HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
CONTAGEM DE PRAZOS
DETENÇÃO
DESPACHO
ACÓRDÃO
INDEFERIMENTO
Sumário


I. O tempo de detenção que antecede o despacho judicial de aplicação da prisão preventiva não releva para o termo inicial dos prazos definidos no art. 215.º do CPP.
II. Dada a natureza substantiva dos prazos previstos no artº 215º do CPP (a par dos prazos de apresentação de detido ou de prescrição do procedimento criminal e da pena), é aplicável à sua contagem o disposto no art.º 279º do Código Civil.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório


1. AA, de 45 anos, arguido no processo n.º 38/19.4PESTR, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juízo Central Criminal de Santarém - Juiz ..., e aí melhor identificado, alegando encontrar-se em situação de prisão ilegal, por se mostrar ultrapassado o termo do prazo máximo de prisão preventiva a que se encontra sujeito, vem, nos termos do art.º 31.º da Constituição da República Portuguesa e do art.º 222.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, intentar providência de habeas corpus com os seguintes fundamentos: (transcrição)

2. “Foi detido no dia 9/4/2022 e submetido à medida de coação privativa da liberdade em 10/4/2021.

Entretanto, tal medida foi mantida, nas reapreciações ocorridas.

Advém do artº 215º-2 do CPP que a prisão preventiva se extingue quando, desde o seu início, tiverem decorrido 1 ano e 6 meses.

Quer desde a detenção quer desde a prisão preventiva já se encontram decorridos 1 ano e 6 meses, sem ter havido condenação em 1ª instância.

No sentido de a detenção relevar para início da contagem do prazo convoca-se a anotação vertida em CPP – Comentado, 2014, Almedina, pelo Cons. Maia Costa:

“A detenção que for seguida de decretamento da prisão preventiva conta como início da execução desta medida, uma vez que a privação da liberdade ocorre desde aquele primeiro momento.”

É esse o sentido insofismável da letra da lei; basta atentar na dinâmica de alguns interrogatórios judiciais de arguidos detidos, que demoram dias e dias e por vezes semanas, e que não faz sentido deixar fora da tutela temporal do decurso do tempo.

Assim foi entendido, por exemplo, no Ac. STJ de 24/10/2007, SJ200710240013, Rel. Cons. Santos Cabral.

Independentemente dessa questão do início da contagem do decurso do prazo, já se encontram decorridos 1 ano e 6 meses, seja por que perspetiva for.

Face ao exposto, requer a presente providência, visando ser restituído à liberdade.”

3. Foi prestada a informação a que alude o art° 223.°, n.º 1, in fine do C.P.P.: (transcrição)

“O arguido AA foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, em 10 de Abril de 2021, conforme o auto de 1º interrogatório judicial de arguido detido, então indiciado pela prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 Janeiro.

Por despacho proferido em 8 de Outubro de 2021, o Ministério Público, em processo comum e com intervenção do Tribunal Colectivo, acusou AA pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C anexa a esse diploma legal e ainda, somente no caso do arguido BB, à tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal.

Por decisão instrutória proferida em 28 de Janeiro de 2022, decidiu-se pronunciar os requerentes da instrução, CC e DD, e os demais arguidos, entre os quais AA, pelos factos e incriminações (qualificação jurídica) que constam da acusação pública, para que se remeteu e que se deu por reproduzida ao abrigo do artigo 307.º, n.º 3 e 1 do Código de Processo Penal, a fim de serem julgados em processo comum e com a intervenção do Tribunal Colectivo.

Por acórdão, proferido no dia 10 de Outubro de 2022, AA foi condenado pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 8 (oito) anos de prisão.

A medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido foi revista e mantida até ao presente.

Nesta conformidade, o arguido mantém-se em situação de privação da liberdade.”


A providência vem instruída com os elementos pertinentes, tendo sido complementados com a Ata de Audiência e Julgamento.


Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Defensor do Requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP):


II. Fundamentação

Dos elementos que instruem o processo, com interesse para a decisão do pedido de habeas corpus, extraem-se os seguintes:


a.   Factos:

- O arguido AA foi sujeito à medida de coação de prisão preventiva, em 10 de abril de 2021, conforme o auto de 1º interrogatório judicial de arguido detido, então indiciado pela prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 janeiro;

- Em 29.09.2022, data designada para a leitura do acórdão, o Ilustre Mandatário do arguido AA, ora peticionante, opôs-se à leitura do acórdão na ausência deste;

- Por acórdão, proferido no dia 10 de outubro de 2022, AA, foi condenado pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 8 (oito) anos de prisão;

- O acórdão foi lido na presença do peticionante e seu mandatário;

- A medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido foi revista e mantida até ao presente.


b.   Do direito

A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita como garantia fundamental no artigo 31° da Constituição, tem tratamento processual nos artigos 220° e 222° do CPP que estabelecem os fundamentos da providência, concretizando a previsão constitucional.

No caso, importa o artigo 222° do CPP que se refere aos casos de prisão ilegal e, em cujos termos, a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência deve resultar da circunstância de a mesma

- ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

- ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

- ou quando se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 222° do CPP.

A providência em causa assume, assim, uma natureza excecional, expedita, de garantia de defesa do direito de liberdade, consagrado este nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, para pôr termo a situações de detenção ou de prisão ilegais.

Em jurisprudência constante, tem vindo este tribunal a considerar que a providência de habeas corpus corresponde a uma medida extraordinária ou excecional de urgência, perante as ofensas graves à liberdade, com abuso de poder, sem lei ou contra a lei, referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP [acórdão de 19.0.22, no proc. n.º 57/18.8JELSB-D.S1; e também, entre outros, os acórdãos de 02.02.22, no proc. 13/18.6S1LSB-G, de 04.05.22, no proc. 323/19.5PBSNT-A.S1, 02.11.2018, de 04.01.2017, no proc. n.º 78/16.5PWLSB-B.S1, e de 16-05-2019, no proc. n.º 1206/17.9S6LSB-C.S1, em www.dgsi.pt].

Os motivos de ilegalidade da prisão, como fundamento da providência de habeas corpus, têm, assim, de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Como se afirmou, entre outros, no acórdão de 22.1.2020, no Proc. n.º 4678/18.0T8LSB-B.S1), o Supremo Tribunal de Justiça tem de verificar:

- se a prisão, em que o peticionante atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial,

- se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e

- se estão respeitados os limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial.


c.    No caso

1. O peticionante reputa a sua prisão ilegal, por excesso de prazo, acolhendo-se à alínea c), do citado artº 222º do CPP.

Considera que o início de contagem dos prazos de prisão de prisão preventiva corresponde à data da detenção.

E que, mesmo considerando que o início dos prazos se fixa com o despacho de aplicação da medida, “já se encontram decorridos 1 ano e 6 meses, sem ter havido condenação em 1ª instância”.

2. Sobre o termo inicial dos prazos fixados pelo art. 215.º do CPP, é jurisprudência constante deste Tribunal que o mesmo corresponde ao momento da prolação do despacho que aplica a medida de coação de prisão preventiva.

Esta interpretação começa por ter apoio claro no texto legal, em particular no corpo do n.º 1 do citado artigo “A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido (…)”.

E assenta na clara distinção entre a detenção, precária, cautelar e condicional, com regime e prazo próprios, e a prisão preventiva, uma das medidas de coação, reguladas no seu conjunto de modo autónomo.

Por todos, cita-se significativa passagem do acórdão deste Tribunal, de14.06.2012, no Proc.º 59/12.8YFLSB.S1, Relator Santos Cabral:

“No que respeita entendemos que, na esteira de Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal pag 698) a detenção se distingue da prisão preventiva. Esta resulta de decisão judicial interlocutória e deve observar os prazos do artigo 215.º.

