LIVRANÇA EM BRANCO
VENCIMENTO
DATA
PREENCHIMENTO
INSOLVÊNCIA DO SUBSCRITOR DA LIVRANÇA
ABUSO DO DIREITO
Sumário

I- O decretamento da insolvência da subscritora da livrança emitida em branco importa o imediato vencimento da obrigação que para a mesma emergia da relação subjacente perante o beneficiário (art. 91º, nº 1 do CIRE), permitindo a este exigir, desde logo, o cumprimento da respectiva obrigação cambiária, procedendo, então, ao preenchimento do título para tal fim, designadamente apondo-lhe como data de vencimento a data da declaração da insolvência (arts. 43º, II, e 44º, VI da LULL).
II- Contudo, tal não significa que o beneficiário da livrança fique vinculado a preencher a mesma no referido momento.
III- Contrariamente ao que sucede noutros ordenamentos jurídicos, o legislador português não fixou um limite temporal ao preenchimento da livrança em branco, pelo que tendo o título sido subscrito em branco, é válida a data de vencimento que o portador inscrever no mesmo, exceto se o fizer em violação do pacto de preenchimento ou se verifique uma situação de abuso do direito.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
A Caixa Geral de Depósitos S.A. moveu execução para pagamento de quantia certa contra B e outros.
A referida execução tem por título executivo uma livrança com o valor inscrito de € 56.310,88, na qual figuram como subscritora a sociedade F E__, S.A., Lda e como avalista os executados.
Citado o executado B, veio este deduzir os presentes embargos de executado, invocando os seguintes argumentos:
a) Um vício de forma – arts. 1º a 8º da petição de embargos;
b) A violação do pacto de preenchimento – arts. 9º a 15º da petição de embargos;
c) A prescrição da livrança – arts. 16º a 23º da petição de embargos.
Admitidos os embargos, e notificada a exequente, a mesma contestou, impugnando de facto e de Direito o alegado pelo embargante, e pugnando pela improcedência dos embargos.
Findos os articulados, e depois de auscultadas as partes, que nisso vieram a assentir, foi dispensada a realização de audiência de partes e proferido despacho saneador-sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgam-se os embargos de executado totalmente improcedentes, prosseguindo a execução os seus normais termos.”
Inconformado com tal decisão, veio o embargante interpor o presente recurso de apelação, cuja motivação resumiu nas seguintes conclusões:
1. Importa esclarecer que a questão do preenchimento da livrança em si é uma questão diferente do direito de o exequente (Banco) poder escolher a data de vencimento da livrança.
2. E o que está em causa é o poder do exequente (Banco) poder escolher livremente a data de vencimento que coloca na livrança, pois é com base na data de vencimento que se inicia o prazo de prescrição.
3. A prescrição interessa a ambos exequente e executado e é no confronto dos seus interesses antagónicos que terá de ser apreciada.
4. Para o exequente significa que lhe é garantido que possa fazer valer os seus direitos atempadamente, conhecê-los, avaliar a sua justificação e, se for caso disso, permitir-lhe juntar os meios necessários para os provar e invocar em tribunal.
5. Para o executado a prescrição visa a proteção contra as desvantagens que decorrem o decurso do tempo que toldam a sua defesa contra exigências infundadas.
6. A prescrição deve estar ao serviço da segurança jurídica.
7. As suas regras devem garantir a calculabilidade e previsibilidade dos seus efeitos.
8. Há assim situações, certos factos que durante bastante tempo se mantiveram sem ser questionados, já não podem ser postos em causa em ordem à paz e segurança jurídica.
9. A prescrição não pode depender de factos da esfera interna do credor (por exemplo, negligencia grave) não percetíveis para o devedor.
10. Os artº 300º e 302º do CC estabelecem proibições que se explicam por razões de interesse e de ordem publica, não estando, por isso, em momento algum, na disponibilidade das partes.
11. Ora, nos termos do artº 70º da LULL, “Todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento.”
12. O mencionado dispositivo legal não diz que o prazo de 3 anos se inicia a partir da data de vencimento inserida na livrança por quem a preenche.
13. Pois só assim se concebe que o factor estruturante do início do prazo, para efeitos da prescrição, não esteja dependente da vontade unilateral das partes.
14. De outra forma, seria desvirtuar, perverter, grosseiramente, o instituto da prescrição, o que conduz à incerteza e insegurança jurídica.
15. Atente-se que o artº 300º do CC determina que são nulos os negócios jurídicos destinados a dificultar “por outro modo” as condições em qua a prescrição opera os seus efeitos.
16. Conceder que a fixação do prazo de vencimento está dependente da vontade do exequente é querer dizer que o exequente pode manipular a lei.
17. O prazo de três anos fixado na lei é bastante para que o exequente desencadeie os mecanismos de defesa dos seus interesses.
18. Não há qualquer razão plausível para se perceber porque razão decorreram 11 anos para se executar a livrança.
19. Os prazos de prescrição da LULL são todos muito exíguos o que corresponde à lógica de celeridade que caracteriza os processos cambiários, não havendo nenhuma razão para não se seguir a mesma lógica quanto ao aval.
20. Ora, sabe-se que a devedora originária, foi declarada insolvente.
21. A declaração de insolvência é suficiente para que o portador da letra possa exercer o seu direito de acção (cfr artº 43º e 44º da LULL, aplicável por força do artº 77 da LULL).
22. Ou seja, a partir da data de declaração de insolvência o exequente passou a ter direito a accionar a sua garantia, devido ao incumprimento extracartular subjacente.
23. A partir deste momento, o exequente poderá preencher a livrança e inserir nela a data de vencimento, dentro dos limites temporais impostos por lei, contando-se desta data o prazo de prescrição de 3 anos (artº 70º da LULL) e não de um qualquer dia posterior que, arbitrariamente o exequente tenha escolhido.
24. Por outro lado, a exequente, a partir da data de insolvência tinha um prazo legal para reclamar o valor da divida.
25. A exequente reclamou a divida junto do administrador de insolvência, que à época se traduzia em € 17.000,00, exercendo a execução coerciva do seu crédito nesta execução universal.
26. E, pelo menos na altura em que reclamou o crédito junto da insolvência, a exequente podia e devia ter preenchido a data de vencimento e demandado o executado/recorrente.
27. Se o tivesse feito na altura, estariam em causa € 17.000,00, valor reclamado e reconhecido na insolvência.
28. Ao optar por, arbitrariamente, ter escolhido uma data, 02/03/2021, e apenas porque detinha a livrança, reclamou € 56.861,98.
29. A exequente remeteu-se ao silêncio nestes cerca de 11 anos e, nem sequer, alguma vez, interpelou o executado para pagamento,
30. E, com o devido respeito, esse seu silêncio, na tese dos que defendem que o exequente pode a seu belo prazer colocar a data de vencimento na livrança, sem quaisquer limites, mais não é do que premiar a inércia, o desleixo.
31. E, neste período, a exequente, locupletou-se em 2,348 vezes o valor em divida, já que 17.000,00 será o valor em divida.
32. A conduta da exequente ofende o princípio da razoabilidade e viola as regras da prescrição.
33. É sempre ilegítima a conduta manifestamente contrária ao razoável. (V. Batista Machado, J. (1991) A clausula do razoável, in J. Batista Machado, Obra Dispersa, Vol I, Braga: Scientia Ivridica, pp 457,464,467)
34. O exercício do direito deve ser sempre exercido de forma correcta e na altura devida. Caso contrário, o exercício é abusivo.
