CAMINHO PÚBLICO
CAMINHO PEDONAL
ATRAVESSADOURO
ACÇÃO POPULAR
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Sumário

 I - O caminho será público se, desde tempos imemoriais, se encontra afeto ao uso direto e imediato do público, desde que a sua utilização satisfaça interesses coletivos de certo grau e relevância;
II - Do caminho público se distingue o mero atravessadouro ou atalho, destinado a encurtar o percurso entre determinados locais;
III - Constitui caminho do domínio público, e não mero atravessadouro, o caminho pedonal afeto ao uso direto e imediato do público e da comunidade local, desde tempos imemoriais, para aceder, além do mais, ao Centro de Saúde ou à rede viária de transportes públicos, ou, ainda, ao Mercado ou à igreja, sendo o mais curto e o menos íngreme, devendo entender-se que tal utilização satisfaz interesses coletivos de certo grau e relevância.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I- Relatório:
A e mulher, B, e C, vieram propor, em 18.5.2020, contra D e mulher, E, e o Município do Funchal, ação popular pedindo:
a) Se condenem os 1ºs RR. “a desobstruir o caminho público e repor a situação anterior à colocação do primeiro portão chapeado, com fechadura, do segundo portão gradeado, com fechadura, e do terceiro portão automatizado, com fechadura, designadamente retirar estes e quaisquer outros obstáculos, equipamentos ou infraestruturas que aí se encontrem, bem como a reconstruir tudo o que eventualmente, entretanto, tenham destruído do dito caminho público, por forma a repor a dominialidade pública do caminho e seja novamente usado pela comunidade geral”; bem como
b) Se condenem os 1ºs RR. “a pagar a quantia de € 100,00 (cem euros), a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 829-A do Código Civil, por cada dia que decorra, após o trânsito em julgado da sentença, sem que se mostre cumprido o que se estabelece no número anterior”; e
c) Se condene o R. Município “a garantir que os 1°s RR. procedam à desobstrução do caminho, retirando um primeiro portão chapeado, com fechadura, um segundo portão gradeado, com fechadura, e um terceiro portão automatizado, bem como quaisquer outros obstáculos, equipamentos ou infraestruturas que aí se encontrem, e ainda a reconstruir tudo o que eventualmente, entretanto, tenham destruído do dito caminho público, no dito prazo máximo de 15 (quinze) dias após o trânsito em julgado, sob pena de o fazer, em substituição dos 1ºs RR.”
Alegam, para tanto e em breve síntese, que os 1ºs RR., tendo adquirido em 31.10.2017 um imóvel em frente do imóvel que é propriedade dos AA., na freguesia de ..., concelho do Funchal, apropriaram-se de um caminho público pedonal ali existente com início na ... e termo no ..., que serve os AA. e as habitações vizinhas, bem como quaisquer transeuntes que o utilizam desde tempos imemoriais, por ser o mais curto e o menos íngreme entre a Estrada ... e o Caminho de ....
Seguindo os autos sob a forma de processo comum (cfr. despacho de 14.9.2020), e citados os demandados, apenas os 1ºs RR. apresentaram contestação, a qual foi mandada desentranhar e devolvida aos mesmos (cfr. despacho de 7.12.2021).
Por despacho de 24.1.2022, foram considerados confessados os factos articulados pelos AA. e, cumprido o disposto no nº 2 do art. 567 do C.P.C., os 1ºs RR. vieram juntar alegações escritas.
Em 14.3.2022, foi proferida sentença que, discorrendo sobre a natureza da ação popular e a constituição do domínio público, decidiu nos seguintes termos: “(…) O réu Município do Funchal vem esclarecer que apenas o ... se encontra em regime de dominialidade (caminho público), esclarecendo que o mesmo tem início na rua da Escola Secundária do ... e términus “sem saída” (terminando assim na ...), ou seja, os factos alegados pelos AA. quanto à existência de domininialidade pública em toda a extensão do dito Beco (o qual terminaria, na alegação dos AA. ao Caminho de ..., passando pela ...) não encontra acolhimento com o teor do documento junto pelos próprios AA. e elaborado pela Câmara Municipal do Funchal, ou seja, apenas parte do caminho conforme alegado pelos AA. é público, e ele é aquele que configura o “...”, com entrada mas sem saída, pelo que, parte do trajeto que os AA. alegam como público não o é, pois que não consta facto ou documento que permita concluir que o mesmo tenha sido objeto de apropriação ou produzido por uma pessoa coletiva de direito público, ou que sobre ela uma pessoa coletiva de direito público haja praticado atos de administração, jurisdição ou conservação, em toda a sua extensão, visando a satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância. Toda a alegação dos AA. vai no sentido de que o “caminho” em causa servirá para “encurtar distâncias”, ou seja, o que temos é a existência de um caminho de domínio público, que nem AA. nem RR. colocam em causa, e que se consubstancia no “...” sendo que, no fim deste, na ... até ao Caminho de ... o que temos é um atravessadouro (para encurtar caminhos o que favorece os AA. por serem pessoas idosas) não visando a satisfação de interesses coletivos de certo grau (relevantes) e não um Caminho Público com a extensão definida na Lei Lei n.° 83/95 de 31 de Agosto (Lei de Ação Popular).
