DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE
IRRECORRIBILIDADE
DIREITO DE DEFESA
RECORRIBILIDADE
INSTRUÇÃO
ARGUIDO
INTERROGATÓRIO DO ARGUIDO
TIR
NOTIFICAÇÃO
IRREGULARIDADE
ARGUIÇÃO
CONSEQUÊNCIAS
Sumário

I – O despacho do JIC relativamente à irregularidade da notificação do arguido por este suscitada que a indeferiu e determinou o prosseguimento dos autos e subsequente realização de debate instrutório é recorrível.
II – Isto porque, sendo susceptível de ofender os direitos de defesa do arguido, não pode considerar-se como um despacho de mero expediente.
III – Se o arguido comunicou uma nova morada diferente da constante do TIR, não pode o tribunal deixar de atender à mesma para efeitos das posteriores notificações a efetuar por via postal simples.
IV – Ora, tendo sido o arguido notificado para uma morada que não aquela que comunicou ao tribunal como sendo a sua actual morada e para qual pretendia que fossem enviadas todas as notificações, foi cometida uma irregularidade, já que a lei não prevê o vício da nulidade para a falta ou irregularidade da notificação.
V – Não sendo imputável ao arguido a irregularidade da sua notificação, não tendo sido feita a mesma com a antecedência mínima legalmente exigida e não tendo o mesmo manifestado disponibilidade para comparecer à diligência no dia seguinte, arguindo tão só a irregularidade da sua notificação, não pode considerar-se a mesma sanada, impondo-se extrair daí as devidas consequências.

Texto Integral

Proc.º nº 22/20.5SFPRT

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

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1. RELATÓRIO

Nos autos de instrução nº 22/20.5SFPRT, do Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 5, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em 08.07.2022 em auto de interrogatório de arguido e subsequente debate instrutório, e relativamente à ausência do arguido AA, foi pela Sra. Juiz de instrução proferido o seguinte despacho:

“O arguido AA, requereu o seu interrogatório, o mesmo foi notificado das duas datas, conforme se vê a fls. 5026 e verso do processo principal e também conforme de que ficou designada a segunda data conforme print junto ao processo hoje dos CTT (fls. 5150), em que foi entregue a notificação ao mesmo no dia 4. Uma vez que também não apresentou qualquer tipo de justificação no sentido de impedimento de não pudesse estar aqui e também já tinha sido notificado o interrogatório dele não seria relevante para a decisão instrutória e que só se o mesmo quisesse e o mantivesse, implica que o mesmo comparecesse, o Tribunal entende que não é motivo de adiamento, pelo que o processo prosseguirá.”

Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido AA para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respectiva motivação e contidos nas seguintes conclusões, que se transcrevem:

“A) O recorrente, em tempo, Arguiu junto do Tribunal a quo a falta da sua notificação para a realização das diligências instrutórias que estavam agendadas para o dia 8 de julho, a saber: o seu interrogatório a realizar pela Sr.ª Dr.ª Juiz de Instrução Criminal e subsequente debate instrutório.
B) Sucede que o Tribunal de Instrução decidiu, conforme despacho que consta de fls. 5160 – documento com a referencia citius 438608710 – considerar que o Arguido tinha sido notificado com base na notificação de fls 5026 e verso e 5109 verso, e, consequentemente, prosseguir com as diligências em causa, não realizando o interrogatório do Arguido que havia sido requerido por tal sujeito processual no seu Requerimento de Abertura de Instrução, realizando, também, o debate instrutório na ausência do Arguido.
C) A notificação de fls. 5026 e 5109 – respeitante à data designada para a realização da inquirição do Arguido em sede de instrução e subsequente debate instrutório – foi remetida para a morada sita, na Rua ..., ..., Apartamento ..., ..., Portimão.
D) Acontece que o Arguido já tinha comunicado ao processo a alteração da sua morada para efeitos de notificações, morada essa que, a partir do dia 3 de março de 2022, passou a ser na Rua ..., ..., Portimão.
E) Comunicação essa feita diretamente pelo Arguido no decurso do seu interrogatório não judicial realizado no dia 3 de março de 2022 perante Magistrado do Ministério Público, em sede de inquérito, e que consta de fls. 3850 a 3870, mais precisamente a fls. 3851.
F) Morada essa para onde foi, posteriormente, em 29 de Março, remetida a Acusação deduzida pelo M.P.
G) E depois, incrivelmente, e ao contrário da notificação das datas designadas para as diligências instrutórias, a notificação da decisão instrutória já foi realizada para a morada actualizada.
H) Pelo que é absolutamente evidente que o Arguido nunca foi notificado das datas designadas para a realização das diligências de interrogatório e debate instrutório.
I) Todavia, mesmo que assim não fosse, também não poderia o Arguido considerar-se devidamente notificado. Porquanto:
J) A dita notificação foi remetida ao Arguido via postal simples, com prova de depósito, e apenas foi depositada no recetáculo postal no dia 4 de outubro, conforme consta, quer do “print” dos CTT junto a fls. 5150, quer da própria prova de depósito de fls. 5026 e fls 5109 vs dos autos.
K) Ora, nos termos do disposto no artigo 113.º , n.º 3, do C.P.P., a notificação só se considera efetuada no 5.º dia posterior ao depósito, o que equivale a dizer que o Arguido só se considera notificado no dia 9 de julho, pese embora as diligências estivessem agendada para o dia 8 de julho.
L) Pelo que Arguido não se pode considerar regularmente notificado, o que, salvo o devido respeito, equivale à ausência de notificação, o que consubstancia uma irregularidade processual, a qual se invoca, tudo nos termos do disposto no artigo 123º do C.P.P.
M) Ora, não tendo sido o Arguido devidamente notificado, o mesmo não pôde comparecer nem ao interrogatório que o próprio havia requerido, nem ao debate instrutório.
N) Isto é, nem a um ato de instrução cuja realização é obrigatória, porque requerida pelo próprio, nem a um ato processual cuja presença do Arguido – salvo renuncia expressa do mesmo – é também obrigatória, até porque é um direito que resulta do seu estatuto processual (cf. artigos 61º, nº 1, alíneas a) e b), 292.º n.º 2 e 300º, nº 1, do C.P.P.).
O) Assim, a ausência do Arguido «nos casos em que a lei exigir a sua comparência», constituí uma nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 1119º, alínea c), do C.P.P., o que, se não for imediatamente corrigido, irá comprometer o normal desenrolar do processo.
P) Errou o Tribunal quando considerou que o Arguido estava notificado para as diligências do passado dia 8 de julho e, bem assim, ordenou o prosseguimento do processo, não realizando o requerido interrogatório do arguido e efetuando o debate instrutório na ausência do mesmo.
Q) Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 61.º n.º 1 alínea a) e b); 292.º n.º 2, 297.º n.º 3 e 300.º n.º 1, todos do Código de Processo Penal.
Termos em que, atento todo o exposto, deve o despacho em causa ser revogado e, nessa conformidade, ser substituído que:
a) Reconheça que o Arguido não foi notificado das datas designadas para a realização do seu interrogatório e subsequente debate instrutório, com as consequências legais daí decorrentes:
b) Designe nova data para a realização do interrogatório do Arguido e subsequente debate instrutório, de forma a que tal sujeito processual possa intervir nessas diligências, tudo nos termos do disposto nos artigos 61.º n.º 1 alíneas a) e b), 292.º n.º 2 e 293.º n.º 3 todos do Código Processo Penal.
CONFORME É DE JUSTIÇA E DE DIREITO!!!”

Por despacho proferido em 17.08.2022 foi o recurso regularmente admitido para subir em separado dos autos principais, de imediato e com efeito devolutivo.

O Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta sustentando que deve ser negado provimento ao interposto recurso, e aduziu as conclusões que seguem:

“1º Interpôs o arguido AA recurso do Despacho de fls. 5160, por via do qual se considerou que a não comparência do arguido no interrogatório de arguido que havia sido determinado, agendado para 08-07-2022, uma vez regularmente notificado, não é motivo de adiamento e se determinou o prosseguimento dos autos, com o que não se conforma o arguido invocando verificar-se irregularidade da notificação de tal diligência, nulidade insanável pela ausência do arguido e a falta de pronúncia, pelo Tribunal a quo quanto a tal irregularidade.
2º Entende o Ministério Público, antes de mais e previamente, que o recurso interposto, pese embora haja sido admitido, o não deveria ter sido, pois que o Despacho recorrido não conheceu, como bem refere o arguido, qualquer nulidade e/ou irregularidade.
3º Com efeito, pese embora todas as decisões sejam recorríveis salvo as que se indicam como sendo irrecorríveis, nos termos do artigo 399.° do Código de Processo Penal, a verdade é que apenas se admite recurso das decisões que, no que ora releva conhecem das nulidades e/ou irregularidades.
4º Não tendo, naquele Despacho, sido conhecida qualquer nulidade ou irregularidade, o mesmo tem-se como um Despacho de mero expediente e, assim, irrecorrível, nos termos dos artigos 399.°, e 400.°, n.° 1, al. a) ambos do Código de Processo Penal.
5º Em face do que, deve o recurso ser rejeitado, sem se conhecer de mérito, nos termos dos artigos 414.°, n.° 2 e 420.°, n° 1, do Código de Processo Penal.
Sem prescindir,
6ª Pese embora o arguido tenha a fls. 3850 indicado, a 03-03-2022, para efeito de notificações, morada distinta da que consta do seu termo de identidade e residência e para a qual lhe foram remetidas as notificações de fls. 5026 (para o dia 06-07-2022) e 5109 (para o dia 08-07- 2022), e pese embora o arguido tenha, em 07-07-2022, mas junto a fls. 5168 (após autos de interrogatório e de debate instrutório) arguido a irregularidade da notificação, no mesmo ato o arguido, em seu nome e não no nome do seu Ilustre Causídico, assumiu que naquele dia 07-07-2022 tinha tomado conhecimento das diligências, arguindo, ainda, a respetiva irregularidade da notificação.
7º Todavia aquando do interrogatório de 08-07-2022, com Ilustre Defensor presente, não foi arguida a irregularidade da notificação até ao termo do ato, nos termos do artigo 123.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, o que não sucedeu, nem quanto à morada para a qual foi remetida a notificação, nem, ainda, quanto ao momento em que se considerava efetuada a notificação, pois que, de facto, tendo sido depositada a notificação em 04-07-2022 (cfr.fls. 5109 verso apenas se considerava o mesmo notificado em 09-07-2022 (já depois da diligência), nos termos do artigo 113.°, n.° 3, do Código de Processo Penal.
8º E, não tendo tal sucedido, consolidou-se no ordenamento jurídica, considerando-se tais irregularidades sanadas.
9º Por outro lado, estando tais irregularidades sanadas, igualmente sanada estará a eventual nulidade referida no artigo 120.°, n.° 2, al. c) do Código de Processo Penal, única que se antevia como admissível, na medida em que se realizaria diligência sem a presença do arguido, presença essa obrigatória à luz do n.° 2 do artigo 292.° do Código de Processo Penal mas que, igualmente, porque não foi, no ato, arguida, se sanou à luz do artigo 120.nº 3, al. c), primeira parte, do Código de Processo Penal.
10º Pelo que, entende o MINISTÉRIO PÚBLICO, não merece censura o Despacho recorrido, devendo, em conformidade, manter-se nos seus precisos termos, julgando-se improcedente o recurso interposto, com o que farão, pois, V. Exas., como sempre, a tão acostumada JUSTIÇA.”

Neste tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no qual divergindo da posição assumida quer no despacho recorrido, quer na Resposta do M.ºP.º apresentada em 1ª instância, pronunciou-se pela procedência do recurso interposto, pedindo a revogação do despacho judicial recorrido e que se dê sem efeito os actos processuais subsequentes, devendo ser ainda ponderada a eventual separação de processos, nos termos do artigo 30.º, n.º1 a) do CPP.
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Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi acrescentado.

Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO

É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art. 412.º, n.º 1 e 417º, nº 3, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art. 410º, nº 2 ou o art. 379º, nº 1, do CPP - cfr. entre outros os acórdãos do STJ de 11.04.2007 e de 11.07.2019, disponíveis em www.dgsi.pt.

Atentas as conclusões apresentadas, a questão colocada à apreciação deste tribunal:

- Saber se se mostra verificada a irregularidade da notificação do aqui recorrente para a realização do seu interrogatório e subsequente debate instrutório e, em caso afirmativo, as respectivas consequências

Com vista à dilucidação da questão a dirimir importa considerar os seguintes dados processuais relevantes:
i) em sede de inquérito e aquando a realização do seu interrogatório como arguido em 3 de Março de 2022 e que consta a fls. 3851 dos autos o arguido AA indicou uma nova morada, diferente da do TIR, para onde pretendia que fossem enviadas todas as suas notificações, ou seja, Rua ...., ..., apartamento ..., Portimão ....-....
ii) a notificação para o seu interrogatório e debate instrutório, foi feita por via postal simples, com prova de depósito para a morada: Rua ..., ... ..., Portimão, ocorrendo a entrega no dia 4 de julho em recetáculo postal.
iii) No dia 7 de julho de 2022, pelas 17h14, via email, o arguido apresentou nos autos o seguinte requerimento:
“AA, arguido, na sequência da sua não notificação, do despacho que designou as datas de 6 e 8 de Julho para a realização do diligências de instrução, vem muito respeitosamente, expor e requerer a V. Ex, o seguinte: O arguido, só no dia de hoje, em conferência telefónica com o seu mandatário, é que tomou conhecimento de que foram designados os dias 6 e 8 de Julho para a realização das diligências de instrução requeridas e debate instrutório.
Entre as diligencias a realizar está o seu interrogatório, na qualidade de arguido, perante o Sr.º Dr.º Juiz de Instrução Criminal.
Tal desconhecimento ficou a dever-se ao facto do arguido não ter sido notificado das datas designadas para a realização das diligências supra referidas, tal como era obrigatório nos termos do disposto no artigo 297.º n.º 3 do Código de Processo Penal.
O arguido mantem a mesma residência em que prestou o Termo de Identidade e Residência e onde, até agora, sempre foi notificado de todas os actos processuais.
O arguido não prescinde do seu direito de estar presente em todas as diligências e instrução e, nomeadamente, de ser ouvido perante o Sr. Juiz de Instrução Criminal e de estar presente no debate instrutório Cfr artigos 61.º 1 alínea a) e b), 292.º 2, 297.º n.º 3, 300.º n.º 1 do Código de Processo Penal.
A data para realização do debate é, sempre, notificada ao arguido nos termos do disposto no artigo 297 n.º 2 do Código Processo Penal.
A sua não realização consubstancia uma irregularidade, nos termos e com os efeitos previstos no artigo 123.º n.º1 do C.P.P.
Nulidade essa que aqui expressamente se argui.
Termos em que se requer a V. Ex. se digne reconhecer verificada a irregularidade proveniente da falta de notificação ao arguido da data designada para a realização quer do seu interrogatório e debate instrutório, nos termos do disposto nos artigos 297.º n.º 2 e 123.º n.º ambos do C.P.P., e nessa conformidade ser marcada nova data para a realização das deligencias
em causa, a ser a mesma notificada ao arguido.”
iv) No dia 13 de julho o arguido foi notificado da decisão instrutória na morada actualizada, Rua ...., ..., apartamento ..., Portimão ....-...

Progredindo para a apreciação do recurso:

No caso em apreciação o arguido foi notificado da data designada para a realização do seu interrogatório, que havia requerido, mas um dia antes da data designada para o seu interrogatório e debate instrutório, apresentou um requerimento dando conhecimento ao Tribunal de que não havia sido notificado de nenhuma das datas designadas.
Sobre esse requerimento recaiu a decisão contestada e objecto de recurso.
No despacho recorrido, a Sra. Juiz de instrução considerando que o arguido foi notificado das duas datas designadas e não apresentou justo impedimento para não comparecer, sendo certo que também havia sido notificado de que o seu interrogatório não seria relevante para a decisão instrutória a proferir e, que tal interrogatório só teria lugar se estivesse presente na diligência e manifestasse vontade no sentido da sua concretização, entendeu que não havia motivo para adiamento, e determinou o prosseguimento e subsequente realização de debate instrutório.
Como nota prévia, dir-se-á que, comungamos da posição exprimida pelo Ministério Público nesta instância de recurso, que perante entendimento oposto do Ministério Público na 1ª instância, assevera que não estamos perante despacho de mero expediente (art. 400º, nº1, al. a) do Código de Processo Penal), posto que se trata de uma decisão por parte da Sra. Juiz de Instrução relativamente à irregularidade da notificação do recorrente e do prosseguimento dos autos.
Basta atentar na noção dada por Alberto dos Reis, no Código Processo Civil, V, p. 249 e 250, o qual dizia que “por meio deles o juiz provê ao andamento regular do processo”, não sendo “susceptíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros”, isto é, que se tratava de “despachos banais, que não põem em causa interesses das partes, dignos de protecção”.
Ora, é quanto basta para concluir que estamos em presença de decisão recorrível, pelo que, corretamente a Sra. Juiz admitiu o recurso.
Adiante.
Dos autos decorre que o aqui recorrente, presencialmente e em interrogatório que teve lugar em 3 de Março de 2022 perante o Ministério Público em sede de inquérito, comunicou ao Tribunal uma nova morada diferente da constante do TIR para efeito de posteriores notificações.
Ora, feita esta comunicação, não pode o Tribunal deixar de atender à mesma para efeitos das posteriores notificações a efetuar por via postal simples, pelo que tendo sido o arguido notificado para uma morada que não aquela que comunicou ao tribunal como sendo a sua actual morada e para qual pretendia que fossem enviadas todas as notificações, não concita duvidas que ocorreu uma irregularidade, infringido que se mostra o disposto no art. 196º, nºs 2 e 3 al. c) do CPP.
Acresce que para além da notificação enviada pelo Tribunal ter sido remetida para a morada desactualizada, provavelmente não atentou o tribunal que a notificação ao Arguido foi efetuada via postal simples com prova de depósito, tendo a mesma sido entregue no dia 4 em recetáculo postal, e não ao arguido. E porque nos termos do disposto no art. 113º nº 3, do CPP, o arguido se considera notificado no quinto dia posterior à data indicada na prova de depósito, aquele só se pode só se considerar notificado no dia 9 de julho, ou seja, um dia após a data designada de 08.07.2022.
Por seu turno e como é sabido, em matéria de nulidades processuais penais vigora o princípio da legalidade, de acordo com o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei (cfr. art. 118º, nº1, do CPP), sendo que, nos casos em que a lei não comine a nulidade, o ato ilegal é irregular - vide nº 2.
Deste modo, o princípio da legalidade do processo e dos atos implica um numerus clausus dos fundamentos da invalidade, com o sentido de que a nulidade do ato não resulta da simples violação ou inobservância de disposições legais, mas tem que estar expressamente prevista como consequência da violação ou inobservância das condições ou pressupostos que a lei expressamente referir. A violação ou inobservância das condições ou pressupostos do ato, que não constitua nulidade, determina apenas a «irregularidade» do ato. Cfr. Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado (2014), anotação ao artigo 119º, pág.383, citado no acórdão deste TRP de 11/4/2018, e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Daí que não prevendo a lei o vício da nulidade para a falta ou irregularidade da notificação, não subsistem dúvidas que estamos perante uma irregularidade, que segue o regime previsto no art. 123º do CPP.
Assim sendo, e qualificados os vícios, cumpre determinar os seus efeitos.
Ou seja, tendo inegavelmente ocorrido uma irregularidade da sua notificação, importa perceber se a mesma está ou não sanada.
Vejamos.
Como se viu, considerou a decisão judicial recorrida que:
- o arguido tomou conhecimento da diligência e da data da sua realização um dia antes, em virtude do requerimento que apresentou a 07.07.2022, e não tendo invocado, podendo fazê-lo, justo impedimento para não estar presente, a irregularidade da notificação, a ter existido, ficou sanada.
- o interrogatório não era essencial para a decisão instrutória a proferir.
Porém, não tomou o tribunal recorrido em consideração que nos termos do art. 292º nº 2 do CPP, a vontade do arguido torna obrigatória o seu interrogatório/diligência de prova e que o mandado de comparência tal como preceitua o art. 293º, nº 2 é notificado ao interessado com pelo menos três dias de antecedência, salvo em caso de urgência devidamente fundamentada, em que o juiz pode deixar ao notificado apenas o tempo necessário à comparência.
Por seu turno, e como se deu nota supra o arguido foi notificado para morada diferente daquela que o mesmo atempadamente, e perante autoridade judiciária, comunicou como sendo a sua actual morada e para a qual pretendia que lhe fossem enviadas todas as notificações.
E no que à notificação tange, cerne do dissidio, enviada para a segunda data designada para o seu interrogatório e debate instrutório, optando-se pela notificação por via postal simples, com prova de depósito, não foi respeitada a antecedência mínima de três dias relativamente à data para comparência em tribunal, e para além disso o prazo de 5 dias previsto no art. 113º, nº 3 do CPP, só se completaria no dia seguinte à data designada, no dia 09.07.
Desta feita, a notificação do arguido foi feita para uma morada incorrecta e não foi feita, relativamente à segunda data designada, com a antecedência mínima prevista no art. 293º, nº 2 do CPP, como justamente observa o Ministério Público nesta Relação
No mais, o debate instrutório foi realizado na mesma data, à revelia do disposto no estatuído no art. 297º nº 3 do CPP, segundo o qual o M.ºP.º, o arguido e o assistente são notificados com pelo menos 5 dias de antecedência relativamente à data em que ele vai ter lugar.
Dúvidas não temos por isso que a notificação é irregular, pelo que podia o arguido arguir essa irregularidade nos 3 dias subsequentes ao conhecimento da verificação da mesma, tal como decorre do disposto no citado art. 123º, nº 1 do CPP no qual se estabelece “qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias subsequentes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em qualquer acto nele praticado”.
Sucede que in casu o arguido optou endereçar requerimento aos autos por correio electrónico, no dia 07.07, ou seja na véspera da data designada para o seu interrogatório e possível debate instrutório, no qual expressamente arguiu a irregularidade da sua notificação, afirmando ainda que só nesse dia, e porque lhe foi comunicado pelo seu mandatário, havia tomado conhecimento da diligência a realizar no dia seguinte.
Conforme emerge do antedito requerimento, o arguido expressamente declara que “não prescinde do seu direito de estar presente em todas as diligências e instrução e, nomeadamente, de ser ouvido perante o Sr. Juiz de Instrução Criminal e de estar presente no debate instrutório”, no entanto, não manifestou disponibilidade para estar presente na diligência aprazada para o dia seguinte, tão pouco qualquer tipo de justicação que o impedisse de estar presente na mesma.
Pelo que, e desde logo, não oferece incerteza que arguiu o mesmo a irregularidade da sua notificação.