35. Os autos dispõem de elementos para conhecer do abuso de direito que, ademais, é do conhecimento oficioso.
36. O exequente invoca um direito prescrito, razão pela qual a oposição teria de ser julgada procedente, o que se requer e assim se decidindo,
A apelada apresentou contra-alegações, sintetizadas nas seguintes conclusões:
a) O presente recurso foi interposto pelo Recorrente na sequência de proferição de sentença pelo tribunal a quo, em 17/05/2022, mediante a qual os embargos de executado foram julgados totalmente improcedentes.
b) Invoca o Recorrente que “ao decidir como decidiu, fez uma interpretação errada e violadora da lei, mormente os artigos 32º 70º da LULL, 300º e 302º CC, que conjugados, e nessa medida, andou mal o Mmo Juiz “a quo”, ao decidir como decidiu.”
c) O Recorrente sustenta a sua posição afirmando que o prazo de prescrição da livrança dada à execução não começa a contar desde o seu vencimento, mas sim desde a data da insolvência do subscritor da mesma, isto independentemente do estipulado no pacto de preenchimento.
d) E que, consequentemente, o preenchimento da livrança na data em que foi efectuado constitui abuso de direito, concluindo pela prescrição desta.
e) Salvo o devido e merecido respeito, não pode a Recorrida sufragar este entendimento, uma vez que não assiste qualquer razão ao Recorrente.
Atentemos de perto,
f) Contrariamente ao invocado pelo Recorrente, é manifesto para a Recorrida que a decisão sub judice não merece qualquer reparo.
g) O Recorrente suscitou uma questão prévia requerendo que fosse ordenado ao Tribunal a quo que oficiasse o processo de insolvência da subscritora da livrança, no sentido de serem juntos aos autos cópias da reclamação de créditos da Recorrida e do mapa de créditos reconhecido.
h) A obrigação de junção de documentos incumbia ao Recorrente aquando da apresentação dos Embargos de Executado, sendo que não alegou, nem demonstrou, qualquer impossibilidade de obter os referidos documentos pelos seus próprios meios.
i) Aliás, o Recorrente facilmente poderia ter requerido ao Tribunal onde correu termos a insolvência da subscritora da livrança uma certidão dos documentos em causa.
j) Pelo que o Tribunal a quo decidiu bem ao indeferir o requerimento do Recorrente.
Por outro lado,
k) Alegou o Recorrente que deve ser tido como facto assente que “O Exequente, reclamou o seu crédito no processo de insolvência (Tribunal de Comércio de Lisboa - Juiz 2 sob o nº 580/10.2TYLSB), onde peticionou o crédito vencido, no montante de € 17.000,00 (dezassete mil euros), matéria não impugnada e por isso definitivamente aceite pela exequente”.
l) Ora, esta é uma tentativa do Recorrente de alegar novos factos, uma vez que jamais em qualquer dos articulados, foi alegado que a Exequente reclamou um crédito de Eur.: 17.000,00€ no processo de insolvência n.º 580/10.2TYLSB.
m) O que significa que tal alegação é legalmente inadmissível.
n) No que concerne à inexistência de prescrição, também nada há a apontar à douta decisão do tribunal a quo.
o) Desde logo porque o art. 70º da L.U.L.L. (aplicável ex vi art. 77º da L.U.L.L.) é expresso quanto ao prazo de prescrição das letras e livranças – “Todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento, não deixando qualquer margem para interpretação diferente.
p) Pelo que também essa alegação deve perecer.
q) Também no que diz respeito à faculdade da Recorrida ter preenchido a livrança quando preencheu, o Tribunal a quo decidiu bem.
r) O pacto de preenchimento da livrança dada à execução, que foi aceite e assinado pelo Recorrente de livre e espontânea vontade, estatui: “Para titulação de todas as responsabilidades decorrentes da conta-corrente, a 1.ª CONTRATANTE e os AVALISTAS atrás identificados para o efeito entregam à CAIXA uma livrança em branco subscrita pela primeira e avalizada pelos segundos, e autorizam desde já a CAIXA a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CAIXA, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:
a) A data de vencimento será fixada pela CAIXA quando, em caso de incumprimento pela devedora das obrigações assumidas, a Caixa decida recorrer à realização coativa do respetivo crédito;
b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes da presente abertura de crédito, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança. (…)”. 
s) Facto esse que ficou assente nos autos.  
t) Assim, decidiu bem o douto Tribunal a quo ao afirmar que “não é o embargante que tem o poder de decidir em que condições é que a exequente teria que preencher a livrança, nem a data de vencimento, em desrespeito do pacto de preenchimento, nem existe qualquer fundamento legal para fazer coincidir o vencimento do título com o incumprimento do contrato ou a reclamação de créditos, não alegando o embargante qualquer facto que permita substanciar a invocação do princípio da boa fé”.
u) E a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem sido absolutamente unânime nesta questão, coincidindo com a decisão recorrida.
v) Vejam-se, a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/06/2019, relativo ao processo n.º 1025/18.5T8PRT.P1.S1 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04/07/2019, relativo ao processo n.º 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1, entre tantos outros.
w) Todos referem, unanimemente, que o prazo de prescrição das livranças em branco só se inicia após o preenchimento das mesmas, pois é aí que se define a data do seu vencimento,
x) Bem como que o portador tem o direito de preencher as livranças, dentro do estipulado nos pacto de preenchimento, sem que o mero decurso do tempo constitua abuso de direito.
y) Para mais, a haver abuso de direito, teria o Recorrente de fazer prova do mesmo, o que, claramente, não sucedeu.
z) As alegações do ora Recorrente são totalmente desprovidas de fundamento e, ainda que, hipoteticamente, o tivessem, embora não se concedendo, não foi feita qualquer prova das mesmas.
aa) O Recorrente tinha conhecimento da dívida, conforme demonstrou no seu articulado, e apenas não recebeu a carta de preenchimento da livrança por pura negligência da sua parte.
bb) E podendo proceder ao pagamento voluntário da dívida a qualquer momento, optou por não o fazer.
cc) Tentando agora eximir-se do mesmo por via desta tese infundada de uma eventual prescrição.
dd) Assim, conclui-se que a douta sentença recorrida não viola, de todo, o estatuído nos artigos 32º e 70º da L.U.L.L., e 300º e 302º do C.C., pelo que deverá a mesma ser mantida na íntegra.
Admitido o recurso, remetido o mesmo a este Tribunal, e nada obstando ao conhecimento do mérito da presente apelação, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[1]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2].
Assim sendo, e uma vez que as exceções de abuso do direito e nulidade do p+acto de preenchimento foram invocadas apenas nas alegações de recurso, a oportunidade dessa invocação poderá ser questionada.
Como é sabido, o abuso do direito obsta ao exercício do mesmo, ou seja, constitui uma causa impeditiva, pelo que configura uma exceção perentória – arts. 334º do CC, e 576º, nº 3 do CPC.
Por seu turno, a nulidade compreende um efeito extintivo do ato ou negócio jurídico afetado, pelo que também configura uma exceção perentória.
Contudo, estabelece o art.  573º do nº 1 do CPC que “toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado”, acrescentando o nº 3 do mesmo preceito que “Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes, e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente”.
O preceito citado consagra o princípio da concentração da defesa, do qual decorre que o demandado deve deduzir na contestação ou oposição todos os meios de defesa que tenha ao seu alcance, sob pena de preclusão dos mesmos.
Não obstante, a lei processual consagra quatro exceções a esse princípio:
- os incidentes que devem ser deduzidos em separado;
- os meios de defesa supervenientes, ou seja, os fundados em factos que se verifiquem depois de esgotado o prazo para contestar ou deduzir oposição (superveniência objetiva), ou de que o demandado só tenha conhecimento depois de esgotado esse prazo (superveniência subjetiva);
- os meios de defesa que a lei expressamente admita após tal momento;
- os meios de defesa de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente.
Como decorrência deste princípio, a doutrina e a jurisprudência têm sublinhado que os recursos não servem para apreciar questões (de direito ou de facto) novas, mas apenas para reapreciar questões já debatidas.