Por seu turno a detenção resulta de acto de autoridade judiciária, órgão de polícia criminal, entidade policial ou qualquer pessoa e deve observar os prazos do artigo 254.° A detenção prevista nos art.ºs 254.º a 261.º é uma medida cautelar, de privação de liberdade pessoal (cfr. Pareceres do Conselho Consultivo da PGR, n.º s 111/90 e 35/99, DR, II Série, de 24.1.2001), posta ao serviço de objectivos bem explicitados na lei, designadamente para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser presente a julgamento em processo sumário ou ser presente ao juiz competente para o primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção –n.º 1, do art.º 254.º, do CPP –ou, ainda, para assegurar a presença imediata, ou não sendo possível, no mais curto prazo , mas sem nunca exceder vinte e quatro horas , do detido perante a autoridade judiciária em acto processual –n.º 2 .

Na verdade, a lei concebe a simples detenção como uma "medida caracterizada pela precariedade e condicionalidade, pois circunscreve-se à privação de liberdade entre o momento da medida detentiva e a validação judicial subsequente, estando sempre dependente desta", e distinguindo-a, assim da prisão preventiva que, embora também de carácter subsidiário e provisório, "aponta para uma privação de liberdade resultante de uma decisão judicial, tendo como marcos temporais a decisão judicial de validação da detenção e a decisão condenatória"

Mas sendo, assim, adquirindo a detenção foros de autonomia em relação á prisão preventiva e dotada de finalidade, prazo e fundamentação própria é evidente que a mesma não pode ser absorvida pela prisão preventiva para efeitos da contagem do prazo desta. A detenção está sujeita a um prazo próprio de concessão de legalidade-48 horas- findo o qual a privação de liberdade pode, e deve, ser defendida através de um instrumento específico que é o habeas corpus em virtude de detenção ilegal-artigo 220 do CPP. Em contrapartida a prisão preventiva está sujeita ao prazo máximo do artigo 215 e a sua violação tutelada pelo instrumento inscrito no artigo 222 do mesmo diploma.”

Quanto ao fundamento relativo ao termo inicial do prazo, conclui-se, sem necessidade de maior desenvolvimento face ao amplo consenso interpretativo alcançado pela jurisprudência e pela doutrina, aqui acompanhado, que para efeitos de contagem dos prazos de duração máxima de prisão preventiva só releva o tempo decorrido após a sua aplicação judicial, não se incluindo nos prazos previstos no art.º 215º do CPP o tempo da detenção.[1]


O tempo de detenção que antecede o despacho judicial de aplicação da prisão preventiva não releva para o termo inicial dos prazos definidos no art. 215.º do CPP.


3. O peticionante, sem justificar, alega que, independentemente da definição do termo inicial, o prazo se encontra excedido.

Como vimos, o requerente foi sujeito a prisão preventiva por despacho de 10 de abril de 2021 e o Acórdão condenatório foi proferido em 10.10.2022, referindo-se um e outro à prática, ali indiciada e aqui provada, de crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C anexa.

O prazo aplicável é o previsto no n.º 1, al. c) e n.º 2 do referido art.º 215.º, ou seja, de 1 ano e seis meses.

O prazo máximo de prisão preventiva, por referência à fase do processo em causa, terminou exatamente no dia em que foi proferido o acórdão condenatório.

Considerando a ausência de fundamentação para a alegação, somos levados a crer que se referirá o requerente à contagem do prazo.

Ora, como igualmente se mostra, abundantemente, expresso em jurisprudência pacífica deste Tribunal, dada a natureza substantiva dos prazos previstos no artº 215º do CPP (a par dos prazos de apresentação de detido ou de prescrição do procedimento criminal e da pena), é aplicável à sua contagem o disposto no art.º 279º do Código Civil que dispõe:

“À fixação do termo são aplicáveis, em caso de dúvida, as seguintes regras:

c) O prazo fixado em semanas, meses ou anos, a contar de certa data, termina às 24 horas do dia que corresponda, dentro da última semana, mês ou ano, a essa data; mas, se no último mês não existir dia correspondente, o prazo finda no último dia desse mês.

