PROCESSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
PROCESSO RESPEITANTE A MAGISTRADO
ESTACIONAMENTO
ACÓRDÃO ABSOLUTÓRIO
Sumário


I. A ratio da proibição de estacionamento prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 50.º do Código da Estrada é manter desimpedidos os acessos, no que ora importa, a locais de estacionamento para proteção do direito à sua utilização (parques, lugares de estacionamento).
II. No caso em que o titular do direito de estacionamento é o único utilizador do espaço, a proibição de impedimento do acesso dirige-se a todos os outros condutores que não estejam autorizados pelo próprio.
III. Percorrendo as restantes alíneas do art. 50.º (com exceção das als. g) e h) que visam interesses gerais de segurança e de organização da mobilidade), verificamos, igualmente, que a proibição tem por desiderato proteger direitos de circulação e acesso
IV. Podemos, pois, concluir que a proibição de estacionamento da al. c), do n,º 1, do artigo 50.º do Código da Estrada não é aplicável ao proprietário da garagem cujo livre acesso a norma visa proteger.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório

1. Na sequência de auto de contraordenação levantado pela Polícia de Segurança Pública, mediante decisão administrativa do Município ..., foi aplicada a AA, ..., a coima de €60, pela prática da contraordenação prevista e punível pelo artigo 50.º, n.ºs 1, al. c) e 2, do Código da Estrada.


2. O arguido interpôs recurso.

São do seguinte teor as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada:

“L. O veículo automóvel ligeiro com a matrícula ..-XH-.., pertence ao arguido;

2. Na rua ..., ..., no ..., não existe qualquer sinalização proibitiva de estacionamento;

3, O imóvel sito na Rua ..., ..., no ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ... da freguesia ..., é propriedade do ora arguido;

4. O arguido nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, encontrava-se estacionado na via pública, junto à sua casa de habitação,

5. O arguido, com a sua atuação, não impediu o seu próprio acesso, ou do seu veículo, à sua propriedade.

6. O ora impugnante não violou o disposto no n.º 1 do art. 50.º do Código da Estrada, pelo que não deverá lhe ser aplicada qualquer coima e, por conseguinte,

7. Deverá ser absolvido da infração de que vem acusado, com todas as legais consequências.”


3. O Ministério Público no Juízo de Competência Genérica ... declarou opor-se a que fosse proferida decisão por mero despacho, nos termos previstos no artigo 62º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27-10, “porquanto se afigura necessário inquirir o agente autuante, para aferir se o veículo do arguido se encontrava estacionado à frente do n.º 26 ou do n.º 28 da Rua ..., e se tal estacionamento bloqueava o acesso ao n.º 26.”

Fundamentou a sua decisão do seguinte modo:

“De facto, o arguido é o proprietário da moradia com logradouro e garagem localizada no n.º ..., tal como documentalmente comprovado pelo mesmo (cfr. certidão de registo predial e caderneta predial), e, segundo o próprio, reside nesse local.

Ora, o arguido não poderá cometer a contra-ordenação que lhe é imputada se se vier a comprovar que o mesmo estava estacionado somente em frente à respectiva moradia/garagem. Efectivamente, o artigo 50.º, n.º 1, al. c), do Código da Estrada deverá ser interpretado teleologicamente, à luz da "ratio" da norma: visa-se punir a conduta de terceiros que estacionem à frente de garagens de outras pessoas, impedindo assim o acesso às mesmas pelos respectivos proprietários/utilizadores.

Consigna-se que o Ministério Público retirou a acusação deduzida contra o arguido, por factos idênticos, no processo 1163/22...., precisamente com esse fundamento; contudo, no aludido processo, os factos imputados ao arguido abrangiam somente o estacionamento em frente à sua própria moradia/garagem (n.º 28), sendo que nos presentes autos é necessária a produção de prova”.

O Ministério Público indicou como prova o agente da PSP autuante, BB.

Esta posição foi reiterada pelo Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal.

A incompetência material do Juízo de Competência Genérica ... foi por este declarada, ao abrigo do disposto nos artigos 11.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal (aplicável aos processos contraordenacionais ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO) e 55.º, alínea b), da LOSJ).