Pelo exposto, das alegações e dos documentos juntos aos autos não é possível concluir pela existência de um caminho público conforme alegado pelos AA., ao qual possa ser atribuída relevância e utilização pública, para além do que resulta provado quanto ao ... na forma e extensão resultantes da declaração emitida pela Câmara Municipal do Funchal o qual não foi posto em causa pelos RR.
Procederá assim, totalmente, a presente ação.
(…).
III. Dispositivo  
Pelo exposto, julgo a ação totalmente improcedente, por não provada, e em consequência decido absolver os RR. dos pedidos contra eles formulados pelos AA..
Fixo à ação o valor de € 30.000,01 (trinta mil euros com um cêntimo).
Custas, solidariamente, a cargo dos AA., conforme decidido (cfr. art. 607.°do CPC).(…).”
Inconformados, interpuseram recurso os AA., apresentando as respetivas alegações que culminam com as conclusões a seguir transcritas:

A) por o Tribunal a quo ter julgado “provados por confissão todos os factos alegados pelos AA. na sua petição inicial os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos”, deveria ter, obrigatória e necessariamente, julgado totalmente procedente a ação.
B) Os ora apelantes alegaram, na sua petição inicial, todos os factos constitutivos dos pedidos formulados, designadamente da ação popular civil, estando os mesmos sustentados em prova documental.
C) Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto provada constante do supra articulado 8..
D) Em face da matéria de facto dada como provada, por sentença, o caminho sempre foi público e sempre esteve no uso directo e imediato do público.
E) Tal caminho nunca foi circunscrito a um círculo determinado de pessoas e sempre foi caracterizado pela indiscriminação.
F) O dito caminho sempre serviu todas as pessoas do lugar de ..., Funchal.
G) O uso do caminho, como demonstrado e provado, nunca foi circunscrito e sempre prosseguiu a satisfação de interesses colectivos ou comunitários relevantes, nomeadamente o acesso rápido a cuidados de saúde.
H) O caminho, que passa pela ... e o …, de uso imemorial, integra o domínio público.
I) Por conseguinte, há, de facto, na sentença uma contradição insanável entre a matéria de facto de facto provada, a fundamentação e a decisão.
J) Não consta da factualidade dada como provada que parte do trajecto não é público e que não visasse a satisfação de interesses colectivos;
K) Também não consta da factualidade dada como provada que “o “caminho” em causa servirá para “encurtar distâncias”, ou que se trate de “atravessadouro”.
L) Mais relevante, ainda, é a própria sentença, no último parágrafo da fundamentação de facto, declarar expressamente que “Procederá assim, totalmente, a presente ação” (negrito é nosso).
M) Deste modo, jamais a presente ação poderia improceder.
N) Face ao exposto, com o salvo devido respeito, a sentença é nula, nos termos da al. c) do n.° 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, devendo como tal ser declarada e substituída por outra que condene nos pedidos constantes da petição inicial e identificados no supra articulado 5.”
Pedem que seja declarada nula a sentença e substituída por outra que julgue a ação procedente e condene os RR. nos pedidos.
Em contra-alegações, vieram os 1º RR. pugnar pela manutenção do julgado, concluindo nos seguintes termos:

1. Os Réus, ora Apelados, concordam em absoluto, com a improcedência total da acção interposta pelos Autores, ora Apelantes;
2. Pelo facto, de não existir um caminho público entre a ... e a o Caminho da ...;
3. Na verdade, o ... tem o seu términus na ...;
4. Não existindo, por esse facto, qualquer caminho público na ..., e por conseguinte, no prédio propriedade dos Réus ora apelados,
5. Conforme, aliás, prova documental irrefutável, declaração do Município do Funchal, que declara a inexistência de qualquer caminho público na ...;
6. Assim sendo, não se poderá alegar que se vislumbra, na Douta sentença do Tribunal a quo, uma qualquer contradição insanável entre a decisão e a sua fundamentação, incluindo a matéria provada;
7. Até porque a matéria de facto provada, pela revelia dos Réus, é afastada pela referida prova documental;
8. O estatuído na declaração camarária afasta, aliás, pela sua imperatividade, qualquer alegação dos Autores ou confissão dos Réus;
9. Não se vislumbrando, na Douta sentença do Tribunal a quo, qualquer contradição insanável entre a decisão e a sua fundamentação, incluindo a matéria provada;
10. Todo o espírito da fundamentação da sentença, e a sua conclusão vai de encontro à improcedência total da acção;
11.Que, aliás, se conclui através de uma leitura e uma interpretação atenta;
12. E o facto de no último parágrafo da fundamentação de facto se declarar "Procederá assim, totalmente a presente acção, só poderá se concluir, se tratar de um lapso manifesto, contrário à fundamentação e à conclusão da Douta sentença;
13. Até porque o espírito da sentença é a improcedência da acção e não a sua procedência;
14. Concluindo-se, por isso, que outra interpretação não se poderá efectuar, que não seja a improcedência total da acção requerida pelos Autores;
15. Até porque, a douta decisão não contraria a matéria de facto provada, refutada por uma prova documental, a declaração camarária.”
Em despacho de 21.7.2022, procedeu-se à retificação da sentença, ao abrigo dos arts. 613 e 614 do C.P.C., determinando-se que “onde se lê «Procederá assim, totalmente, a presente ação» passar-se-á a ler «Improcederá assim, totalmente, a presente ação» (sublinhado nosso).”