Nessa medida, bem aponta ABRANTES GERALDES[3], “A natureza do recurso como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Segundo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos um modelo de reponderação que vis o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”
Por seu turno sustenta FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA[4]: “No nosso sistema processual (no que concerne à apelação e à revista) predomina o «esquema do recurso de reponderação: o objeto do recurso é a decisão impugnada, encontrando-se à partida, vedada a produção de efeitos jurídicos “ex-novo”. Através do recurso, o que se visa é a impugnação de uma decisão já ex ante proferida, que não o julgamento de uma qualquer questão nova.”
Finalmente, RUI PINTO[5] sintetizou os efeitos práticos do sistema de reponderação nos seguintes termos: “não se admitem nem novos factos, nem novos fundamentos de ação ou de defesa, nem novas provas. A estes recursos dá-se a qualificação de recursos de reponderação: a decisão impugnada é reavaliada no quadro do seu próprio objeto e em razão dos seus vícios específicos, pelo que o objeto do pedido é na parte da revogação a própria decisão e na substituição a matéria que fora objeto da decisão revogada, tal e qual fora conhecida pelo tribunal a quo.”
Este entendimento foi amplamente acolhido pela jurisprudência. Como se refere no ac. STJ de 07-07-2016 (Gonçalves Rocha), p.156/12.0TTCSC.L1.S1, “Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação”. – No mesmo sentido, cfr. RC 14-01-2014 (Mª Inês Moura), p. 154/12.3TBMGR.C1, e RP 16-10-2017 (Miguel Baldaia de Morais), p. 379/16.2T8PVZ.P1.
Mas precisamente porque a lei processual admite a invocação de exceções de conhecimento oficioso após a contestação, a jurisprudência tem sublinhado que essas questões podem ser suscitadas apenas em sede de recurso – neste sentido cfr. ac. STJ 17-11-2016 (Ana Luísa Geraldes), p. 861/13.3TTVIS.C1.S2.
No caso em apreço, é inegável que só nas alegações de recurso é que o réu e ora apelante veio invocar as exceções materiais de abuso do direito e nulidade do pacto de preenchimento.
Com efeito, na petição de embargos, o embargante não invocou a exceção de abuso do direito, embora tenha aludido de modo vago à boa-fé, sustentando que “a boa-fé impõe que a livrança seja coincidentemente preenchida com a resolução do contrato”; e nada disse no tocante à nulidade do pacto de preenchimento.
Contudo, a jurisprudência tem entendido que colhendo a figura do abuso de direito o seu fundamento em princípios de ordem pública (art. 334º do CC), a mesma constitui uma exceção de conhecimento oficioso (art. 579º do CPC).
O mesmo se dirá da exceção de nulidade, expressamente qualificada como de conhecimento oficioso (art. 286º, 2ª parte, do CC).
Sendo de conhecimento oficioso, tais exceções podem ser invocadas pela primeira vez em sede de alegações perante a Relação, no âmbito de recurso de apelação [vd. acs. STJ 21-09-1993 (Fernando Fabião), p. 083983; STJ 01-07-2004 (Salvador da Costa), p. 04B4671; STJ 28-11-2013 (Salazar Casanova), p. 161/09.3TBGDM.P2.S1; STJ 14-07-2018 (João Camilo), p. 1530/15.5T8STS-C.P1.S1; e STJ 12-07-2018 (Rosa Ribeiro Coelho), p. 2069/14.1T8PRT.P1.S1], ou mesmo perante o Supremo em alegações de recurso de revista [cfr. acs. STJ 09-10-2001 (Araújo de Barros), p. 02B749 e STJ 04-04-2002 (Araújo de Barros), p. 02B749][6].
Contudo, como bem apontou o ac. RG 04-10-2018 (Jorge Teixeira), p. 1047/14.5TBGMR-A.G1  não obstante deva apreciar oficiosamente a mencionada exceção, “isso não significa que o Tribunal considere ocorrido o abuso de direito à luz de factos que não foram alegados nem se podem considerar adquiridos nos autos”.
Nesta conformidade, conclui-se que no caso em análise, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) A prescrição da livrança exequenda, a nulidade do pacto de preenchimento e o preenchimento abusivo da livrança exequenda – conclusões 1. a 26. e 36.
b) O abuso do direito – conclusões 27 a 35.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
3.1.1. Factos provados
Na decisão sobre matéria de facto que antecedeu a prolação da sentença recorrida, o Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. A Exequente é portadora de uma livrança, apresentada com o requerimento executivo, que se dá por integralmente reproduzida, a qual se encontra assinada na face, após a menção “assinatura do subscritor”, por M… e J…, sob o carimbo “F E__, S.A. P’Administração“.
2. A referida livrança está preenchida da seguinte forma:
 Local e data de emissão: Lisboa, 2003/12/14
 Importância: € 56.310,88
 Valor: contrato de abertura de crédito em conta corrente n.º PT…
 Vencimento: 2021/01/19.
3. O embargante assinou a livrança no verso, após a menção “bom por aval à firma subscritora”.
4. Em 14/12/2003, a sociedade F E__-Etiquetas e Sistemas de Codificação, Lda., celebrou com a exequente o “contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização simples”, ao qual foi atribuído o n.º PT …, junto por cópia como documento n.º 1 da contestação, o qual se dá por integralmente reproduzido.
5. O referido contrato foi assinado por M..., na qualidade de Presidente do Conselho de Administração e J..., na qualidade de Vogal Executivo do Conselho de  Administração, ambos membros de órgão estatutário da sociedade F E__ –  Etiquetas e Sistemas de Codificação, S.A., conforme consta do reconhecimento de assinaturas anexo ao mesmo.
6. Tendo tais assinaturas sido apostas sob o carimbo “F E__, S.A.  P’Administração“ (cfr. o mesmo documento).
7. O embargante assinou o “contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização simples” na qualidade de avalista.
8. A Cláusula 22.ª do aludido contrato, sob a epígrafe “Titulação por livrança em branco”, no seu ponto 1, dispõe o seguinte: “Para titulação de todas as responsabilidades decorrentes da conta-corrente, a 1.ª CONTRATANTE e os AVALISTAS atrás identificados para o efeito entregam à CAIXA uma livrança em branco subscrita pela primeira e avalizada pelos segundos, e autorizam desde já a CAIXA a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CAIXA, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:
a) A data de vencimento será fixada pela CAIXA quando, em caso de incumprimento pela devedora das obrigações assumidas, a Caixa decida recorrer à realização coativa do respetivo crédito; b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes da presente abertura de crédito, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança. (…)”.
9. Por cartas datadas de 19/01/2021, apresentadas como documento n.º 2 da contestação, que se reproduzem, a exequente comunicou a todos os intervenientes na operação em causa, quer a título de mutuários, quer a título de avalistas, incluindo o ora embargante, que se encontrava vencida a totalidade da responsabilidade emergente do contrato de abertura de crédito em conta corrente celebrado em 14/12/2003 com a sociedade F E__-Etiquetas e Sistemas de Codificação, Lda., assim como o preenchimento da livrança pelo valor de € 56.310,88, correspondente ao valor total do crédito na data de vencimento fixada (2021/01/19), a que acrescem juros de mora e legais acréscimos, até integral pagamento.
10. Em 26/01/2021, a carta destinada ao embargante foi dirigida para a morada constante do contrato e veio devolvida à aqui Embargada, com a menção “o destinatário mudou-se” – cfr. o documento n.º 3 da contestação.
11. A sociedade F E__-Etiquetas e Sistemas de Codificação, Lda. foi declarada insolvente no processo que corre termos sob o n.º 580/10.2TYLSB, tendo a exequente aí reclamado o crédito emergente do contrato supra identificado em 2010.