O Tribunal é o competente (artigo 55.º, al. b) da LOSJ).

Inexistem nulidades insanáveis ou outras exceções que obstem à apreciação do mérito da causa (cf. artigo 311.º do Código do Processo Penal aplicável ex vi artigo 41.º do RGCO).

Procedeu-se a julgamento, nos termos dos artigos 66.º a 72.º do RGCO.

Foi colhido o depoimento da testemunha indicada pelo Ministério Público e dada a palavra para alegações à Ilustra Mandatária do arguido e ao D.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal que dela fizeram uso.


Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Começando por delimitar o objeto do recurso, o qual nos é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada e pelo Ministério Público, verifica-se que são submetidas à apreciação e julgamento deste Supremo Tribunal as seguintes questões:

1. O veículo encontrava-se estacionado, no dia e hora constantes do auto de notícia, junto ou em frente aos prédios com os n.ºs de polícia “...” ou apenas ao n.º ..., impedindo o acesso às garagens respetivas?

2. O estacionamento que obsta ao acesso a garagem de imóvel de que o condutor é proprietário, constitui a infração prevista no artigo 50.º, n.º 1, al. c), do Código da Estrada?


II. Fundamentação


1. Sobre os factos

1. a. A Decisão Administrativa impugnada

Foi proferida decisão administrativa pelo Município ..., em 20 de abril de 2022.

É do seguinte teor a decisão impugnada:

«1. Conforme auto de contraordenação n.º ...06, que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais, nos termos do disposto no n. 94 do art.s 181.9 do Código da Estrada, levantado pela PSP, o(a) arguido(a) AA, portador do Bilhete de Identidade n.º ..., do NIF n.º ..., residente em Rua ..., ..., ..., ... ..., PORTUGAL, vem acusado(a) do seguinte:

No dia 2020/06/29, pelas 20:35, no local Rua ..., ..., ..., mediante condução do veículo AUTOMÓVEL LIGEIRO, com a matrícula ..-XH-.. foi praticada a seguinte infração: estacionamento de veículo em local por onde se faz o acesso de pessoas (ou de veículos) a uma propriedade (garagem).

Tal facto constitui contraordenação ao disposto no art.º 50º nº 1 do Código da Estrada, sancionável com coima de 60 Euros a 300 Euros, nos termos do art.º 50, nº 2.

2. No dia 2021/08/12, foi o(a) arguido(a) notificado(a) conforme resulta dos autos, nos termos dos art.s 175.º e 176.º do Código da Estrada. O(A) arguido(a) não apresentou defesa nem efetuou o pagamento da coima, tendo pedido consulta de processo a 23/08/2021, tendo a mesmo ocorrido a 11/12/2Q21,

3. A contraordenação pela qual o(a) arguido(a) vem acusado é classificada como leve, sendo sancionável com coima nos termos do artigo 136.º do Código da Estrada.

4. O auto de contraordenações faz fé em processo de contraordenação, até prova em contrário, quanto aos factos presenciados pela entidade autuante, quando levantado nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art.º 170.º do Código da Estrada, tal como, nos termos do nº 4 do mesmo artigo, quando tenha por base os elementos de prova obtidos através de aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares. No caso em apreço, verifica-se que os pressupostos daquela disposição legal foram observados.

5. Face aos elementos existentes no processo, consideram-se provados os factos constantes do auto de contraordenação.

6. Os factos descritos e provados levam a concluir que a infração foi praticada a título de negligência, nos termos do art.º 133.º do Código da Estrada, porquanto não agiu com o modo cuidado a que estava legalmente obrigado.

7. Nestes termos, ponderados os elementos determinantes da medida de sanção constantes no artigo 139.º do Código da Estrada, determino:

A) A aplicação de uma coima no montante 60 € (sessenta euros);

B) A aplicação de custas, no montante de 51 € (cinquenta e um euros), nos termos do artigo 185.2 do CE;

C) Os valores referidos no ponto A) e B) da presente decisão, perfazem o total de 111 € (cento e onze euros) que deverá ser pago no prazo máximo de 15 dias úteis após a decisão se tornar definitiva, podendo efetuar o seu pagamento na Câmara Municipal ... -Largo ... ... ou pôr transferência bancária- MiUennium BCP- PT50 ...05, devendo neste último caso remeter o comprovativo de pagamento com identificação do número do auto para o seguinte e-mail: ....”