Mais se entendeu não ocorrer a invocada nulidade da sentença, admitindo-se o recurso, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II- Fundamentos de Facto:
Na sentença foram considerados “provados por confissão todos os factos alegados pelos AA. na sua petição”, tendo os AA. alegado textualmente:

1) Os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio urbano térreo, coberto de telha com 2 divisões, cozinha e sanitária, afecto à habitação, localizado à Rua Escola Secundária do ..., n.º 32 Porta 5, freguesia de ..., concelho do Funchal, inscrito na matriz com o n.º ..., e não descrito na Conservatória do Registo Predial. Doc. 1
2) Em frente do imóvel dos AA., localiza-se o imóvel dos 1°s RR., donos e legítimos proprietários de um prédio urbano habitacional, localizado à Rua Escola Secundária do ... ..., n.° 32 Porta 7, freguesia de ..., concelho do Funchal, inscrito na matriz com o n.º 2442, e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.° 611. Docs. 2 e 3
3) Junto aos imóveis dos AA. e dos 1ºs RR. sempre existiu um caminho pedonal público, que era único, de ligação entre a Estrada ... e o Caminho de ....
4) O dito trajecto, do lado Estrada da ..., inicia-se na ... (Docs. 4 a 6), próximo à actual Escola Básica do ..., e termina no fim … (Doc. 7), que fica junto ao actual Centro de Saúde de ..., como se pode verificar pela planta cadastral que se junta como Docs. 8 e 9.
5) Este caminho pedonal sempre foi usado, quer pelos AA., quer pelas pessoas de habitações vizinhas, bem como por quaisquer outros transeuntes, e pelos seus antecessores, como ligação entre a Estrada ... e o Caminho de ....
6) Este caminho, no passado, era de pedra e terra batida.
7) E, actualmente, o caminho está acimentado, sendo dotado de iluminação pública (Docs. 10 e 11).
8) De facto, este trajecto público está definido e existe desde há mais de 20, 30, 40, 50, 100 e mais anos, perdendo-se da memória dos homens vivos a sua origem, tendo sido, desde sempre, livre e francamente utilizado, a pé.
9) Este caminho sempre serviu a população do lugar ..., Funchal, para que o público e os AA. pudessem tomar o autocarro que passava pelo Caminho de ...;
10) E para que o público e os AA. pudessem ir, e regresso, ao Mercado de ...;
11) E ainda ir, e regresso, ao antigo Centro de Saúde da ... que servia a população do lugar de ....
12) Ou ainda à igreja dos ....
13) O público e os AA. usavam o caminho por ser o mais curto e o menos íngreme entre a Estrada ... e o Caminho de ....
14) Mesmo após a construção recente da Rua Escola Secundária do ..., o dito caminho público pedonal continua, ainda, a ser o mais curto e o menos íngreme.
15) Os 1ºs RR., logo após a celebração, em 31/10/2017, da escritura pública de compra e venda (cfr. Docs. 2 e 3), edificaram e instalaram, unilateralmente, no meio da ..., próximo à sua residência, uma porta de ferro, com fechadura - Doc. 12 que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
16) Seguidamente, os 1°s RR., unilateralmente, edificaram e instalaram um segundo portão gradeado, com fechadura, na ..., junto à esquina da residência destes - Doc. 13 que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
17) E, por fim, instalaram, unilateralmente, um terceiro portão automatizado, com fechadura, na ..., junto à casa dos 1ºs RR. e dos 1ºs AA, para os 1ºs RR. estacionarem os seus veículos automóveis - Docs. 14 a 20 que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos (para melhor identificação do local marcou-se como ponto C no Doc. 9).
18) Com a edificação e instalação de tais portões, os 1°s RR. apoderaram-se, ilegitimamente, de parte do caminho pedonal público, fazendo sua tal área;
19) Impedindo ao público de utilizar e usar o dito caminho pedonal, como sempre foi feito por qualquer pessoa, quer no seu sentido descendente e ascendente.
20) E, para além, de impedir a todas as pessoas a utilização do caminho pedonal público, obrigam os 1ºs RR., que o público, bem como os AA., como já se referiu nos supra articulados 13° e 14°, tenha que utilizar um caminho/percurso muito mais longo e de acentuada inclinação para poderem ir ao Centro de Saúde de ... ou ao Mercado da ..., nomeadamente. cfr. Docs. 8 e 9
21) O dito caminho é muito essencial para os AA., por serem pessoas idosas se moverem com dificuldade, para aceder ao Centro de Saúde, onde têm consultas frequentes;
22) Bem como, impedem, ainda hoje, o acesso rápido à rede viária para aceder à rede de transportes públicos localizada no Caminho de ....”
*
III- Fundamentos de Direito:
São as conclusões que delimitam o objeto do recurso (art. 635, nº 4, do C.P.C.). Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
Compulsadas as conclusões da apelação, cumpre decidir:
- da nulidade da sentença (art. 615, nº 1, al. c), do C.P.C.);
- se é público o caminho pedonal de ligação entre a Estrada ... e o Caminho de ..., que tem início na ... e termina no fim ..., na freguesia de ..., concelho do Funchal, e respetivas consequências.