3.1.2. Factos não provados
A decisão apelada não contém qualquer elenco de factos não provados:
3.2. Os factos e o Direito
Estabelecidas as questões suscitadas na apelação cuja apreciação importará fazer, cumprirá então que sobre elas nos debrucemos, respeitando no seu conhecimento a respetiva ordem de precedência lógica.
3.2.1. Da prescrição da livrança exequenda, da nulidade do pacto de preenchimento, e da violação deste
3.2.1.2. Da prescrição
Pretende o embargante que aquando da propositura da execução já a livrança que configura o título executivo se mostrava prescrita porquanto, em seu entender, o prazo de prescrição da mesma se deve contar desde a data em que a exequente reclamou o crédito garantido pela livrança exequenda no processo de insolvência da subscritora da livrança, a sociedade F E__ – Etiquetas e sistemas de codificação, S.A., e não a partir da data aposta naquele título.
A questão em apreço foi recentemente apreciada nos acórdãos RL 05-05-2020 (José Capacete), p. 6645/17.2T8FNC-A.L1, e RL 12-10-2021 (José Capacete), p. 703/20.3T8SNT-B.L1 , proferido por este mesmo Tribunal e Secção, e de que o ora relator foi 2º adjunto, cuja fundamentação passamos a seguir muito de perto, por vezes mesmo textualmente.
Vejamos então.
O executado, embargante, e ora apelante subscreveu a livrança dada à execução na qualidade de avalista[7].
Como se sabe, o aval é o ato pelo qual um terceiro ou um subscritor de um título de crédito garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores – arts. 30º a 32º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças[8], aplicável às livranças ex vi do art. 77º do mesmo diploma.[9]
Trata-se de uma nova obrigação cambiátia, cuja função específica consiste em garantir ou caucionar a obrigação de determinado obrigado cambiário, sendo primária essa responsabilidade de garantia.[10]
A obrigação do avalista é autónoma em face da obrigação do avalizado, subsistindo mesmo no caso de esta última ser nula por qualquer razão, salvo vício de forma (arts. 32.º, II e 77.º, III da LULL);
No que tange aos efeitos do aval, resulta dos arts. 32.º I e 77.º III, que o avalista de uma livrança é responsável da mesma maneira que o avalizado, o que significa que aquele responde perante as mesmas pessoas, nas mesmas condições e na mesma medida em que responde o avalizado.
Trata-se, no entanto, de uma equiparação que não pode deixar de ser vista em termos hábeis, visto que ao subscritor avalizado que esteja numa relação imediata com o portador da livrança é lícito invocar todos os meios de defesa que se baseiem na relação fundamental, ao passo que o avalista, apesar de obrigado da mesma maneira que o avalizado, não poderá invocar esses meios, porque não é sujeito de tal relação fundamental subjacente à emissão do título e não estará, assim, em relação imediata, mas mediata com o portador.[11]
A prescrição é tradicionalmente definida como o instituto por via do qual os direitos subjetivos se extinguem quando não exercitados durante certo período de tempo fixado na lei e que varia conforme os casos.[12]
Trata-se de um instituto que por um lado, traduz uma valoração negativa da inércia ou negligência do titular no exercício do direito, negligência esta que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito; e, outro lado, constitui expressão de um propósito de proteção do devedor que, a partir da inércia do titular, pode, legitimamente, criar a convicção de que o titular se desinteressou do respetivo exercício e, ademais, por força do decurso do tempo, pode ver-se em particulares dificuldades ao nível da prova de um eventual pagamento.
Portanto, em qualquer uma das hipóteses, tenha ou nãocumprido, pode o devedor, decorrido o prazo de prescrição, invocar esta e bloquear a pretensão do credor.
A este propósito é frequente ouvir-se a afirmação de que a prescrição constitui uma causa de extinção das obrigações. Mas tal afirmação carece de rigor. Com efeito, o efeito da prescrição não consiste na extinção da obrigação prescrita, mas antes na sua transmutação em obrigação natural (arts. 304º, nº 2 e 402º do CC). A prescrição configura assim um facto modificativo e impeditivo da obrigação prescrita, na medida em que lhe retira a exigibilidade, mas não extintivo.
No tocante ao início do prazo de prescrição, dispõe o art. 306.º do Cód. Civil, que “o prazo da prescrição só começa a correr quando o direito puder ser exercido; (...).”
Por sua vez, estatui o art. 70.º, I, aplicável ex vi do art. 77.º, ambos da LULL, que “todas as ações contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento.”
No caso de insolvência do subscritor, tem sido ponderada a aplicação do disposto no art. 91º do CIRE, que, sob a epígrafe “Vencimento imediato de dívidas”, dispõe como segue:
“1 - A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.
2 - Toda a obrigação ainda não exigível à data da declaração de insolvência pela qual não fossem devidos juros remuneratórios, ou pela qual fossem devidos juros inferiores à taxa de juros legal, considera-se reduzida para o montante que, se acrescido de juros calculados sobre esse mesmo montante, respectivamente, à taxa legal, ou a uma taxa igual à diferença entre a taxa legal e a taxa convencionada, pelo período de antecipação do vencimento, corresponderia ao valor da obrigação em causa.
3 - Tratando-se de obrigação fraccionada, o disposto no número anterior é aplicável a cada uma das prestações ainda não exigíveis.
4 - No cômputo do período de antecipação do vencimento considera-se que este ocorreria na data em que as obrigações se tornassem exigíveis, ou em que provavelmente tal ocorreria, sendo essa data indeterminada.
5 - A redução do montante da dívida, prevista nos números anteriores, é também aplicável ainda que tenha ocorrido a perda do benefício do prazo, decorrente da situação de insolvência ainda não judicialmente declarada, prevista no n.º 1 do artigo 780.º do Código Civil.
6 - A sub-rogação nos direitos do credor decorrente do cumprimento pelo insolvente de uma obrigação de terceiro terá lugar na proporção da quantia paga relativamente ao montante da dívida desse terceiro, actualizado nos termos do n.º 2.
7 - O disposto no número anterior aplica-se ao direito de regresso face a outros condevedores.”
Em caso de insolvência do subscritor de livrança coloca-se a questão de saber se o prazo de prescrição da obrigação cambiária do avalista, previsto no art. 70º, nº 1, da LULL (aplicável ex vi art. 77º da LULL), que é de três anos se conta igualmente a partir da data da declaração de insolvência, ou antes se deve contar em função da data de vencimento inscrita na livrança.
A jurisprudência uniforme do STJ tem optado pela segunda das teses. Disso são exemplo os seguintes arestos:
- STJ 12-11-2002 (Ponce de Leão), p. 02A3366;
- STJ 30-09-2003 (Moreira Alves), p.     03A2113;
- STJ 29/11/2005 (Oliveira Barros) p. 05B3179;
- STJ 09-02-2012, p. 27951/06.6YYLSB-A.L1.S1[13];
- STJ 19-10-2017 (Rosa Tching), p. 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1;
- STJ 19-06-2019 (Bernardo Domingos), p. 1025/18.5T8PRT.P1.S1;
- STJ 04-07-2019 (Maria da Graça Trigo), Proc. n.º 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1
No caso vertente, o embargante sustentou que o prazo de prescrição se completou logo que se completaram três anos a contar da data em que a exequente, embargada, e ora apelada reclamou o seu crédito na insolvência da subscritora da livrança.
Assim, e porque tal reclamação e créditos foi apresentada em 2010, e considerando que a execução embargada foi intentada em 2021, haveria que concluir pela prescrição da obrigação cambiária do embargante, enquanto avalista.
