ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
PRESCRIÇÃO
INÍCIO DO PRAZO
ILÍCITO CRIMINAL
PRORROGAÇÃO DO PRAZO
Sumário

1. Para se dar o início à contagem do prazo prescricional estabelecido no Art. 498.º n.º 1 do C.C. basta o conhecimento pelo lesado da verificação dos pressupostos de facto da responsabilidade civil.
2. O momento desse conhecimento, na maior parte dos casos – o que também se verificou no caso dos autos –, coincide com a data da ocorrência do acidente do qual emerge a responsabilidade civil aqui pretendida fazer valer nesta ação.
3. O alargamento do prazo prescricional previsto no Art. 498.º n.º 3 do C.C. não depende de ter sido apresentada queixa crime, para efeitos de início e instauração do correspondente procedimento criminal.
4. O que releva é apenas que o facto ilícito em causa constitua um crime para o qual a lei preveja um prazo prescricional mais alargado, não interessando se houve efetivamente um processo-crime ou condenação criminal, não impedindo sequer a ação cível o facto de o processo crime ter sido arquivado ou que o crime tenha sido amnistiado.
5. Mas, para além de alegar os factos, é preciso também provar que no caso concreto estão preenchidos todos os elementos essenciais do tipo legal de crime em referência, incluindo a culpa efetiva do autor das lesões.
6. Se a factualidade alegada for suscetível de preencher a previsão de crime a que corresponda prazo prescricional mais alargado, mas esses factos tiverem todos sido impugnados, essa exceção só deve ser apreciada na sentença, e não no despacho saneador, pois só depois do julgamento se poderá produzir a prova sobre a culpa do agente autor do facto alegadamente criminoso.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
A veio intentar contra Ageas Portugal, Companhia de Seguros, S.A., a presente ação de condenação, destinada a fazer exigir o direito a indemnização por responsabilidade civil emergente de acidente de viação, em processo declarativo comum, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de €35.440,00, a título de danos materiais, corporais e morais, acrescida de juros desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.
Logo então requereu, nos termos do Art. 561.º do C.P.C., a citação urgente da R., em virtude da iminência da prescrição do prazo de 5 anos, que se iniciou a 4 de Dezembro de 2015 e terminava a 5 de Dezembro de 2020, devendo o prazo prescricional de 5 anos interromper-se, logo que decorridos cinco dias depois de a citação ter sido requerida, nos termos do Art. 323 n.º 2 do C.C..
Para tanto alegou ter sido vítima de acidente de viação, ocorrido a 4 de abril de 2015, quando seguia à boleia no banco de trás do veículo automóvel com a matrícula xx-xx-xx, o qual embateu inesperadamente no muro de proteção da berma da estrada e capotou, ficando com as 4 rodas viradas para cima.
O A. ficou com traumatismos graves em consequência desse embate, tendo sido retirado do veículo pela janela traseira e depois conduzido de ambulância até ao hospital, tendo o condutor do veículo xx-xx-xx, que se assumiu culpado pelo acidente, sido sujeito a teste de alcoolemia, apresentando uma taxa de 1,77 mg/l.
A sua responsabilidade civil encontra-se transferida, por apólice de seguro válida e eficaz, acordada com a Axa, Companhia de Seguros, S.A., que posteriormente foi adquirida pela agora R., Ageas Portugal, Companhia de Seguros, S.A., a qual pagou consultas médicas e tratamentos de fisioterapia efetuados pelo A., tal como pagou as baixas médicas até 27 de Junho de 2015, data em que deu alta médica ao A., com a indicação que poderia retomar o trabalho com uma incapacidade temporária parcial de 10%, sendo que em 3 de Dezembro de 2015, a Axa, após avaliação do A., emitiu uma declaração de alta de curado, sem incapacidade para o trabalho.