A) Da nulidade da sentença (art. 615, nº 1, al. c), do C.P.C.):
Dizem os apelantes que a sentença é nula, nos termos da al. c) do nº 1 do art. 615 do C.P.C., porque há contradição insanável entre a matéria de facto de facto provada, a fundamentação e a decisão, além de que no último parágrafo da fundamentação de facto se declara expressamente que “Procederá assim, totalmente, a presente ação”, concluindo-se depois pela sua improcedência.
Vejamos.
As nulidades da decisão previstas no art. 615 do C.P.C. de 2013 – à semelhança do que sucedia com as antes previstas no art. 668 do C.P.C. de 1961 – são deficiências da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento.
O erro de julgamento corresponde a uma desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjetivo) aplicável. Haverá erro de julgamento, e não deficiência formal da decisão, se o tribunal decidiu num certo sentido, embora mal à luz do direito.
Haverá, designadamente, nulidade da sentença, quando “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” (al. c) do nº 1 do art. 615).
Regressando ao caso em análise, não podemos ter como verificada a nulidade arguida.
Desde logo, com a retificação levada a cabo com o despacho de 21.7.2022, onde se determinou que “onde se lê «Procederá assim, totalmente, a presente ação» passar-se-á a ler «Improcederá assim, totalmente, a presente ação» (sublinhado nosso)”, ficou ultrapassada a última contradição assinalada.
Já no que respeita à invocada contradição entre a matéria de facto de facto provada, a fundamentação e a decisão, estamos claramente fora do âmbito de qualquer vício de forma.
Na verdade, os apelantes afirmam que a sentença é nula, nos termos da al. c) do nº 1 do art. 615 do C.P.C., porque existe contradição entre os factos provados, a fundamentação e a decisão, não podendo concluir-se de forma contrária à matéria de facto dada como provada.
Em rigor, a discordância manifestada reporta-se ao que foi sentenciado, sustentando-se que a matéria dada como provada por acordo das partes justifica uma decisão diversa.
Por conseguinte, os apelantes não invocam nenhum vício formal da sentença, antes aludindo a um erro de julgamento, defendendo que o Tribunal a quo fez, afinal, uma incorreta aplicação do direito tendo em conta os factos julgados assentes, dado que estes conduzem à procedência da causa e não à sua improcedência.
Ora, a questão de saber se foi feita inadequada subsunção jurídica dos factos corresponderá a eventual erro de julgamento, pelo que a objeção dos apelantes nada tem que ver com a deficiência formal da decisão, nem se enquadra em nenhuma das alíneas do nº 1 do art. 615 do C.P.C..
Em suma, não ocorrem as nulidades arguidas.
B) Da natureza do caminho pedonal em apreço e respetivas consequências:
Recordamos que os AA. vieram propor ação popular contra os 1ºs RR. alegando que estes se apropriaram, em 2017, de parte de um caminho público pedonal existente junto às casas de ambos na freguesia de ..., concelho do Funchal, com início na ... e termo no fim ..., caminho esse que sempre serviu a população do lugar ..., Funchal, serve os AA. e as habitações vizinhas, bem como quaisquer transeuntes que o utilizam desde tempos imemoriais, por ser o mais curto e o menos íngreme entre a Estrada ... e o Caminho de ....
Pedem, no essencial, que os 1ºs RR. sejam condenados a desobstruir esse caminho público e a repor a situação anterior, bem como a pagar, se o não fizerem, a quantia de € 100,00, a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 829-A do C.C., por cada dia que decorra desde o trânsito em julgado da sentença, e ainda que se condene o R. Município a garantir que os 1ºs RR. procedem à referida desobstrução do caminho.
Na sentença, entendeu-se, no essencial, que, tratando-se de uma ação popular, teriam os AA. de alegar e comprovar que se encontravam no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos, o que não sucedeu, daí resultando a ilegitimidade dos AA.. Considerando, no entanto, que cabia conhecer do litígio, e que um “caminho público” assume maior relevância do que um “simples atravessadouro”, sustentou-se que os factos alegados e dados como provados são insuficientes para preencher o conceito em causa a fim de viabilizar a pretensão dos AA..
Vejamos.
O art. 52 da Constituição da República Portuguesa estabelece o direito de petição e o direito de ação popular, prevendo, no seu nº 3, que: “É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.”
A Lei nº 83/95, de 31.8, veio, por sua vez, definir as condições em que, além do mais, é conferido e pode ser exercido o direito à ação popular, para prevenção, cessação ou perseguição judicial das infrações previstas no referido nº 3 do art. 52 da C.R.P. (art. 1), estabelecendo que poderá ser titular desse direito qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, independentemente de ter ou não interesse direto na demanda (art. 2, nº 1).
Nos termos do nº 2 do art. 1 da referida Lei nº 83/95: “(…) são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.”
Ainda de acordo com o nº 2 do art. 12 da mesma lei, “A ação popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil.”
Nos processos de ação popular, o demandante representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão (arts. 14 e 15 da Lei nº 83/95).
No caso, os AA. visam defender o interesse relativo ao domínio público de um conjunto de pessoas – os AA., as pessoas de habitações vizinhas, quaisquer outros transeuntes e seus antecessores, no geral a população do lugar ..., Funchal – sobre um caminho pedonal que estarão impedidas de gozar por atuação dos RR..
Assim estruturada a causa, e não tendo sido minimamente questionado que os AA. estejam no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos, não pode, a nosso ver, em contrário concluir-se que os mesmos não têm legitimidade para a interpor.