Haverá assim que analisar esta questão, no sentido de saber se deveria a aqui apelada, portadora das livranças em branco, tê-las preenchido, no que à sua data de vencimento diz respeito, dentro dos três anos subsequentes à data em que o título cambiário se tornou exigível (à luz do estatuído no art. 91.º, n.º 1, do CIRE, e também dos arts. 43.º, II e 44.º, VI, da LULL), ou seja, da data em que a respetiva subscritora foi declarada insolvente, sob pena de, não o tendo feito, como efetivamente não fez, não o poder fazer através da ação executiva de que os presentes autos constituem apenso, por se encontrar prescrito o seu direito de ação cambiária.
Como já referimos, dispõe o art. 91.º, n.º 1, o CIRE, que “a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.”
Por seu turno, estabelece o art. 43.º, II, da LULL, que “o portador de uma letra[14]  pode exercer os seus direitos de acção contra os endossantes, sacador e outros co-obrigados:
(...)
Mesmo antes do vencimento:
(...)
Nos casos de falência do sacado, quer ele tenha aceite, quer não, de suspensão de pagamentos do mesmo, ainda que não contestada por sentença, ou de ter sido promovida, sem resultado, execução dos seus bens.”
Finalmente, estipula o art. 44.º, VI, que “no caso de falência declarada do sacado, quer seja aceitante, quer não, bem como no caso de falência declarada do sacador de uma letra[15]  não aceitável, a apresentação da sentença de declaração de falência é suficiente para que o portador da letra possa exercer o seu direito de ação.”
Como resulta dos citados preceitos legais, a declaração de insolvência importa o imediato vencimento da obrigação a cargo do devedor/insolvente, o mesmo é dizer, a sua imediata (antecipada) exigibilidade.
O objetivo das citadas normas contidas nos arts. 43.º e 44.º da LULL é, como se afigura evidente, permitir ao credor, uma vez confrontado com a insolvência do devedor ou com esse risco iminente, declarar vencida e exigível a obrigação que, em circunstâncias normais, não estaria ainda em condições de ser exigida, por não se mostrar vencida; ou seja, caso o credor tivesse que aguardar o decurso do prazo de vencimento da obrigação, correria o risco de, vencida a dívida no devido tempo, não lograr a satisfação do seu crédito por falta de bens no património do devedor.
Trata-se da consagração no domínio do direito cambiário do mesmo princípio que se mostra consagrado no domínio da responsabilidade contratual no artigo 780º, do Cód. Civil (perda do benefício do prazo)[16].
No que tange ao art. 91.º, n.º 1, do CIRE[17], além de lhe estarem subjacentes aquelas mesmas razões, persegue um outro objetivo, qual seja o de permitir ao credor do devedor insolvente reclamar no próprio processo de insolvência esse seu crédito ainda não vencido, sendo certo que, como é consabido, por força do princípio da par conditio creditorum, os credores da insolvência terão, forçosamente, como resulta do art. 90.º do CIRE, de exercer os seus direitos em conformidade com os termos previstos neste código e durante a pendência do processo, sob pena de a satisfação dos mesmos se mostrar prejudicada[18].
A este propósito refere SOVERAL MARINS[19] que “a declaração de insolvência vai ter como consequência o vencimento de todas as obrigações do insolvente que não estejam subordinadas a uma condição suspensiva (art. 91.º, 1). Assim, aquelas obrigações que apenas se vencessem em data posterior à declaração de insolvência vêem esse momento antecipado. E isso sem necessidade de interpelação. Com o regime descrito consegue-se uma (relativa) estabilização do passivo, tornando-se mais fácil avaliar a situação do devedor e assim tomar decisões. Desde logo porque os credores em causa, com os seus créditos vencidos, terão de vir ao processo exigir o que lhes é devido” .
Perante isto, é questão isenta de dúvidas que o decretamento da insolvência da subscritora das livranças emitidas em branco, ou seja, da obrigada principal, da sociedade avalizada, importou o imediato vencimento da obrigação que para a mesma emergia da relação subjacente perante a beneficiária da livrança, a Caixa Geral de Depósitos.
A declaração de insolvência da subscritora da livrança permitia à beneficiária deste título exigir, desde logo, a respetiva obrigação cambiária, procedendo, na data, ao preenchimento do mesmo título para tal fim, designadamente apondo-lhe como data de vencimento, a data daquela declaração.
A partir desse momento, a beneficiária da livrança estava absolutamente legitimada e em condições de preencher a livrança dada à execução com todos os seus elementos essenciais, nomeadamente a data de vencimento; e de exigir o pagamento da quantia titulada pela livrançaperante qualquer um dos obrigados cambiários, incluindo o aqui embargante, na qualidade de avalista, pois que todos respondem solidariamente perante o credor.
Isto sem prejuízo da reclamação a efetuar no processo de insolvência da subscritora/insolvente; e de o valor recebido no processo de insolvência ser abatido ao valor em débito, pois que não podia, naturalmente, receber em duplicado os valores em débito.
Sucede, no entanto, que o legislador português, contrariamente ao que ocorre noutros ordenamentos jurídicos, não fixou um limite temporal ao preenchimento da livrança em branco.
Assim, neste contexto, alguma doutrina tem sustentado que uma tal interpretação confere natureza potencialmente vitalícia às obrigações cambiárias emergentes de títulos emitidos em branco, contrariando o espírito da lei, porquanto nessas condições, os t+itulos tornar-se-iam imprescritíveis.
A esse propósito dizia GONSALVES DIAS[20] que “(…) quem subscreve uma letra em branco não pode ficar obrigado até à consumação dos séculos (…)”.
E mais recentemente sustenta CAROLINA CUNHA[21] que impende sobre o credor cambiário o ónus de exercer rapidamente o seu direito, e que se deve considerar que o prazo de prescrição do título em branco se conta a partir do momento em que o credor tiver a possibilidade de preencher o  mesmo. E conclui esta autora: “Se persistir em preencher e/ou acionar o título para lá desse limite temporal, indicando uma data de vencimento posterior, incorre em preenchimento abusivo e culposo nos termos do art. 10.º da LU e, por referência à data de vencimento correta, o direito cambiário deve considerar-se prescrito.”[22]
Quanto à jurisprudência, depois de numa primeira fase ter perfilhado o entendimento de que a ausência de previsão legal quanto a tal limitação implicava a estrita validade da data de vencimento que o portador viesse a incluir no título, a jurisprudência portuguesa tem vindo a perfilhar, de forma que se crê ser unânime, conforme acima referido, o entendimento de que o prazo prescricional previsto no artigo 70º da LULL corre a partir do dia do vencimento inscrito pelo portador desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento, ou se verifique a exceção do abuso do direito.
A título de exemplo, citamos o recente ac. STJ 06-09-2022 (José Raínho), p. 3940/20.7T8STB-A.E1.S1, onde se expôs:
“A LULL (Lei Uniforme sobre Letras e Livranças) não fixa o prazo dentro do qual deve ser preenchida a livrança entregue em branco. Tão pouco o faz qualquer outro dispositivo legal (contrariamente ao que se passa em outros ordenamentos jurídicos). Será normalmente o acordo de preenchimento (que pode ser expresso ou tácito) subjacente à emissão da livrança em branco que define os termos do preenchimento.
Ora, nada foi alegado, ou está provado, que indique que foi convencionada uma época particular de vencimento a apor na livrança aquando do seu eventual preenchimento, senão apenas que o direito ao preenchimento foi (obviamente) condicionado ao facto do incumprimento da subscritora e demais sociedades envolvidas.
Nesta base cremos que, à míngua pois de qualquer dever negocial ou legal em sentido contrário (e dentro aliás do princípio geral consignado no n.º 1 do art. 777.º do CCivil), era faculdade (rectius era direito potestativo) do portador, (…) preencher a livrança com uma qualquer data de vencimento ulterior ao momento do alegado incumprimento.