Pretende assim ser indemnizado pelos danos sofridos por este acidente, logo expressando o entendimento de que estavam preenchidos os pressupostos de aplicação do n.º 3 do Art.º 498.º do CC, que estabelece o prazo de 5 anos para a prescrição do procedimento criminal, previsto no Art. 118.º n.º 1 al. c) do C.P., já que está aqui em causa a prática do crime de ofensa à integridade física do A. por negligência, contando-se o prazo de prescrição do dia do acidente, ou seja 4 de Abril de 2015, mas devendo a prescrição considerar-se interrompida pelo reconhecimento do direito de indemnização, efetuado pela R. perante o A., já que tendo sido participado o acidente, foi este assumido pela R., até à data da alta definitiva em 3 de Dezembro de 2015, pagando todas as despesas médicas e medicamentosas do A. (cfr. Art. 325.º do C.C.), passando o prazo dos 5 anos a contar a partir de 4 de Dezembro de 2015.
Por despacho de 30 de novembro de 2020 (Ref.ª n.º 49309987 - p.e.), foi deferida à requerida citação urgente, nos termos do Art. 561.º do C.P.C., a qual se operou materialmente no dia 7 de dezembro de 2020 (cfr. “Aviso de Receção” de 23-12-2020 – Ref.ª n.º 3993894 - p.e.).
A R. veio então contestar a ação, logo aí alegando a prescrição da obrigação de indemnização, reconhecendo que o acidente ocorreu em 4 de Abril de 2015 e que em 3 de Dezembro de 2015, escreveu ao A. assumindo a sua responsabilidade pelo acidente, o que determina a interrupção do prazo prescricional (Art. 325.º n.º 1 do C.C.), anulando o prazo anteriormente decorrido e recomeçando a sua contagem, face ao disposto no Art. 326.º do C.C.. No entanto, esse ato interruptivo da prescrição nem sequer se teria operado relativamente à R., porquanto não foi acompanhada de qualquer assunção de culpa pelo seu segurado, pelo menos de que se tenha conhecimento. Em todo o caso, a R. só teria sido citada a 7/12/2020, a ação só foi instaurada em 27/11/2020 e nunca anteriormente havia sido notificada judicialmente pelo A. visando a interrupção da prescrição, sendo que o prazo prescricional é de 3 anos, e não de 5 anos , como o A. defende, pelo que o mesmo terminou em 5 de Abril de 2018 (Art. 279.º al.s b) e c) do C.C.), não tendo existido qualquer procedimento criminal contra o condutor do veículo segurado. Por outro lado, ainda que a tese do prazo prescricional alargado fosse aceita, o mesmo teve termo em 5 de Abril de 2020, sendo que ação foi interposta em 27/11/2020, muito tempo depois do termo do prazo prescricional.
Pretendeu assim que fosse julgada procedente essa exceção perentória, com a sua consequente absolvição do pedido, sem prejuízo de ter impugnado os demais factos alegados na petição inicial.
Findos os articulados, veio a ser designada audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho saneador, que apreciou logo a exceção perentória de prescrição, julgando a mesma improcedente por não provada, tendo os autos prosseguido quanto ao mais os seus ulteriores termos.
É da concreta decisão, proferida no despacho saneador, que julgou a improcedência da alegada exceção perentória de prescrição, que a R. vem agora interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
A) O presente recurso sobre da decisão tomada em sede de Despacho Saneador e que conclui pela inexistência de prescrição, como alegado e defendido pela Recorrente, decisão esta de que a Recorrente discorda.
B) Aliás, mesmo na tese do Tribunal e face à matéria controvertida, deveria este ter remetido o seu conhecimento para momento posterior.
C) Temos por assente que o acidente ocorreu em 4 de Abril de 2015, tendo a ação sido interposta em 27.11.2020 e a Recorrente citada para a mesma em 07/12/2020, para além de que não resulta dos autos que a Recorrente tenha sido anteriormente notificada judicialmente pelo Recorrido visando a interrupção da prescrição.
D) Alega a Recorrida, sob o nº 17 da sua p.i., que em 3 de Dezembro de 2015 a Recorrente emitiu uma declaração de alta de curado sem incapacidade para o trabalho, juntando para tal um documento, sendo que este documento é um mero “boletim informativo da situação clínica” assinado pelo médico, o qual não tem poderes para obrigar a Recorrente no que respeita à assunção de responsabilidade.
E) Uma avaliação clínica não pode consubstanciar uma assunção de responsabilidade, tanto mais que ela decorre no período em que a Recorrente ou uma qualquer outra Seguradora procede à análise dos factos e à avaliação das suas responsabilidades, que pode ou não concluir pela sua existência.