Cremos, por isso, que a ação popular instaurada é a adequada à pretensão formulada pelos AA..
Aqui chegados, cumpre averiguar se os factos alegados na petição inicial, considerados provados por confissão, permitem concluir que o referido caminho público pedonal, com início na ... e termo no fim ..., na freguesia de ..., concelho do Funchal, integra o domínio público.
Em primeiro lugar, cumpre salientar que nomeadamente as referências à natureza pública do caminho constantes da petição inicial serão de excluir, posto que correspondem a uma conclusão de direito, não constituindo uma questão de facto.
Por sua vez, há que ter em conta que os factos articulados pelos AA. foram considerados confessados por ausência de contestação, nos termos do nº 1 do art. 567 do C.P.C., pelo que a prova que os justifica não decorre dos documentos juntos – com ressalva daqueles para que se remeta diretamente ou cujo teor se tenha dado como reproduzido – mas apenas da alegação não contrariada.
Sobre a matéria da natureza pública do caminho, cabe recordar que o Assento do STJ nº 7/89, de 19.4.89([1]), hoje com o valor de acórdão de uniformização de jurisprudência, veio estabelecer que: “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.”
Pôs-se, assim, termo à controvérsia jurisprudencial existente sobre o que deveria entender-se por caminho público. Até então, uns consideravam públicos os caminhos sempre que eles estivessem no uso direto e imediato do público, enquanto outros defendiam que só deviam considerar-se caminhos públicos aqueles que, além de se encontrarem no uso direto e imediato do público, tivessem sido administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito público e se encontrassem sob a sua jurisdição.
Segundo Marcelo Caetano([2]): “(…) A utilidade pública consiste na aptidão das coisas para satisfazer necessidades colectivas.”
Ainda segundo o mesmo autor([3]):“(…) A atribuição do carácter dominial depende de um, ou vários, dos seguintes requisitos:
a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria do domínio público;
b) declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe;
c) afectação dessa coisa à utilidade pública.
Não é forçoso que concorram estes três requisitos: um só pode bastar (…).”
Em todo o caso, o Assento, interpretado em termos literais, levaria a considerar que os atravessadouros com posse imemorial seriam qualificados como caminhos públicos, contrariando o que, com longa tradição, se dispõe no art. 1383 do CC. sobre a abolição dos atravessadouros([4]).
Foi-se, por isso, defendendo, de modo a não pôr em causa o disposto no referido art. 1383 do C.C., que tal Assento deveria ser interpretado restritivamente, no sentido de o uso do caminho visar a satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância, sob pena de não ser lícito o reconhecimento da dominialidade pública, como bem se explicou, entre outros, no Ac. do STJ de 18.5.2006([5]).
Sobre o conceito de caminho público, afirmou-se no citado aresto: “(…) O caminho é a faixa de terreno por onde se transita e a expressão público significa o povo, a população ou os habitantes que pretendam e realizem directa e imediatamente esse trânsito.
O referido uso directo e imediato do caminho pelo público envolve, como é natural, a sua utilidade pública, ou seja, a sua afectação a utilidade pública, isto é, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos.
É essa característica de afectação do caminho à utilidade pública, isto é à satisfação de interesses colectivos relevantes, que distingue os caminhos públicos dos atravessadouros.
A expressão tempo imemorial significa o tempo passado que já não consente a memória humana directa de factos, ou seja, quando os vivos já não conseguem percepcioná-los pelo recurso à sua própria memória ou ao relato da sua verificação pelos seus antecessores.(…).”
Do mesmo modo, e mais recentemente, se concluiu no Ac. do STJ de 7.2.2017([6]): “(…) desde cedo, se tenha defendido que o aludido Assento deveria ser interpretado restritivamente: no sentido de o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, sem a qual não é lícito o reconhecimento da dominialidade pública[7].
Assim, a qualificação de um caminho, como público, poderá basear-se no seu simples uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais (nos termos do Assento, com a referida interpretação); mas também poderá fundar-se em ser ele propriedade de entidade de direito público e estar afectado à utilidade pública.(…).
(…) não se demonstrando que o caminho tenha sido produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva pública ou que por esta seja administrado, a sua dominialidade só pode fundamentar-se no uso directo e imediato do público.(…).”
Assim, e segundo entendimento dominante na jurisprudência do STJ([7]), público será o caminho que, desde tempos imemoriais, se encontra afeto ao uso direto e imediato do público, desde que a sua utilização satisfaça interesses coletivos de certo grau e relevância.
Por sua vez, tempo imemorial significa o tempo passado que já não consente a memória humana sobre o início desse uso. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela([8]) “(…) é imemorial a posse, se os vivos não sabem quando começou; não o sabem por observação directa, nem o sabem pelas informações que lhes chegaram dos seus antecessores.(…).”
Do caminho público se distingue o mero atravessadouro ou atalho, destinado a encurtar o percurso entre determinados locais.
Assim se explicou no Ac. do STJ de 13.3.2008([9]): “(…) A satisfação de interesses colectivos relevantes – que não uma mera soma de interesses individuais de conveniência – é ponto inicial do “distinguo” entre caminho público e atravessadouro.
j) Os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios particulares, com o fim essencial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus leitos parte integrante dos prédios atravessados. Já os caminhos públicos destinam-se a estabelecer ligações de maior interesse, em geral entre povoações, e os respectivos leitos fazem parte do domínio público.
k) Ou seja, um caminho, no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se ocorrer afectação naqueles termos; mas se visar apenas o encurtamento, não significativo, de distâncias, deverá classificar-se como atravessadouro, se o leito pertencer ao prédio atravessado.”