Citou-se em recente Acórdão deste Tribunal[2] “A este propósito, ensinavam Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil anotado”, vol. I (ed. de 1967), 180:

(…) 3. A doutrina da alínea c) harmoniza-se com as regras das alíneas anteriores. Assim, o prazo de uma semana que começou numa segunda-feira termina às 24 horas da segunda-feira seguinte, não se contando, portanto, o dia do início do prazo. O mesmo acontece com o prazo de meses ou anos. Já acima dissemos, ao anotarmos o artigo 122º, que a menoridade só termina às 24 horas do dia correspondente ao do nascimento. (…)””.

O prazo terminava, pois, às 24 horas do dia 10.10.2022, tendo o Acórdão sido proferido, como o peticionante sabe por estar presente, em momento anterior à extinção da medida.[3]

Daí, portanto, a manifesta falta de fundamento do argumento sustentado pelo requerente.


4. Tendo sido a prisão preventiva do arguido ordenada pela autoridade judiciária competente, por crime pelo qual a lei admite prisão preventiva, em virtude de factos indiciadores da prática de crime que integra a definição legal de criminalidade altamente organizada e é punido com pena de prisão superior a 8 anos, vindo a ser proferida condenação por esses factos, dentro do prazo legal da duração máxima da prisão preventiva então em curso, e mantendo-se a prisão preventiva dentro do prazo máximo de duração dessa medida de coação na fase em que o processo ora se encontra, não se encontra o requerente em situação de prisão ilegal.

Com a prolação do acórdão que, em 1ª instancia, condenou o ali arguido e aqui requerente, o prazo máximo da sua prisão preventiva à ordem do processo passou, legalmente, a ser de 2 anos – art.º 215º n.º 1 al.ª d) e n.º 2 do CPP -, e só expirará em 10 de abril de 2023.

Acresce que no final do acórdão condenatório, o tribunal, reexaminando os pressupostos da prisão preventiva do arguido, decidiu mantê-la. Assim, o requerente está atualmente privado da liberdade, em prisão preventiva, que se mantém no prazo legalmente estabelecido para a fase atual do processo.


Não se verificam, pois, os pressupostos de concessão da providência de habeas corpus, inexistindo ilegalidade, abuso de poder ou inconstitucionalidade que imponha o respetivo deferimento, mostrando-se o requerimento manifestamente infundado.


III. Decisão:

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, decidindo nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 223.º do CPP, delibera:

- Indeferir, por falta de fundamento, a petição de habeas corpus, apresentada pelo Requerente.

- Condenar o Requerente nas custas da providência, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs (art.º. 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Judiciais);

- Condenar, ainda, o peticionante na sanção processual cominada no art.º 223º, n.º 6, do CPP, que se fixa em 6 UCs. 


Supremo Tribunal de Justiça, 19 de outubro de 2022


Teresa de Almeida (Relatora)

Ernesto Vaz Pereira (1.º Adjunto)

Lopes da Mota (2.º Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

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[1]Acórdãos do STJ de 22.09.2021, no Proc. n.º 189/19.5JELSB-M.S1; de 28.11.2018, no Proc. n.º 257/18.0GCMTJ-AF.S1; de 14.6.2018, no Proc. n.º 57/15.0T9SEI-C.S1; de 2.10.2014, no Proc. n.º 107/13.4P6PRT- B.S1. 
[2] Acórdão do STJ de 22.09.2021, no Proc. n.º 189/19.5JELSB-M.S1, Relator Sénio Alves.
[3] Entre outros, Ac. deste Tribunal de 11-11-2021, no Proc. n.º 869/18.2JACBR-G.S1, Relator Eduardo Loureiro.