F) Não pode inferir-se pela emissão de tal documento , a aceitação de qualquer culpabilidade no acidente por parte da Recorrente, à data da sua emissão, sendo que a Recorrente na sua contestação impugnou o alegado no artº 17 da p.i. (vd. Art 57 da contestação).
G) O que está aceite e foi desconsiderado pela decisão recorrida é que em 27.06.2015 a Recorrente procedeu ao pagamento de €3.849,91, como decorre do alegado pelo Recorrido no artº 16 da sua pi. e aceite por aquela no artº 59 da contestação
H) Assim, a interrupção do prazo prescricional ocorreu com este pagamento em 27.06.2015 e não em 3.12.2015, pelo que o prazo prescricional dos 5 anos – e aceita-se neste ponto o argumentário do Tribunal recorrido quando aos danos constituírem ilícito criminal, ainda que não exista participação crime – iniciou nova contagem partir de 28/06/2015, o que determina que, à data da interposição da ação e maxime da citação da Recorrente, já os direitos do Recorrido se encontravam prescritos.
I) Sem prejuízo da ineficácia de tal documento médico de 3.12.2015, importa referir que sempre se teria então de entender que esse ato interruptivo da prescrição, no entender do Tribunal a quo, nem sequer opera relativamente à Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A., porquanto não foi acompanhada de qualquer assunção de culpa pelo seu segurado, pelo menos de que se tenha conhecimento, pois dos autos nada consta, nem alegado foi.
J) E este facto é relevante no entender da Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, como é o caso do Acórdão do STJ de 23.03.1995, publicado no BMJ, 445º-436 e anteriormente sumariado.
K) Aceitando-se que o prazo prescricional é de 5 anos , o mesmo terminaria em 28 de Junho de 2020 (Art. 279, alíneas B) e C) do CCivil) e não em 3.12.2020.
L) Entende-se, assim, que o Despacho Saneador recorrido violou o disposto nos Art.s 325º do CCivil e 576º, Nº 3 do CPCivil, pelo que merece censura.
Pede assim que seja concedido inteiro provimento ao recurso e, em consequência, que seja revogada a decisão proferida em despacho saneador, concluindo-se pelo reconhecimento da prescrição do direito do Recorrido, ou, se assim, não for entendido, que seja remetida para momento posterior o conhecimento da invocada exceção.
O A. não respondeu ao recurso, não apresentando contra-alegações.
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, em termos sucintos, a única questão a decidir é a de saber se poderia e deveria ter sido julgada por procedente a alegada exceção perentória de prescrição da obrigação de indemnização.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1- No dia 4 de Abril de 2015 ocorreu um despiste do veículo automóvel de matrícula xx-xx-xx, conduzido por Hugo …., em que o A. seguia como passageiro;
2- A responsabilidade emergente de acidente de viação relativa ao veículo de matrícula xx-xx-xx encontrava-se transferida, para a R.;
3- Na sequência do embate ocorrido, o A. sofreu ferimentos;
4- A presente ação deu entrada neste em 28 de Novembro de 2020;
5- O A. solicitou que se efetuasse citação prévia urgente da R., o que foi ordenado a 30 de Novembro de 2020;
6- A R. foi citada em 7 de Dezembro de 2020;
7- A R. aceitou a responsabilidade de indemnizar o A. pelos danos provocados pela conduta do seu segurado e procedeu a pagamento de despesas médicas do A.;
8- A 3 de Dezembro de 2015, a R. emitiu declaração de alta clínica ao A..
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Tudo visto, cumpre apreciar.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Como vimos a única questão a decidir tem a ver com a correção da decisão proferida pela primeira instância no sentido de julgar logo improcedente a exceção perentória, alegada pela R. na sua contestação, relativa à prescrição da obrigação de indemnização emergente de responsabilidade civil por acidente de viação que aqui se pretende acionar.
Nos termos do Art. 498.º n.º 1 do C.C. o direito a indemnização prescreve no prazo de 3 anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, ainda que não seja conhecida a pessoa do responsável ou a extensão integral dos danos.
O prazo prescricional conta-se assim do dia em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete. Ou seja, a partir da data em que o lesado sabe que se verificaram todos os factos que determinam a responsabilidade civil, assistindo-lhe em consequência o direito a uma indemnização.