Por sua vez, do auto de contraordenação consta, quanto à descrição da infração em causa: “INFRACÇÃO: Data 2020-06-29 Hora 20:35 Presenciada pelo autuante ...-BB e pela Testemunha     , Bl/N° do Agente     /    . Local RUA ..., ..., ... Comarca ... Distrito ... Município ... Descrição Sumária Estacionamento de veículo em local por onde se faz o acesso de pessoas [ou de veículos) a uma propriedade (Garagem). Normas Infringidas CE - art.º 50.º n.º 1. SANÇÔES: Coima: Euros 60,00 (Sessenta euros) a Euros 300,00 Prevista em art.º° 50.° n.º 2.

(Destacados nossos)


1.b. Matéria de facto provada Com relevo para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. O veículo com a matrícula ..-XH-.. é propriedade do arguido.

2. O imóvel sito na Rua ..., ..., com o n.º de polícia ... é propriedade do arguido. (prova documental)

3. Pelas 20.35 horas do dia 29.06.2020, o referido veículo encontrava-se estacionado na Rua ..., no ..., junto aos n.ºs de polícia ....

4. O veículo obstruía o acesso à garagem do imóvel com o n.º ..., propriedade do arguido

5. O arguido não tem averbado no seu RIC a prática de qualquer contraordenação nos últimos 5 anos.

1.c. Convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados.

Em julgamento, a testemunha confirmou o auto de notícia.

Perguntada, reafirmou que o veículo se encontrava estacionado junto aos dois números de polícia (...); informou que se deslocou, sozinha, ao local, por determinação superior e que não contactou o proprietário da viatura com vista à sua remoção.

O arguido não prestou declarações.

Da prova documental junta, resulta que o veículo, bem como o imóvel com o n.º de polícia ... da Rua ..., no ..., são propriedade do arguido.

E que, pelas 20:35 do dia 29.06.2020, se encontrava estacionado na identificada artéria.


1.d. Matéria de facto não provada

Não resultou provado que o veículo com a matrícula ..-XH-.., nas circunstâncias temporais descritas no auto de notícia e na Decisão Administrativa, obstruísse o acesso à garagem do n.º 26 da Rua ..., ....


1.e. Convicção do Tribunal quanto aos factos dados como não provados

O auto de notícia e, por reprodução, a decisão administrativa impugnada, quanto aos factos:

- Identifica a hora e local da infração “...” da Rua ...;

- Descreve a infração: “Estacionamento de veículo em local por onde se faz o acesso de pessoas [ou de veículos) a uma propriedade (Garagem)”.

A simples referência aos n.ºs de polícia nos citados termos “...”, apenas como “local da infração”, reiterada em julgamento, sem indicação do(s) acesso(s) eventualmente obstruído(s), não permite concluir, com a certeza devida, que a viatura impedisse o acesso à garagem do n.º 26.

Face à concreta circunstância de um dos imóveis ser propriedade do arguido, tal especificação revela-se particularmente importante.

O depoimento prestado, 2 anos após os factos, também não permite concluir que o veículo impedia o acesso à garagem do prédio contíguo.

Afigura-se relevante o facto de não ter sido, perante a constatação de que a viatura impedia tal acesso, contactado o proprietário no sentido de a remover.

Com efeito, apesar de, segundo a testemunha, a deslocação ao local ter sido determinada superiormente, o que poderia indiciar prévia denúncia pelo particular afetado, o efeito imediato pretendido – a remoção do obstáculo – não foi alcançado nem objeto de qualquer diligência.

