NULIDADE DA DECISÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário


I - É nula a decisão por omissão de pronúncia, se o tribunal proferir uma decisão desfavorável à parte, sem apreciar todos os fundamentos por ela alegados, dado que a ação ou a exceção só pode ser julgada improcedente se nenhum dos fundamentos invocados puder proceder.
II - Nos termos do art.º 788º do CPC, os pressupostos essenciais da reclamação de créditos pelos credores preferentes são a titularidade de um crédito com garantia real sobre o bem penhorado – pressuposto material -, e a existência de um título executivo – pressuposto formal.
III - As faturas - a documentar o direito de crédito que o reclamante reclama na ação executiva -, não se enquadram em nenhuma das espécies de títulos executivos enumerados taxativamente, no art.º 703º do CPC.
IV - O título executivo pode encontrar-se já formado plenamente na data em que é apresentada a reclamação de créditos, ou pode vir a formar-se sucessivamente ao abrigo do art.º 792º do CPC, com possibilidade de dispensa do uso da ação declarativa. Mister é que o credor reclamante o faça dentro do prazo previsto para a reclamação de créditos.
V - Este mecanismo, criado pelo legislador, configura como que a obtenção de um título executivo em falta durante a própria pendência do apenso de reclamação de créditos; trata-se de um título judicial impróprio.
VI - A junção aos autos pela reclamante, na Resposta à Impugnação, de um documento intitulado “confissão de dívida”, não é suscetível de suprir a sua falta, de acionar o mecanismo legal previsto no art.º 792º do CPC, e que lhe permitiria obter na ação o chamado título executivo impróprio, não podendo também esse ónus - especialmente imposto pela lei à parte de impulso processual – ser suprido pelo tribunal, no âmbito dos seus poderes de gestão processual ao abrigo do disposto no art.º 6º nº1 do CPC.

Texto Integral


ACÓRDÃO

Nos autos de execução movida por T. F., na qualidade de Exequente contra L. G., na qualidade de executado, veio a reclamante X - Mobiliário Expositor, Unipessoal, Lda.” (citada nos termos e para os efeitos da al. b) do artigo 786º do CPC) reclamar o seu crédito, no valor de € 76.889,36, alegando para o efeito que no âmbito da sua atividade comercial forneceu à sociedade “C. & V., Lda.”, da qual o executado é sócio gerente, diversos produtos, no montante total faturado de 59.816,05€, que a empresa não pagou, bem como os juros de mora já vencidos, no valor de 17.072,81€, sendo ainda devidos os juros de mora vincendos até integral pagamento.
Mais alega que para garantia de todas as obrigações pecuniárias, assumidas ou a assumir pela referida sociedade “C. & V., Lda.”, decorrente de quaisquer fornecimentos efetuados pela reclamante, até ao montante global de 60.000,00€ e respetivos juros de mora à taxa legal para as operações comerciais em vigor, o executado (sócio e gerente da referida sociedade) constituiu hipoteca sobre a fração autónoma, de que era proprietário, identificada pela letra “G”, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o nº ..., da freguesia de ..., penhorada nos autos de execução.

*
O Exequente veio impugnar a reclamação de créditos apresentada, defendendo que a credora reclamante não dispõe de título executivo válido que a legitime a ver reconhecido o seu crédito, designadamente algum dos que vêm elencados, de forma taxativa, no art.º 703.º do CPC.
*
Em sede de resposta, veio a reclamante defender cumprir todos os requisitos estipulados no artigo 788º do CPC para que o seu crédito possa ser reconhecido e graduado, designadamente dispondo de título exequível - a escritura pública onde foi constituída a hipoteca (documento autêntico que importa o reconhecimento ou constituição de uma obrigação) -, complementada com as faturas emitidas, documentos que demonstram que foi efetuada a prestação, e constituída a obrigação respetiva.
Que com isso se demonstra que a credora/reclamante, para além de gozar de uma garantia real, dispõe de título exequível (não executivo, mas passível de assim se tornar), o que legitima e fundamenta a reclamação de créditos apresentada.
Sem prescindir, e para o caso de assim se não entender, a reclamante juntou com a sua resposta um documento, intitulado “confissão de dívida”, subscrito pela empresa devedora e autenticado (por advogado), que na sua ótica constitui título executivo nos termos do art.º 703º, nº 1, al. b) do CPC.
*
Foi então proferido despacho saneador/sentença (com o fundamento de que “os autos habilitam, desde já, a que se conheça do mérito – cfr. art. 595.º, n.º 1, al. b) do Cód. Proc. Civil”) nos seguintes termos:

“Em conformidade com o exposto, decide o Tribunal julgar:---
i. totalmente improcedente a reclamação de créditos deduzida por X - Mobiliário Expositor, Unipessoal, Lda.
ii. totalmente procedente a reclamação de créditos deduzida por Banco ..., S.A., termos em que se decide julgar verificado o crédito pelo mesmo reclamado (art. 791º, nº 2 e 4 do Código de Processo Civil), graduando-o para ser pago pelo produto da venda do imóvel penhorado acima identificado (art.796º, nº 2 do Código de Processo Civil), com o crédito exequendo, pela seguinte ordem:---
1º) o crédito reclamado por Banco ..., S.A., garantido por hipoteca;---
2º) o crédito exequendo, garantido por penhora.---
Custas por reclamante vencido e reclamado exequente, na proporção dos respectivos decaimentos…”
*
Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a reclamante interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“1. A hipoteca (o documento da sua constituição) é um título exequível.
2. legislador não usou a expressão “titulo executivo” quando elencou os requisitos para a reclamação de créditos na execução e não o fez porque não é esse o requisito que se pretende. Um título é exequível quando tem a capacidade de se tornar título executivo. Quando tem a qualidade de ser executável.
3. Os títulos executivos podem ser simples ou complexos consoante o tipo de obrigação que titulem e serão complexos quando a obrigação (exequenda) exija vários documentos para a sua verificação/demonstração, documentos esses que, podendo ser de natureza diversa, se complementam entre si e nos seus conteúdos e levam à demonstração do crédito/obrigação. Exemplo disso é o documento que serve de base à reclamação apresentada, cuja complexidade decorre da própria Lei.
4. Não basta efectivamente a existência da celebração de uma escritura de hipoteca. Necessário se torna que, para além da escritura de hipoteca, o credor demonstre que a prestação foi realizada e que foi constituída uma obrigação, fazendo acompanhar a escritura de hipoteca com os documentos que demonstrem essa prestação e constituição da obrigação.
5. Cumprida tal obrigação e resultando dos factos provados na sentença que o crédito existe, é certo e não foi pago – ou seja, considerando-se provados os factos e elementos constitutivos do crédito e da obrigação -, fica demonstrado que a credora/reclamante, para além de gozar de uma garantia real, dispõe de título exequível, o que legitima e fundamenta a reclamação de créditos apresentada.
6. Não se entendendo assim estaríamos a desvirtuar toda a essência e natureza da hipoteca.
7. Com efeito, se ao credor hipotecário é reconhecido o poder de actuar sobre a coisa que lhe foi afecta, relativamente ao bem sobre o qual incide a sua garantia, sem lhe ser oponível um qualquer outro direito posteriormente constituído e registado, a invocação desse direito e a comprovação da existência de título exequível (o documento autêntico devidamente complementado) é suficiente para se considerar admissível a reclamação apresentada.
8. Não admitir a reclamação de crédito com base na escritura de constituição de hipoteca, por se entender que à mesma falta o requisito de exigibilidade, é ignorar frontalmente a função dessa figura jurídica, tornando aquela que é a principal forma de garantia real numa figura manifestamente inútil enquanto no nosso ordenamento jurídico.
9. Por fim, a sentença ao não se pronunciar sobre a junção aos autos do documento de confissão de dívida, no qual o terceiro devedor reconhece, concretiza e confessa a dívida garantida, demonstra omissão de pronúncia, cuja consequência é a sua nulidade.
10. Ao decidir como decidiu, a sentença proferida violou o disposto nos artigos 686º e seg. do Cod. Civil e artigos 707º, 788º, 792º e 615°, n° 1, al. d), do Cod. Proc. Civil.