(…)
Cremos, porém, que em tudo isto há alguma confusão entre prescrição e exercício abusivo do direito. Numa possível formulação (v. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., p. 1045), pode dizer-se que a prescrição é o instituto por virtude do qual a parte contrária se pode opor ao exercício de um direito, quando este não seja exercitado durante o tempo fixado na lei. A essencialidade reside aqui no decurso do tempo e na negligência (comportamento omissivo) do titular do direito em exercê-lo. Já o abuso do direito assenta no exercício ilegítimo do direito, por contrariar os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art. 334.º do CCivil). Neste caso o que está em questão é a necessidade de neutralizar um exercício que repugna à consciência jurídico-social. Não porque o direito não seja existente e exercitável em si mesmo, mas porque está a ser exercido de forma inadequada naquela hipótese concreta. Na prescrição não estão em causa razões de justiça (muito pelo contrário, no plano da justiça a prescrição não tem razão de ser) ou de adequação, mas sim de certeza ou de segurança nas relações jurídicas (cfr. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5ª ed., pp. 692 e 693); ao invés, em matéria de abuso do direito não estão em causa razões de certeza ou de segurança, mas sim de justiça e de adequação.”
Aderimos resolutamente a este entendimento.
Não obstante, no caso vertente questão da prescrição cruza-se com a com as questões relattias à nulidade do pacto de preenchimento, e à violação do mesmo em termos que não permitem desde já concluir se a livrança exequenda se mostra ou não prescrita.
Assim sendo, resta-nos analisar as questões da nulidade do pacto de preenchimento e da violação do mesmo para, afinal, retirarmos as necessárias conclusões relativamente à invocada prescrição da livrança.
3.2.1.3. Da nulidade do pacto de preenchimento
Na motivação do recurso o embargante, de um modo vago e extremamente lacónico, sugere a nulidade do pacto de preenchimento, sustentando, no art. 22º das alegações e na conclusão 10. que “Os artº 300º e 302º do CC estabelecem proibições que se explicam por razões de interesse e de ordem publica, não estando, por isso, em momento algum, na disponibilidade das partes.”, e acrescentando, no art. 28. das alegações e na conclusão 15. que “o artº 300º do CC determina que são nulos os negócios jurídicos destinados a dificultar “por outro modo” as condições em qua a prescrição opera os seus efeitos“, para no art. 29. das alegações e na conclusão 16., acrescentar que “Conceder que a fixação do prazo de vencimento está dependente da vontade do exequente é querer dizer que o exequente pode manipular a lei.”
O cerne da argumentação do apelante parece reside no disposto no art. 300º do CC que dispõe que “são nulos os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais da prescrição ou a facilitar o dificultar por outro modo as condições em que a prescrição opera os seus efeitos”.
No caso vertente, já concluímos que a lei não consagra nenhum prazo para o preenchimento de livranças em branco, pelo que não poderá estar em causa a primeira parte do preceito.
Como cremos que resulta da exposição que antecede, tal não constitui sequer uma lacuna do nosso ordenamento jurídico, mas antes é o resultado de uma opção do legislador nacional.
Por outro lado, não vemos como possa sustentar-se que o pacto de preenchimento dificulta as condições em que a prescrição opera os seus efeitos.
Com efeito, no caso vertente o apelante subscreveu o contrato de abertura de credito garantido pela livrança dada à execução, na qualidade de avalista[23], contrato esse no qual foi inserida a cláusula que configura o pacto de preenchimento[24].
Tendo outorgado tal contrato, ficou habilitado a invocar, em sua defesa, os meios de prova que a sociedade da subscritora da livrança poderia invocar.
Entre esses meios de defesa estaria a invocação da prescrição da obrigação subjacente.
Expliquemo-nos.
Como já referimos, o art. 10.º da LULL consagra a possibilidade de a letra ou livrança (art. 77º LULL) ser emitida sem conter todos os elementos referidos no art. 1º, desde que seja completada nos termos previstos nos acordos subscritos pelos intervenientes cambiários. Tais acordos designam-se, vulgarmente, “pactos de preenchimento”.
Seja como for, o ulterior preenchimento do título deverá fazer-se em conformidade com o pacto de preenchimento, em obediência ao principio pacta sund servanda (art. 406º do Código Civil), sob pena de ser considerado abusivo.
Não obstante, ressalva o mesmo art. 10º da LULL que a inobservância do pacto de preenchimento não pode ser oposta ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra ou livrança de má-fé, ou adquirindo-a tenha cometido uma falta grave.
Mas, como é natural esta ressalva aplica-se apenas quando o portador não tenha subscrito o pacto de preenchimento.
Por outro lado, atentas as caraterísticas da literalidade, abstração e autonomia da livrança, não estando o avalista no âmbito das relações imediatas, não pode o mesmo invocar quaisquer exceções relativas ao pacto de preenchimento, visto que o mesmo é habitualmente outorgado entre o subscritor da livrança e o beneficiário.
Contudo, já assim não será nas situações em que o avalista seja também ele subscritor do pacto de preenchimento, na medida em que sendo ele parte em tal acordo, as questões relativas a este passam a integrar o âmbito das relações imediatas – cfr. art. 17º da LULL.
Assim, sempre que tiver subscrito o pacto de preenchimento, pode o avalista invocar quaisquer exceções relacionadas com este, nomeadamente a sua invalidade ou ineficácia, ou o preenchimento abusivo do título, ou seja, o preenchimento em desconformidade com o pacto de preenchimento. Não obstante, quando o faça fica o avalista onerado pelo respetivo ónus de alegação e prova – art. 342.º, n.º 2, do CC.
Neste sentido cfr. os seguintes acórdãos:
- RL 19-06-2007 (Pimentel Marcos), p. 3840/2007-7;
- RL 04-06-2009 (Ana Luísa Geraldes), p. 64872/05.1YYLSB-B.L1-8;
- RL 17-11-2009, (Luís Espírito Santo), p. 6501/07.2YYLSB-A.L1-7;
- RL 08-11-2012 (Vítor Amaral), p. 5930/10.9TCLRS-A.L1-6;
- RC 20-06-2017 (Domingos Pires Robalo), p. 2519/15.0T8CBR-A.C1;
- RP 23-11-2020 (Joaquim Moura), p. 21386/17.2T8PRT-A.P1;
- STJ 24-05-2005 (Álvaro Rodrigues), p. 05A1347;
- STJ 14-12-2006 (Paulo Sá), p. 06A2589;
- STJ 17-04-2008 (Silva Salazar), p. 08A727;
- STJ 31-09-2009 (Mª dos Prazeres Beleza), p. 08B3815;
- STJ 30-09-2010 (Alberto Sobrinho), p. 2616/07.5TVPRT-A.P1.S1;
- STJ 13-04-2011 (Fonseca Ramos), p. 2093/04.2TBSTB-A L1.S1;
- STJ 22-02-2011, (Sebastião Póvoas), p. 31/05-4TBVVD-B.G1.S1
- STJ 22-05-2017 (Fonseca Ramos), p. 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1
- STJ 13-11-2018 (Paulo Sá), p. 2272/05.5YYLSB-B.L1.
Em sentido idêntico se pronunciaram CAROLINA CUNHA[25], e FILIPE CASSIANO DOS SANTOS[26].
Este mesmo raciocínio se aplica, por identidade de razão aos casos em que o avalista tiver outorgado a título pessoal[27] o contrato garantido pela livrança – neste sentido cfr. acs.:
- RC 26-11-2013 (Freitas Neto), p. 4269/10.4TBLRA-A.C1;
- RP 29-06-2015 (Alberto Ruço), p. 1106/12.9YYPRT-B.P1;
- RC 06-12-2016 (António Carvalho Martins), p. 1419/13.2TBMGR-A.C1;
- RL 25-03-2021 (Pedro Martins), p. 6798/16.7T8LSB-A.L2-2;
Retornando ao caso dos autos, diremos que uma vez que o apelante sempre poderia invocar em sua defesa a prescrição da obrigação subjacente, em caso algum o pacto de preenchimento poderia considerar-se nulo por dificultar as condições em que operaria a prescrição.