É entendimento pacífico que o valor probatório atribuído ao auto de contraordenação pelo n.º 3, do artigo 170º, do Código da Estrada, ao declarar que aquele auto faz fé em juízo, até prova em contrário, “não acarreta qualquer presunção de culpabilidade nem envolve qualquer manipulação arbitrária do princípio do in dubio pro reo, quando devidamente interpretado e aplicado, no sentido de que a fé em juízo consiste na atribuição de um reforçado valor probatório concedido a certas comprovações para factos presenciados pela autoridade ou agente da autoridade, sem que tal valor afete o princípio da presunção de inocência e o direito de defesa (com destaque para o exercício do contraditório), tal qual se mostra consagrado na Constituição da República Portuguesa – artigo 32º, n.º1.”[1]

À referida descrição dos factos, no contexto exposto que não tinha de ser do conhecimento do Senhor Agente autuante que, aliás, se deslocou ao local por determinação superior, somam-se:

- o histórico das infrações de trânsito imputadas ao arguido, consistente apenas na presente e em outra de estacionamento à porta da sua residência;

- o facto de nenhuma diligência ter sido tomada com vista à remoção da viatura, (sendo que a consulta da morada do proprietário se encontra disponível para as autoridades policiais) o que parece indiciar que não houve prévia denúncia nem haveria, verdadeiramente, impedimento de terceiro.

Considerando o exposto, não se julga provado que o veículo do arguido, nas circunstâncias de tempo descritos, impedisse o acesso à garagem do n.º 26.


2. Do Direito

Dispõe a alínea c) do n.º 1 do artigo 50.º do Código da Estrada: “(É proibido o estacionamento)

c) Nos lugares por onde se faça o acesso de pessoas ou veículos a propriedades, a parques ou a lugares de estacionamento;”

É manifesta a ratio da proibição: manter desimpedidos os acessos, no que ora importa, a locais de estacionamento para proteção do direito à sua utilização (parques, lugares de estacionamento).

Tal proibição há de, assim, beneficiar os respetivos utilizadores: no caso de um parque de estacionamento, todos os condutores ou os credenciados; em lugares de estacionamento particulares, os proprietários, locatários ou os por aqueles autorizados.

O acesso, em qualquer momento, pelos titulares do direito, a lugares de estacionamento particulares constitui, assim, um interesse protegido pela norma citada.

No caso em que o titular do direito de estacionamento é o único utilizador do espaço, a proibição de impedimento de acesso dirige-se a todos os outros condutores que não estejam autorizados pelo próprio.

Percorrendo as restantes alíneas do art. 50.º (com exceção das als. g) e h) que visam interesses gerais de segurança e de organização da mobilidade), verificamos, igualmente, que a proibição tem por desiderato proteger direitos de circulação e acesso:

“a) Impedindo o trânsito de veículos ou obrigando à utilização da parte da faixa de rodagem destinada ao sentido contrário, conforme o trânsito se faça num ou em dois sentidos;

b) Nas faixas de rodagem, em segunda fila, e em todos os lugares em que impeça o acesso a veículos devidamente estacionados, a saída destes ou a ocupação de lugares vagos;

d) A menos de 10 m para um e outro lado das passagens de nível;

e) A menos de 5 m para um e outro lado dos postos de abastecimento de combustíveis;

f) Nos locais reservados, mediante sinalização, ao estacionamento de determinados veículos;

g) De veículos agrícolas, máquinas industriais, reboques ou semirreboques quando não atrelados ao veículo trator, salvo nos parques de estacionamento especialmente destinados a esse efeito;

h) Nas zonas de estacionamento de duração limitada quando não for cumprido o respetivo regulamento;”

Podemos, pois, concluir que a proibição de estacionamento da al. c), do n,º 1, do artigo 50.º do Código da Estrada não é aplicável ao proprietário da garagem cujo livre acesso a norma visa proteger.


Assim, considerando a matéria provada, julga-se não verificada a prática da infração imputada ao arguido na decisão administrativa recorrida.

Pelo que, e decidindo.

Acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, concedendo provimento ao recurso, em revogar a decisão administrativa impugnada, absolvendo-se o arguido.

Sem custas.

Notifique-se e cumpra-se o disposto no art. 70, n. 4, do DL 433/82.


Lisboa, 19 de outubro de 2022


Teresa de Almeida (relatora)

Ernesto Vaz Pereira (1.º Adjunto)

Lopes da Mota (2.º Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

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[1] Ac. STJ de 06.12.2006, no Proc. 06P3666, e Ac. Tribunal Constitucional n.º 87-307-2, de 14.09.1987, ambos disponíveis em DGSI.