Veja-se, ainda, o assinalado no Ac. do STJ de 21.1.2014([10]): “(…) o atravessadouro não deixa de ser um caminho, embora alternativo e destinado a encurtar distâncias (atalho), ligando, normalmente, caminhos públicos através de prédio(s) particular(es), cujo leito faz parte integrante do prédio atravessado.
Constitui, assim, uma serventia pública, usada por uma pluralidade de pessoas, sem discriminação, de modo que, quando haja posse imemorial, teria ou poderia ser qualificado como caminho público, numa interpretação literal do Assento, o que, além de confundir realidades distintas, violaria o Artº 1383º do C.C. que aboliu os atravessadouros por mais antigos que sejam.
Não há, de facto, que confundir atravessadouro, tal como acima ficou definido, como caminho público.
É que, na caracterização do caminho público pesam interesses colectivos de particular relevância bem superiores aos que definem os atravessadouros, como a ligação entre povoações ou lugares, além de que, também os seus leitos são públicos.
O uso comum do caminho público destina-se à satisfação da utilidade pública e não é apenas a uma soma de utilidades individuais de vizinhos como acontece com os atravessadouros.
Resumindo, dir-se-á que o uso directo e imediato do público em geral, quando imemorial, bastará para caracterizar um caminho como público, mas é ainda necessário acrescentar que esse uso público deve refletir a sua afectação à utilidade pública, ou seja, à satisfação de interesses colectivos de significativo grau ou relevância.(…).”
Seguindo esta linha de raciocínio, voltemos ao caso sub judice e aos factos tidos como assentes, porque confessados os que foram articulados pelos AA. na ausência de contestação.
Os AA. são proprietários do prédio urbano térreo, afeto à habitação, localizado à Rua Escola Secundária do ..., nº 32 Porta 5, freguesia de ..., concelho do Funchal, em frente do qual se situa o imóvel de que os 1ºs RR. são proprietários, destinado à habitação, também localizado à Rua Escola Secundária do ..., nº 32 Porta 7, freguesia de ..., concelho do Funchal.
Junto a estes imóveis sempre existiu um caminho pedonal, que era único, de ligação entre a Estrada ... e o Caminho de ....
Tal caminho, do lado da Estrada ..., inicia-se na ..., próximo à atual Escola Básica do ..., e termina no fim ..., que fica junto ao atual Centro de Saúde de ....
O mesmo sempre foi usado, quer pelos AA., quer pelas pessoas de habitações vizinhas, bem como por quaisquer outros transeuntes, e pelos seus antecessores, como ligação entre a Estrada ... e o Caminho de ..., estando definido e existindo desde há mais de 20, 30, 40, 50, 100 e mais anos, perdendo-se da memória dos homens vivos a sua origem, tendo sido, desde sempre, livre e francamente utilizado, a pé.
O referido caminho era de pedra e terra batida, estando atualmente cimentado e dotado de iluminação.
O referido caminho sempre serviu a população do lugar ..., Funchal, para que o público e os AA. pudessem tomar o autocarro que passava pelo Caminho de ... e para que o público e os AA. pudessem ir e vir ao Mercado de ... e, ainda, ir e vir ao antigo Centro de Saúde da ... que servia a população do lugar de ... ou à igreja dos ....
O público e os AA. usavam o caminho por ser o mais curto e o menos íngreme entre a Estrada ... e o Caminho de ... e, mesmo após a construção recente da Rua Escola Secundária do ..., o dito caminho pedonal continua a ser o mais curto e o menos íngreme.
Mais resulta provado que os 1ºs RR., logo após a celebração, em 31.10.2017, da escritura pública de compra e venda do imóvel respetivo, edificaram e instalaram, unilateralmente, no meio da ..., próximo à sua residência, uma porta de ferro, com fechadura, e depois, um segundo portão gradeado, com fechadura, na ..., junto à esquina da residência destes e, por fim, instalaram, unilateralmente, um terceiro portão automatizado, com fechadura, na ..., junto à casa dos 1ºs RR. e dos 1ºs AA., para estacionarem os seus veículos automóveis, com o que se apoderaram de parte do referido caminho pedonal, fazendo sua tal área, impedindo o público de utilizar e usar o dito caminho pedonal, como sempre foi feito por qualquer pessoa, no seu sentido descendente e ascendente.
Para além de impedir a todas as pessoas a utilização do caminho pedonal, obrigam os 1ºs RR., que o público, bem como os AA., tenham que utilizar um caminho/percurso muito mais longo e de acentuada inclinação para poderem ir ao Centro de Saúde de ... ou ao Mercado da ..., nomeadamente, impedindo o acesso rápido à rede viária para aceder à rede de transportes públicos localizada no Caminho de ....
Mais se apurou que o mencionado caminho é essencial aos AA., por serem pessoas idosas e se moverem com dificuldade, para aceder ao Centro de Saúde, onde têm consultas frequentes.