Termos em que se conclui que o pacto de preenchimento não padece da nulidade invocada.
3.2.1.4. Da violação do pacto de preenchimento
Como bem refere o ac. RP 07-01.2019 (Jorge Seabra), p. 1025/18.5T8PRT.P1, a emissão de um título em branco (cujo vencimento virá a ocorrer em momento posterior e não determinado à partida) não é equiparável à emissão de um título completo quanto aos seus elementos essenciais, nomeadamente quanto à data do seu vencimento.
O preenchimento da data de vencimento não pode prescindir do que foi pactuado entre as partes e do que elas (obrigados e credor que intervieram no acordo) podiam objetivamente deduzir ou interpretar a partir do assim pactuado, o que há-de resultar da aplicação ao pacto outorgado das regras de interpretação previstas no artigo 236º do Cód. Civil.
Isto porque é, precisamente, o pacto de preenchimento que confere força e eficácia cambiária ao título emitido em branco, sendo essa a base (quando exista) para a reconstituição da vontade dos que nele intervieram, sem prejuízo do eventual recurso à própria relação subjacente.
Ora, na petição de embargos o embargante nada disse de concreto quanto a uma eventual violação, pela exequente de qualquer acordo de preenchimento da livrança no que respeita à aposição da respetiva data de vencimento, limitando-se a afirmar que o exequente não apresentou qualquer pacto de preenchimento e que, por isso, o título executivo foi abusivamente preenchido[28].
Nos termos do art. 342.º, n.º 2, do CC, era sobre o embargante que recaía o ónus de alegação e prova de que a exequente, ao apor no na livrança exequenda a data de 2021-01-19, como sendo a do seu vencimento, violou qualquer acordo de preenchimento das livranças em branco – Vd., entre muitos outros, os acs. STJ 12-07-1995 (Martins da Costa), p. 96A033; STJ 11-11-2004 (Ferreira de Almeida), p. 04B3453; RE 08-03-2018 (Manuel Bargado), p. 1498/16.0T8BJA-A.E1; RC 20-02-2019 (Maria Catarina Gonçalves), p. 8656/17.9T8CBR-A.C1; RG 15-06-2021 (José Amaral), p. 2117/17.3T8GMR-A.G1; RL 01-07-2021 (Arlindo Crua), p. 736/18.0T8SNTCA.L1-2; e RL 06-07-2021 (Diogo Ravara), p. 20185/12.2T2SNT-A.L1-7 (proferido por este mesmo coletivo).
Por outro lado, importa recordar que resultou provado que o contrato de abertura de crédito, que motivou a subscrição da livrança foi assinado pelo embargante, na qualidade de avalista[29], e que nos termos da cláusula 22ª do mesmo contrato, que tinha por epígrafe “Titulação por livrança em branco”, as partes contratantes acordaram que ““Para titulação de todas as responsabilidades decorrentes da conta-corrente, a 1.ª CONTRATANTE e os AVALISTAS atrás identificados para o efeito entregam à CAIXA uma livrança em branco subscrita pela primeira e avalizada pelos segundos, e autorizam desde já a CAIXA a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CAIXA, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:
a) A data de vencimento será fixada pela CAIXA quando, em caso de incumprimento pela devedora das obrigações assumidas, a Caixa decida recorrer à realização coativa do respetivo crédito; b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes da presente abertura de crédito, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança. (…)”.
Como resulta desta cláusula, o que as partes acordaram foi que a exequente, embargada e ora apelante poderia preencher a livrança “no momento em que decidisse recorrer à realização coativa do respetivo crédito”.
Desta cláusula não resulta, a nosso ver, que o Banco exequente tenha assumido a obrigação de demandar todos os obrigados cambiários ao mesmo tempo.
Por isso, o facto de ter reclamado o seu crédito na insolvência da subscritora da livrança não a vinculava a preencher a livrança nessa mesma data.
Note-se ainda que da factualidade provada não resulta que na insolvência da subscritora da livrança o banco embargado tenha invocado a obrigação cambiária, antes se indicia que o fez invocando a obrigação subjacente. Tal é o que resulta do teor do ponto 11. dos factos provados: “A sociedade F E__-Etiquetas e Sistemas de Codificação, Lda. foi declarada insolvente no processo que corre termos sob o n.º 580/10.2TYLSB, tendo a exequente aí reclamado o crédito emergente do contrato supra identificado em 2010.”[30]
A esta luz não pode concluir-se que ao preencher a livrança, nos termos em que o fez o banco embargado tenha violaco o pacto de preenchimento.
3.2.1.5. Síntese conclusiva
Nesta conformidade, tendo a livrança sido preenchida em 19-01-2021, e tendo a presente execução sido intentada em 05-03-2021[31], forçoso é concluir que à data da propositura da execução embargada, o prazo prescricional não se mostrava esgotado.
Assim sendo, conclui-se igualmente que o a obrigação assumida pelo embargante enquanto avalista da livrança exequenda não prescreveu.
3.2.2. Do abuso do direito
Estabelece o art. 334º do Código Civil que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Interpretando este preceito, diz ANTUNES VARELA[32] que “Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente, se excedam tais limites”. Quer isto dizer que o Código Civil consagrou uma conceção objetiva de abuso do direito.
No que respeita aos limites impostos pela boa-fé, avulta em especial a vertente da tutela da confiança legítima. A este propósito sublinhou BAPTISTA MACHADO[33] que «Dentro da comunidade das pessoas responsáveis (ou imputáveis), a toda a conduta (conduta significativa, comunicativa) é inerente uma “responsabilidade” – no sentido de um “responder” pelas pretensões de verdade, de rectitude ou de autenticidade inerentes à mensagem que essa conduta transmite (...).
Desta “autovinculação” inerente à nossa conduta comunicativa derivam ao mesmo tempo regras de conduta básicas, também postuladas pelas exigências elementares de uma ordem de convivência e de interacção, que o próprio direito não pode deixar de tutelar, já que sem a sua observância nem essa ordem de convivência nem o direito seriam possíveis (...).
Do exposto podemos também concluir que o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo e que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem».
Nesta medida, ensina MENEZES CORDEIRO[34] que a figura do abuso do direito abrange uma tipologia diversificada de situações de exercício inadmissível de posições jurídicas e que compreende, nomeadamente, as seguintes modalidades:

- a exceptio doli: o exercício de uma posição jurídica poderia ser detido com a alegação de que o seu autor incorre em dolo, isto é (neste caso), defronta diretamente a boa fé;
- o venire contra factum proprium: o exercente deixa entender – ou declara – ir tomar uma certa atitude e, depois, toma atitude contrária ou diversa;
-as inalegabilidades formais: o exercente vem alegar a invalidade de um negócio jurídico por vício de forma, em termos contrários à boa fé;
- a supressio: o exercente deixa passar um tal lapso de tempo sem exercer o seu direito que, quando o faça, contraria a boa fé;
- a surrectio: por força da boa fé, o exercente vê, contra ele ou em termos que ele deva respeitar, formar-se um direito que, de outro modo, não existiria;
- o tu quoque: o exercente pratica um facto ilícito ou indevido e depois alega-o contra outrem;
- o exercício em desequilíbrio: o exercente desenvolve uma atividade danosa inútil, o exercente exige algo que deve restituir de seguida (…) ou o exercente provoca uma desproporção inadmissível entre a vantagem própria e o sacrifício que impõe a outrem.”
