TESTAMENTO
ACÇÃO DE ANULAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
USURA
Sumário

I - Na acção anulatória de testamento, embora o tribunal não esteja vinculado à qualificação jurídica do vício invalidante que a parte invoca (incapacidade acidental; coação moral), deve conformar-se ao objecto da acção em função da causa de pedir invocada pelo autor, não podendo decidir com base noutra causa de pedir não invocada (usura) se não houver coincidência dos fundamentos de facto essenciais.
II - Admitindo-se a anulação de testamento por usura, é necessária a verificação cumulativa de três elementos essenciais: emissão de declaração pelo declarante em situação de inferioridade; comportamento de exploração dessa situação de inferioridade por parte do beneficiado; da emissão dessa declaração resultarem para outrem benefícios excessivos ou injustificados.

Texto Integral

Processo n.º 1084/19.3T8GDM. P1- APELAÇÃO
Origem: Juizo Central Cível do Porto – J7
Recorrente: AA
Recorrido: BB

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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO:
1. BB intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, formulando os seguintes pedidos:
a) ser decretada a anulação do testamento outorgado em 17/10/2018 pela falecida CC, por incapacidade acidental e coacção;
b) ser ordenado o cancelamento da inscrição da Propriedade a favor da Ré no prédio urbano descrito sob o nº ... da freguesia ..., concelho do Porto;
c) ser ordenado a anulação da participação de imposto de selo efectuado pela Ré junto da Autoridade Tributária.
Como fundamento das referidas pretensões, o Autor alegou, em síntese que, é sobrinho por afinidade de CC, constando como legatário no testamento por aquela outorgado no dia 17/10/2018, o qual deve ser anulado por incapacidade da testadora, bem como por ter sido vítima de coação moral por parte da beneficiária aqui Ré, que no ano de 2016 se insinuou junto da sua tia, tendo ficado na posse de cerca de €20.000,00, afastando a empregada da de todas as decisões e acompanhamento, passou a controlar as suas contas bancárias, dinheiro, refeições, prestando a assistência na toma de medicamentos ou acompanhamento a consultas médicas, tendo a sua tia deixado de ser seguida pelos seus médicos do Hospital ..., no Porto, por influência da Ré, passando a ser acompanhada por médico indicado pela Ré com consultório em Gondomar, ascendência que se foi agravando no decorrer do ano de 2018, passando a sua tia a estar limitada nos contactos com terceiros (familiares e amigos) por imposição da Ré, mormente quando foi internada a 17/8/2018, tendo-se apercebido o Autor, quando a foi visitar, que a sua tia tinha perdido o controlo da sua situação financeira, já não se recordando quanto recebia de pensão de reforma, não sabendo onde se encontrava a caderneta da Banco 1..., estando tudo a ser controlado pela aqui Ré, apresentando a sua tia evidentes sinais de fragilidade, sendo facilmente manipulável atendendo ao seu estado de saúde muito frágil, o qual se agravou tendo perdido faculdades cognitivas e ficado confinada a uma cama de hospital, até à data da sua morte.
Mais alegou o Autor que no dia 1.10.2018 a sua tia afirmou que se sentia coagida pela Ré, que tinha medo e receio desta, que tinha medo de perder os €20.000,00 que estavam na posse dela, a qual tinha a sua chave de casa, estando a ser pressionada pela Ré para vender essa casa, pelo valor que o engenheiro amigo desta indicasse.
A partir de meados de Outubro, a Ré não deixou o Autor sozinho com a tia, impedindo-a de o informar sobre assuntos pessoais.
O teor do último testamento, que veio a conhecer depois da morte da tia, contraria tudo o que a falecida disse ao longo da sua permanência no hospital, nomeadamente quanto à distribuição equitativa do seu bem imóvel pelas pessoas indicadas em anteriores testamentos, não tendo sido elaborado pela falecida mas de harmonia com as instruções dadas pela aqui Ré, nunca tendo sido intenção da falecida beneficiar a aqui Ré, estando aquela de tal maneira fragilizada aquando da outorga do testamento que não tinha qualquer controlo sobre a sua vontade, ou seja, nada decidia nem opinava sobre o que fazer, já não caminhava, não tinha um discurso coerente, esquecendo-se da sua situação económica, de onde estava, de nomes de familiares e amigos, apresentando uma surdez eminente, tendo a visão afectada, tendo sido levada ao notário pela Ré, já em cadeira de rodas, concluindo o Autor que não é crível que a testadora naquela data tivesse discernimento para identificar pelo nome completo os legatários, que estava a constituir a Ré como sua universal herdeira, que tivesse a livre vontade de alterar o testamento anterior, estando redigido o testamento no sentido de induzir em erro a percepção da testamentária em relação à distribuição dos seus bens e à anulação do seu último testamento.

2. A Ré/Apelante deduziu contestação, impugnando os factos alegados pelo Autor, designadamente referindo que os €20.000,00 foram gastos pela falecida nas suas despesas pessoais e hospitalares, que nada teve a ver com a alteração do testamento em 2017, que nunca exerceu qualquer tipo de domínio ou ascendente sobre a falecida, não lhe controlava as contas até porque a titularidade das mesmas pertencia à própria com autorização para movimentação atribuída a uma tia da Ré, tendo a falecida mantido discernimento para querer e entender até à hora da sua morte, encontrando-se no pleno exercício das suas capacidades intelectuais, físicas e motoras aquando da outroga do testamento, concluindo por pedir a sua absolvição de todos os pedidos.

3. Dispensada a realização de audiência prévia, veio a ser elaborado despacho saneador, no âmbito do qual foi fixado o objecto do litígio, bem como os temas de prova, que não foi objecto de reclamação.

4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, que julgou parcialmente procedente a presente acção e, em consequência, decretou a anulação do testamento outorgado em 17.10.2018 pela falecida CC, por usura e, ordenou o cancelamento da inscrição da aquisição do prédio urbano descrito sob o nº ... da freguesia ..., concelho do Porto, a favor da Ré, absolvendo-a do demais peticionado.