Os apelantes sustentam no recurso que resulta da matéria descrita que estamos perante um caminho público, de uso imemorial, afeto à satisfação de interesses coletivos ou comunitários relevantes, designadamente o acesso a cuidados de saúde.
Na sentença, por sua vez, entendeu-se que resulta dos aludidos factos que tal caminho apenas servirá para encurtar distâncias, pelo que, no fim do ..., na ... até ao Caminho de ..., o que existe “é um atravessadouro (para encurtar caminhos o que favorece os AA. por serem pessoas idosas) não visando a satisfação de interesses coletivos de certo grau (relevantes) e não um Caminho Público com a extensão definida na Lei n.° 83/95 de 31 de Agosto (Lei de Ação Popular).”
Como acima vimos, o uso comum de um caminho público destina-se à satisfação da utilidade pública, não correspondendo à soma de utilidades individuais de vizinhos, típica dos atravessadouros.
Também à definição de caminho público não basta o uso direto e imediato do público em geral, desde tempos imemoriais, sendo relevante que essa utilização satisfaça interesses coletivos de certo grau e relevância (como a ligação entre povoações ou lugares).
Nenhuma dúvida haverá de que o caminho aqui em apreço sempre foi usado a pé, quer pelos AA., quer pelas pessoas de habitações vizinhas, bem como por quaisquer outros transeuntes, e pelos seus antecessores, desde tempos imemoriais, como ligação entre a Estrada ... e o Caminho de ..., caminho que era de pedra e terra batida, estando atualmente cimentado e dotado de iluminação. Tal caminho sempre serviu a população do lugar ..., Funchal, para que o público e os AA. pudessem tomar o autocarro que passava pelo Caminho de ... e para que o público e os AA. pudessem ir e vir ao Mercado de ... e, ainda, ir e vir ao antigo Centro de Saúde da ... que servia a população do lugar de ..., ou à igreja dos ....
O público e os AA. usavam esse caminho por ser o mais curto e o menos íngreme entre a Estrada ... e o Caminho de ... e, mesmo após a construção recente da Rua Escola Secundária do ..., o dito caminho pedonal continua a ser o mais curto e o menos íngreme.
Existe, pois, atualmente, um caminho/percurso alternativo mais longo e de acentuada inclinação para aceder ao Centro de Saúde de ... ou ao Mercado da ..., nomeadamente, sendo certo que, como também resulta provado, o dito caminho constituí um acesso rápido à rede viária para aceder à rede de transportes públicos localizada no Caminho de ... (artigo 22º da p.i.).
Será, naturalmente, irrelevante, no âmbito da presente ação popular e face à natureza da mesma, ter ficado provado que esse caminho é essencial aos AA., por serem pessoas idosas e se moverem com dificuldade, para aceder ao Centro de Saúde, onde têm consultas frequentes.
Encontra-se, deste modo, comprovado, de forma bastante, um uso direto e imediato do público em geral, desde tempos imemoriais, do referido caminho pedonal.
E cremos poder afirmar que esse uso se destina à satisfação de interesses coletivos de significativo grau ou relevância, com o que se cumpre a definição de caminho público que vimos defendendo, na linha do entendimento dominante na jurisprudência do STJ.
Na verdade, está suficientemente demonstrada a utilização do caminho pedonal entre a Estrada ... e o Caminho de ... pela comunidade local, desde tempos imemoriais, para aceder, além do mais, ao Centro de Saúde da ... (que servia a população do lugar de ...) ou à rede viária de transportes públicos localizada no Caminho de ..., ou, ainda, ao Mercado de ... ou à igreja dos ..., sendo o mais curto e o menos íngreme. O que permite concluir que tal utilização satisfaz interesses coletivos de certo grau e relevância os quais, ao contrário do entendimento seguido em 1ª instância, não se reconduzem aos benefícios retirados dos meros atravessadouros a que se refere o art. 1383 do C.C..
O que significa que podemos qualificar como caminho do domínio público o referido caminho pedonal de ligação entre a Estrada ... e o Caminho de ..., iniciando-se na ..., próximo à atual Escola Básica do ..., e terminando no fim ..., que fica junto ao atual Centro de Saúde de ....
Pelo que, comprovando-se que os 1ºs RR. edificaram e instalaram, unilateralmente, no meio da ..., próximo à sua residência, uma porta de ferro, com fechadura, e depois, um segundo portão gradeado, com fechadura, na ..., junto à esquina da residência destes e, por fim, instalaram, unilateralmente, um terceiro portão automatizado, com fechadura, na ..., junto à casa dos 1ºs RR. e dos 1ºs AA., para estacionarem os seus veículos automóveis, com o que se apoderaram de parte do referido caminho pedonal, fazendo sua tal área, e impedindo o público de utilizar e usar o dito caminho pedonal, devem os mesmos ser condenados a remover tais obstáculos.
Note-se que os AA. não formulam um pedido expresso no sentido do reconhecimento do referido caminho como público, mas é legítimo concluir que tal pedido se contém, implicitamente, no de condenação dos 1ºs RR. a “a desobstruir o caminho público e repor a situação anterior(…)”.
Assim, deve proceder o pedido de declaração do indicado caminho pedonal como público, bem como o de condenação dos 1ºs RR. a remover os obstáculos que ali colocaram impedindo o seu uso.
Já o pedido de condenação dos 1ºs RR. no pagamento da quantia de € 100,00, a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do art. 829-A do C.C., não pode proceder.