Como refere Antunes Varela (in “Das Obrigações em Geral”, vol. 1.º, 10.ª Ed., pág. 626) o prazo prescricional conta-se «a partir da data em que ele [o lesado], conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade, soube ter direito à indemnização pelos danos que sofreu».
Para o início da contagem deste prazo prescricional basta o conhecimento da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, não sendo necessária a consciência da possibilidade de ressarcimento (cfr. Ac. T.R.L. de 9/6/2022 – Proc. n.º 6627/18.7T8ALM. L1-8 – Relatora: Maria do Céu Silva, disponível em www.dgsi.tp). Ou, por outras palavras, o que releva não é o conhecimento jurídico pelo lesado do respetivo direito, mas simplesmente o conhecimento dos factos constitutivos desse direito, como por exemplo, saber que o ato que obriga ao pagamento da indemnização foi praticado e que daí resultaram danos que se repercutiram na sua esfera jurídica (cfr. Ac. T.R.L. de 18/6/2018 – Proc. n.º 16681/18.6T8LSB.L1-7 – Relator: José Capacete, disponível no mesmo sítio).
O momento desse conhecimento pelo lesado, na maior parte dos casos – o que também se verifica no caso dos autos –, coincide com a data da ocorrência do acidente de viação do qual emerge a responsabilidade civil aqui pretendida fazer valer.
Portanto, o prazo prescricional teve o seu termo inicial em 4 de abril de 2015, data da ocorrência do acidente de que o A. foi vítima. Pelo que, em consequência da aplicação do disposto no Art. 498.º n.º 1 do C.P.C., a obrigação de indemnização poder-se-ia ter extinguido por prescrição no dia 5 de abril de 2018, pelo decurso integral de 3 anos.
Sucede que, foi alegado na petição inicial, que o acidente de viação em causa nesta ação foi motivado por um comportamento negligente do condutor do veículo segurado, que de forma inesperada foi embater num muro de proteção da berma da estrada, capotando o automóvel logo de seguida (cfr. artigo 5.º da petição inicial), sendo que o autor desses factos conduzia o veículo com uma taxa de alcoolemia de 1,77 mg/l e veio a assumir que o acidente se deu por sua culpa total (cfr. artigo 8.º da petição inicial). Mais, o A., que seguia nesse veículo como passageiro (cfr. artigo 2.º da petição inicial), sofreu diversas fraturas (cfr. Artigo 9.º), esteve internado e de baixa por doença durante  meses (cfr. artigos 10.º a 12.º da petição), sendo explicitamente invocado que todos estes factos integrariam a previsão do crime de ofensas à integridade física do A., na forma negligente (cfr. artigo 71.º da petição inicial). O que, em abstrato, a provarem-se estes factos, tal como alegados, facilmente se chegará à conclusão de que assiste razão ao A. na imputação criminal que efetuou.
Estes factos são mesmo suscetíveis de preencher a previsão do Art. 148.º n.º 1 do C.P., que estabelece que: «Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias».
Ora, por força do Art. 498.º n.º 3 do C.C.: «Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável».
Considerando que o crime em causa será punível com pena de prisão até 1 ano, o prazo prescricional do procedimento criminal correspondente será de 5 anos, conforme decorre do Art. 118.º n.º 1 al. c) do C.P., onde se pode ler que: «1- O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: (…) c) Cinco anos, quando se trate de crimes punível com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos».
A razão de ser da lei, que nos parece muito clara, explica-nos Antunes Varela (in Ob. Loc. Cit., pág. 628), nos seguintes termos: «Desde que se admite a possibilidade de o facto, para efeitos de responsabilidade penal, ser apreciado em juízo para além dos três anos, transcorridos sobre a data da sua verificação, nada justifica que análoga possibilidade se não ofereça à apreciação da responsabilidade civil».