5. Inconformada, a Ré/Apelante interpôs recurso de apelação da sentença final, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
I - Sob o pontos 14. considera-se provado que:
14. No decorrer dos anos de 2016 e 2017, por indicação da ré, a falecida tia do autor, que era seguida no Hospital ..., no Porto, passou a ser acompanhada no Hospital 1... na zona de Gondomar;
Atentos os motivos /fundamentação supra aduzidos, deverá o ponto 14. dos factos provados passar a ter a seguinte redação e em conformidade se passe a ler:
14. No decorrer dos anos de 2016 e 2017, a falecida tia do autor era seguida no Hospital ..., no Porto, e no Hospital 1..., na zona de Gondomar, conforme resulta nomeadamente, dos recibos referentes a acto de enfermagem, em 01.02.2017 e uma consulta de angiologia e cirurgia vascular, em 28-02-2018 do Hospital ....
II- Sob os pontos 17. e 18. considera-se provado que:
17. Em 16.08.2018, em consequência de um episódio de dispneia, a falecida CC foi conduzida pela ré para as urgências do Hospital 1..., tendo aí ficado internada.
18. O autor não teve conhecimento que a sua tia se encontrava doente, tendo a mesma sido internada de urgência sem ter sido avisado pela ré.
Mercê da ponderação supra aduzida e com o objetivo supra proposto aqui dados e tidos por integralmente reproduzidos devem, salvo melhor e mais douta opinião ser aditadas as seguintes alíneas:
a) A falecida CC vivia sozinha:
b) Era Verão;
c) O autor encontrava-se de férias fora do País;
d) As testemunhas DD e EE, próximas do autor encontravam-se a passar o fim-de-semana no Gerês, tendo tido conhecimento da ocorrência,
e) O familiar mais próximo que podia socorrer a falecida encontrava-se a duas horas, de carro, da cidade do Porto e as outras um pouco mais;
f) A decessa padecia de doença crónica;
Pretendendo-se desta forma, atentos os factos dados por não provados ao autor na douta sentença recorrida, decisão de mérito, imediata que julgue, a ação improcedente por não provada.
III- Sob o ponto 19. dos factos provados considera-se que:
19. A falecida CC manteve-se internada no Hospital 1... até 30.08.2018, tendo transitado para a Unidade de Convalescença Manutenção e Reabilitação da mesma instituição, onde permaneceu até ao dia do seu falecimento.
Atenta a factualidade por nós aduzida, constante do corpo destas alegações, que aqui se dá e tem por reproduzida para os devidos e legais efeitos, entende a recorrente que também este ponto deverá ser objeto de reponderação com a alteração subsequente a respetiva redação de forma que onde se lê:
19. A falecida CC manteve-se internada no Hospital 1... até 30.08.2018, tendo transitado para a Unidade de Convalescença Manutenção e Reabilitação da mesma instituição, onde permaneceu até ao dia do seu falecimento.
Se passe a ler:
19. A falecida CC manteve-se internada no Hospital 1... até 30.08.2018, tendo transitado para a Unidade de Convalescença Manutenção e Reabilitação da mesma instituição, onde permaneceu por vontade própria, livre e esclarecida, até ao dia do seu falecimento.
- Pretende-se, mais uma vez, atento o confronto e ponderação, conjunta, dos depoimentos supra transcritos e bem assim com a alteração sugerida ao ponto 19, chamar à lide a prova direta, desconsiderada pela Meritíssima Juíza à quo, aquando da prolação da sentença proferida nos autos, que a ser atendida e sem alteração dos factos dados como não provados ao autor na douta sentença recorrida, decisão imediata sobre o mérito, que julgue a ação improcedente por não provada;
IV- Sob o ponto 22. dos factos provados considera-se provado que:
-22. Durante o internamento naquela instituição, a ré foi limitando de forma paulatina a falecida CC de manter contactos com familiares e amigos, nomeadamente, o contacto com a amiga DD e a filha desta por estas se terem insurgido contra o facto de a ré manter o controlo do dinheiro da falecida.
Face à fundamentação por nós aduzida no corpo destas alegações, que aqui se dá e tem por reproduzida para os devidos e legais efeitos, e os testemunhos prestados objeto das transcrições efetuadas deve o mesmo considerar-se não provado atenta a prova direta e abundante que resultou dos depoimentos, conjugados, das testemunhas EE e FF, amiga e empregada doméstica da decessa respetivamente e bem assim com a memória que por esta foi relatada no seu diário;
- Pretende-se, assim, com o confronto e ponderação, conjunta, dos depoimentos supra transcritos, da contextualização, feita e supra transcrita, que levou as testemunhas DD e filha, até á loja da Ré no Porto e bem assim com a alteração sugerida ao ponto 22 chamar à lide a prova direta, desconsiderada pela Meritíssima Juíza à quo, aquando da prolação da sentença proferida nos autos, que a ser atendida e sem alteração dos factos dados como não provados ao autor na douta sentença recorrida, decisão de mérito, imediata, que julgue a ação improcedente por não provada;
- V Face à contextualização das circunstâncias que determinaram a condução da decessa à loja da ré e a altercação aí ocorrida, caso subsistam dúvidas, atenta a ponderação global da prova ora realizada, deverá, nos termos do disposto da alínea a) do nº2 do artigo 662 do N.C.P.C., ser ordenada a renovação da produção da prova;
VI - Em processo civil declarativo, o pedido e causa de pedir limitam o objeto da ação o qual, perante o principio da estabilidade da instância que ocorre com a citação, não é passível de alteração, (artigo 260 do N.C.P.C);
VII - Da análise da petição inicial constata-se que o autor alegou como fundamento do seu pedido de anulação do testamento outorgado em 17-10- 2018 pela falecida CC a incapacidade acidental desta e coação:
VIII-Tais pedidos foram considerados como matéria não provada;
IX- Não resulta do processo qualquer relatório clinico a reportar qualquer tipo de fragilidade psicológica da decessa que fosse causa determinante de afetação ou influência da sua vontade;
X - A decessa foi professora primária, das antigas, mais de 40 anos;
XI - Era, no dizer das técnicas, médicas, que a acompanharam nos últimos tempos da sua vida, uma pessoa de personalidade forte e que não se deixava lavar por ninguém, atente-se desde logo nos relatórios clínicos juntos aos autos;
XII - A fragilidade alegada é matéria conclusiva e não se encontra suportada em factos concretos que a revelem;
XIII- Tal alegação não constitui facto provado alegado pelo autor e com interesse para a decisão da causa nos termos em que foi definido o Thema decidendum na petição inicial por ser vago e conclusivo impõe-se, por isso, que essa afirmação não possa ser levada em linha de conta para, à revelia do pedido e causa de pedir formulado do autor, se decidir pela nulidade da disposição testamentária tendo por base o nº 3 do artigo 5º do N.C.P.C;
XIV - A ser considerada tal hipótese entende a recorrente que existe contradição entre os factos dados como não provados e a decisão proferida a final,
XV - Nenhuma prova foi realizada no sentido de demonstrar que a falecida só outorgou o testamento porque foi ameaçada ou porque tinha medo da ré;
XVI - Existe por isso em nosso entender erro notório na apreciação da prova;
XVII - A matéria conclusiva alagada pelo autor, é insuficiente para legitimar o recurso ao nº 3 do artº 5 do N.C.P.C.;
XVIII - Nunca o autor foi convidado a suprir tal lacuna e a ser a mesma considerada, existe violação flagrante ao principio do dispositivo consagrado no artigo 5º do N.C.P.C.;
XIX -Foi fixado o objeto do litigio e os temas de prova e o autor nada disse quanto á não inclusão da alegada fragilidade da decessa;
XX - Nunca a usura, como causa ou fundamento, de anulação do testamento foi invocada pelo autor;
XXI - No entender da recorrente não se verificam preenchidos muito menos, cumulativamente, os requisitos da usura:
-Exploração de uma situação de necessidade – encontra-se provado que a decessa foi internada no Hospital privado em Agosto de 2018 e aí permaneceu até ao dia do seu falecimento:
- Inexperiência e ligeireza - a decessa foi professora primária, “das antigas” durante 40 anos;
- Estado mental - encontra-se provado que a testadora tinha preservado uma cognição perfeita e estavas no uso perfeito das suas capacidades, mental e anímica;
- Dependência – Optou por ficar internada num Hospital privado pois, tinha consciência da sua doença física e de sentir que fora dali iria ficar desemparada, em termos de ter todos os cuidados de saúde que, rapidamente, o hospital lhe podia prestar, sentia-se mais confortável, ali e qualquer pessoa em qualquer altura a podia socorrer;
Fraqueza de caracter - resulta do depoimento técnico médica Drª GG, conforme declarações supra transcritas, que a decessa era uma pessoa de personalidade forte resultando, ainda, de depoimento, supra transcrito, da testemunha HH, que a decessa por vezes se zangava com a sua mãe porque gostava de tudo feito á maneira dela;
Promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados – nada podia prometer, pois os custos do internamento eram altíssimos e poderia ter necessidade de alienar o seu património, caso as circunstâncias o exigissem, para fazer face aos encargos com a saúde;
Nada o autor alegou e muito menos concretizou quanto aos benefícios excessivos ou injustificados;
Concluiu, peticionando que o presente Recurso de Apelação seja julgado procedente por provado e, em consequência,
A) Ao abrigo do disposto no Artº. 662º, n.º.1, do C.P.C., deve ser alterada a decisão da matéria de facto e de direito nos termos aduzidos nas conclusões I a XXI deste recurso;
B) Deve a sentença ora recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a ação totalmente improcedente por não provada;
Caso assim se não entenda;
C) Deverá nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 662 do N.C.P.C. ser ordenada a renovação da produção de prova;
D) A douta sentença apelada violou as normas legais dos artigos 5.º.do N.C.P.C e 282.º e 342.º do C. Civil.