No caso vertente, verifica-se que a invocação da figura do abuso do direito se estriba em dois argumentos:
a) uma alegada desproporção entre o montante que a apelante alega ter sido reclamado na insolvência da empresa subscritora da livrança (€ 17.000,00) e a quantia reclamada na execução embargada (€ 56.861,98), o que chama à colação a figura do exercício em desiquilíbrio;[35]
b) O facto de terem decorridos 11 anos entre a data em que o embargado reclamou créditos no processo de insolvência da sociedade subscritora da livrança, e a data em que preencheu a mesma sem o ter interpelado para pagar a quantia titulada, o que convoca a figura da supressio.[36]
Relativamente ao primeiro fundamento, importa considerar, que como já referimos, na petição de embargos a apelante nada alegou no que respeita ao montante reclamado pela embargada na insolvência da sociedade subscritora da livrança, fazendo-o apenas em alegações de recurso.
E também já tivemos oportunidade de referir que na apreciação de exceções de conhecimento oficioso não tem nem deve o Tribunal considerar factos que não tenham sido oportunamente alegados pelas partes, nem se mostrem adquiridos no processo, por força do princípio da aquisição processual.
Donde, apenas podemos concluir pela improcedência de tal fundamento.
No tocante ao argumento do tempo decorrido entre a data da reclamação do crédito no processo de insolvência da subscritora da livrança e a data do preenchimento do mesmo título, importa salientar que não resulta da factualidade provada que antes de ter sido preenchida a livrança exequenda o embargante nunca tenha sido interpelado para pagar.
A prova dos factos consubstanciadores dos elementos constitutivos da exceção de abuso do direito cabia ao embargante – art. 342º, nº 2 do CC.
Não tendo o apelante feito tal prova, sibi imputet.
Quanto ao mais, afiguram-se particularmente ilustrativas as considerações vertidas no ac. STJ 19-10-2017 (Rosa Tching), p. 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1 que, pronunciando-se acerca de uma situação em tudo semelhante à dos presentes autos, discorreu nos seguintes termos:
“E muito menos se vê que o comportamento do banco ao instaurar a execução, depois de decorridos mais de 12 anos sobre a data da celebração do negócio subjacente à emissão da livrança exequenda (ano de 1999- cfr. docs. de fls. 34 e 35) e mais de 7 anos desde a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança, fosse suscetível de apresentar-se aos olhos da recorrente, enquanto avalista, como gerador da confiança legítima de que renunciaria ao direito de exigir dela o pagamento da quantia titulada na livrança.
Como refere o citado Acórdão do STJ, de 19.02.2003, mantendo-se o aval prestado pela recorrente, esta deveria contar, a qualquer momento, com o exercício do direito de cobrança coerciva dos créditos vencidos, designadamente pela via da ação cambiária.
De igual modo, não releva o facto da sociedade subscritora ter sido declarada insolvente em 23.12.2003, falecendo o argumento avançado pela recorrente no sentido de que se fosse intenção do banco exercer contra ela o direito de cobrança da quantia nela titulada, tê-lo-ia feito em momento anterior ou logo após à declaração de insolvência da devedora originária, posto que, a partir de então, ficou a saber que o seu crédito sobre aquela tornou-se incobrável.
É que, conforme já se deixou dito, a assunção da obrigação de avalista afere-se pela data da sua constituição, não estando condicionada pela insolvabilidade ulterior da avalizada.
E o mesmo vale dizer quanto à invocada necessidade de interpelação do avalista da subscritora, no âmbito de uma livrança em branco, com vista ao seu preenchimento quanto à data do vencimento e ao montante e/ou como condição prévia da instauração da execução, na medida em que não se trata de exigência que resulte da lei, mormente da LULL, nem se mostra que decorra do pacto de preenchimento.
Em suma, nenhuma das situações descritas pela recorrente indicia que o banco exequente tenha, de algum modo, violado os princípios da boa fé e da confiança que a recorrente nele depositou, não se podendo inferir do simples facto do mesmo ter desencadeado os meios legais para obter a cobrança do crédito titulado na livrança que ele atuou com abuso de direito, nomeadamente por violação da tutela da confiança – venire contra factum proprium – ou por qualquer outro fundamento susceptível de integrar a figura do abuso de direito prevista no art. 334º do C. Civil.”
Subscrevemos inteiramente este entendimento.
Porque assim é, não nos resta senão concluir pela improcedência da exceção de abuso do direito.
3.2.3. Síntese final
Em face de todo o exposto, perante a improcedência todos os fundamentos invocados na presente apelação, resta apenas concluir pela sua total improcedência.
3.2.4. Das custas
 Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito”.
No caso dos autos, face à total improcedência da presente apelação, é inegável que o apelante decaiu totalmente, devendo por isso suportar a totalidade das custas do presente recurso.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente, confirmando integralmente o despacho saneador-sentença recorrido.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 08 de novembro de 2021 [37]
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
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[1] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[2] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
[3] Ob. cit., p. 119.
[4] “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2.ª Ed., Almedina, 2019, p. 468.
[5] “O Recurso Civil. Uma Teoria Geral”, AAFDL, 2017, p. 69.
[6] No sentido oposto cfr., no entanto, o ac. STJ 07-05-2009 (Pires da Rosa), p. 09B0057.
[7] Ponto 3. dos factos provados.
[8] Adiante designada pela sigla LULL.
[9] Cfr. Abel Delgado, “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças Anotada”, 5.ª Edição, Livraria Petrony, 1990, p. 175.
[10] Idem, ibidem.
[11] Cfr PINTO FURTADO, “Títulos de crédito”, Almedina, 2000, pp. 144-145.
[12] Cfr. MANUEL DE ANDRADE, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, II volume, Almedina, 1987, p. 445.
[13] Citados noutros acórdãos do STJ mas, ao que sabemos, inédito.
[14] Ou livrança, nos termos do art. 77º, 1, da LULL.
[15] Vd. nota anterior.
[16] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, II Vol., Coimbra Editora, 3ª ed., 1986, pp. 29-31.
[17] Corresponde, grosso modo, ao art. 151.º, n.º 1, do anterior CPEREF, e ao art. 1196.º, n.º 1, do CPC de 1961, na sua redação original.
[18] A este propósito, cfr. ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª Edição, Almedina, 2017, pp. 162-164, e LUÍS DE MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, 8.ª Edição, 2018, pp. 181-182.
[19] Ob. cit., p. 162.
[20] “Da Letra e da Livrança”, Vol IV, 1942, p. 555.
[21] “Manual de Letras e Livranças”, Almedina, 2016,  pp. 200 ss.
[22] Ob. cit., p. 206.
[23] Ponto 7. dos factos provados. É por isso absolutamente destituída de fundamento a afirmação vertida na parte final do art. 9-, na qual o embargante alega desconhecer o conte+udo de tal contrato.
[24] Ponto 8. dos factos provados.
[25] Ob. cit., pp. 119-125.
[26] “Livrança em Branco, Pacto de Preenchimento, e aval”, in Revista de Direito Comercial, maio de 2020, disponível em https://www.revistadedireitocomercial.com/s/2020-05-191-322-LA-PV.pdf
[27] E não apenas enquanto representante legal de pessoa coletiva ou sociedade.
[28] Arts. 12- e 13- da petição de embargos.
[29] Ponto 7. dos factos provados.
[30] Acentuado e sublinhado nossos.
[31] Vd. requerimento executivo, com a refª 28633105/38170741.
[32] “Das obrigações em geral”, 7ª Ed., p. 536.
[33] RLJ, ano 119, p. 232.
[34] “Teoria Geral do Direito Civil”, AAFDL, 1989, pp.372-383. Para uma análise detalhada de cada um dos tipos de atos abusivos cfr. do mesmo autor, “Tratado de Direito Civil”, V, 2ª ed., Almedina, 2015, pp. 295-381.
[35] Conclusões 25. a 28.
[36] Conclusões 27. a 29.
[37] Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.