Américo Marcelino (in “Acidente de Viação e Responsabilidade Civil”, 1995, pág. 133), discorrendo ainda sobre o contexto da aplicação desta norma, acrescenta que: «O juiz cível não vai julgar criminalmente o responsável. O destino do processo crime que eventualmente se tenha instaurado é-lhe completamente indiferente. Decisivo apenas é que o juiz cível entenda, se sim ou não, os factos articulados, tais como desenhados pelo A., integram um crime culposo de dano ou ofensas corporais. (…) Se o A. alegou, e se vem a provar, que o R. circulando fora de mão, ou com desatenção ao tráfego, provocou a colisão de que resultaram os ferimentos, desenhado fica o crime culposo de ofensas corporais. Por isso, satisfeito está o primeiro requisito para que a prescrição seja de 5 anos. O segundo é provar-se o que se alega» (sublinhados nossos).
Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil Português”, II Direito das Obrigações, Tomo III, 2010, pág. 757), parece defender que a aplicação do Art. 498.º n.º 3 do C.C. dependerá apenas dos factos serem subsumíveis numa previsão penal.
A jurisprudência dos tribunais superiores é mais ou menos concordante quanto aos pressupostos da aplicabilidade do Art. 498.º n.º 3 do C.C..
Assim, defende-se geralmente que irreleva para a aplicação do alargamento do prazo prescricional previsto nesse preceito a circunstância de não ter sequer sido apresentada queixa crime para efeitos de início e instauração do correspondente procedimento criminal (neste sentido: Ac. T.R.L. de 16/6/2020 – Proc. n.º 1662/19.0T8PDL.L1-7 – Relatora: Cristina Silva Maximiano; Ac. T.R.G. de 14/5/2015 – Proc. n.º 3533/10.7TJVNF.G1 – Relator: Manuel Bargado; e T.R.E. de 26/5/2022 – Proc. n.º 1071/20.9T8TMR.E1 – Relator: Francisco Xavier). O que releva é apenas que o facto ilícito em causa constitua um crime, para o qual a lei preveja um prazo prescricional mais alargado (cfr. Ac. T.R.P. de 9/11/2021 – Proc. n.º 690/18.8T8ETR.P1 – relatora: Ana Lucinda Cabral; e Ac. T.R.G. de 29/9/2011 – Proc. n.º 481/10.4TbCBT-A.G1 – relatora: Conceição Bucho), não interessando sequer se houve processo-crime ou existência de condenação criminal, não impedindo a ação cível o facto do processo crime ter sido arquivado ou amnistiado (cfr. Ac. T.R.P. der 24/9/2020 – Proc. n.º 532/19.7T8PVZ-A.P1 – relatora: Alexandra Pelayo; Ac. T.R.C. de 28/1/2014 – Proc. n.º 631/09.3TBPMS.C1 – Relatora: Sílvia Pires; e Ac. T.R.E. de 7/4/2022 – Proc. n.º 6902/20.0T8STB.E1 – Relator: Tomé Carvalho). Mas para tanto é preciso provar que no caso concreto estão preenchidos todos os elementos essenciais do tipo legal de crime em referência, incluindo a culpa efetiva do autor das lesões (cfr. Ac.s do T.R.G. de 22/11/2018 – Proc. n.º 7317/15.8T8GMR.G1 – Relatora Maria Amália Santos; de 28/6/2018 – Proc. n.º 4077/17.1T8GRR.G1; de 8/2/2018  - Proc. n.º 1852/17.0T8GMR.G1 – Relatora: Purificação Carvalho; e Ac.s do T.R.E. de 27/6/2019 – Proc. n.º 2383/18.7T8STR.E1 – relator: Manuel Bragado; e de 8/3/2018 – Proc. n.º 590/17.9T8EVR.E1 – Relator: Mata Ribeiro). Nesse sentido, se a factualidade alegada for suscetível de preencher a previsão de crime a que corresponda prazo prescricional mais alargado, essa exceção só deve ser apreciada na sentença, e não no despacho saneador, pois só depois do julgamento se poderá produzir a prova sobre a culpa do agente autor do facto criminoso (cfr. Ac. T.R.G. de 16/4/2015 – Proc. n.º 442/13.1TJVNF.G1 – Relatora: Raquel Rego – todos os citados disponíveis em www.dgsi.pt).