Com efeito, estabelece o art. 829-A, nº 1, do C.C., que: “Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.”
Por força deste normativo, a sanção pecuniária compulsória só é devida no caso de prestação de facto infungível.
Como diz Calvão da Silva([11]): “(…) o legislador não consagrou a sanção pecuniária compulsória como mecanismo coercitivo de aplicação em geral, antes a limitou às obrigações de non facere ou de facere cujo cumprimento exige a intervenção insubstituível do devedor, com exceção das que requeiram especiais qualidades científicas ou artísticas. O que significa que o legislador concebeu a sanção pecuniária compulsória como processo coercitivo de aplicação subsidiária, destinada a colmatar a lacuna, existente no nosso sistema jurídico, devida à inidoneidade da execução para realizar in natura as prestações de facto infungíveis.(…).”
Refere, pois, o mencionado autor que o legislador confinou esta sanção às obrigações de carácter pessoal, fazendo dela um processo subsidiário, aplicável onde a execução específica não tem lugar.
Pelo que, tal sanção visa favorecer a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis.
A prestação de facto será infungível pela própria natureza do facto (natural) ou em razão do que ficou convencionado (contratual). Será, por sua vez, fungível se para o credor for indiferente, jurídica e economicamente, que a prestação seja realizada pelo devedor ou por terceiro([12]).
Acresce que, no caso, estamos no âmbito de uma ação popular, que não visa os particulares interesses dos AA., mas a defesa do interesse relativo ao domínio público de um conjunto de pessoas.
Deste modo, atenta a natureza da presente ação e estando em causa uma prestação de natureza fungível, não é devida a sanção pecuniária compulsória reclamada pelos AA. à luz do disposto no art. 829-A, nº 1, do C.C..
Por fim, quanto ao pedido de condenação do Município do Funchal a garantir que os 1ºs RR. procedam à desobstrução do referido caminho, cremos que a mesma apenas terá cabimento na medida em que cumprirá ao Município do Funchal a defesa desse domínio público.
Deste modo, não será de condenar o referido Município a substituir-se necessariamente aos 1ºs RR. na desobstrução do caminho, caso estes o não façam num determinado prazo, como se peticiona.
Não pode, em conclusão, manter-se a decisão impugnada, procedendo em parte o recurso.
*
IV- Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em, julgar parcialmente procedente a apelação e, revogando a sentença recorrida e julgando parcialmente procedente a causa:
i) declarar que pertence ao domínio público o caminho pedonal de ligação entre a Estrada ... e o Caminho de ..., iniciando-se na ..., próximo à atual Escola Básica do ..., e terminando no fim ..., que fica junto ao atual Centro de Saúde de ...;
ii) condenar os 1ºs RR., D e E  , a desobstruir o referido caminho e a repor a situação anterior à colocação do primeiro portão chapeado, com fechadura, do segundo portão gradeado, com fechadura, e do terceiro portão automatizado, com fechadura, retirando, nomeadamente, estes e quaisquer outros obstáculos, equipamentos ou infraestruturas que aí se encontrem, bem como a reconstruir tudo o que eventualmente, entretanto, tenham destruído do dito caminho público;
iii) condenar o 2º R., Município do Funchal, a garantir que os 1ºs RR. procedem à indicada desobstrução do dito caminho e reposição anterior do mesmo, como referido em ii).
Custas pelos AA./apelantes e 1ºs RR./apelados, na proporção de 10% e 90%, respetivamente.
Notifique.
*
Lisboa 8.11.2022
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho                    
Edgar Taborda Lopes
_______________________________________________________
[1] Processo nº 073284, publicado no DR, I série, de 2.6.1989.
[2] “Manual de Direito Administrativo”, 10ª ed., Tomo II, pág. 887.
[3] Ob. cit., pág. 921.
[4] Dispõe o art. 1383 do C.C. que: “Consideram-se abolidos os atravessadouros, por mais antigos que sejam, desde que não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões.” Por sua vez, estabelece o art. 1384 do mesmo Código que: “São, porém, reconhecidos os atravessadouros com posse imemorial, que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas destinadas à utilização ou aproveitamento de uma ou outra, bem como os admitidos em legislação especial.”
[5] Proc. 06B1468, em www.dgsi.pt.
[6] Proc. 1758/10.4TBPRD.P1.S1, em www.dgsi.pt.
[7] Ver, entre outros e para além dos já citados, os Acs. do STJ de 15.6.2000, Proc. 00B429, de 10.12.2009, Proc. 897/04.5TBPTM.E1.S1, de 3.2.2011, Proc. 29/04.0TBBRSD.P1.S1, de 2.3.2011, Proc. 272/04.1TBCNF.P1, de 28.5.2013, Proc. 3425/03.6TBGDM.P2.S1, de 18.9.2014, Proc. 44/1999.E2.S1, de 14.5.2019, Proc. 927/13.0TBMCN.P1.S1, e de 17.11.2020, Proc. 571/13.1TBSTS.P2.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[8] “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª ed., pág. 283.
[9] Proc. 08A542, em www.dgsi.pt.
[10] Proc. 6662/09.6TBVFR.P1.S2, também em www.dgsi.pt.
[11] “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 4ª ed., pág. 450.
[12] Cfr. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, 2020, Vol. II, pág. 303.