6. O Autor/Apelado ofereceu contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado.

7. Foram observados os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
De acordo com o disposto no art. 640º do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes perante o Tribunal de 1ª instância, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no nosso sistema de recursos, não se destina à prolação de novas decisões, mas à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. [1].
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As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
1ª- Se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto;
2ª- Se estão demonstrados os pressupostos de anulação do testamento por usura.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
1. O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1. No dia 20.11.2018, faleceu CC, no estado de viúva de II, não deixando descendentes, nem ascendentes vivos, com a última residência habitual na Rua ..., no Porto, conforme certidão de habilitação de herdeiros constante de fls. 16v a 17v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. No dia 17.10.2018, a aludida CC outorgou testamento público no Cartório Notarial a cargo da Lic. JJ, com sede na Rua ..., nº ..., r/c, salas ... e ..., em Gondomar (...), no qual consta que aquela declarou o seguinte: “Que não tem descendentes, nem ascendentes vivos, pelo que podendo dispor livremente de todos os seus bens, faz o seu testamento, pela forma seguinte:
Dos valores monetários existentes à data da sua morte lega:
a) Sessenta por cento a AA, casada, natural da freguesia ..., concelho de Gondomar, onde reside na Rua ..., número ...;
b) Vinte por cento a KK, casada, residente no Largo ..., número ..., r/c, na Moita;
c) Dez por cento a LL, casada, residente na Rua ..., número ..., no Entroncamento;
d) Dez por cento a BB, casado, residente na Rua ..., número ..., 3º frente, no Porto.
Que institui herdeira do remanescente da sua herança e sua testamenteira a referida AA que fica com a obrigação de cumprir os legados supra referidos, bem como:
1) Garantir que a testadora não terá velório, devendo o seu corpo permanecer na capela mortuária até à hora das exéquias fúnebres, sem haver acesso ao público;
2) Organizar e zelar pela realização das exéquias fúnebres em cerimónia religiosa, devendo o serviço ser executado pela Funerária ...”;
3) Garantir que a testadora é sepultada e não cremada, no Cemitério ..., na sepultura perpétua quinze, Seção quarenta e sete, junto às ossadas do seu marido, II, devendo o seu caixão ser dos mais baratos, e que as chaves deste sejam lançadas para dentro da sepultura, pois o caixão nunca mais deve ser aberto;
4) Informar as pessoas de que em vez de flores devem dar o dinheiro correspondente aos mais necessitados;
5) Tratar e cuidar do seu animal de estimação, uma cadela de nome “X...”, facultando-lhe assistência e cuidados médicos adequados, bem como o fornecimento de alimentação até à data da sua morte.
Que, pelo presente, revoga qualquer outro testamento que tenha feito, nomeadamente o celebrado no dia sete de novembro de dois mil e catorze no cartório da Notária MM, no Porto, exarado a folhas ... do livro de testamentos ...”, conforme documento de fls. 18 a 19 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. No mesmo dia e cartório, a aludida CC outorgou uma procuração, na qual declarou que: “Que nomeia seus procuradores de cuidados de saúde, para quando já não se encontrar capaz de expressar de forma pessoal e autónoma a sua vontade, AA, casada, natural da freguesia ..., concelho de Gondomar, onde reside na Rua ..., número ..., e NN, que também usa profissionalmente o nome de NN, natural da freguesia ... (...), concelho de Gondomar, onde tem o seu domicílio profissional na Rua ..., número ..., 1º andar, sala ..., a quem concede poderes para, individual ou conjuntamente, junto de qualquer estabelecimento de prestação de serviços médicos (centros de saúde, clínicas ou hospitais) públicos ou privados, poder tratar de todos os assuntos relativos ao bem-estar físico ou psíquico e à saúde da mandante, podendo, inclusive, autorizar ou não autorizar a realização de quaisquer exames complementares de diagnóstico, análises, internamentos e intervenções médico-cirúrgicas, assinando e praticando tudo quanto venha a ser necessário.”, conforme documento de fls. 73 a 73v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4. No testamento outorgado pela referida falecida CC no dia 7.11.2014, no Cartório Notarial sito na Rua ..., nº ..., 1º andar, lado esquerdo, a cargo da Lic. MM, consta que aquela declarou, para além do mais, o seguinte:
“Que revoga em todos os seus termos o testamento outorgado no meu Cartório, celebrado em vinte e três de Setembro de dois mil e onze, exarado de folhas ... a folhas ... verso, do Livro de Notas Para Testamentos Públicos e Escrituras de Revogação de Testamentos número ...
(…) Que é viúva e que não tem descendentes nem são vivos os seus ascendentes.
Que faz novo testamento da seguinte forma:
Um – Que a sua sobrinha LL – casada, residente na freguesia e concelho do Entroncamento, à Rua ..., número ... – lega todos os objectos que se encontrarem na sua casa de habitação à data da sua morte e que tiverem aposta uma etiqueta com o número seis;
Dois – Que a OO – casada, residente na freguesia ..., do concelho de Gondomar, à Rua ..., número ... – lega todos os objectos que tiverem aposta uma etiqueta com o número cinco e que se encontrarem na sua casa de habitação à data da sua morte;
Três – Que a KK – casada, residente na freguesia e concelho da Moita, ao Largo ..., número ..., rés-do-chão – lega todos os objectos que tiverem aposta uma etiqueta com o número quatro e que se encontrarem na sua casa de habitação à data da sua morte;
Quatro – Que a seu sobrinho BB – filho da sua cunhada PP, casado, residente na cidade do Porto, à Rua ..., número ..., 3º andar, frente – lega o piano, o anel de ouro com brilhantes, e, ainda, todos os objectos que tiverem aposta uma etiqueta com o número dois e que se encontrarem na sua casa de habitação à data da sua morte;
Cinco – Que a sua amiga DD – divorciada, residente na cidade do Porto, à Rua ..., número ... – lega o direito de uso e ocupação da sepultura perpétua do Cemitério ..., nesta cidade do Porto, com o número ..., localizada na quadragésima sétima secção, bem como lega, ainda, todos os objectos que tiverem aposta uma etiqueta com o número um que se encontrarem na sua casa de habitação à data da sua morte;
Seis – Que a seu sobrinho BB, a KK, a FF e a LL – lega em comum e partes iguais, a sua casa de habitação, localizada na freguesia ..., da cidade e concelho do Porto, à Rua ..., número ..., e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ..., bem como o recheio que nela se encontrar sem qualquer etiqueta.”, conforme documento de fls. 19v a 21v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5. A falecida CC outorgou ainda, no dia 28.07.2017, no Cartório Notarial sito na Rua ..., nº ..., 1º andar, lado esquerdo, a cargo da Lic. MM, novo testamento público, do qual consta que aquela declarou, para além do mais, o seguinte:
“Que revoga em todos os seus termos o testamento outorgado no meu Cartório, celebrado em sete de Novembro de dois mil e catorze e exarado de folhas ... a folhas ... verso, do Livro de Notas Para Testamentos Públicos e Escrituras de Revogação de Testamentos número ... (…)
Que é viúva e que não tem descendentes nem são vivos os seus ascendentes.
Que faz novo testamento da seguinte forma:
Um – Lega, em comum e partes iguais, a sua casa de habitação, localizada na freguesia ..., da cidade e concelho do Porto, à Rua ..., número ..., a:
seu sobrinho BB, – filho da sua cunhada PP, casado, residente na cidade do Porto, à Rua ..., número ..., 3º andar, frente;
sua sobrinha por afinidade LL – casada, residente na freguesia e concelho do Entroncamento, à Rua ..., número ...;
sua amiga KK – casada, residente na freguesia e concelho da Moita, ao Largo ..., número ..., rés-do-chão.
Dois – A sua amiga DD – divorciada, residente na cidade do Porto, à Rua ..., número ... – lega o direito de uso e ocupação da sepultura perpétua do Cemitério ..., nesta cidade do Porto, com o número ..., localizada na quadragésima sétima secção;
Três – Quanto ao recheio da sua casa de habitação, estabelece que cada um dos seus referidos instituídos BB, LL e KK, pode retirar os objectos que cada deu à testadora ao longo dos anos, a título de prendas de Natal de aniversário e de outros, sendo que o restante recheio será entregue aos seus herdeiros legítimos, de acordo com o estabelecido na Lei.”, conforme documento de fls. 22 a 23v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
6. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial do Porto, pela Ap. ... de 2018/12/04 a favor da ré, a aquisição por sucessão testamentária do prédio urbano, sito na Rua ..., composto por casa de cave, rés-do-chão, primeiro andar e águas furtadas, com quintal, poço e mais pertenças, conforme documento de fls. 69 a 69v e cujo teor se dá por reproduzido.
7. O autor é sobrinho por afinidade da falecida CC, tendo vivido com esta e o seu falecido tio durante os anos da sua formação universitária e começo de vida laboral.
8. Tendo ainda acompanhado a sua falecida tia CC ao longo dos anos em que esta viveu sozinha, visitando-a com regularidade.
9. A aludida CC foi também acompanhada, nos últimos anos, por uma empregada doméstica, de nome FF, que era uma pessoa de sua inteira confiança, constando, por este facto, como legatária no testamento outorgado no dia 7.11.2014.
10.No ano de 2016, a falecida CC passou a conviver com mais frequência com a ré.
11.A ré almoçava com a falecida CC todos os dias e passou a acompanha-la às consultas médicas.
12.A dada altura, a ré passou a deter a quantia de cerca de € 20.000,00 que a falecida tinha guardado em casa e a gerir as despesas necessárias ao quotidiano da mesma.
13.A OO, por sua vez, começou a ser afastada de todas as decisões e do acompanhamento da falecida CC, acabando por deixar de ser legatária no testamento outorgado por esta em 2017.
14.No decorrer dos anos de 2016 e 2017, por indicação da ré, a falecida tia do autor, que era seguida no Hospital ..., no Porto, passou a ser acompanhada no Hospital 1..., na zona de Gondomar.
15.A falecida CC era autónoma, mas apresentava problemas de audição, de visão, doença pulmonar com componente asmatiforme, insuficiência cardíaca de etilogia valvular com estonese aórtica e mitral, fibrilação auricular, permanentemente hipocoagulada, patologia osteoarticular degenerativa e alergias múltiplas.
16.Apesar de apresentar um défice cognitivo ligeiro e sofrer de esquecimentos frequentes, mantinha um discurso coerente e adequado e noção do seu património.
17.Em 16.08.2018, em consequência de um episódio de dispneia, a falecida CC foi conduzida pela ré para as urgências do Hospital 1..., tendo aí ficado internada.
18.O autor não teve conhecimento que a sua tia se encontrava doente, tendo a mesma sido internada de urgência sem ter sido avisado pela ré.
19.A falecida CC manteve-se internada no Hospital 1... até 30.08.2018, tendo transitado para a Unidade de Convalescença Manutenção e Reabilitação da mesma instituição, onde permaneceu até ao dia do seu falecimento.
20.Durante a sua permanência na referida Unidade, a falecida apresentou estabilidade inicial do seu quadro clínico.
21.Com a evolução do internamento apresentou deterioração clínica, com limitação progressiva da sua capacidade funcional, dispneia e intolerância a esforços, mesmo em repouso, tendo-se ainda assim mantido consciente, lúcida e com discurso coerente e adequado até pouco antes da sua morte.
22.Durante o internamento naquela instituição, a ré foi limitando de forma paulatina a falecida CC de manter contactos com familiares e amigos, nomeadamente, o contacto com a amiga DD e a filha desta por estas se terem insurgido contra o facto da ré manter o controlo do dinheiro da falecida.
23.O autor nunca foi impedido de ver a sua tia no Hospital, mas nas últimas semanas da vida desta deixou de estar sozinho com a mesma, tendo a ré estado sempre presente.
24.Foi a ré quem tratou dos procedimentos necessários à celebração do testamento outorgado em 2018, tendo contactado um profissional do foro que diligenciou todo o processo e foi quem conduziu a falecida ao cartório notarial.
25.A ré mudou ainda a fechadura da casa de habitação da falecida e manteve as chaves em seu poder, não permitindo a entrada e o acesso à casa por parte de familiares e amigos da aludida CC, sem que estivesse presente.
26.Foi a ré quem tratou de todos os procedimentos com o funeral da tia do autor, nada transmitindo a este.
27.O grosso da herança aberta por óbito da falecida tia do autor corresponde ao imóvel referido em 6., cujo valor patrimonial tributário, apurado em 2015, ascende a € 74.760,00 e ao respectivo recheio.
28.Por carta datada de 11.12.2018, remetida pelo mandatário da ré ao autor, foi enviado a este um cheque no valor de € 445,72, para cumprimento do legado estabelecido no testamento outorgado pela falecida CC em 2018, conforme documentos de fls. 31 e 31v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

