.
Assim, improcede também esta questão.
Finalmente requerem os apelantes a alteração da decisão, no sentido de serem condenados apenas na demolição da parede que afecta o direito de servidão de vista, a fim de manter o intervalo de 1,5m na dimensão da varanda/janelas.

O respeito pela servidão implica que não se possa construir imediatamente acima das janelas, nem ao mesmo nível ou, inclusive, em certos casos, imediatamente abaixo (cfr. neste sentido Pires de Lima/Antunes Varela, transcrevendo um texto da Revista de Legislação e de Jurisprudência (ano 96.º, pág. 334)).
Nesta medida, a servidão de vistas implica o afastamento das janelas do prédio dominante de qualquer obra ou construção a realizar no prédio serviente, no espaço, contado das janelas, de metro e meio.
Mas, a exigência do nº 2 do artº 1362º do Código Civil, de um afastamento mínimo, só se verifica defronte da janela, porta, varanda, terraço, eirado ou outra obra semelhante.
De facto, como escreveu Cunha Gonçalves (citado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.04.2013): “o proprietário do prédio serviente não fica inibido de levantar neste, a todo o tempo, qualquer edifício ou construção, ficando sujeito, contudo, a deixar o interstício de 1m50, mas somente defronte da janela, porta, varanda ou outra obra, contra a qual se não opôs (…) e no restante espaço os dois prédios podem até ser encostados um ao outro.”.
Na decisão apelada, foi determinada a condenação dos requeridos a repor a obra na situação em que se encontrava aquando do embargo extrajudicial referido no ponto 16) dos factos provados, ao abrigo do disposto no art 402º do CPC.

Resulta dos factos provados que:
14. Os requerentes, por intermédio do seu mandatário judicial, interpelaram o requerido, através de carta registada com A/R, datada de 18/11/2021, para se abster de levantar qualquer construção em desrespeito da servidão de vistas que consideram beneficiar o seu prédio.
15. Os requeridos responderam por carta datada de 25/11/2021, através do seu Advogado, dizendo não aceitar as pretensões do recorrente, pretendendo dar continuidade à obra.
16. No dia 02/12/2021, pelas 15,30h, procederam os requerentes, através do seu mandatário e, na presença das testemunhas P. L. e A. F. ao embargo extra-judicial da obra, notificando verbalmente o dono da obra (requerido) para suspender imediatamente as obras, parando a sua construção, no que tange à parte do edifício contíguo à varanda/janelas do prédio dos requerentes.
17. Os requeridos continuaram com a obra, tendo terminado a parede que obstaculiza a vida da varanda referida em 6).”.
Ora, como se disse já, os aqui apelantes, proprietários do prédio serviente, não ficam inibidos de levantar neste, a todo o tempo, qualquer edifício ou construção. Contudo, ficam sujeitos a deixar o interstício de 1m50, mas somente defronte das janelas/marquise, podendo no restante espaço os dois prédios ser até encostados um ao outro.
Tendo tal em consideração e conjugando a decisão proferida pelo Tribunal a quo com a factualidade acima transcrita, temos que o repor da obra na situação em que se encontrava aquando do embargo extrajudicial, é apenas referente à parte da construção contígua à marquise/janelas do prédio dos requerentes/apelados.

De qualquer modo, e para que se não suscitem mais dúvidas, deverá ser alterada a redacção da decisão nesse segmento, nos seguintes termos:
“Condenar os requeridos a demolir a parede construída, na dimensão da varanda/janelas do prédio dos requerentes, a fim de manter o intervalo de 1,5m, repondo assim a obra na situação em que se encontrava aquando do embargo extrajudicial referido no ponto 16) dos factos provados, ao abrigo do disposto no art 402º do CPC.”.
Improcede assim, in totum, a apelação.
*
V. Decisão.

Perante o exposto, acordam os Juízes desta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação, rectificando-se apenas a redacção da condenação constante da al. b) do dispositivo, nos seguintes termos:

“b) Condenar os requeridos a demolir a parede construída, na dimensão da varanda/janelas do prédio dos requerentes, a fim de manter o intervalo de 1,5m, repondo assim a obra na situação em que se encontrava aquando do embargo extrajudicial referido no ponto 16) dos factos provados, ao abrigo do disposto no art 402º do CPC.”.
As custas deste recurso ficam a cargo dos apelantes.
*
Guimarães, 17 de Novembro de 2022

Assinado electronicamente por:
Fernanda Proença Fernandes
Anizabel Sousa Pereira
Jorge dos Santos

(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das citações/transcrições efectuadas que o sigam)