TERMOS EM QUE, pelos fundamentos expostos, DEVE a sentença proferida ser revogada, substituindo-se por outra que julgue procedente a reclamação apresentada pela X, decida julgar verificado o crédito, graduando-o para ser pago pelo produto da venda do imóvel penhorado, na ordem que lhe compete.
CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, deverá a sentença proferida ser declarada nula, nos termos e com os efeitos previstos no artigo 615°, n° 1, al. d), do Cod. Proc. Civil…”.
*
O exequente veio apresentar Resposta ao recurso, na qual pugna pela manutenção da decisão recorrida.
*
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), as questões a decidir no presente recurso (por ordem lógica de conhecimento) são as seguintes:

I- A de saber se a decisão proferida é nula por omissão de pronúncia; e
II - Se o crédito da reclamante estava munido do respetivo título executivo para ser admitido à graduação de créditos.
*
Efetivamente, embora a questão da nulidade da decisão venha invocada pela recorrente em segundo lugar, mesmo a título subsidiário, consideramos que a apreciação do recurso deve começar por conhecer dessa questão em primeiro lugar, por ser essa a ordem lógica de conhecimento das questões a decidir no âmbito do recurso.
As regras a seguir no tribunal da Relação são, aliás, as de que se aplicam à elaboração do acórdão os preceitos aplicáveis à elaboração da sentença da primeira instância (art.º 663º nº 2 do CPC), nomeadamente o art.º 608º do CPC (Questões a resolver – Ordem do julgamento), o qual prevê no seu nº1 que “Sem prejuízo do disposto no nº 3 do art.º 278º, a sentença conhece em primeiro lugar das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica”. E o mesmo entendimento decorre do art.º 665º do CPC que regula a regra da substituição do tribunal da relação ao tribunal recorrido, e no qual se diz que “Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação”. Ora, parece resultar da conjugação dos preceitos legais citados a ideia de que a ordem lógica do conhecimento das questões suscitadas pelas partes no recurso deve seguir essa ordem, ou seja, começar pela apreciação das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, seguindo-se a questão das nulidades (quer da sentença, quer processuais), e só depois se apreciando o objeto da apelação propriamente dito.
Só assim se respeita, de resto, o princípio, também ele aplicável à segunda instância, de que o tribunal deve conhecer de todas as questões que lhe sejam submetidas pelas partes para apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Seguindo então essa ordem lógica de conhecimento, iniciaremos a nossa apreciação do recurso pelo conhecimento da invocada nulidade da decisão proferida, alegadamente por não se ter apreciado na decisão recorrida um documento (confissão de dívida) junto aos autos pela reclamante na resposta à impugnação.
*
Vejamos então a matéria de facto dada como provada na primeira instância e que por não ter sido impugnada nem merecer ser por nós alterada, se passa a reproduzir na íntegra (nos termos previstos no art.º 663º nº 6 do CPC):

Factos dados como provados na 1ª instância (tendo por base a documentação junta aos autos):

“3.1. Na acção executiva de que os presentes autos constituem apenso, aos 12.02.2020, foi penhorada a fracção G do prédio urbano, correspondente a habitação com área de 144 m2, no segundo andar direito, e garagem para aparcamento a nível da cave, sito na freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo, sob o nº .../20031209 e inscrito na matriz sob o artigo ….---
3.2. A pedido do Executado/Reclamado, o reclamante Banco ..., S.A. celebrou com aquele um contrato de mútuo garantido por hipoteca, no valor de € 200.000,00.---
3.3. De acordo com o referido contrato, o mútuo foi concretizado ao juro remuneratório anual fixado nos termos das cláusulas 4ª e 5ª do Anexo I ao Contrato, sendo que as taxas poderiam e viriam a ser alteradas nos termos e condicionantes referidos nas mesmas cláusulas, tendo sido convencionado que o contrato teria o prazo de 516 meses e que a verba mutuada, bem como os referidos juros e demais encargos contratualmente estabelecidos haveriam de ser pagos em prestações mensais e sucessivas de capital e juros, acrescidos do imposto de selo respectivo, depois de um período de carência de 36 meses.---
3.4. Convencionou-se ainda que, sem prejuízo da faculdade de resolução, a falta de pagamento de qualquer das prestações aprazadas implicaria um agravamento da dívida com juros de mora, calculados à taxa máxima contratual em vigor no momento do incumprimento, acrescida da sobretaxa legal, que naquele momento, era de 4% ao ano, atualmente reduzida para 3% ao ano, nos termos do artigo 8º, nº1 do Decreto-Lei nº 58/2013, de 8 de maio.---
3.5. Ficou, finalmente, convencionado que o mutuário haveria de suportar todas as despesas necessárias à segurança e cobrança do empréstimo, sendo que as mesmas se fixaram, desde logo em € 8.000,00.---
3.6. O Banco reclamante disponibilizou o capital que declarou mutuar.---
3.7. O referido empréstimo está, no momento, a ser cumprido.---
3.8. Como caução e garantia do bom pagamento de todo o capital mutuado em virtude da celebração do referido empréstimo, juros, imposto de selo e demais despesas, foi constituída pela Ap. 986 de 2009/03/05 hipoteca sobre o imóvel id. em 3.1..---
3.9. A reclamante X - Mobiliário Expositor, Unipessoal, Lda. dedica-se à importação, exportação e comercialização de artigos para animais de companhia, objectos de vidro nomeadamente aquários, mobiliário, designadamente mobiliário expositor.---
3.10. No exercício da sua actividade, forneceu à sociedade “C. & V., Lda.” diversos produtos no montante total de € 59.816,05.---
3.11. Até a presente data a empresa devedora ainda não procedeu ao pagamento das facturas correspondentes, sobre o valor das quais se venceram juros calculados à taxa legal anual para as transacções comercias, fixada em 7%, até efectivo e integral pagamento.---
3.12. Para garantia de todas as obrigações pecuniárias, assumidas ou a assumir pela referida “C. & V., Lda.”, decorrente de quaisquer fornecimentos efectuados pela reclamante, até ao montante global de 60.000,00€ e respectivos juros de mora à taxa legal para as operações comerciais que estiver em vigor, o aqui executado, na qualidade de sócio e gerente da referida sociedade, constituiu pela a AP. 4140, de 2019/10/31 hipoteca sobre o imóvel id. em 3.1.”
****
I- Da invocada nulidade da decisão:

Alega a recorrente que em resposta à contestação juntou um documento autenticado de confissão de dívida subscrita pela empresa devedora, a “C. & V., Lda.”, o qual reitera a prova de que o crédito existe e se encontra vencido. Ou seja, mesmo que se considerasse que a reclamante, com a mera junção da escritura de constituição de hipoteca não era possuidora de título exequível – o que só por mera cautela de patrocínio se invoca –, seguramente tal circunstância estaria sanada com a concretização do valor em dívida e confissão da mesma. Ora, em momento algum na sentença proferida é feita qualquer referência à junção e existência desse documento, o que constitui omissão de pronúncia e nulidade da decisão.
No fundo, segundo a recorrente, a sentença proferida omitiu a pronúncia sobre factos e questões juridicamente relevantes (em violação do disposto no artigo 615°, n° 1, al. d) do Cod. Proc. Civil) o que determina a sua nulidade.
*
No despacho de admissão do recurso a Sra. Juíza pronunciou-se sobre a alegada nulidade, afirmando que “… a decisão proferida não padece da invocada nulidade, pois que da mesma consta de forma clara e inequívoca os seus fundamentos, quer de facto quer de direito, não se encontrando os mesmos em oposição, nem padecendo de qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, ou tendo deixado de pronunciar-se quanto a qualquer questão…”
*
Apreciando e decidindo a invocada nulidade da decisão, por alegada omissão de pronúncia, dir-se-á:
Como é de todos sabido, as decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento (dos factos e/ou do direito); e por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou das que delimitam o respetivo conteúdo e limites, sendo apenas estas últimas que determinam a sua nulidade, nos casos taxativamente previstos no art.º 615.º do CPC.
Um desses casos é precisamente o previsto na alínea d) do nº 1, no qual se determina que “É nula a sentença quando (…) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
A previsão deste normativo remete-nos para um outro, como da letra do mesmo resulta: o juiz deve pronunciar-se sobre todas as questões sobre as quais era seu dever pronunciar-se. Trata-se do art.º 608º nº2 do CPC, inserido no Título IV relativo à elaboração da sentença, intitulado “Questões a resolver”, e no qual se estipula que “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras…”
É a violação daquele dever de pronúncia que torna nula a sentença, o que se justifica plenamente, uma vez que a omissão de pronúncia se traduz em denegação de justiça.
E é precisamente sobre este ponto – sobre o que sejam as questões que as partes submeteram à apreciação do tribunal, as quais o juiz está obrigado a resolver -, que reside o cerne da questão.
A dificuldade está, pois, em saber o que deve entender-se por questões, para efeitos do disposto nos artigos 608º nº 2 e 615, n.º 1, d), do CPC.
A resposta tem de ser procurada na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido, e as exceções invocadas pelo réu, o que vale por dizer que questões serão apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão que se visa obter. Não farão parte dessas “questões” os argumentos e as motivações produzidas pelas partes, mas apenas os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções invocadas (José Alberto dos Reis (CPC anotado, Vol. V. pág. 142, e José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 704).
O que importa é que o julgador conheça de todas as questões que lhe foram colocadas pelas partes, exceto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras. Deste modo, só haverá nulidade da sentença por omissão ou por excesso de pronúncia, quando o julgador tiver omitido pronúncia relativamente a alguma das questões que lhe foram colocadas pelas partes ou quando tiver conhecido de questões que aquelas não submeteram à sua apreciação.
É usual verificar-se alguma confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado da mesma, ou entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida, ou até mesmo entre a omissão de pronúncia (quanto a alguma questão ou pretensão deixada de apreciar) e a falta de resposta a algum argumento de entre os que são convocados pelas partes (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 737).
Ora, é neste âmbito de considerações que nos devemos mover para apreciar a questão da nulidade suscitada.
Considera a reclamante haver omissão de pronúncia por parte do tribunal recorrido, ao não se ter pronunciado sobre o documento por si junto aos autos na resposta à impugnação - documento autenticado de “confissão de dívida” feito pela devedora -, e que, segundo aquela, reitera a prova de que o crédito existe e se encontra vencido, acrescentando que se se considerasse que a reclamante, com a mera junção da escritura de constituição de hipoteca não era possuidora de título exequível, seguramente tal circunstância estaria sanada com a concretização do valor em dívida e a confissão da mesma, sendo certo que o documento apresentado constitui um título executivo previsto na alínea b) do art.º 703º, nº 1 do CPC.
Ora, dado que em momento algum na sentença é feita qualquer referência à junção e existência desse documento, tal constitui, segundo a recorrente, omissão de pronúncia.
E temos de lhe dar razão, na medida em que no caso concreto, a apreciação desse documento por parte do tribunal, deveria ser considerado uma questão a conhecer, sob pena de nulidade da decisão.
Dizemos no caso concreto, porque, em bom rigor, não se trata apenas de um simples documento, de um simples meio de prova, mas de um alegado “título executivo”, que viria substituir ou complementar, segundo a reclamante, e caso o tribunal o considerasse insuficiente, o título exequível já apresentado - a escritura de constituição da hipoteca.
Ora, tem-se entendido, cremos que de forma unânime, quer na doutrina, quer na jurisprudência, que o juiz deve conhecer de todos os pedidos deduzidos (da ação ou da reconvenção); de todas as causas de pedir; e de todas as exceções deduzidas.
E isto vale, tanto para os pedidos principais, como para os pedidos subsidiários.
E que é dever do juiz conhecer não só das questões que lhe são colocadas pelas partes, mas também das que oficiosamente lhe cabe conhecer, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª edição, pp. 713 e 737, e ac. STJ de 29-11-2005, disponível em www.dgsi.pt).
Segundo José Alberto dos Reis (CPC anotado, Vol. V. pág. 142) deve entender-se por questões, todas as que são postas pelas partes (autor e réu) ao tribunal, e todas as questões cujo conhecimento é prescrito pela lei, sendo as primeiras todas aquelas que as partes levantaram nos articulados, cuja função consiste exatamente em fornecer ao juiz a delimitação nítida da controvérsia, pois é pelos articulados que o juiz há-de aperceber-se dos termos precisos do litígio ventilado entre o autor e réu. E quem diz litígio entre autor e réu, diz questão ou questões substanciais ou processuais, que as partes apresentaram ao juiz para que ele as resolva (cfr. ob.cit. pág. 53, e ainda José Lebre de Freitas, CPC anotado, Vol. II, pág. 704).
Trata-se, nas palavras de M. Teixeira de Sousa (Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lx 1997, págs. 220 e 221, no quadro do regime previsto no art.º 668.º do anterior CPC, mas que permanecem neste âmbito plenamente válidas e atuais), do corolário do princípio da disponibilidade objetiva, que significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com exceção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes, ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões.
Questões para este efeito são todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer ato (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes (cfr. A. Varela, RLJ, Ano 122.º, pág. 112).
Daí que as questões suscitadas pelas partes e que justificam a pronúncia do tribunal terão de ser determinadas pelo binómio causa de pedir-pedido, afirmando ainda neste âmbito M. Teixeira de Sousa (ob. citada), com idêntica atualidade, que o tribunal não tem de se pronunciar sobre todas as considerações, razões ou argumentos apresentados pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários à decisão da causa.
Verifica-se assim uma omissão de pronúncia e a consequente nulidade da decisão, segundo o mesmo autor (nos termos do art.º 668.º, n.º 1, al. d) 1.ª parte do pretérito CPC), se na sentença o tribunal se abstiver de apreciar a procedência da ação com fundamento numa das causas de pedir invocadas pelo autor. Se o autor alegar vários objetos concorrentes ou o réu invocar vários fundamentos de improcedência da ação, o tribunal não tem de apreciar todos esses objetos ou fundamentos se qualquer deles puder basear uma decisão favorável à parte que os invocou. Em contrapartida, o tribunal não pode proferir uma decisão desfavorável à parte sem apreciar todos os objetos e fundamentos por ela alegados, dado que a ação ou a exceção só pode ser julgada improcedente se nenhum dos objetos ou dos fundamentos puder proceder.
Ora, cremos que se situa precisamente neste âmbito a situação ocorrida nos autos: a reclamante alegou na petição da reclamação a existência de um crédito, baseado em várias faturas não liquidadas e respetivos juros de mora, crédito esse garantido com uma hipoteca incidente sobre o imóvel penhorado nos autos, vindo mais tarde, na resposta à impugnação, juntar um documento intitulado “confissão de dívida”, feito pela devedora e autenticado por advogado, a reiterar, segundo afirma, a prova de que o crédito existe e se encontra vencido, cumprindo agora o requisito exigido no art.º 788º do CPC – a exibição de título exequível -, caso o tribunal considere insuficiente o título apresentado inicialmente na reclamação (a escritura de constituição da hipoteca).
Considera assim a reclamante que era dever do tribunal apreciar a existência deste último documento, a complementar o inicialmente apresentado, o que não fez.
E a razão está do seu lado, como já o afirmamos, na medida em que, bem ou mal, a reclamante acaba por apresentar dois títulos – na sua ótica exequíveis -, para justificar o seu crédito: a escritura de constituição de hipoteca, complementada com as faturas emitidas e não pagas; e um documento particular de “confissão de dívida”, que vem juntar mais tarde, aquando da resposta à impugnação.
A apresentação desses dois títulos suscitavam ao tribunal duas questões, que deveriam ser apreciadas e decididas, ainda que de forma sucessiva, uma vez que uma delas, a primeira, levou à improcedência da reclamação. Haveria pois o tribunal de apreciar também a segunda questão – o segundo fundamento invocado pela reclamante -, a fim de esgotar todas as questões que lhe foram por ela colocadas nos autos, como lhe impõe o art.º 608º nº2 do CPC.
A palavra “questões” deve ser tomada em sentido amplo: deverá envolver tudo quanto diga respeito à causa de pedir (ou causas de pedir) e às exceções – à fundamentação de uma e de outras -, e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem.
Esta causa de nulidade completa e integra, de certo modo, também a da nulidade da sentença por falta de fundamentação, pois não basta à regularidade da decisão a fundamentação própria que ela contiver; importa que nela se trate e aprecie também a fundamentação fática e jurídica dada pelas partes.
No fundo, pretende-se que o contraditório propiciado às partes sobre os aspetos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão. Isto sem ser de exigir que na sentença o juiz tenha de examinar toda a matéria controvertida, se o exame de uma só parte impuser necessariamente a decisão da causa, favorável ou desfavorável; é nesse sentido que deverá ser entendida a expressão legal “exceptuadas aquelas questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
No caso em apreço, como se disse, um dos fundamentos apresentados pela recorrente na resposta á impugnação, era, de facto, a confissão feita pela devedora, incorporada num documento intitulado “confissão de dívida” autenticado por advogado, o qual, a ser considerado relevante pelo tribunal poderia levar à admissão da reclamação do credito da recorrente e à sua graduação no lugar que lhe competia.
Ou seja, a alegada “confissão de dívida” foi um dos fundamentos invocados pela parte para lograr o reconhecimento do seu crédito no apenso da reclamação de créditos; como tal, carecia tal fundamento de análise e decisão, o que não aconteceu, pelo que, nessa medida, determinou a nulidade da decisão, por omissão de pronúncia.
*
A nulidade da decisão, mesmo que declarada, não obsta, no entanto, ao conhecimento da apelação, nos termos do art.º 665º do CPC, cabendo a este tribunal apreciar essa questão, o que se fará no momento oportuno (e caso se mostre necessária a sua apreciação).
*
II- Da reclamação de créditos apresentada pela reclamante/recorrente:

Decidiu-se na sentença recorrida julgar totalmente improcedente a reclamação de créditos deduzida pela reclamante X com o seguinte fundamento:

“Os requerentes reclamaram os seus créditos em consequência de beneficiarem de hipotecas, devidamente registadas, sobre o imóvel penhorado nos presentes autos de execução. Ora, o credor que pretenda reclamar um crédito na execução deve gozar de garantia real sobre os bens penhorados e dispor de título exequível (art.º 788.º, n.ºs 1 e 2 do CPC). Se a obrigação não for certa ou líquida deve o credor torná-la certa ou líquida, actuando da mesma forma que o exequente em situação idêntica. Assim, só o credor com garantia real sobre os bens penhorados tem o ónus de reclamar o seu crédito na execução, a fim de concorrer à distribuição do produto da venda. Mas não basta a garantia real sobre os bens penhorados, necessário se torna dispor de título exequível, exigindo-se, portanto, que o credor se apresente munido de título executivo. Porém, apesar de o credor que pretenda reclamar um crédito na execução deva gozar de garantia real sobre os bens penhorados e dispor de título executivo, pode suceder que na altura de abertura do concurso não esteja munido deste último. Prevenindo tais situações, o legislador admite que o mesmo possa “requerer, dentro do prazo facultado para a reclamação de créditos, que a graduação dos créditos, relativamente aos bens abrangidos pela sua garantia, aguarde a obtenção do título em falta” (art.º 792.º, n.º 1 do CPC). E é, ainda, possibilitada a formação dum título executivo judicial impróprio, que evitará a propositura da acção (…). Ou seja, o título executivo pode vir a formar-se sucessivamente ao abrigo do art.º 792.º do CPC, com possibilidade de dispensa do uso da acção declarativa (…).
No entanto, porém, quanto à credora reclamante X (…) a mesma não se encontra munida de qualquer título executivo, não tendo ainda reclamado o crédito nos termos do art.º 792.º do CPC, não se podendo, consequentemente, considerar formado o título executivo e reclamado o crédito, sendo certo que tal ónus impendia sobre aquela…”.
*
É desta decisão que a reclamante discorda, considerando (melhor dizendo, continuando a considerar) que detinha, aquando da reclamação do seu crédito, um título exequível válido, capaz de sustentar a reclamação apresentada, que era a escritura de constituição da hipoteca, acompanhada das faturas comprovativas dos fornecimentos efetuados e não pagos.
Continua assim a sustentar a reclamante que para se reclamar um crédito na execução, o credor não tem de dispor de título executivo mas apenas de um título exequível, conforme se dispõe no art.º 788º do CPC, ou seja, um documento que tenha a capacidade de se tornar um título executivo, algum dos elencados no artigo 703º do CPC.
Acrescenta depois que os títulos executivos podem ser simples ou complexos, consoante o tipo de obrigação que titulem, e serão complexos quando a obrigação (exequenda) exija vários documentos para a sua verificação/demonstração, documentos esses que, podendo ser de natureza diversa, se complementam entre si e nos seus conteúdos e levam à demonstração do crédito/obrigação.
E que são estes títulos complexos que, enquanto o seu conteúdo não estiver completo, seja porque necessitam de outros documentos complementares, seja porque lhes falta o cumprimento de uma obrigação suspensiva, que são títulos exequíveis.
E conclui: se não se considerasse que a escritura de constituição de hipoteca é título executivo, sempre seria título exequível e, como tal, suporte de reclamação de créditos e respetiva graduação, pelo que o recurso ao mecanismo previsto no artigo 792º do CPC apenas serviria à recorrente se esta não estivesse munida de título, o que não é o caso.
*
Começamos por dizer que contrariamente ao afirmado pela recorrente, não vemos qualquer distinção legal entre títulos executivos e títulos exequíveis, referindo-se a lei a ambos, de forma indistinta, e querendo tratar em ambos os casos os documentos com força executória suficiente para servirem de base a uma ação executiva, sendo bem percetível essa indiferenciação no próprio art.º 792º que está aqui em questão:

“1 - O credor que não esteja munido de título exequível pode requerer, dentro do prazo facultado para a reclamação de créditos, que a graduação dos créditos, relativamente aos bens abrangidos pela sua garantia, aguarde a obtenção do título em falta (…).
3 - Se o executado reconhecer a existência do crédito, considera-se formado o título executivo e reclamado o crédito nos termos do requerimento do credor…”. (negrito nosso).
O mesmo se passa no art.º 788º nº 1 do mesmo diploma legal, no qual se preceitua que “Só o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar pelo produto destes o pagamento dos respetivos créditos”, acrescentando o nº 2 do mesmo artigo que “A reclamação tem por base um título exequível e é deduzida no prazo de 15 dias a contar da citação do reclamante”.
Ora, como é bom de ver, a lei trata de forma indistinta os títulos executivos, ora apelidando-os como tal, ora apelidando-os de títulos exequíveis, sem estabelecer qualquer diferença quanto a ambos; mister é que se trate de documentos com força executória bastante para servirem de base a uma ação executiva.
Também a doutrina consultada (e consagrada) se refere indistintamente a título executivo e a título exequível como se tratando do mesmo título, ou seja, o documento que incorpora um direito de crédito, e que tem força executória capaz de desencadear uma ação executiva (José Lebre de Freitas, “A ação executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013”, Gestlegal, 7ª Edição; Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, “A Ação executiva Anotada e comentada”, Almedina 2015; e Rui Pinto, “Ação Executiva”, AAFDL Editora, 2019, Reimpressão).
*
Considera depois a recorrente – tese que sempre defendeu nos autos -, que a escritura de constituição de hipoteca (devidamente registada), é o título exequível a que se refere o art.º 788º do CPC, o qual seria suficiente, na sua ótica - acompanhado das faturas demonstrativas da obrigação assumida pela devedora -, para sustentar a reclamação apresentada.
Mas sem razão, como é bom de ver, confundindo a reclamante o crédito reclamado (que deve ser incorporado num título executivo), com a garantia desse mesmo crédito – no caso, a constituição da hipoteca sobre o imóvel penhorado nos autos, imóvel esse dado de garantia para o pagamento da dívida da sociedade à reclamante.
Efetivamente, nos termos do nº1 do art.º 786º do CPC (inserido na Seção IV - Citações e Concurso de credores), “Concluída a fase da penhora e apurada pelo agente de execução a situação registral dos bens, são citados para a execução (…) os credores que sejam titulares de direito real de garantia, registado ou conhecido sobre os bens penhorados (…) para reclamarem o pagamento dos seus créditos”, acrescentando depois o art.º 788º nº 1 do mesmo diploma legal que “Só o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar pelo produto destes o pagamento dos respetivos créditos”, e o nº 2 que “A reclamação tem por base um título exequível e é deduzida no prazo de 15 dias a contar da citação do reclamante”.
O art.º 788º do CPC estabelece assim dois pressupostos essenciais – cumulativos, mas distintos -, para a admissibilidade da reclamação de créditos: a existência de garantia real sobre o bem penhorado, e a existência de título executivo.
Os pressupostos essenciais da reclamação de créditos pelos credores preferentes são assim a titularidade de um crédito com garantia real sobre o bem penhorado – pressuposto material -, e a existência de um título executivo – pressuposto formal.
O nº 1 do art.º 788º citado esclarece desde logo que a reclamação de créditos só pode ser apresentada por quem goze de garantia real sobre os bens penhorados. Exige-se efetivamente a existência de um nexo de ligação da garantia real aos bens que hajam sido penhorados na execução, realidade que se prende com a circunstância de que os bens vendidos na execução são-no livres de ónus ou encargos, os quais, a existir, caducam com a venda executiva efetuada (art.º 824º do Código Civil).
Procura-se efetivamente que a venda executiva seja feita sem qualquer espécie de obstáculos a condicionar a aquisição dos mesmos, conforme art.º 824º do CC, o qual estipula que “1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida. 2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo. 3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens”.
A razão de ser deste regime - de transmissão dos bens livres daqueles direitos de garantia e da consequente extinção destes com a venda judicial -, foi a de evitar a depreciação do valor dos bens, que resultaria duma alienação com subsistência de encargos, em benefício tanto do exequente – pelo seu direito a ser pago sobre o produto do próprio património onerado do devedor, no que exceder os encargos -, como o do executado – para obter o máximo de amortização dos seus débitos pelo produto dos bens.
Assim sendo, dada a exigência legal, estão afastados desta via de reclamação de créditos todos aqueles que muito embora credores do executado, não disponham de garantia real sobre os bens penhorados (Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo “A Ação executiva Anotada e comentada”, Almedina 2015, pag. 449 e ss.).
Ora, é esse o caso dos autos, em que a reclamante se apresentou à reclamação de créditos munida de uma garantia real – hipoteca -, sobre o imóvel penhorado nos autos pertencente ao executado – garantia que de resto não foi posta em causa por nenhuma das partes.
A referência que vimos fazendo a essa garantia real não tem outro propósito que não seja o de clarificar conceitos e distinguir realidades, que são bem diferentes: a da existência do crédito reclamado e a da constituição da garantia sobre o mesmo crédito, contrariamente ao afirmado pela reclamante e ora recorrente, que continua a defender ser a escritura de constituição da hipoteca o título exequível que sustenta a sua reclamação.
Não podemos de facto confundir a garantia dada – a hipoteca -, com o crédito que lhe está subjacente, e que aquela se destina a garantir, como resulta, de resto, bem definido, na escritura pública de constituição da hipoteca celebrada pela reclamante e pelo executado (junta aos autos como documento n.º 77).
Ali se diz que “Pela presente escritura, o outorgante constitui hipoteca sobre a referida fracçao autónoma, a favor da sociedade denominada “X – Mobiliária Expositor, Unipessoal, Lda.” (….) para garantia das obrigações pecuniárias, assumidas ou a assumir, pela sociedade “C. & V. Lda” (…) decorrentes de quaisquer fornecimentos efectuados pela referida sociedade (…) até ao montante de sessenta mil euros, e respectivos juros de mora à taxa legal para as operações comerciais que estiver em vigor” (negrito nosso).
Trata-se de uma hipoteca voluntária, constituída pelo executado a favor da reclamante, consentida pelo art.º 712º do CC, e genérica, pois foi constituída para garantir (o pagamento) de todas as obrigações pecuniárias, assumidas ou a assumir pela referida sociedade, decorrente de quaisquer fornecimentos efetuados até ao montante global de 60.000,00€ e respetivos juros de mora –, também consentida pelo art.º 686º nº 2 do CC, que estabelece que “A obrigação garantida pela hipoteca pode ser futura ou condicional”.
Consagra assim a lei, de forma expressa, a validade da constituição de uma hipoteca para garantia de uma obrigação futura ou condicional, como ocorreu no caso dos autos.
Ora, embora não tenha sido colocada em causa por nenhuma das partes a validade da constituição de tal hipoteca, ela permite-nos distinguir de modo claro a obrigação garantida – que não se encontrava ainda determinada na data em que a hipoteca se constituiu -, e a própria garantia, a onerar o imóvel penhorado nos autos.
A hipoteca genérica, também designada por global, caracteriza-se por garantir uma dívida que não está determinada ab initio, sendo apenas determinado o montante máximo que assegura, sendo de admitir a constituição desse tipo de hipoteca desde que no contrato que lhe deu origem conste um critério minimamente objetivo para determinação da prestação garantida ou a garantir, nomeadamente quanto aos montantes limites dos créditos (Acórdão da Relação de Coimbra, de 6/9/2011:CJ, 2011, 4º, 13).
Vem sendo de facto admitida na prática corrente, a designada “hipoteca global” ou “hipoteca genérica”, definida por Maria Isabel Menéres Campos (“Da Hipoteca, Caracterização, Constituição e Efeitos” Almedina, Reimpressão, págs. 103-108), como uma “hipoteca voluntária em que se convenciona que o devedor a constitui para todas e quaisquer dívidas que tenha assumido ou venha a assumir com o credor, independentemente da sua causa, caracterizando-se, assim, “por garantir uma dívida que não está determinada ab initio sendo apenas determinado o montante máximo que assegura”, podendo as obrigações garantidas terem a mais variada natureza, e não sendo o seu número limitado (no mesmo sentido de decidiu no Ac. desta RG de 29/9/2014, disponível em www.dgsi.pt).
Efetivamente, destinando-se a hipoteca a garantir o pagamento de créditos, existe uma ligação incindível entre o direito de crédito garantido e o direito real de garantia, sendo aquele determinante para a conformação deste, pelo que se diz com propriedade que a hipoteca é acessória do direito de crédito que garante (Isabel Menéres Campos, ob. citada, pág. 85 e seg, 2003, Almedina; Almeida Costa, “Direito das obrigações”, pág. 946, 11ª ed., Almedina; Eduardo dos Santos, “Curso de direitos reais”, pág. 15, ed. pol. de 1986, da Universidade Livre de Lisboa; e “Santos Justo, “Direitos reais”, pág. 475, ed. de 2007, Coimbra Editora) – e daí a necessidade de se fixar um montante limite do crédito a garantir.
Aliás, a necessária determinabilidade do objeto de qualquer negócio jurídico (imposta pelo art.º 280º do CC) exige não só que os bens dados em hipoteca sejam individualizados no respetivo negócio constitutivo, como também o crédito ou créditos garantidos devam ser determináveis (Januário Gomes, “Assunção fidejussiória de dívida”, pág. 676-678, 2000, Almedina - relativamente à fiança; Isabel Menéres Campos, ob. cit., pág. 103-114; Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, “Garantias de cumprimento”, pág. 201, 4ª ed., Almedina; e Acs. da RC, de 16.11.04, e da RP, de 14.2.07, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.).
Por outro lado, sendo a hipoteca um direito acessório do crédito que assegura, o crédito garantido tem de estar mencionado no registo (que, na hipoteca, tem carácter constitutivo). Com efeito, o art.º 96.º do Código de Registo Predial determina que o extrato da inscrição da hipoteca deve conter: o fundamento da hipoteca, o crédito e seus acessórios e o montante máximo assegurado (tratando-se de hipoteca de fábrica, cfr. a alínea b) do n.º 1), e se o capital vencer juros, caso a taxa convencionada não venha mencionada nos documentos apresentados, menciona-se na inscrição a taxa legal – cfr. n.º 2.
Ora, analisada a escritura de constituição de hipoteca (genérica) junta aos autos pela reclamante, verificamos que a mesma cumpre todos os requisitos exigidos para o negócio jurídico celebrado entre o executado e a reclamante, sendo ali bem individualizado o bem imóvel dado de garantia pelo executado, e determinável a obrigação que a hipoteca se destinava a garantir (quer o seu montante máximo, quer o negócio jurídico do qual poderia resultar o crédito garantido).
E voltando aos pressupostos exigidos pelo art.º 788º para a reclamação de créditos, não há dúvida de que a reclamante se apresentou à reclamação como uma credora munida de garantia real – a hipoteca – sobre o imóvel penhorado nos autos, a qual lhe conferia, em tese, nos termos do art.º 686.º do Código Civil, o direito de ser paga pelo valor daquele bem, com preferência sobre os demais credores que não gozassem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
*
Faltava-lhe, no entanto, na data em que apresentou a reclamação, o outro requisito, de ordem formal, também exigido no art.º 788º nº2 do CPC: o título executivo formado sobre o crédito reclamado.
Cremos ter deixado bem claro acima que pela escritura de constituição da hipoteca não foi constituída nem reconhecida qualquer obrigação pecuniária à reclamante; foi apenas constituída hipoteca para garantia “das obrigações assumidas ou a assumir” pela devedora até ao limite de 60.000 €. Portanto, aquele documento, ainda que autêntico, não é, por si só, um título executivo (ou exequível).
Ora, como decorre do nº2 do art.º 788º nº2 e bem se decidiu na sentença recorrida, para que o credor possa reclamar créditos na execução, não basta a invocação da garantia real, sendo imprescindível a apresentação de título executivo.
E a reclamante, embora se arrogue titular de um direito de crédito sobre a sociedade devedora “C. & V., Lda.”, da qual o executado é garante (com a constituição de hipoteca sobre um imóvel da sua propriedade), não se encontrava munida de título executivo quanto àquele crédito, aquando da apresentação da petição da reclamação.
Efetivamente, citada para a execução, a reclamante veio reclamar o seu crédito, no valor de € 59.816,05, alegando para o efeito que no exercício da sua atividade forneceu à sociedade “C. & V., Lda.” diversos produtos, no montante total de € 59.816,05, que a devedora não pagou, assim como os juros de mora devidos.
E juntou aos autos, para fundamentar o seu crédito, diversas faturas (dos anos de 2016 a 2018), alegadamente não pagas.
Ora, como é bom de ver, a reclamante, apesar de ter justificado o seu crédito, e ter junto aos autos os documentos mencionados, não se encontrava munida de título executivo, como lhe era exigível pelo nº 2 do art.º 788º do CPC - nos mesmos termos que o título executivo é exigido ao exequente aquando da instauração da ação executiva.
Efetivamente, não bastava à reclamante alegar a causa de pedir do seu crédito; era-lhe ainda exigível a apresentação de título executivo.
De facto, não se pode confundir na ação executiva a causa de pedir com o título executivo. A causa de pedir na ação executiva não é o título que lhe serve de base, mas o facto aquisitivo do direito à prestação pecuniária exequenda, ou seja, o fundamento substantivo dessa prestação. Trata-se da relação substantiva de onde emerge o crédito exequendo explanada no título executivo, sendo este último apenas o instrumento fundamental privilegiado da demonstração dessa relação jurídica substantiva de que emerge o crédito exequendo.
Consabidamente, a causa de pedir é o facto constitutivo da situação jurídica material que se quer fazer valer; é a relação fundamental. Donde, sendo embora o título executivo condição necessária da respetiva ação, é entendimento comum na doutrina e na jurisprudência, que o título não constitui a sua causa de pedir. Sendo o título executivo um documento, não pode ele equivaler à causa de pedir, por esta ser um facto - o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida na ação, segundo a definição do n.º4 do artigo 581º do CPC (no mesmo sentido, Antunes Varela, RLJ, ano 121.º, p. 147 e ss.; Remédio Marques “Curso de Processo Executivo Comum Face ao Código Revisto”, 2000, p. 52 e ss.; e Amâncio Ferreira “Curso de Processo de Execução”, 11.ª ed., p. 159).
O que acontece normalmente é que, dados os referidos requisitos de exequibilidade exigidos, não há, em regra, necessidade de alegação dos factos constitutivos do direito do exequente no requerimento executivo se os mesmos já constarem do título executivo, como resulta, aliás, da redação do art.º 724º, nº1, alínea e) do CPC, na qual se refere que o exequente deve expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo.
É um facto que ao exequente, assim como ao credor reclamante, cabe alegar os factos integrantes da relação subjacente, pois importa ter presente que, quando a ação executiva não se reconduza a uma relação abstrata (execução fundada em letra de câmbio ou cheque, títulos que incorporam e definem o próprio direito formal, independente e que se destaca da causa debendi), mas a uma relação causal, carece o exequente de alegar a causa da obrigação, a fim de o tribunal ficar habilitado a ajuizar da própria existência do direito em face dos respetivos factos constitutivos, ou, porventura, impeditivos ou extintivos de que lhe seja lícito conhecer.
As considerações expostas valem, com plena acuidade, para a reclamação de créditos, porquanto a causa da obrigação (a causa de pedir) deve ser invocada no requerimento da reclamação, tal como é exigido no requerimento executivo (art.º 724º nº1, alínea e) do CPC), ficando sujeita a impugnação nos termos previstos no art.º 789º do mesmo diploma legal.
Sobre o articulado da reclamação de créditos o AC RL de 12.12.2013 (disponível em www.dgsi.pt) refere que “O articulado de reclamação de créditos deve ser deduzido em termos similares aos exigidos para o requerimento executivo, devendo o reclamante ali individualizar, a título de causa de pedir, o crédito reclamado, quanto à sua origem, natureza, e montante, bem como especificar a garantia real de que goze aquele crédito (…) Tal ónus de alegação, que não se confunde com a falta de título executivo, é postulado por razões que se prendem com o exercício esclarecido do contraditório, por parte dos eventuais impugnantes e com a necessidade de, mais tarde, se saber a que título foi satisfeita a obrigação em causa, já que o crédito reclamado fica exposto à impugnação dos demais reclamantes e é objeto de reconhecimento judicial, o qual jamais poderá prescindir da identificação da respetiva relação causa, de modo a permitir a delimitação objetiva do caso julgado material, nos termos do artº 671º nº1 e 673º do CPC.” (o mesmo se decidiu no Ac do STJ de 12.7.2011, também disponível em www.dgsi.pt).
Ora, como se disse, também nesta parte consideramos que a reclamante cumpriu com o seu dever de identificação da causa de pedir do seu crédito, justificando-o (e fundamentando-o documentalmente).
Continuamos a considerar, no entanto, que tal não é suficiente, porquanto os documentos que juntou – as faturas emitidas, a documentar dos fornecimentos efetuados à devedora -, não constituem títulos executivos à luz do art.º 703º do CPC, onde vêm elencados, de forma taxativa, os documentos a que a lei confere força executória suficiente para servirem de base a uma ação executiva.
Funcionam aqui, na reclamação de créditos, as mesmas exigências gizadas para a instauração da ação executiva por parte do exequente, encontrando-se o credor reclamante na mesma posição jurídica daquele credor, já que ambos concorrem para a realização coativa do seu crédito, embora apenas quanto a alguns bens penhorados sobre os quais incidem garantias reais de que são beneficiários os credores reclamantes. Mas em relação a esses bens pode-se dizer que exequente e reclamantes estão em pé de igualdade em termos de todos eles pretenderem o mesmo fim: obterem o pagamento do seu crédito através da venda em execução do bem do devedor responsável pelo crédito.
Por isso faz sentido que seja exigível aos credores reclamantes o mesmo que é exigível ao credor exequente: que se encontrem munidos de título executivo, a justificar de forma cabal a existência do seu crédito.
Estamos aqui perante uma situação apelidada pela doutrina de execução concursal, com vários credores, reclamantes e exequente, a concorrem com as respetivas garantias reais, para a obtenção do pagamento do seu crédito pelo produto da venda do bem penhorado (e onerado com as referidas garantias reais), embora, ao contrário do exequente, o credor reclamante intervém para uma execução limitada e real - um concurso de preferências – e não uma execução geral, isto é, sobre todo o património (Rui Pinto, “A Ação executiva”, AADFL editora, 2018, pag. 797).
Sobre esse sistema de execução, o professor Rui Pinto (ob citada pag. 796) esclarece-o da seguinte forma: A solução tradicional do sistema português é o da execução mista ou concursal, intermédia entre a pura exclusão dos demais credores – de execução singular ou individual, ou seja, somente entre as partes de uma relação de cumprimento (o credor contra o seu devedor) – e a execução coletiva da insolvência - isto é, por todos os credores em plena identidade com princípio par conditio creditorum , e universal, isto é, de todo o património do devedor, houvesse ou não incumprimento.
A execução começa por ser singular – objetivamente apenas se dirige aos bens necessários para a execução das dívidas de um credor -, mas realizada a penhora, alarga-se a mais credores que preencham certos pressupostos.
Esta é a razão, mais do que justificada, para a exigência de título executivo aos credores na reclamação dos seus créditos.
Efetivamente, o título executivo é o documento que constitui o meio legal de demonstração da existência do direito, ou que estabelece, ainda que de forma ilidível, a existência daquele direito (José Lebre de Freitas, “A Acção Executiva depois da Reforma”, 4.ª Edição, Coimbra Editora, Abril de 2004, pág. 70).
Do título executivo resulta a exequibilidade da pretensão exequenda, pois incorpora o direito de execução, isto é, o direito do credor a executar o património do devedor ou de terceiro, para obter a satisfação efetiva do seu direito, existindo uma presunção do direito incorporado no título, ou seja, de que o título contém em si o direito, e daí a desnecessidade de recorrer à ação declarativa para afirmar esse direito.
É indiscutível que o título executivo há-de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, isto é, documento suscetível de, por si próprio, revelar, com um mínimo aceitável de segurança, a existência da obrigação em que assenta a formulação da pretensão exequenda. Dito de outro modo, o título executivo confere ao direito á prestação invocada um grau de certeza e exigibilidade que a lei reputa de suficientes para a admissibilidade de tal ação.
E a relevância especial dos títulos executivos que resulta da lei, deriva da segurança, tida por suficiente, da existência do direito substantivo cuja reparação se pretende efetivar por via da ação executiva.
Por isso se diz que para que possa ter lugar a realização coativa duma prestação devida (ou do seu equivalente), há que satisfazer uma condição indispensável, da qual depende a exequibilidade do direito à prestação: o dever de prestar deve constar dum título - o título executivo. Trata-se dum pressuposto de carácter formal, que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente mas necessário para a admissibilidade da ação executiva.
Ora, o título não será exequível se houver dúvidas sobre o tipo ou objeto da relação titulada, pois nesse caso será necessário proceder, em ação declarativa, ao prévio e necessário acertamento do direito, ou seja, à definição dos elementos subjetivos e objetivos da relação jurídica.
Por isso se diz que o título executivo é condição necessária e suficiente da ação. Necessária, porque não há execução sem título; suficiente porque, perante ele, deve ser dispensada qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere.
Numa apertada síntese: do que se trata é de um documento investido de certas características, que permitem àquele que o possui desencadear imediatamente os procedimentos ajustados à realização efetiva de certo direito, e sem a necessidade de, precedentemente, ter de obter a declaração judicial deste. O documento, para comportar uma tal qualidade, há-de assim ser de molde a indiciar, ele mesmo, que o direito existe e de quem é o seu titular, bem como daquele a quem onera o vínculo da respetiva satisfação. A sua função é a de sustentar a execução, circunscrevendo o seu fim e limites.
Compreende-se, por isso, o envolvimento em certas garantias e na salvaguarda da respetiva genuinidade; de alguma maneira, o que se pretende é que, por via da sua qualificada compleição probatória, certo instrumento documental dê certezas mínimas, a segurança bastante, de que reflete a realidade da ordem jurídica (atestando um direito substantivo que realmente existe) e a configuração concreta das esferas jurídicas subjetivas (que atinge).
E também é certo, como bem refere a reclamante – embora não pareça ser aqui aplicável -, que a natureza indiciadora e impressiva do título executivo não tem de resultar de um atomístico e único documento; bem podendo acontecer que só uma ajustada combinação de instrumentos probatórios a permita evidenciar. Trata-se do que se costuma designar por título compósito ou complexo.
Agora, como se disse acima, vigora na definição dos títulos executivos o princípio da legalidade; é a lei que há-de definir e determinar as características necessárias para que certo documento possa comportar o estatuto de título executivo.
E o artigo 703.º do atual CPC, relativo às espécies de títulos executivos, no seu elenco taxativo, apenas indica as decisões condenatórias dos tribunais; os documentos exarados ou autenticados, por notário (ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal) que importem constituição ou reconhecimento de obrigações; os títulos de crédito (ainda que meros quirógrafos, desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do documento ou sejam alegados no requerimento executivo); e os demais documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
Efetivamente, o atual CPC reduziu o elenco dos títulos executivos, sendo os fundamentos invocados pelo legislador o aumento das execuções, a que não seria estranho o funcionamento considerado desregrado do crédito ao consumo, o qual era suportado em vários documentos cuja conjugação era invocada para suportar a instauração de ações executivas. Assim, entre a vantagem da redução de ações declarativas que tinha resultado das reformas processuais da década de 1990 e o aumento do risco de execuções tidas como injustas, que muitas vezes se iniciavam pela penhora de bens e só depois permitiam o contraditório – através de oposições à execução ou à penhora –, optou-se por um controlo mais apertado, designadamente através de ação declarativa ou de injunção (cfr. a Exposição de Motivos da proposta de Lei n.º 113/XII).
Ora, como é bom de ver, os documentos juntos aos autos pela reclamanteas faturas a documentar o direito de crédito que reclama na ação -, não se enquadram em nenhuma das espécies de títulos executivos enumerados – taxativamente -, no art.º 703º do CPC.
Títulos executivos são tão só e apenas os indicados na lei, tratando-se de uma enumeração taxativa, sujeita à regra da tipicidade, ficando assim subtraída à disponibilidade das partes a atribuição de força executiva a documento relativamente ao qual a lei não reconheça esse atributo.
Trata-se apenas (no caso das faturas) de documentos particulares de valor meramente contabilístico, emitidos unilateralmente pelo emitente, que atestam transações comerciais entre duas pessoas ou empresas (emitente e emissário), e nos quais devem ser discriminados os itens objeto dessas transações, designadamente, a qualidade dos bens ou serviços objeto da transação, quantidade e preço.
Ora, como simples documento particular emitido unilateralmente pelo respetivo emitente, a fatura não importa a constituição ou o reconhecimento, por parte do emissário, de qualquer obrigação, por isso e desde logo, sem atendermos sequer aos requisitos de ordem formal de que carecem, as faturas não integram o elenco dos títulos executivos que se encontra explanado no art.º 703º do CPC.
Aliás, porque a fatura é um documento particular emanado unilateralmente pelo emitente, a mesma não faz sequer prova da efetiva verificação da transação comercial que terá justificado a sua emissão pelo emitente, isto é, da concreta relação contratual estabelecida entre emitente e emissário e que estará na base da emanação desse documento pelo emitente. A sua existência não desobriga, por isso, o seu emitente de ter de instaurar ação declarativa para obter título executivo (sentença judicial) que lhe reconheça o direito que se arroga titular perante o emissário, em caso de incumprimento da obrigação contratual que terá justificado a emissão da fatura, nomeadamente, em caso de não pagamento do preço da mercadoria ou dos serviços prestados pelo emitente ao emissário.
Conclui-se assim do exposto que, contrariamente ao defendido pela recorrente, ela não possuía, na altura em que deduziu a reclamação do seu crédito, ainda que munida das aludidas faturas, um título executivo (ou exequível) capaz de sustentar o seu pedido de reclamação.
*
Restava à reclamante, como bem se decidiu na sentença recorrida, obter o título executivo em falta, durante o processo executivo em curso, nos termos previstos no art.º 792º do CPC, o que não fez.
Efetivamente, nos termos do art.º 792º do CPC, “1- O credor que não esteja munido de título exequível pode requerer, dentro do prazo facultado para a reclamação de créditos, que a graduação dos créditos, relativamente aos bens abrangidos pela sua garantia, aguarde a obtenção do título em falta. 2 - Recebido o requerimento referido no número anterior, a secretaria notifica o executado para, no prazo de 10 dias, se pronunciar sobre a existência do crédito invocado. 3 - Se o executado reconhecer a existência do crédito, considera-se formado o título executivo e reclamado o crédito nos termos do requerimento do credor, sem prejuízo da sua impugnação pelo exequente e restantes credores; o mesmo sucede quando o executado nada diga e não esteja pendente ação declarativa para a respetiva apreciação…”.
O preceito transcrito prevê a faculdade de o credor que não esteja munido de título executivo poder requerer, dentro do prazo facultado para a reclamação de créditos, que a graduação destes, relativamente aos bens abrangidos pela sua garantia, aguarde a obtenção do título em falta.
Lebre de Freitas (“A ação executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 7ª edição, Gestlegal, pag. 363) refere também, a propósito da convocação e concurso de credores, que “…podendo um credor, com garantia real sobre bens penhorados não dispor ainda de título no termo do prazo para a reclamação, é-lhe facultado requerer, dentro deste prazo, que a graduação dos créditos aguarde a sua obtenção (artº 792º nº1 ) em ação já pendente ou a propor no prazo de 20 dias (artº 792º, nº7, a) sem prejuízo de o processo executivo prosseguir até à venda ou adjudicação dos bens penhorados e de se fazer entretanto a verificação dos restantes créditos (artº 792º nº 6). É, porém, ainda possibilitada a formação dum título executivo judicial impróprio, que evitará a propositura da ação: o executado é notificado para, no prazo de 10 dias, se pronunciar sobre a existência do crédito invocado (art.º 792º nº 2) e se o reconhecer ou nada disser (a menos, neste caso, que esteja pendente ação declarativa para a sua apreciação), considera-se formado o título executivo, sem prejuízo de o crédito poder ser impugnado pelo exequente ou restantes credores (art.º 792º nº 3). Havendo que propor a ação (por o executado ter negado a existência do crédito), nela intervêm, como partes em litisconsórcio necessário, o exequente e os credores reclamantes com garantia real sobre o mesmo bem (art.º 792º nº 5).”
E justifica o insigne mestre a solução adotada pelo legislador da seguinte forma: “…Ao possibilitar a formação do título executivo judicial impróprio, a reforma da ação executiva simplificou o processo conducente à obtenção do título…”.
Poderia assim a reclamante obter o título executivo em falta, durante o processo executivo em curso, como bem se referiu na decisão recorrida, e não o fez.
A solução legal está gizada para o credor reclamante poder obter um título executivo, para o confrontar com o do exequente e o dos outros credores reclamantes, em termos de lograr o reconhecimento e a graduação do seu crédito.
Efetivamente, o nº 1 do art.º 792º do CPC prevê a faculdade de o credor que não esteja munido de título executivo, poder requerer, dentro do prazo facultado para a reclamação de créditos, que a graduação destes, relativamente aos bens abrangidos pela sua garantia, aguarde a obtenção do título em falta.
Ou seja, também aqui se constata a preocupação que o legislador teve em que a venda executiva seja efetuada de forma a que os bens penhorados sejam expurgados de todos os ónus e garantias que os onerem. Essa preocupação estendeu-se de tal modo, que até permitiu que o credor, mesmo que ainda não disponha de título executivo, mas seja titular de uma expectativa, ou mesmo de um direito potestativo, possa obter, no apenso da reclamação de créditos, a formação de título exequível.
Mister é que o faça dentro do prazo previsto para a reclamação de créditos. Isto é, a lei não permite que este credor se possa manter inerte, sem manifestar a sua intenção de obter título exequível, dentro do prazo legal previsto para a reclamação de créditos. Este mecanismo, criado pelo legislador, configura como que a obtenção de um título executivo em falta, durante a própria pendência do apenso de reclamação de créditos; trata-se de um título judicial impróprio, nas palavras de José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes (Código de Processo Civil Anotado, Coimbra editora, 2003, volume 3º pag. 521).
Será prudente, segundo Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo (“A Ação executiva Anotada e comentada”, Almedina 2015, pag. 466), apesar da letra da lei não o exigir, que o credor identifique o crédito que pretende reclamar, indicando a fonte e o respetivo montante.
Ou seja, ao contrário do que o nº1 possa fazer supor, o credor não deve limitar-se a apresentar um requerimento de suspensão da graduação de créditos cujas garantias incidam sobre os mesmos bens que constituam a sua, até que obtenha o título em falta. O requerimento em apreço, uma vez que poderá desencadear o nascimento de um título executivo caso o executado reconheça a existência do crédito nos termos do requerimento do credor ou nada diga, não estando pendente ação declarativa (nº3) deverá individualizar, a título de causa de pedir, o crédito reclamado quanto à sua origem, natureza e montante, assim como explicitar a garantia real de que o mesmo goze.
Ou seja, o título executivo pode vir a formar-se sucessivamente ao abrigo do art.792º do CPC, com possibilidade de dispensa do uso da ação declarativa.
Sintetizando: Esta formação sucessiva faz-se através: da apresentação de requerimento inicial, com pedido e causa de pedir, com as formalidades de petição inicial; do exercício do contraditório do executado sobre a existência do crédito invocado; da consideração de formação do título e da reclamação do crédito nos termos do requerimento do credor, caso o executado aceite expressamente o crédito ou caso o executado nada diga sem que haja ação declarativa a discutir o direito (art.791º/1, 2 e 3 do CPC), formação esta que não carece obrigatoriamente de decisão interlocutória e que desencadeia que o requerimento de reclamação do crédito passe à fase subsequente de impugnação pelo exequente e pelos demais credores (arts. 791º nº3 e 789º nºs 1 a 3 do CPC).
Isto tudo para dizer que nos termos do art.º 788º nº2 do CPC, devendo a reclamação ter por base um título exequível, ele pode estar já formado, aquando da reclamação, ou vir a formar-se incidentalmente na pendência da execução e da reclamação de créditos (art.º 792º do CPC).
Ou seja, o título executivo pode encontrar-se já formado plenamente na data em que é apresentada a reclamação de créditos, ou pode vir a formar-se sucessivamente ao abrigo do art.º 792º do CPC, com possibilidade de dispensa do uso da ação declarativa.
Ora, a reclamante, como se disse, não estava munida de título executivo aquando da apresentação da reclamação do seu crédito, e não manifestou a intenção de o vir a obter, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 792.º do CPC (nem nada fez para o obter dentro daquele prazo), pelo que a sua situação é a de credora sem título executivo (ou exequível).
*
Da relevância da apresentação pela reclamante, na resposta à impugnação, do documento intitulado “confissão de dívida”.
Resta-nos agora apreciar a questão de saber se a junção aos autos pela reclamante do documento datado de 28.2.2022 (na mesma data da apresentação da sua resposta à impugnação), intitulado “confissão de dívida”, pode suprir a sua falta, de acionar o mecanismo legal previsto no art.º 792º do CPC, acima referido e que lhe permitiria obter na ação o chamado título executivo impróprio.
No fundo, poder-se-ia colocar a questão de saber se a “confissão de dívida” feita pela devedora, extrajudicialmente, em documento autenticado por advogado, poderia equivaler à confissão do crédito, feita pelo executado no processo, quando notificado para o efeito pela secretaria nos termos do nº 2 do art.º 792º do CPC.
Isto porque, na verdade, não estamos perante uma nova causa de pedir, a qual se manteve a mesma desde o início da reclamação, dado que a reclamante fundamenta o seu crédito nos fornecimentos de mercadoria faturada e não paga, ou seja num contrato de fornecimento de mercadoria incumprido pela devedora.
A diferença é que aquando da petição da reclamação de créditos a reclamante invoca a causa de pedir mas não apresenta título executivo válido, vindo agora a fazê-lo, não pela via legal – pela via do incidente previsto no art.º 792º do CPC -, mas pela via extrajudicial, com apresentação de uma declaração confessória, que poderia revestir as caraterísticas de um “titulo executivo”.
Ou seja, não se coloca aqui, a nosso ver, a questão da ampliação ou da alteração da causa de pedir, apresentada na resposta à impugnação, porque a causa de pedir, como se disse, mantém-se a mesma (surgindo, assim, despicienda a questão da existência ou não de acordo da parte contrária - cfr. artigos 264º e 265º do CPC).
A questão é tão somente a de saber se deve ser admitida esta “confissão de dívida” extrajudicial, em substituição da formação do título judicial impróprio, a obter pelo mecanismo processual previsto no art.º 792º do CPC.
E a resposta a essa questão deve ser negativa, em nossa opinião.
Desde logo, o impulso processual quanto ao incidente previsto no art.º 792º pertence à reclamante, não podendo ser por ela ignorado nem suprido pelo tribunal.
Mesmo que se considere que o exercício dos poderes de direção, agilização e adequação processuais que são conferidos ao juiz, ao abrigo dos poderes de gestão processual e de adequação formal do processo (previstos nos artºs 6º e 547º do CPC) deve ser norteado pela preocupação de obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou substância sobre a forma, evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjetivas façam precludir os direitos das partes, há uma questão processual intransponível que é a do ónus especialmente imposto pela lei à parte de impulso processual, que só a ela pode caber (art.º 6º nº1 do CPC).
Existindo, no caso, um incidente especialmente gizado para a reclamante obter, por via processual, o título executivo em falta, era essa a via a seguir para o efeito pretendido, e não outro. Essa é uma das limitações impostas pelo art.º 6º, nº1 do CPC ao princípio da gestão processual de que dispõe o julgador: a de não se substituir à parte no que toca ao ónus de impulso processual que lhe cabe de forma especial.
Ora, existindo na lei um expediente especialmente concebido para a reclamante obter, por via judicial, o título executivo de que não dispunha aquando da reclamação, não vemos como possa conceder-se à parte a possibilidade de o ignorar, e vir apresentar um documento sucedâneo, elaborado extrajudicialmente, para suprir a sua falta.
Acresce que não podem também ignorar-se os termos legais: a lei diz que é o executado que há-de pronunciar-se sobre o crédito reclamado, sendo ele a parte interessada na ação. Ora, o documento apresentado pela reclamante é uma confissão de dívida da firma devedora, não do executado, que embora seja sócio gerente daquela, não tem a mesma posição jurídica processual da sociedade devedora. Embora se trate de uma questão mais formal do que de substância, o que a lei pretendeu foi uma confissão judicial (ou a sua equivalente – a falta de resposta), titulada nos autos, ou seja, um título formado nos autos, por via judicial.
Dispõe efetivamente o n.º 2 do artigo 972º do CPC que o requerimento (de sustação/suspensão) do incidente de reclamação/graduação de créditos é notificado ao executado para que se pronuncie “sobre a existência do crédito invocado”, sendo que se o reconhecer, “considera-se formado o titulo executivo” em falta, sem prejuízo da impugnação pelos outros credores e pelo exequente, que também podem usar da mesma faculdade perante o silêncio do executado, não estando pendente acção declarativa para a respectiva apreciação (n.º 3).
Resulta assim do exposto que não podia a reclamante deixar de usar o expediente que tinha à sua disposição, previsto no art.º 792º do CPC para obter o título executivo em falta, vindo posteriormente como veio, e de forma subsidiária, apresentar o documento de “confissão de dívida” que apresentou.
Bem andou em nosso entender a decisão recorrida ao julgar improcedente a reclamação de créditos deduzida pela reclamante “X - Mobiliário Expositor, Unipessoal, Lda”, pelo facto de a mesma não ser portadora de título executivo aquando da reclamação de créditos apresentada.
*
Decisão:

Por todo o exposto, Julga-se Improcedente a Apelação e confirma-se, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas da Apelação pela recorrente.
Notifique.
Guimarães, 17.11.2022.

Relatora: Maria Amália Santos
1º Adjunto: Dr. José Manuel Alves Flores
2ª Adjunta: Drª. Sandra Maria Vieira Melo