O Tribunal de 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:
a) aquando da outorga do testamento ora posto em crise, a falecida CC padecia de doença que a impedia de entender e decidir; não tinha qualquer controlo sobre a sua vontade, nada decidia nem opinava sobre o que fazer, não caminhava e não tinha um discurso coerente;
b) era a ré quem tratava das refeições e da medicação da falecida CC;
c) a ré controlava as contas bancárias da falecida CC;
d) a falecida CC, no último ano de vida, mostrou-se receosa da actuação da ré, demonstrando pavor com o que esta lhe poderia fazer, porque tinha na sua posse todo o seu dinheiro, que ascendia a cerca de € 20.000,00.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.

1ª Questão- Alteração da decisão sobre a matéria de facto.
Perante as exigências estabelecidas no art. 640º do CPC, constituem ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a seguinte especificação:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
“Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primeiro: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Segundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Terceiro: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.”[2]
Nesta sede, cumprindo no essencial tais ónus, alegou a Apelante, sob as Conclusões I a IV que, face à prova produzida, encontram-se incorrectamente julgados os pontos 14, 17, 18, 19 e 22 da matéria de facto provada tendo fundamentado as razões da sua discordância, fazendo alusão aos meios probatórios que em seu entender impunham decisão diversa da tomada naqueles pontos, designadamente referenciando as gravações e transcrevendo as partes dos depoimentos que alegadamente sustentam a sua pretensão.
Segundo o disposto no art. 662º nº 1 do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
No âmbito do recurso de impugnação da decisão de facto, o Tribunal da Relação pode e deve realizar uma efectiva reapreciação da prova produzida, levando em consideração, não só os meios de prova indicados no recurso, como outros que relevem para a decisão relativa aos pontos da matéria de facto impugnada, com vista a formar a sua própria convicção.
De todo o modo, não podemos escamotear a importância extrema do princípio da imediação da prova, estando o Juiz de 1ª instância, sem dúvida, melhor posicionado para ter plena percepção da forma como os depoimentos são prestados, as hesitações e linguagem corporal das testemunhas e partes, dificilmente percetível em gravações exclusivamente sonoras, para mais quando o Juiz da Instância Superior se vê limitado a ouvir os depoimentos prestados sem poder interrogar de modo a esclarecer-se convenientemente.
Importa, pois, apurar se foi produzida prova cabal e consistente que imponha decisão diferente da que foi tomada pelo tribunal a quo, sobre os factos mencionados pela Apelante nas referidas Conclusões I a IV.
Para melhor compreensão da impugnação apresentada pela Apelante, reproduz-se aqui o que o tribunal a quo deu como provado nos pontos 14, 17, 18, 19 e 22 ora impugnados:
“14. No decorrer dos anos de 2016 e 2017, por indicação da ré, a falecida tia do autor, que era seguida no Hospital ..., no Porto, passou a ser acompanhada no Hospital 1..., na zona de Gondomar.
17.Em 16.08.2018, em consequência de um episódio de dispneia, a falecida CC foi conduzida pela ré para as urgências do Hospital 1..., tendo aí ficado internada.
18.O autor não teve conhecimento que a sua tia se encontrava doente, tendo a mesma sido internada de urgência sem ter sido avisado pela ré.
19.A falecida CC manteve-se internada no Hospital 1... até 30.08.2018, tendo transitado para a Unidade de Convalescença Manutenção e Reabilitação da mesma instituição, onde permaneceu até ao dia do seu falecimento.
22.Durante o internamento naquela instituição, a ré foi limitando de forma paulatina a falecida CC de manter contactos com familiares e amigos, nomeadamente, o contacto com a amiga DD e a filha desta por estas se terem insurgido contra o facto da ré manter o controlo do dinheiro da falecida.”
Relativamente ao ponto 14 dos factos provados, a Apelante pretende que a sua redação seja alterada para o seguinte texto:
14. No decorrer dos anos de 2016 e 2017, a falecida tia do autor era seguida no Hospital ..., no Porto, e no Hospital 1..., na zona de Gondomar, conforme resulta nomeadamente, dos recibos referentes a acto de enfermagem, em 01.02.2017 e uma consulta de angiologia e cirurgia vascular, em 28-02-2018 do Hospital ....
Desde logo se diga que, a impugnação da decisão de facto não constitui um fim em si mesmo, antes se mostra admitida enquanto meio ou instrumento que visa permitir à parte que impugna a decisão de facto a revogação/alteração da decisão final, ou seja, como meio que visa a demonstração de um determinado direito que a sentença não concedeu.
Nesta perspectiva, a impugnação da decisão de facto é de rejeitar quando, em razão das circunstâncias específicas do caso submetido a julgamento, em razão das regras do ónus da prova ou do regime jurídico aplicável, a eventual alteração da decisão de facto não assume relevo para a decisão a proferir, pois que, em tal circunstancialismo, a respectiva actividade jurisdicional revelar-se-ia como inconsequente ou inútil.[3]
Sustenta a Apelante que a referida alteração se impõe porque a Sra Juiza a quo imputou à Ré uma conduta que não é verdadeira, como resulta do depoimento de parte prestado pelo próprio autor.
Se bem se compreende a alteração proposta pela Apelante, pretende que se retire a expressão “por indicação da ré” e que do ponto 14 fique a constar que a falecida naqueles anos era seguida nos dois estabelecimentos hospitalares.
Ora, não se vê de que forma as alterações pretendidas permitam ou sequer contribuam para a revogação ou alteração da decisão final, porquanto é totalmente irrelevante e inconsequente para a decisão da causa averiguar se, nos anos de 2016 e 2017 a falecida passou a ter as suas consultas médicas no Hospital 1... e/ou mantinha também consultas no Hospital ... e, quem lhe terá dado essa indicação.
As alterações pretendidas pela Apelante em nada relevam para a improcedência da acção, resultado que a Apelante pretende obter com este recurso, nada acrescentam à demonstração ou não dos pressupostos da usura com base na qual o testamento foi declarado anulado.
Deste modo, não sendo este facto concreto objecto de impugnação, susceptível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e ao quadro normativo aplicável, ter relevância jurídica, não se procede à reapreciação do mesmo, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inútil e inconsequente.
No que diz respeito aos pontos 17 e 18 dos factos provados, desde logo se diga que não se compreende a qual dos dois factos (17 ou 18) pretende a Apelante sejam aditadas as seguintes alíneas:
a) A falecida CC vivia sozinha;
b) Era Verão;
c) O autor encontrava-se de férias fora do País;
d) As testemunhas DD e EE, próximas do autor encontravam-se a passar o fim-de-semana no Gerês, tendo tido conhecimento da ocorrência,
e) O familiar mais próximo que podia socorrer a falecida encontrava-se a duas horas, de carro, da cidade do Porto e as outras um pouco mais;
f) A decessa padecia de doença crónica.
Apenas se compreende esta impugnação com o propósito de ficar exarada a justificação para o facto de ter sido a ré a conduzir a tia do autor àquele estabelecimento hospitalar e não ter avisado o Autor da doença e do internamento da tia.
Em rigor tratar-se-iam de factos a aditar ao elenco dos factos provados e, não propriamente àqueles pontos concretos, dos quais são perfeitamente independentes.
No entanto, para sermos rigorosos, o que consta da alínea a) já está contido no ponto 8 (vivia sozinha), o que consta da alínea b) não é mais que uma conclusão a retirar da data em que foi levada ao hospital e aí ficou internada (Agosto-verão) e, o que consta das alíneas c), d) e e) são factos perfeitamente inócuos para a decisão, porquanto não assume relevância saber onde estavam o Autor e as testemunhas quando a falecida foi levada de urgência ao hospital, nem se foram ou não imediatamente contactados, pois que como consta dos registos clínicos não há dúvidas de que a tia do autor necessitava de acompanhamento médico urgente, que lhe foi providenciado pela Ré e, senão logo, pouco depois todos tomaram conhecimento do seu internamento.
Também relativamente ao que consta da alínea f) apenas releva o quadro clínico já concretizado nos pontos 15 e 16 dos factos provados.
Não é demais realçar que, a motivação do tribunal a quo relativamente a esses pontos 17 e 18 foi a seguinte: “No que respeita à factualidade descrita nos pontos 17. e 18. do elenco dos factos provados, a prova revelou-se igualmente cristalina, tendo o convencimento do tribunal se baseado mais uma vez e desde logo no depoimento de parte da ré, em conjugação com as declarações de parte do autor” e, efectivamente assim é, pois que da articulação desses depoimentos resulta apenas e só o que de forma consistente e objectiva ficou vertido naqueles pontos dos factos provados, não se vislumbrando que qualquer dos aditamentos propostos pela Apelante se imponha, desde logo por não assumir relevância para a decisão da causa.
Relativamente ao ponto 19 dos factos provados pretende a Apelante, basicamente, que se acrescente a seguinte expressão “por vontade própria, livre e esclarecida”, sustentando que tal resulta do depoimento da médica Dra QQ, conjugado com o depoimento das testemunhas Dra GG, HH e OO quanto à personalidade forte da tia do autor, que não era pessoa de se deixar levar pelos outros.
Acontece que, a Apelante parte de um equívoco quanto ao ponto 19, já que nele apenas consta de forma objectiva o período de tempo em que a falecida CC se manteve internada no Hospital 1... e em que tipo de unidades, dele não constando a quem se deveu a decisão daquela manutenção do internamento, embora com transição para uma unidade de convalescença, podendo especular-se se essa opção foi tomada espontaneamente pela própria doente, ou foi tomada por influência de qualquer um dos médicos, por influência da aqui ré, ou de qualquer outra pessoa.
Não obstante, o que releva é apenas e só o que consta do referido ponto 19, mais não seja porque os conceitos “vontade própria, livre e esclarecida” para além de serem conclusivos, não foi produzida prova segura, consistente e objectiva nesse sentido, apenas se tendo como certo que a referida doente verbalizou não querer sair daquela unidade hospitalar e isso ficou mencionado nos registos clínicos.
Finalmente, quanto ao ponto 22 dos factos provados, apesar do arrazoado confuso da Apelante no corpo das suas alegações, que parecia apontar no sentido de se dever dar redação diferente àquele ponto 22, na conclusão IV a Apelante diz expressamente que pretende que o mesmo seja considerado como não provado.
Uma vez que o conhecimento do objecto do recurso está limitado pelas conclusões apresentadas pela Apelante, será esse o único sentido decisório que importa apreciar.
Vejamos.
O tribunal a quo não aludiu expressamente a este ponto de facto na sua motivação, contudo, perante o que exarou relativamente aos pontos 23 e 24 não temos dúvidas de que nela está englobada a motivação ao ponto 22 já que faz expressa referência a quem terá limitado as visitas a CC durante o seu internamento e, ao motivo que terá estado na sua origem, tal como se extrai, com meridiana clareza do seguinte enxerto:
“Quanto à factualidade inserta nos pontos 23 e 24 do elenco dos factos provados, o tribunal teve em consideração o depoimento de parte da ré, bem como as declarações de parte do autor e ainda os depoimentos das testemunhas FF, DD, EE e HH.
Veja-se que na sua essência os referidos testemunhos foram coincidentes quanto ao facto dos contactos e visitas à falecida CC terem sido limitados, tendo apenas ré referido que tal sucedeu por vontade daquela e as restantes afirmado que tal ocorreu por indicação da ré, após os mesmos terem demonstrado desagrado e a sua estranheza com o facto da testadora estar internada numa instituição longe de casa e se encontrar cada vez mais dependente da ré para o tratamento de todos os assuntos da sua vida e da sua saúde.
Note-se que da prova produzida resultou ainda absolutamente patente que foi na sequência do incidente ocorrido na loja da ré entre esta e as testemunhas DD e EE que estas foram impedidas de continuar a visitar a testadora.
Neste particular e para superar tal divergência socorreu-se o tribunal dos registos clínicos, nomeadamente, os relativos ao seguimento de psicologia e à consulta de neurologia, bem como do diário da falecida. Com efeito, analisados tais registos clínicos facilmente se constata que a testadora verbalizou por diversas vezes que se encontrava desiludida com os familiares e pessoas amigas, mas nenhuma referência é feita quanto à mesma não desejar a visita de tais familiares, o que certamente constaria de tais registos, se fosse verdade que a iniciativa de limitar tais visitas partiu da falecida CC.
Mas mais, tal decisão de limitar as visitas também não consta do diário desta. Ora, tal decisão, pela sua importância ainda mais no contexto de doença em que a CC se encontrava não deixaria de ser digno de registo.
Por outro lado, se tal sentimento de desilusão revelado pela decessa CC com a família tivesse sido determinante para a limitação das visitas, certamente também teria sido impedido pela mesma de a visitar o autor (tanto mais que o mesmo também deixou de ser contemplado no legado do imóvel no testamento de 2018), o que comprovadamente não sucedeu.
Não será despiciendo acrescentar que a própria ré admitiu, ainda que de forma mitigada, que acabou por tomar as rédeas, por assim dizer, de todos os assuntos relacionados com a testadora, tendo referido que quando a falecida CC foi internada foi vê-la todos os dias e durante mais horas e mudou a fechadura da casa de habitação daquela, alegadamente pelo facto da mesma não confiar nos sobrinhos.”
A motivação do tribunal a quo incide precisamente sobre o substracto factual vertido no ponto 22 dos factos provados e, dela não se denota qualquer vício de raciocínio, ou violação das regras de experiência comum, pelo contrário, afigura-se-nos, depois de reavaliados os referidos meios probatórios documentais, depoimentos de parte e testemunhais, que a fundamentação é cuidada, consistente e coerente e, mais importante que isso, encontra perfeito respaldo naqueles meios probatórios.
Salienta-se ainda que, a própria Ré admitiu que as visitas foram sendo limitadas (com excepção das visitas do autor) e, que houve uma discussão, na sua loja, com aquelas testemunhas a propósito de estas se insurgirem contra aquilo que entendiam ser o controlo do dinheiro de CC por parte da ré, discussão essa contemporânea com as restrições de visitas daquelas pessoas, tendo a ré apenas negado que a iniciativa da limitação daquelas visitas tenha sido da sua autoria.
E, tal como o tribunal a quo salientou, não há evidências de que essa decisão tenha partido da doente, porquanto, se assim tivesse sido a doente não deixaria de o mencionar no seu diário tal a importância dessa decisão- como fez com quase todos os episódios ocorridos e decisões que foi tomando-, ou constaria de registos na instituição hospitalar caso a doente tivesse efectivamente dado instruções de proibir as visitas de determinados familiares e amigos, ou expressado essa vontade aos médicos ou à pessoa encarregue no hospital de gerir as visitas, não existindo prova, mormente documental, de que tenha dado essa indicação de restrição de visitas.
Por conseguinte, não ocorrem razões para alterar o decidido pelo tribunal a quo em termos da factualidade ora impugnada, correspondendo o seu julgamento e a motivação que lhe subjaz a uma crítica apreciação dos meios de prova produzidos no processo, segundo as regras da experiência e da lógica.
Improcede, assim, a impugnação da decisão da matéria de facto.

2ª Questão- Verificação dos pressupostos da anulação do testamento por usura.
Cumpre, desde já salientar que, tal como a Apelante alude nas Conclusões VI a VIII e XIII a XVII a XX, o Autor não pediu a anulação do testamento outorgada pela sua falecida tia com base em usura, apenas e só com base em incapacidade acidental ou coação moral.
Efectivamente, no caso sub judice, o Autor peticionou a anulação do testamento outorgado em 17/10/2018 pela falecida CC, delimitando a causa de pedir na invocação dos seguintes vícios da vontade:
1. incapacidade acidental;
2. coação moral.
Na sentença final, o tribunal a quo afastou expressamente aqueles alegados vícios, por os mesmos não terem ficado demonstrados, mas decretou a anulação do referido testamento por usura.
Isto porque, como o tribunal a quo decidiu e, bem, não há prova suficiente nos autos de que a testadora CC, quando outorgou o testamento que o Autor pretende seja anulado, “estivesse impedida de compreender o sentido das suas declarações e de as querer efectivamente”.
Soçobrou, assim, o alegado vício da incapacidade acidental, vício esse adequadamente abordado em termos doutrinais pelo tribunal a quo na sentença recorrida, segmento decisório com o qual o Autor se conformou.
Também não foi objecto de recurso a decisão tomada pelo tribunal a quo de considerar não existir, igualmente, o vício da coação moral aquando da celebração do referido testamento, pois que, tal como fez menção, “analisada a factualidade que ficou demonstrada, afigura-se-nos que a mesma não é suficientemente demonstrativa da ré ter exercido coacção moral sobre a testadora. Inexiste, pois, como já vimos, qualquer elemento factual integrador da existência de uma ameaça efectiva ao património ou saúde da falecida.”
Sendo certo que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, desde que se atenha aos factos essenciais alegados pela parte que constituam a causa de pedir (art. 5º nº 1 e 3 do CPC), suscita-nos, desde logo, sérias reservas que o tribunal possa proferir decisão de anulação com base num vício não invocado pela parte.
Senão vejamos.
De acordo com o disposto nos arts. 260º e 564º al. b) do CPC, a citação do réu torna estáveis os elementos essenciais da causa devendo a instância manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei, designadamente as previstas nos arts. 264º e 265º do CPC no que diz respeito à causa de pedir.
Tal como ensina Francisco Ferreira de Almeida, “a causa de pedir (causa petendi ou origo petitionis) consiste no ato ou facto jurídico («simples ou complexo, mas sempre concreto») ou no específico vício invalidante, que constituem a fonte de que dimana «o direito que o autor (ou o réu-reconvinte) pretende fazer valer» em juízo.
Concretizando e exemplificando: (…) d) nas ações anulatórias, a causa de pedir será a nulidade específica (absoluta ou relativa), ou seja, o vício gerador da invalidação total ou parcial da declaração negocial de que se trate (erro, dolo, coação, simulação absoluta ou relativa, negócio em fraude à lei ou contra-legem ou violador da ordem pública, etc- cfr. Os arts. 240º a 257º e 285º a 294º todos do CC).
(…)Intimamente ligada ao princípio dispositivo, a causa de pedir exerce «uma função individualizadora do pedido e de conformação do objeto do processo»; ao apreciar o pedido, o tribunal não pode basear a sua decisão de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (arts. 608º e 609º), sob pena de nulidade da sentença por excesso de pronúncia ( art. 615º al. d)).”[4]
De acordo com o disposto no art. 581º nº 4 do CPC, nas acções de anulação a causa de pedir é a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
A esse propósito, também Anselmo de Castro refere que “em acções de anulação a causa de pedir será, pois, diferente se numa para se obter a anulação se invoca erro e noutra coação. Mas se se invoca erro numa e coação em outra, sendo, porém, os fundamentos de facto inteiramente coincidentes, divergindo apenas a qualificação que lhes é atribuída, isso não é o bastante para obstar a que duas acções sejam idênticas.”[5]
Teremos sempre de analisar se os fundamentos de facto essenciais dos vícios em causa são exactamente os mesmos e só se trata de uma questão de qualificação jurídica, ou se são, diferentes e traduzem causas de pedir distintas.
Tal como entende Alberto dos Reis, “importa considerar que uma coisa é a alteração da causa de pedir, e outra a alteração da qualificação jurídica do acto ou facto de que procede o pedido. Só se altera a causa de pedir quando, tendo-se invocado primeiro um determinado acto ou facto, se abandona depois este acto ou facto e passa a apoiar-se o pedido sobre acto ou facto diverso; se o acto ou facto continua a ser o mesmo sob o ponto de vista material, e unicamente se modificou a sua qualificação jurídica, a causa de pedir não sofreu alteração.”[6]
Se a anulação de um testamento pode ter como fundamento várias causas de pedir, tantas quantos os vícios que a isso conduzam, tais como a incapacidade acidental e a coação (expressamente alegadas pelo aqui Autor), ou outras, como é o caso da usura (vício este com base no qual o tribunal se baseou para considerar procedente aquele pedido de anulação) e, o tribunal não está vinculado à qualificação jurídica do vício que a parte invoca, deve conformar-se ao objecto da acção em função da causa de pedir tal qual o autor a invocou, não podendo decidir com base noutra causa de pedir não invocada, a não ser que os fundamentos de facto essenciais sejam exactamente os mesmos.
O tribunal a quo perfilhou o entendimento de que podia declarar a anulação do testamento por usura (quando o Autor havia invocado a incapacidade acidental e a coação) porque não estava vinculado pela qualificação jurídica efectuada pelo Autor relativamente ao vício de que padecia tal acto, porém, afigura-se-nos que não se trata apenas de uma diferente qualificação jurídica, porquanto os fundamentos de facto essenciais em que se baseia a usura, como adiante trataremos, não se esgotam na falta ou diminuição de discernimento ou de vontade (casos da incapacidade acidental e coação moral), consubstanciando a usura uma nova causa de pedir, que se tem de apoiar em factos que demonstrem uma situação de inferioridade, uma exploração dessa situação de inferioridade por terceiro com a consciência e o propósito de obtenção de benefícios excessivos ou injustificados- um novo vício invalidante não invocado pelo Autor.
Ainda que alguns dos fundamentos de factos pudessem servir para demonstrar eventualmente o pressuposto da situação de inferioridade da testadora, o que não concedemos, faltariam os demais pressupostos da usura, como veremos adiante, desde logo, porque o Autor não tendo configurado a invocação desse vício, não os alegou.
Por conseguinte, nesta acção de anulação de testamento, constituindo a incapacidade acidental, a coação ou a usura, causas de pedir distintas, não havendo total coincidência nos fundamentos de facto geradores desses distintos e específicos vícios, não se tratará apenas de uma mera qualificação jurídica que o tribunal possa livremente efectuar (art. 5º nº 3 do CPC) , mas de uma nova causa de pedir que o tribunal não pode apreciar oficiosamente sob pena de violar o princípio do dispositivo, e a proibição estabelecida no art. 608º nº 2, 2ª parte do CPC.
Tal como sustenta José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “a causa de pedir exerce função individualizadora do pedido para o efeito da conformação do objecto do processo. Por isso, o tribunal tem de a considerar ao apreciar o pedido e não pode basear a sentença de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (art. 6087-2), sob pena de nulidade da sentença (art. 615-1-d).”[7]
Não obstante, apesar de se poder configurar como nulidade de sentença, não a tendo arguido a Apelante em sede deste recurso, apenas tendo impugnado a existência dos pressupostos da usura, prosseguir-se-á para reapreciação da verificação dos pressupostos de facto relativos ao vício da usura, em sede de análise de eventual erro de julgamento.
Vejamos.
Na sentença recorrida não se diz de forma clara, como se impunha, qual o enquadramento fáctico que foi levado em consideração, para se ter concluído pelo vício da usura, apenas dela consta que “a ré, conhecedora da situação de fragilidade da testadora, aproveitou e incentivou o afastamento da mesma dos restantes amigos e familiares, conseguindo que a mesma a beneficiasse quase em exclusivo no último testamento, sem qualquer justificação aparente, resultando preenchidos todos os pressupostos da figura da usura.”
Admitindo que, tal como melhor se expôs na sentença recorrida, o vício da usura possa ser aplicável a um acto unilateral, como é o caso do testamento, tal como vem entendendo a Jurisprudência ali citada e alguma Doutrina[8], é nosso entendimento que não estão demonstrados (porque nem sequer foram alegados) factos concretos que permitam de forma segura, considerar verificados todos os pressupostos legais da usura, de verificação cumulativa, consagrados no art. 282º do CC.
O art. 282º do CC dispõe que, “é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.”
Pedro Pais de Vasconcelos diz, claramente, que “A usura, como vício complexo que é, afecta o negócio numa dupla dimensão: enquanto acto que põe em vigor uma relação privada e enquanto regulação posta em vigor pelo acto. Por isso, a usura é vício da vontade e vício do conteúdo. É vício da vontade enquanto o discernimento e a liberdade de decisão vítima da usura estão diminuídos. Mas isso não é suficiente: é necessário que haja um aproveitamento consciente e reprovável da situação de inferioridade da vítima e ainda que o negócio assim celebrado esteja desequilibrado injustificadamente. O negócio usurário, além de sofrer de um defeito de formação, sofre de um defeito de conteúdo e colide ainda com os bons costumes.”[9]
Pela clareza de exposição, seguiremos de perto o que escreve Pedro Eiró, em anotação àquele preceito legal, reafirmando que “a usura é um vício complexo, composto por elementos subjectivos (respeitantes, por um lado, ao lesado ou vítima da usura e, por outro lado, ao usurário) e por elementos objectivos (respeitantes ao conteúdo do negócio). A verificação cumulativa destes elementos é necessária para a existência da usura e para que o negócio, porque viciado por esta, seja usurário.
Embora todos estes elementos (duplo elemento subjectivo e elemento objectivo) sejam de verificação simultânea, estejam condicionados uns pelos outros e o elemento subjectivo seja causa do objectivo que surge como consequência daquele, é necessária a análise individualizada de cada um deles.
II. Elemento da usura relativo ao lesado ou vítima da usura: sua situação de inferioridade.
De acordo com este preceito legal, a existência de usura exige, antes de mais, que o declarante, ao emitir a declaração negocial, se encontre numa “situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter”
(…) A enumeração não é taxativa mas meramente exemplificativa. O que importa é verificar se, no momento da emissão da declaração negocial, o declarante se encontrava numa situação de inferioridade e que essa situação tenha sido essencial para a emissão da declaração negocial- ou seja, se não fosse aquela situação, a declaração negocial não teria sido emitida ou tê-lo-ia sido com conteúdo diferente.
(…)Pretende-se abranger toda a inferioridade que mereça protecção jurídica deste modo se impedindo que, da exploração dessa situação, alguém obtenha a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.
Na sentença recorrida fala-se em situação de fragilidade da testadora, que a Ré aproveitou e incentivou o afastamento da mesma dos restantes amigos e familiares.
Embora não seja imperativo que se verifique especificamente uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, terá de haver um enquadramento fáctico que nos leve a concluir que a testadora, aquando da outorga do testamento objecto desta acção, se encontrava numa situação de inferioridade, mas não se tratará de uma inferioridade qualquer, devendo assumir gravidade que mereça proteção jurídica, o que nos leva a concluir que, se a testadora padecer de um mero quadro clínico indicativo de saúde frágil, mesmo que associado à idade, tal não bastará para decretar a anulação por usura.
A esse propósito e, a título exemplificativo, relativamente ao conceito de necessidade referido no art. 282º do CC, Pedro Eiró esclarece que “a situação de necessidade tem de ser anormal ou anómala- só estas merecem tutela e proteção jurídica (…)”
Relacionado com o elemento subjectivo da vítima da usura, reportando-nos ao caso sub judice, resultou dos factos provados o seguinte: a testadora era viúva, não tinha descendentes, nem ascendentes vivos, vivia sozinha, foi também acompanhada, nos últimos anos, por uma empregada doméstica que era uma pessoa de sua inteira confiança, constando, por este facto, como legatária no testamento outorgado em Novembro de 2014, tinha amigas com quem convivia a quem também fez legados nos testamentos que foi fazendo e alterando ao longo do tempo, tinha pelo menos dois sobrinhos, um deles o aqui Autor, os quais também foram sempre contemplados nos vários testamentos (inclusive no que se pretende anular), sendo que o aqui Autor acompanhou a sua falecida tia ao longo dos anos em que esta viveu sozinha, visitando-a com regularidade.
Apurou-se ainda que, a testadora era autónoma, mas apresentava problemas de audição, de visão, doença pulmonar com componente asmatiforme, insuficiência cardíaca de etilogia valvular com estenose aórtica e mitral, fibrilação auricular, permanentemente hipocoagulada, patologia osteoarticular degenerativa e alergias múltiplas, apesar de apresentar um défice cognitivo ligeiro e sofrer de esquecimentos frequentes, mantinha um discurso coerente e adequado e tinha noção do seu património.
Aquando da outorga do testamento cuja anulação se pretende, estava internada na Unidade de Convalescença Manutenção e Reabilitação do Hospital 1... desde 16/8/2018 (há pouco mais de 2 meses), evoluindo para uma deterioração clínica com limitação progressiva da sua capacidade funcional, dispneia e intolerância a esforços, mesmo em repouso, tendo-se ainda assim mantido consciente, lúcida e com discurso coerente e adequado até pouco antes da sua morte.
A testadora não estava propriamente internada num hospital por necessitar de cuidados médicos permanentes, estava numa unidade de convalescença, rodeada de cuidados de saúde apropriados a uma pessoa de cerca de 85 anos, que até então vivia sozinha, sem que os registos clínicos, à data da outorga do testamento, fizessem menção a qualquer diminuição significativa do seu discernimento ou vontade, a uma situação de necessidade ou dependência anormal que a colocasse numa situação de inferioridade, ou a qualquer quadro de debilidade física ou psicológica que a tornasse dependente de outrem, era autónoma, estava devidamente acompanhada, nomeadamente para o caso de voltar a necessitar de cuidados médicos ou de enfermagem, numa unidade hospitalar privada à qual a Ré não tinha qualquer vínculo, sem que o Autor alguma vez tenha sido impedido de a ver, embora seja certo que a Ré foi limitando os contactos com outros familiares e amigos.
Como consta provado nos autos, a testadora tinha noção do seu património e por várias vezes manifestou a sua vontade de dele dispor após a sua morte por meio de testamento, acto com o qual já estava familiarizada pois que antes do testamento ora posto em crise, já havia outorgado pelo menos mais dois testamentos, num dos quais incluindo a sua empregada, que no seguinte deixou de constar (manifestações válidas de discernimento e vontade).
Contra-alegou o Autor dizendo que a testadora encontrava-se numa situação de domínio pela aqui apelante, que a sua vida era totalmente controlada por esta, que era quem controlava as suas finanças, que tinha em seu poder as economias da testadora, que também tinha acesso exclusivo à habitação da testadora e que também controlava e condicionava as pessoas com quem a testadora podia conviver e falar, tendo a testadora um claro receio do que lhe podia acontecer, a si e às suas economias, tinha receio que a ré tentasse vender a sua casa e que não a ajudasse em situações de crise, foi internada num hospital em Gondomar e não na cidade do Porto com o propósito de criar temor na testadora, que se viu afastada da sua zona e de todos os seus amigos, tendo a apelante grande influência sobre a vida da testadora, sendo a figura de confiança e de referência, tendo sido a apelante quem elaborou o teor do testamento conjuntamente com o seu advogado.
A propósito de todas aquelas asserções, em concreto, apenas se apurou que a dada altura a ré passou a deter a quantia de cerca de €20.000,00 que a falecida tinha guardado em casa e a gerir as despesas necessárias ao quotidiano da mesma, que mudou a fechadura da casa de habitação da falecida e as manteve em seu poder, não permitindo a entrada e o acesso à casa por parte de alguns familiares e amigos da aludida CC sem que estivesse presente e, que durante o internamento no hospital a ré foi limitando a falecida de manter contactos com familiares e amigos, sem que isso tivesse acontecido com o aqui autor, que nunca foi impedido de visitar a sua tia.
Cumpre também salientar que, foi dado como não provado que, aquando da outorga do testamento ora posto em crise, a falecida testadora padecesse de doença que a impedisse de entender e decidir, que não tivesse qualquer controlo sobre a sua vontade, nada decidisse nem opinasse sobre o que fazer, não caminhasse e não tivesse um discurso coerente, ou que fosse a ré quem controlasse as contas bancárias da falecida, que a falecida CC, no último ano de vida se mostrasse receosa da actuação da ré, demonstrando pavor com o que esta lhe poderia fazer, porque tinha na sua posse todo o seu dinheiro, que ascendia a cerca de €20.000,00- factualidade não provada que não foi posta em causa.
Em suma, temos de concluir que o Apelado faz afirmações que, na sua esmagadora maioria, não encontram o mínimo arrimo nos factos provados, pelo contrário, estão vertidas nos factos não provados e, os poucos que se provaram também não permitem afirmar de forma consistente que a falecida testadora estivesse numa situação de fragilidade a ponto de estar dependente ou sob o domínio da Ré.
A “fragilidade” a que aludiu o tribunal a quo para concluir pela usura, também não encontra na matéria de facto dada como provada respaldo bastante para que se possa concluir que no momento da outorga do testamento a testadora se encontrasse numa situação de inferioridade perante a Ré e que se não fosse essa situação de inferioridade, a declaração negocial não teria sido emitida ou tê-lo-ia sido com conteúdo diferente.
Sabemos que a determinada altura da vida da falecida- no ano de 2016- aquela passou a conviver com mais frequência com a Ré, que com ela almoçava todos os dias e a acompanhava às consultas médicas e depois a passou a acompanhar aquando do seu internamento no hospital, que detinha na sua posse €20.000,00 da testadora para despesas daquela e, que mudou a fechadura da casa da testadora e manteve as chaves em seu poder, não permitindo as entrada e acesso à casa por parte de familiares e amigos da testadora sem que estivesse presente, daí se podendo inferir a confiança que a testadora depositava na Ré e a influência que foi naturalmente tendo junto daquela em virtude desse convívio tão próximo, mas essa influência e proximidade emocional não se confunde com uma situação de necessidade ou dependência digna de proteção jurídica, quando, como é o caso, não se apurou qualquer debilidade anómala da testadora a nível físico ou psicológico que a tivesse condicionado a revogar o testamento anterior e a celebrar novo testamento (como já havia feito outras vezes) desta vez para nele incluir a ré.
Ainda que assim não se entenda e, se considere estar comprovada uma situação de inferioridade por parte da testadora, o que não se concede, sempre teriam de existir, simultâneamente, factos provados que demonstrassem o elemento sujectivo da usurária- que a Ré tenha explorada a situação de inferioridade da testadora para conformar a vontade desta no sentido de a beneficiar injustificadamente.
Assim também nos refere Pedro Eiró, que “o elemento subjectivo do vício da usura não se reduz à situação de inferioridade em que se encontra o declarante. Tem outra componente agora respeitante ao usurário- exige-se que este tenha tido um certo comportamento: a exploração daquela situação de inferioridade.
(….) a exploração não se presume antes tem de ser provada- o declarante encontrar-se numa situação de inferioridade e da sua declaração negocial resultarem para outrem benefícios excessivos ou injustificados não demonstram a existência da exploração, que pode não ter acontecido.
Para se avaliar da censurabilidade da conduta do usurário, concluindo pela existência da exploração, importa ter em consideração quem tem a iniciativa do negócio. Embora a análise do carácter usurário do negócio deva ser efetuada casuisticamente, o que torna falível toda a regra geral sobre esta matéria, há que concluir que, por regra, se é o usurário quem tem a iniciativa do negócio, a sua atuação é mais censurável do que no caso contrário- facto que pode ser determinante para a demonstração da existência da exploração.”[10]
Também Luís A. Carvalho Fernandes refere que (…)” a ideia de exploração da situação de inferioridade do declarante, expressamente consagrada na lei, mostra que o autor do vício deve ter, tanto consciência de o declarante se encontrar inferiorizado, como, ainda, do benefício excessivo ou injustificado que vai obter, para ele ou para outrem.”[11]
Acontece que, também nada consta dos factos provados que demonstre este pressuposto da usura, pois que, relativamente à outorga do testamento posto em crise apenas ficou a constar que foi a Ré quem tratou dos procedimentos necessários à celebração do testamento outorgado em 2018, tendo contactado um profissional do foro que diligenciou todo o processo e foi quem conduziu a falecida ao cartório notarial, acervo factual manifestamente insuficiente para a demonstração da existência de uma situação de exploração.
Pode bem ter sido a testadora, de mote próprio, a querer alterar o testamento, tal como já o havia feito anteriormente, repetimos, por mais do que uma vez, e a ré ter-se limitado a prestar ajuda nas diligências a providenciar para o efeito, pois que a testadora se encontrava internada e era ela quem, na maior parte do tempo, a acompanhava, sendo certo que, também nada consta dos factos provados que nos diga que a ré sabia qual ia ser o conteúdo desse testamento e muito menos que tivesse condicionado a vontade da testadora por forma a dela receber benefícios excessivos ou injustificados.
Por fim uma breve alusão ao terceiro pressuposto para a verificação de usura, que se traduz na lesão.
“Haverá lesão quando o declarante sofre um prejuízo causado pela celebração de certo negócio jurídico. Esse prejuízo tanto pode consistir na concessão como na mera promessa de benefícios, que podem resultar não apenas de uma desproporção entre as prestações de um contrato oneroso comutativo como de qualquer outra circunstância. Para ser relevante para efeitos do preceito em análise (art. 282º CC) é necessário que a lesão ultrapasse certos limites aquém dos quais ela não é excessiva e é justificada pela natureza do negócio jurídico que a causa. Determinar se o benefício prometido ou concedido é excessivo ou injustificado, isto é, se a lesão é ou não relevante, só pode ser efectuado pelo julgador em face do caso concreto. O julgador terá de decidir se aquele negócio concreto é ou não injusto. Terá de verificar se o seu conteúdo merece ou não a aprovação do Direito.”[12]
Este pressuposto, no caso concreto do testamento é de difícil aferição porquanto, pela própria natureza do acto gratuito em si, o testador dispõe dos seus bens para depois da sua morte, sempre em benefício de outrem, sem que seja necessária justificação e, independentemente do valor dos bens, que poderá ser excessivo por não existir contrapartida por parte de quem é beneficiado.
Não obstante, veja-se que, embora a ré tenha sido instituída herdeira do remanescente da herança da testadora, remanescente esse que é constituído precisamente pelo bem mais valioso da herança, quando nos anteriores testamentos tal bem era legado em comum a familiares e amiga da testadora (entre os quais o aqui autor), também ficou incumbida de cumprir determinadas obrigações que são os encargos mencionados nos pontos 1 a 5, alguns deles com repercussões económicas.
Convém salientar que avaliar se o testamento é ou não injusto, se atribui benefícios excessivos ou injustificados não é o mesmo que aferir se a testadora beneficiou de forma excessiva ou injustificada determinada pessoa em detrimento dos demais herdeiros ou legatários, porquanto, a finalidade da proibição da usura é a proteção das pessoas afectadas por situações de inferioridade contra quem pretenda tirar benefícios excessivos e injustificados, não é a proteção de outros eventuais interessados no acto (neste caso dos demais legatários).
Não se demonstrando um quadro de diminuição de discernimento ou liberdade de decisão do testador, este poderá beneficiar terceiros em detrimento de familiares, sem que isso consubstancie um acto contrário à lei ou aos bons costumes ou praticado sob usura.
Em síntese, no caso concreto não há evidências, na factualidade dada como provada, de que a testadora, aquando da outorga do testamento em apreço estivesse numa situação de inferioridade perante a aqui Ré, mormente de dependência ou necessidade, nem de comportamentos da ré demonstrativos de exploração de qualquer situação de inferioridade da testadora, não sendo a limitação de visitas de alguns familiares e amigos bastante para o efeito (note-se que o Autor nunca foi impedido de visitar a tia), nem a idade e o quadro clínico que apresentava a testadora eram de molde a afirmar que, aquando da outorga do testamento de 2018, estivesse com o discernimento e a liberdade de decisão diminuídos, pelo contrário, apurou-se que se mantinha autónoma, com um discurso coerente e adequado e tendo noção do seu património e da forma como dele queria dispor após a sua morte.
Por conseguinte, tendo-se concluído pela falta de demonstração dos pressupostos cumulativos da anulação do testamento por usura, determina-se a revogação da sentença recorrida.
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V. DECISÃO:
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente o recurso interposto pela Apelante/Ré, revogando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do Apelado/Autor, que ficou vencido.
Notifique.

Porto, 8-11-2022
Maria da Luz Seabra
Maria Eiró
João Proença

(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] F. AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 147 e A. ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 92-93.
[2] Cadernos Temáticos De Jurisprudência Cível Da Relação, Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consultável no site do Tribunal da Relação do Porto, Jurisprudência
[3] Vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2ª edição, 2008, pág. 297-298, AC STJ de 29.09.2020, relator Sr. Juiz Conselheiro JORGE DIAS, AC STJ de 17.05.2017, relator Sr.ª Juíza Conselheira FERNANDA ISABEL PEREIRA, AC RC de 27.05.2014, relator Sr. Juiz Desembargador MOREIRA do CARMO e AC RP de 19.05.2014, relator Sr. Juiz Desembargador CARLOS GIL, todos disponíveis in dgsi.pt.
[4] Direito Processual Civil, Vol. II, p. 69/71
[5] Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, 208
[6] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, p. 124
[7] CPC Anotado, Vol. 2º, p. 491 e 737
[8] Heinrich Ewald Horster, A parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, 1992, p. 556
[9] Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, p. 581
[10] Comentário ao Código Civil, parte geral, anotação ao art. 282º, p. 698 a 701
[11] Teoria Geral do Direito Civil, II, 5ª edição, p. 248
[12] Comentário ao Código Civil, Parte Geral, p. 701