A questão que se coloca é pois a de saber se o arguido tinha ou não que justificar a razão da não comparência à diligência em que seria interrogado, mesmo perante uma notificação irregular.
Sobre a justificação da falta de comparecimento, rege o art. 117º do CPP, assim redigido na parte em que nos interessa:
“1 - Considera-se justificada a falta motivada por facto não imputável ao faltoso que o impeça de comparecer no acto processual para que foi convocado ou notificado.
2 - A impossibilidade de comparecimento deve ser comunicada com cinco dias de antecedência, se for previsível, e no dia e hora designados para a prática do acto, se for imprevisível. Da comunicação consta, sob pena de não justificação da falta, a indicação do respectivo motivo, do local onde o faltoso pode ser encontrado e da duração previsível do impedimento.
3 - Os elementos de prova da impossibilidade de comparecimento devem ser apresentados com a comunicação referida no número anterior, salvo tratando-se de impedimento imprevisível comunicado no próprio dia e hora, caso em que, por motivo justificado, podem ser apresentados até ao terceiro dia útil seguinte. Não podem ser indicadas mais de três testemunhas.
4 a 8 (…)”.
Desta feita, e porque é também esse o nosso entendimento, não podemos deixar de acompanhar as observações avançadas pelo MºPº nesta Relação no parecer emitido e a esta concreta questão, no sentido de que face à previsão do citado normativo, a apresentação de justo impedimento para a ausência a uma diligência para a qual se foi convocado, pressupõe que essa convocação ou notificação tenha sido regularmente efectuada.
Não lhe sendo imputável a irregularidade da sua notificação e não tendo sido feita a mesma com a antecedência mínima legalmente exigida, e não tendo o arguido manifestado disponibilidade para comparecer à diligência no dia seguinte, arguindo tão só a irregularidade da sua notificação, não pode considerar-se a mesma sanada.
Em suma, já se disse e relembra que é obrigatória a audição do arguido pelo juiz de instrução, sempre que o mesmo o requeira, tal como sobrevém do disposto no art. 292º, nº 2 do CPP, e ademais flui do estatuto do arguido, previsto no art. 61º da antedita lei processual, que nas alíneas a) e b) consigna que “o arguido tem o direito de estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito e ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte”.
No caso que temos em mão, como se viu, o arguido /recorrente requereu a abertura de instrução, pediu que fosse ouvido durante a instrução e tinha direito a estar presente no debate instrutório.
Porém a notificação para comparecer em interrogatório e subsequente debate instrutório padece das irregularidades advenientes de ter sido feita para morada diferente daquela comunicada, e não foi feita com a antecedência prevista quer no art. 293º, n.º 2, quer no art. 297º, nº3, ambos do CPP.
Em consonância, não tinha o arguido que invocar a “justificação do seu impedimento” a que se alude na decisão sob recurso para a sua não comparência no dia seguinte, por não ter sido regularmente notificado para o efeito, irregularidade que veio arguir, e a sua ausência no dia seguinte ao seu interrogatório, que era obrigatório, não sanou a irregularidade verificada.
Cumpria quanto a nós ao tribunal recorrido, perante a arguição dessa irregularidade e antes de prosseguir com a realização do debate sobrestar no mesmo e reparar a falta cometida por forma a levar a cabo o interrogatório do arguido conforme pelo mesmo havia sido requerido.
Na defluência de todo o exposto, procede a pretensão recursiva.

3. DECISÃO:

Em conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, revogando-se o despacho judicial recorrido e dando-se sem efeito os actos processuais subsequentes, com ponderação de eventual separação de processos, nos termos do art. 30º, nº 1 a) do CPP.
*
Sem custas, por não devidas.
*
Notifique.
Comunique de imediato à 1ª instância.

(Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).

Porto, 02 de novembro de 2022

Cláudia Rodrigues.
João Pedro Pereira Cardoso
Raul Cordeiro