Diremos assim que os factos alegados pelo A., na sua petição inicial, são efetivamente suscetíveis de preencher a previsão do crime previsto e punido no Art. 148.º n.º 1 do C.P.C., ao qual corresponderá um prazo prescricional penal de 5 anos. Mas, falta ainda provar esses factos, tal como alegados, porque a R. impugnou especificadamente diversos deles (cfr. artigos 51.º, 57.º, 63.º, 64.º, 66.º, 68.º e 70.º da contestação), o que não permite dar desde já por assente que se verificaram todos os factos alegados que possibilitariam a conclusão certa de que o acidente, e os consequentes danos corporais sofridos pelo A., se deram por comportamento negligente do condutor do veículo segurado pela R..
Portanto, a conclusão de que o prazo prescricional aplicável será o de 5 anos, por força da conjugação do Art. 498.º n.º 3 do C.C. com os Art.s 148.º n.º 1 e 118.º n.º 1 al. c) do C.P., e não o prazo geral de 3 anos, previsto no Art. 498.º n.º 1 do C.C., está ainda dependente de prova a produzir sobre os factos alegados na petição inicial. O que, evidentemente, condiciona a possibilidade de conhecimento da exceção perentória em causa, nos termos em que foi decidida pela decisão recorrida.
De facto, mesmo que se admita que a declaração de alta emitida pela R., em 3 de dezembro de 2015, corresponde a um ato de reconhecimento pela seguradora do direito à indemnização devida ao A., para os efeitos do Art. 325.º n.º 1 e n.º 2 do C.C. – coisa que a R., aqui Recorrente, evidentemente que põe em causa –, se chegarmos à conclusão de que o prazo prescricional aplicável é afinal o de 3 anos, por não se terem provado todos os factos suscetíveis de preencher a previsão do tipo, objetivo e subjetivo, do ilícito previsto no Art. 148.º do C.P., esse prazo terminaria a 4 de dezembro de 2018, sendo que a ação só deu entrada em juízo a 30 de novembro de 2020 e a R. só foi citada a 7 de dezembro de 2020.
Em suma, os autos ainda não forneciam todos os elementos de facto necessários à apreciação definitiva e segura sobre a procedência ou improcedência da exceção perentória de prescrição, porquanto subsiste matéria de facto controvertida relevante que pode determinar, segundo as várias soluções admissíveis em direito, decisões diversas daquela que foi sustentada no despacho saneador aqui recorrido.
A decisão recorrida, violou assim o disposto no Art. 595.º n.º 1 al. b) do C.P.C., por não poder conhecer imediatamente do mérito da causa, relativamente à exceção perentória de prescrição que apreciou, porquanto o estado do processo ainda não o permitia, sem necessidade de mais prova.
A apreciação dessa exceção deveria ter sido relegada para final, nos termos do Art. 595.º n.º 4 do C.P.C..
É neste sentido que julgamos procedentes as conclusões que sustentam a necessidade de revogação do despacho saneador na parte que apreciou de imediato a exceção da prescrição.
Resta fazer um pequeno excurso em matéria de custas.
O A., aqui Recorrido, não apresentou contra-alegações e não deu causa ao presente recurso. Logo não pode ser julgado como vencido, para efeitos de responsabilidade por custas (cfr. Art. 527.º n.º 2 do C.P.C.).
A R., aqui Recorrente, obteve ganho de causa no recurso. Não é, portanto, uma parte vencida. No entanto, responde pelas custas na medida do proveito que tirou da procedência da apelação (Art. 527.º n.º 1 “in fine” do C.P.C.).
Em todo o caso, não havendo encargos a considerar, nem direito a reembolso de custas de parte ao vencido (que não existe), em causa está apenas o pagamento da taxa de justiça (cfr. Art. 529.º do C.P.C.), que já se mostra assegurado, desde o início, pelo Recorrente. Nessa medida, nada mais há a pagar. Será isso mesmo o que deve ser decidido.
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, por provada, revogando o despacho saneador na parte em que decidiu de imediato pela improcedência da exceção perentória de prescrição da obrigação de indemnização, o qual é substituído pela decisão de relegar a apreciação da mesma exceção para momento ulterior, nomeadamente para a sentença final a proferir no processo, logo que produzida a prova necessária sobre os factos relevantes que ainda subsistem controvertidos e de cujo julgamento dependerá a apreciação segura da exceção em causa.
- Sem mais custas a pagar.
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Lisboa, 8 de novembro de 2022
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva